Rua das Mercês, 8 9000-420 – Funchal Telef (+351291)214970 Fax (+351291)223002
Email:
[email protected] [email protected] http://www.madeira-edu.pt/ceha/
VIEIRA, Alberto (1998), O infante D. Henrique e a Madeira
COMO REFERENCIAR ESTE TEXTO: VIEIRA, Alberto (1998), O infante D. Henrique e a Madeira, Funchal, CEHA-Biblioteca Digital, disponível em: http://www.madeira-edu.pt/Portals/31/CEHA/bdigital/avieira/ infante.pdf, data da visita: / /
RECOMENDAÇÕES O utilizador pode usar os livros digitais aqui apresentados como fonte das suas próprias obras, usando a norma de referência acima apresentada, assumindo as responsabilidades inerentes ao rigoroso respeito pelas normas do Direito de Autor. O utilizador obriga-se, ainda, a cumprir escrupulosamente a legislação aplicável, nomeadamente, em matéria de criminalidade informática, de direitos de propriedade intelectual e de direitos de propriedade industrial, sendo exclusivamente responsável pela infracção aos comandos aplicáveis.
1 Os documentos, para este período de cerca de 40 anos, são poucos e os que existem em quase nada satisfazem a curiosidade do investigador e publico interessado. Sem duvida, aquele que se nos apresenta mais importante pela informação que contem, suplanta o seu mbito cronológico. a resposta do infante D. Fernando s reclamações dos moradores feitas por dois procuradores idos da ilha1. As soluções e respostas aos pedidos permitem rastrear a situação vivida no tempo de governo do infante D. Henrique. parte a documentação diplomática, existe um conjunto variado de fontes narrativas que abordam estes primeiros anos de ocupação do arquipélago. Aqui, a principal dificuldade encontrar uma versão consensual para as diversas dúvidas que nos assaltam. E, lamentavelmente, a historiografia tem-se dedicado mais a descobrir as diferenças do que as suas semelhanças. Por tudo isto, a História dos primeiros quarenta anos de ocupação do arquipélago, faz-se mais pelas dúvidas do que pelas certezas. A cada historiador ou erudito, que se debruça sobre a Época, corresponde uma nova e, por vezes, original versão. A mais recente, a de José Hermano Saraiva2. Por isso, porque não nossa intenção entrar nesta lista, decidimo-nos por outro caminho, assim a nossa atenção será centrada na exposição nas dúvidas e certezas, reservando-se espaço separado para o debate dos temas polémicos e que permitem várias leituras. A intenção tão só colocar o leitor perante um conjunto variado de informações que lhe possibilitem a sua leitura. Mesmo assim possível retirar deste conjunto de dúvidas e certezas uma opinião un nime sobre o que ter o sido os primeiros anos de ocupação e valorização económica das ilhas. Aqui a presença do Infante D. Henrique foi fundamental. A duvida principal levanta-se quanto ao período de duração da mesma. Acresce, ainda, que o conhecimento aprofundado de tudo o que se passou no arquipélago da Madeira fundamental para a compreensão do fenómeno daí decorrente. A Madeira, para além de ter sido a primeira terra portuguesa do Novo Mundo Atl ntico, foi, por isso mesmo, modelo para todas as iniciativas levadas a cabo em novas reas de ocupação. 2. "...E NOVAMENTE ACHEI" Foi desta forma que o infante D. Henrique reclamou em 8 de Setembro de 14603 o descobrimento das ilhas do arquipélago da Madeira. Novamente aqui interpretado por todos como pela primeira vez, o que quererá significar que antes não haviam sido encontradas ou se o foram delas não ficara rastro na memória colectiva. Esta afirmação contraria a tradição histórica que testemunha o seu conhecimento desde meados do século XIV. também, contradiz os textos coevos que apontam uma diversidade de versões para o seu encontro em Época muito anterior ao infante. Sendo assim como interpretar semelhante 1
RGCMF, t. I, fl. 203-211, publ. AHM, XV (1972), 11-20.
2
Temas de hist\ria de Portugal. espaHo PortuguLs, Vol. II, Lisboa, 1989, 109-123. I de notar a forma como tudo surge na "RelaHno de Francisco Alcoforado". O autor, depois de referir o descobrimento de Machim, refere que el-Rei ordenou a Jono GonHalves Zarco que "fose descobrir aquella terra". 3
2 intencionalidade? Para muitos ela prende-se com a disputa em torno das Canárias e da necessidade de preservar a sua posse quando aquelas estavam irremediavelmente perdidas. Aqui, fez-se valer o "praescritio longissimo temporis" do direito romano e, por isso mesmo, havia que argumentar a prioridade lusíada. Da resulta uma relação directa entre os dois arquipélagos, nos começos da expansão atl ntica. D. João II, em 14934, peremptório na reclamação dos direitos de posse pelos portugueses da ilha de Madeira, "porquanto essa ylha não foy de nossos antepassados nem della teveram dereyto algum ou domínio ante de ser descoberta y ocupada pello sennor rey noso bisavou...". idêntica ideia surge em alguns cronistas, como Jerónimo Dias Leite. Esta mesma argumentação foi aduzida no debate em torno do descobrimento da ilha por Roberto Machim, no século XIV. Para alguns, foram os ingleses que criaram a "lenda" no século XVII para mais facilmente conseguiram a sua posse, como se vinha reclamando no dote de infanta D. Catarina5. Para além desta polémica que envolveu o descobrimento da Madeira por Machim, há a considerar todo o debate sobre o descobrimento das ilhas, encetado a partir da segunda metade do século XIX. Desde então até hoje a controvérsia manteve-se, alimentada num número inaudito de publicações. Não há consenso possível, mas, hoje, parece ganhar corpo a ideia de que o descobrimento das ilhas teve lugar em Época anterior sendo a acção dos navegadores portugueses do século XV entendida como reconhecimento, ou como o referem alguns, descobrimento oficial6. As duvidas começam a surgir quando procuramos resposta para os aspectos de pormenor. A eterna questão de quem, como e quando foi descoberto o arquipélago não parece de fácil solução. Os inúmeros estudos sobre o tema lan aram-nos para um mar de dúvidas e incertezas. As datas exactas do encontro e início do povoamento, situação que serve as efemérides e o empenho da sociedade politica, não encontram fácil solução, porque algumas das mais credíveis fontes coevas divergem neste particular. A isto associa-se a dificuldade em 4
Saudades da Terra, ed. 1873, p. 675-677.
5
Confronte-se Eduardo PEREIRA, Ilhas de Zargo, Vol. II, Funchal, 1989, pp. 856-865; "A Lenda de Machim" in Congresso do Mundo PortuguLs, Vol. III, T. I, Lisboa, 1940, pp. 189-207. 6
Durante muito tempo discutiu-se o alcance dos seguintes conceitos: reconhecimento, descobrimento e achamento. Veja-se J. VIDAGO, O conceito da palavra descobrimento no sJculo XVI, separata n 155-156 revista VJrtice; Gago COUTINHO, Nautica dos descobrimentos, vol. II, Lisboa, 1952; Jaime CORTESmO, "O que J o descobrimento ?", in Os descobrimentos portugueses, vol. IV, Lisboa, 1981, pp.909-923; Armando CORTESmO, "Descobrimento e descobrimentos", in Garcia da Orta, n especial, 1972, pp.191-200; Joaquim Barradas de CARVALHO, "A prP-hist\ria e a hist\ria das palavras Descobrir e descobrimento (1055-1567)(em busca da especificidade da expansno portuguesa)" in Hist\ria, n .6, Lisboa, Abril de 1980, 30-38; LuRs de ALBUQUERQUE, "Algumas reflextes a proposito da palavra descobrimento", in Islenha, n .1(1987), 7-11.
3 identificar os verdadeiros protagonistas: quem ordenou as expedições quatrocentistas e quem as realizou? A tradição, que filia a ideia do encontro quatrocentista, releva o real protagonismo dos homens da casa do infante D. Henrique (João Gonçalves Zarco aliado de Tristão Vaz), que como quem diz do próprio infante. De parte ficam Roberto Machim, os anónimos castelhanos e o incógnito navegador, Afonso Fernandes, referido apenas por Diogo Gomes7. Todavia, para o tema que nos motiva, o mais importante saber quem ordenou e financiou tais expedições que levaram ao reconhecimento e ocupação da Madeira: o infante D. Henrique ou o rei D. João I? Esta duvida liga-se como outra global sobre o real protagonismo da coroa e da casa do infante nos portugueses nos descobrimentos. O debate não novo e tão pouco deverá considerar-se encerrado neste momento de comemoração da morte do infante D. Henrique8. Tudo isto foi sustentado por Gomes Eanes de Zurara, com o texto que ficou conhecido por Crónica de Guiné. Deste modo, questionou-se a forma de intervenção do monarca e do infante no (re)descobrimento e ocupação do arquipélago. O infante refere que, desde 1425, participou activamente neste processo mas a documentação oficial só o menciona como tal a partir de 1433, data em que recebeu do rei o direito de posse das mesmas ilhas. também, compilando as informações disponíveis, nomeadamente nos cronistas, constata-se que não fácil diferenciar até onde chegou o real protagonismo de ambos. Certo, certo, que a partir de 1433 o infante D. Henrique actuou de pleno direito nestas ilhas, comandando todo o processo efectivo de povoamento e valorização económica. , na verdade, a partir da década de trinta que as ilhas passam a assumir import ncia no contexto dos descobrimentos portugueses. Elas afirmam-se com reas de cultivo de produtos com alto valor mercantil, caso dos cereais, vinho e a car, e como porta charneira para a expansão al m-atl ntico, uma vez perdidas as esperanças na posse das Canárias. Note-se que as expedições de D. Fernando de Castro (1424) e António Gonçalves da C mara (1427) foram 7
As RelaHtes do descobrimento de GuinJ e das ilhas dos AHores, Madeira e Cabo Verde, sep. do Boletim da Sociedade de Geografia, 1898-1899. 8
Tenha-se em conta as comemoraHtes do IV centen
4 inconclusivas para as reais aspirações Henriquinas. Ademais, neste processo as gentes fixadas na Madeira tiveram uma participação activa9, daqui resultando uma ligação que só as represálias inerentes guerra de restauração conseguiram alterar. Em 1460, quando o Infante D. Henrique, beira da morte, declarava os seus últimos desejos não se esqueceu de enunciar os feitos insulares e o seu empenho no progresso das ilhas, nomeadamente religioso. Por isso mesmo, consignou aos madeirenses a obrigação perpétua de lhe rezarem uma missa todos os sábados do ano nas igrejas do arquipélago. Sabemos do seu cumprimento na MAdeira até ao século XVIII10, caindo depois no esquecimento. Somente em 1960 a celebração do centenário da sua morte veio colocar a questão da divida não cumprida.
9
Alberto VIEIRA, "O infante Don Henrique e o senhorio de Lanzarote: implicaHtes polRticas, sociais e econ\micas", in II Jornadas de hist\ria de Lanzarote e Fuerteventura, Tomo I, 1990, 261-274. 10
Temos notRcia do seu cumprimento nos sJculos XVI e XVII, recebendo os vig
5
2.1. DUVIDAS E CERTEZAS
1.AS VERSÕES DO DESCOBRIMENTO DA MADEIRA E PORTO SANTO De acordo com o texto de Gaspar Frutuoso o descobrimento da Ilha da Madeira teve lugar a 1 de Julho de 1419, desembarcando os portugueses na baía de Machico no dia seguinte, da visitação de Santa Isabel11. Esta versão poderá ser considerada como a oficial e foi a que conquistou a aprovação do madeirense que a estabeleceu como o marco para o dia da Região Autónoma. O descobrimento da Madeira, tal como Gaspar Frutuoso o apresenta, embora considerado como uma verdade adquirida e intransponível, carece de fundamentação e merece, luz da crítica histórica, inúmeros reparos. Estamos perante uma opção oitocentista que teve como base os testemunhos dos cronistas dos séculos XV e XVI, mais divulgados e que possibilitam a fundamentação desta tese oficial, isto , de Gomes Eanes de Zurara12, João de Barros13, Gaspar Frutuoso14. de salientar que todas as demais fontes que contrariam esta visão foram ignoradas, como aconteceu com os textos de Cadamosto15, Duarte Pacheco Pereira16, Damião de Góis17, Valentim Fernandes18 e António Galvão19, ou então vilipendiadas, como sucedeu com o relato de Francisco Note-se que atJ esta data J questionada B luz de um estudo do calend
12
Cr\nica de GuinJ, Porto, 1937, cap. CXXXII, pp.189-196.
13
Asia, decada I, livro I, caps. II e III.
14
Saudades da Terra. livro segundo, Ponta Delgada, 1979, cap.I a VIII 15
"Primeira NavegaHno", publ. in A Madeira vista por estrangeiros, Funchal, 1981, pp.35-36. 16
Esmeraldo de situ orbis, ed. 1975, pp. 14, 97-98.
17
Cr\nica do principe D. Jono, Coimbra, 1790, cap. VIII,
pp.13-14. 18
O manuscrito pp.155-159, 219. 19
de
Valentim
Fernandes,
Lisboa,
1940,
Tratado dos descobrimentos antigos e modernos, Porto, 1944, pp.82-83, 114-119.
6 Alcoforado20, D. Francisco Manuel de Melo21, Giulio Landi22 e Manuel Constantino23. Na actualidade, com a revelação de algumas fontes, como o texto de Francisco Alcoforado (1878-1961), de Jerónimo Dias Leite (1947) e o aparecimento de novos dados, tarefa urgente reformular o ide rio subjacente ao descobrimento da ilha. Eis uma síntese das nossas conclusões. Todos os autores referenciados são un nimes em considerar o povoamento do arquipélago como obra portuguesa, tendo como obreiro o infante D. Henrique e por executor João Gonçalves Zarco, com ou sem o apoio de Tristão Vaz Teixeira. Apenas Giulio Landi tem opinião diferente, pois para ele tudo foi feito por Machim. A polémica tem lugar quanto data do descobrimento e sua autoria. Para uns, as ilhas foram descobertas por portugueses: João Gonçalves Zarco com Tristão Vaz, ou Afonso Fernandes. Para outros esta da iniciativa de estrangeiros: castelhanos (o Porto Santo), ou ingleses (Madeira). Numa breve síntese podemos afirmar que existem quatro versões coevas, que serviram de base a todas as restantes: 1. relação de Francisco Alcoforado atribui o descobrimento da ilha ao inglês Robert Machim e o reconhecimento aos portugueses; 2. relação de Diogo Gomes24 apresenta o descobrimento como sendo de iniciativa do piloto português Afonso Fernandes e o povoamento a João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz; 3. Zurara atribui a João Gonçalves Zargo e Tristão Vaz o achamento das ilhas bem como o seu reconhecimento e povoamento; 4. Cadamosto aponta o descobrimento pelos homens do infante D. Henrique e o seu povoamento por João Gonçalves Zargo e Tristão Vaz. a estas quatro vers es-base que a Historiografia vai buscar os argumentos para a defesa das múltiplas teorias que se colocam. Neste contexto merecem a nossa atenção os 20
EdiHno de Jean Fontvieille, "A lenda de MAchim. une dJcouverte bibliographique B la bibliotheque MusJe du Palais Ducal de Bragance B Vila ViHosa(Portugal)", in Actas do Congresso Internacional de Hist\ria dos Descobrimentos, vol. III, Lisboa, 1961, pp.197-238. 21
Epan
"DescriHno da ilha da Madeira", in A Madeira vista por estrangeiros, Funchal, 1981, pp.79-82. 23
Hist\ria da ilha da Madeira, Funchal, 1930 (ediHno anotada por Fernando Augusto da Silva). 24
"RelaHtes do descobrimento da GuinJ e das ilhas dos AHores, Madeira e Cabo Verde", in Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 1898-99, pp. 25-28.
7 textos de João de Barros e Gaspar Frutuoso. Ambos foram e continuam a ser o principal sustentáculo da tese oficial do descobrimento henriquino. Os seus arautos, aproveitando-se das lacunas do texto de Zurara, afinam pela visão posterior de Barros, repetida com grande evidência em Frutuoso. No entanto, quanto a este último, apenas o fazem de modo parcelar, uma vez que ignoram todas as outras versões aí compiladas. A divulgação de fontes inéditas, que apresentam argumentos contraditórios desta versão, não os convencem, pois tudo o que o contrariasse era considerado como falso ou apócrifo. O debate que teve lugar a partir do século XIX, tendo como ponto de partida o estudo de Álvaro Rodrigues de Azevedo25, deu origem ao aparecimento de várias teses sobre o descobrimento da Madeira. A polémica recrudesceu na décadas de cinquenta e sessenta, por altura da comemoração da morte do Infante D. Henrique26. Entretanto, para três ficara a evocação do quarto centenário do descobrimento da Madeira, que foi uma importante manifesta o de relevo na Madeira do primeiro quartel do nosso século27. Não obstante, o vasto número de estudos existentes que, de um ou de outro modo, abordam a questão, podemos dizer que todo este movimento editorial orienta-se de acordo com quatro ideias-base, que resumem toda a informação e fundamentação do problema: 1. TESE QUATROCENTISTA, os que argumentam, a partir de Zurara, João de Barros e Gaspar Frutuoso, considerando o arquipélago descoberto pelos portugueses no século XV, destacam a acção de Zargo e Tristão Vaz e o infante D. Henrique. A sua formulação e fundamentação foi definida, a partir de 1873, por Álvaro Rodrigues de Azevedo. Mais tarde, com o quinto centenário do descobrimento da ilha, retomada por Fernando Augusto da Silva, saindo reforçada em 1960, no momento do quinto centenário da morte do infante D. Henrique, por Eduardo Pereira. Em todos os autores que defendem esta tese manifesta a intenção nacionalista e patriótica, quer na hipervaloriza o da iniciativa dos portugueses, quer na marginalização de outras versões, assumindo Álvaro Rodrigues de Azevedo e Eduardo Pereira uma crítica cerrada versão de Machim. 25
"Nota III. Descobrimento do archipelago da Madeira Por Zargo e Tristno Vaz", "Nota IV. Descobrimento do archipelago da Madeira: diversas tradiHtes, lendas e noticias", "Nota V. Descobrimento da ilha da Madeira por ingleses: caso de Machim e Anna de Arfet", publicado in Saudades da Terra(...), Funchal, 1873, pp. 329-339, 340-348, 348-429. 26
Confronte-se Arquivo Hist\rico da Madeira, vol. XII,
1960-61. 27
Pe. Fernando Augusto da SILVA, "Quincentenario do descobrimento da Madeira", in Elucid
8
2. TESE TRECENTISTA contrapõe ao conhecimento quatrocentista a prova documental e cartográfica do seu achamento no século XIV. Estes, no entanto, divergem entre si, quanto autoria das expedições que conduziram ao seu conhecimento. Assim, para uns, a descoberta deveu-se a genoveses, catalães ou venezianos; outros apontam as mesmas expedições, mas ao serviço da coroa portuguesa, o que valoriza a iniciativa nacional deste empreendimento. No último caso de destacar a polémica mantida entre M.d'Azevac28 e J. Costa Macedo29 e o Visconde de Santarém30. Em abono da autoria portuguesa do descobrimento temos, em 1894, a opinião de Brito Rebelo31 que, baseado num documento de 1379, tenta esboçar uma explicação para o topónimo Machico. Segundo ele teria sido um certo Machico, mestre de barca, quem descobriu a ilha da Madeira, tendo desembarcado no local que mereceu o seu nome. 3. TESE DE MACHIM, os que argumentam, em complemento da segunda tese, que o conhecimento do arquipélago resultou da aventura de Machim. vasta bibliográfica sobre esta tese, sendo, no entanto, poucas as perspectivas aí enunciadas, uma vez que se denota um apego s vis es clássicas, quer na afirmativa, quer na sua negação. Neste último caso a ideia expressa-se de acordo com a enunciação de Álvaro Rodrigues de Azevedo32 e Eduardo Pereira33. Assim, em 1873, Álvaro Rodrigues de Azevedo referia já sete perspectivas diferentes da referida tese, que no essencial se resumem a três opiniões, amplamente divulgadas: - os que afirmam ser o relato pura lenda, carecendo de fundamento histórico, baseando a sua argumentação nas crónicas coevas, - os que defendem afincadamente a veracidade do relato, apresentando o necessário Sles de l'Afrique, Paris, 1847; Notice des dJcouvertes faites au Moyen-Age dans l'ocean Atlantique, Paris, 1845. 28
29
"Mem\rias para a Hist\ria das navegaHtes e descobrimento dos portugueses", in Mem\rias da Academia Real de Ciencias de Lisboa, vol. IV, Lisboa, 1819, pp.1-19; "Aditamento B primeira parte da mem\ria sobre as verdadeiras Jpocas em que principiarno as nossas navegaHtes e descobrimento do oceano Atl>ntico", in Mem\rias da Academia Real de CiLncias, vol. IX, Lisboa, 1831, pp. 177-230. 30
Mem\ria sobre a prioridade dos descobrimentos portugueses na costa ocidental africana, Lisboa, 1958. 31
Livro de Marinharia, Lisboa, 1903.
32
Ob.cit., nota V.
33
"A lenda de Machim", in Congresso do Mundo PortuguLs, vol. III, tomo 1, Lisboa, 1940, pp. 188-208.
9 fundamento histórico, - os que perfilham uma opinião eclética, fazendo coincidir as versões anteriores no conhecimento da ilha. Esta tese foi definida pela primeira vez, em 1812, por N. C. Pitta34, a que se seguiu, em 1869, H. Major35. No entanto, só a partir deste último mereceu a sanha de Álvaro Rodrigues de Azevedo e Camilo Castelo Branco36, que lançaram uma onda de descrédito sobre a aventura de Machim. Na actualidade, A. G. Rodrigues37, Pita Ferreira38 e Armando Cortesão39 retomaram-na procurando apagar o descrédito vigente. Assim António Gonçalves Rodrigues preocupa-se em comprovar documentalmente a existência das personalidades envolvidas no relato, através de uma busca nos arquivos ingleses. Pita Ferreira, por seu turno, procura fundamentar a veracidade do relato dado por Francisco Alcoforado e os factos que se relacionam com o achado da cruz, que o testemunha, por Robert Page40. Entretanto Armando Cortesão contraria a critica dos seus detractores ao referir que as versões da aventura são todas portuguesas, não sendo razoável a opinião divulgada da sua origem inglesa. Não obstante, a intenção destes dois últimos não a defesa da descoberta de Machim, mas sim enquadrar o facto no conhecimento trecentista, ou na tradição remota, conforme atestam as fontes greco-romanas. A defesa do descobrimento da ilha por Machim esta subjacente existência e 34
35
36
Account of the island of Madeira, Londres, 1812. Vida do Infante D. Henrique, Lisboa, 1876. Sentimentalismo e Hist\ria, Porto, 1897.
37
D. Francisco Manuel de Melo e o descobrimento da Madeira, Lisboa, 1935, sep. Biblos; "Machim, Machico, Melo e Madeira", in Biblos, vol. XVI, t.II, pp. 567-571. 38
Notas Para a Hist\ria da ilha da Madeira. Descoberta e inicio do povoamento, Funchal, 1957; A relaHno de Francisco Alcoforado, Funchal, 1961(sep.DAHM, n .31); "O caso Machim B face dos documentos", in Das Artes e Da Hist\ria da Madeira, n .25-26-27, 1957. 39
"O descobrimento do Porto Santo e da Madeira e o Infante D. Henrique", Revista da Universidade de Coimbra, vol. XXIII, 1973, pp.305-317; "A Hist\ria do descobrimento da ilha da MAdeira por Roberto Machim em fins do sJculo XIV", in Revista da Universidade de Coimbra, vol. XXIII, pp. 292-409. 40
Isto valeu-lhe um ataque cerrado do Visconde do Porto da Cruz(Revista Portuguesa, n .84) e Eduardo Pereira("Adenda", in Ilhas de Zargo, vol. II, pp. 857-865). A resposta do autor surgiu em "As notas para a Hist\ria da ilha da Madeira"no Pelourinho, Funchal, 1959.
10 veracidade da relação de Francisco Alcoforado. Para muitos uma criação do século XVII e, por isso mesmo, carece de fundamento a versão que veicula. Muito se escreveu sobre isto, mas apenas Ernesto Gonçalves41 teve a coragem de avançar com uma análise de crítica interna, onde veio a revelar-nos alguns problemas. Mais recentemente, luís de Sousa Melo42 retoma este tipo de análise com novos dados. A isto acresce a mais recente aporta o de David Pinto Correia que procura enquadrar op relato dentro do panorama literário da Época43. Todavia este um percurso ainda inacabado, a merecer redobrada atenção de historiadores e linguistas. 4. TESE ECL TICA, os que procuram uma opinião de consenso entre as várias fontes e versões, perfilhando soluções intermédias, ou reforçando a sua dúvida em face de todas. Assim, Jordão de Freitas44 e João Franco Machado45 procuram conciliar as fontes que atestam um conhecimento trecentista com aquelas que apontam apenas para o século seguinte, concluindo por um processo contínuo de conhecimento ou reconhecimento e divulgação na Europa. Armando Cortesão e J. A. Betencourt46 defendem a ideia do seu conhecimento desde tempos imemoráveis. No entanto, concordam, ainda que parcialmente, com as restantes versões, buscando nelas a informação necessária e esclarecida para a sua fundamentação. Após esta enunciação das principais opiniões ou versões parece-nos ilógico continuar a defender a opinião, embora comummente aceite, do seu primeiro conhecimento em 2 de Julho de 1419, por João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira. Esta, luz do que atrás foi dito, carece de fundamento histórico. além disso, a opinião de Gaspar Frutuoso parece-nos pouco válida, uma vez que o autor relata um facto que não presenciou e que se passara há mais de 160 anos, recorrendo, por isso, tradição escrita e oral. Por outro 41
"Estudo da RelaHno de Francisco Alcoforado ", "Algo mais acerca da RelaHno de Francisco Alcoforado ", im Portugal e a Ilha, Funchal, 1992, pp. 235-255, 257-268. 42
"O texto de Francisco Alcoforado", in Atl>ntico, n .5, 1986, pp. 19-26. "Da hist\ria B literatura-ainda o descobrimento da Madeira", in Actas III Col\quio Internacional de Hist\ria da Madeira, Funchal, 1993, pp.201-206. 43
44
Quando foi descoberta a Madeira ?, Lisboa, 1911.
45
"O conhecimento dos arquipJlagos no sJculo XV",in Hist\ria da Expansno Portuguesa no Mundo, vol. I, pp. 269-273; "A relaHno de Francisco Alcoforado", in Arquivo Hist\rico da Marinha, vol.I, 1936, pp.317-329. 46
Descobrimentos, guerras e conquistas dos Portugueses em terras do ultramar nos sJculos XV e XVI, Lisboa, 1881-82.
11 lado, o mesmo autor, que serve de fundamento versão oficial, nos cinco volumes que dedicou história das ilhas do Atl ntico não apresenta uma certeza do descobrimento quatrocentista e henriquino, antes fica-se pela compilação do maior número de versões existentes até a data da sua escrita. E, deste modo, o texto que serviu de base fundamentação tese oficial poderá ser utilizado na defesa da descoberta de Machim. Perante informação tão contraditória que credibilidade merece uma tese fundamentada apenas numa perspectiva? Que razões encontrou a historiografia do século XIX e princípios do século XX para valorizar a denominada versão oficial? Que motivos levaram a historiografia a alhear-se das fontes coevas, como Zurara, Cadamosto, Francisco Alcoforado, Diogo Gomes e Jerónimo Dias Leite ?
2. A "LENDA" DE MACHIM
No debate do descobrimento da Madeira surge uma importante questão: a relação da viagem de Machim pode ser considerada como verdadeira ou, ao invés apenas uma lenda? Esta , sem dúvida, a versão que mais tem entusiasmado o público, preocupado os historiadores e eruditos que se debruçam sobre a História dos primórdios da ilha. Tal como vimos atrás, desde finais do século XVI, com a célebre compilação de Gaspar Frutuoso, que a História da Madeira se debate com o problema da data e propriedade da sua descoberta sem que seja possível uma opinião de consenso e de acordo com as fontes históricas. Aqui, os interesses políticos sobrepuseram-se aos testemunhos históricos conduzindo-a para uma profissão de fé, alheando-se dos dados concludentes da cartografia ou da veracidade da polémica relação de Francisco Alcoforado. Este relato atribui o primeiro descobrimento da ilha a Robert Machim, antes de 1344, aquando da sua fuga de Bristol com Ana Arfet. E, de acordo com o testemunho de Valentim Fernandes, o nome dado baía onde aportaram foi Machim, sendo o Matchico a sua corruptela. Estava assim encontrada a relação entre Machim e Machico. Todavia, o facto deste relato ter chegado ao conhecimento dos eruditos sob a forma de opúsculo anónimo, editado em 167147 em Paris, e através do texto novelesco de D. Francisco Manuel de Melo, a Epan fora Amorosa, não colheu muitas opiniões a seu favor. E, deste modo, a partir da sua defesa por Henry Major em 186848 logo se 47
Desta ediHno fez-se uma reproduHno no sJculo dezanove que figura com a mesma data. 48
Chama-se a atenHno para o facto de que a primeira ediHno em inglLs do texto de Francisco Alcoforado J de 1675 (The first discovery of the island of Madeira), seguindo-se outra em 1750 ( An historical account of the discovery of the island of Madeira, abridged from the portugueze original to which is added, an account of the present state of the island, in a letter to a friend) Em 1845 Terence Mahon Hughes publicou um poema (The ocean flower. A poem preceded by an historical and descriptive account of the island of Madeira).
12 levantaram inúmeros protestos da Historiografia nacional. O primeiro a ditar a sentença foi Álvaro Rodrigues de Azevedo em 1873 nas anotações s Saudades da Terra. A extensa nota V49, lida e relida pelos eruditos locais foi o veredicto final contra a veracidade do relato. Com isso ignorou-se, por exemplo, o aparecimento dos manuscritos que serviram de fonte a esta versão: primeiro o da Biblioteca Nacional de Madrid revelado em 1878 por Cesareo Fernandes Duro, depois o da Biblioteca do paços Ducal de Vila viçosa, apresentado ao público em 1960 por Juan Fontvieille. Foi o Padre Pita Ferreira50 o único, entre os eruditos madeirenses, que se atreveu a defender a veracidade deste relato não colhendo qualquer apoio. O tema apaixonou a geração dos historiadores do cenáculo e dela passou ao público. Mas, disto pouco ou nada resultou, uma vez que todos se preocuparam em defender aprioristicamente a sua versão, esquecendo o estudo crítico do documento e a necessidade de inserção ou não na contextualidade da Época. Aqui a existência de documentos que corroborassem a existência dos protagonista e a ausência de anacronismos no relato eram e continuam a ser o único meio capaz de assegurar a sua veracidade. Todos ignoraram crítica interna do texto e preocuparam-se mais com o acolhimento que o tema merecia junto dos literatos ingleses. O espectro do medo que isto fosse usado para reivindicação da posse por parte dos ingleses foi o mote para a sua negação como facto histórico. Em 1861 o Rev. Samuel Lysons51 preocupou-se com a questão e escreveu um opúsculo apresentando provas documentais que atestavam a veracidade do relato. Foi ele quem primeiro encontrou documentos probatórios da existência do par amoroso que protagonizou a aventura. Aliás, em 1943, H. A. Machen52, um dos descendentes deste Machim trecentista, tra ou-nos de forma precisa a genealogia dos seus ascendentes. Em 1940 António Gonçalves Rodrigues apresento parte destas provas genealógicas dos Machins de Bristol, corroborando a veracidade do relato. A tudo isto acresce a existência de dois outros Machins. Nas Canárias referenciado um Juan Machim53, enquanto em Lisboa no ano de 1544 temos um Machym Fernandes. Entretanto, em 1894 Brito Rebelo54 revela-nos um Machico, 49
"Descobrimento da ilha da Madeira por inglezes: Caso de Machim e Anna de Arfet", pp.348-429 50
"O caso Machim B face dos documentos", in DAHM, n .25-
27, 1957. 51
"Machin and Madeira", Illustrations, Londres, 1861, pp.5-23.
in
Gloucestershire
52
"Machen Family, Gloucestershire", in Bristol and Gloucestershire Arcaelogical Transactions for the year 1943, pp.96-112. 53
Juan ALVAREZ DELGADO, "El episodio de Juan Machin en la Madera", in Das Artes e Da Hist\ria da Madeira, vol. VI, n .31, 1961. 54
Livro de Marinharia, Lisboa, 1903, pp. XXIII-XXIV; Frei Ayres de S;, Frei GonHalo Velho, Lisboa, 1899, pp. CXVIICXXIII
13 mestre de barca em Lisboa, que foi motivo de regozijo para todos os que se preocupavam em negar a relação deste local com Machim. Este era sem dúvida um argumento mais plausível que a associação ao topónimo Monchique. A descoberta recente de dois documentos dos arquivos brit nicos parecem trazer nova Luz. Em 137355 surge o apelido Macheco atribuído a um patrão de navio de Portugal que se dirigia para St. Mallo. Mais tarde, uma ordem de expulsão de Henrique IV datada de 140656 apresenta uma lista de estrangeiros a expulsar da Inglaterra, temos um Macheco e um Machim. Este último documento adquire import ncia uma vez que faz associar o Machim ao Macheco e diz-nos que os mesmos teriam sa do de Inglaterra em 1406. Se a este facto juntarmos o relato de Francisco Alcoforado teremos uma maior consistência entre a aventura de Machim e o descobrimento de João Gonçalves Zarco por intermédio da informação do piloto João de Amores. Note-se, que a disparidade de datas entre ambos os factos um dos argumentos mais seguros na contestação da relação. Entre este facto e o reconhecimento por João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz mediaram apenas treze anos, enquanto em relação anterior data (1344) passavam setenta e cinco anos, o que seria impossível a transmissão do relato por meio de sobreviventes. Deste modo muito plausível que estes tenham sido os protagonistas da façanha relatada por Francisco Alcoforado, sendo Macheco, o mestre da embarcação que em Machico encalhou e que por isso mesmo teria dado o nome ao porto de salvamento. Tendo em conta a proximidade de datas entre este e o referido em 1416 em Lisboa muito natural que seja o mesmo ou um familiar seu, que concerteza não esteve alheio a esta realidade. A forma como o relato foi escrito por Francisco Alcoforado pode ser justificada pela necessidade de enfabular o feito, de acordo com os c nones da Época, apresentando-o como resultado de uma aventura amorosa. Esta não uma situação inédita na tradição literária que testemunhou a revelação do oceano Atl ntico. A partir daqui poder-se- afirmar, com segurança, a veracidade do relato sem que isso ponha em causa a prioridade lusíada na sua revelação, pois um dos protagonistas marinheiro português. Por outro lado o nome dado baía radicar-se-ia, como vimos, a origem neste Macheco, filho de marinheiros lusos, e não deverá ser entendido como uma corruptela de Monchique ou Machim. Esta foi uma atitude comum entre os marinheiros portugueses.
3.A QUEM ATRIBUIR O COMANDO DO POVOAMENTO DA MADEIRA: O REI OU O INFANTE
DESCOBRIMENTO
E
55
Public Record Office, Calendar of close Rolls, ref. 23/59 X/II 7137, pp. 488 a 489. 56
Public Record Office, Parliament.VII & VIII Hen.IV, ref. RR11/84 83227, pp. 571-572.
14
Uma das questões mais debatidas nos primórdios da História da Madeira prende-se com o real protagonismo do rei e do infante D. Henrique, no processo de (re)descobrimento e ocupação das ilhas do arquipélago57. A leitura das crónicas coevas e quasi-coevas leva-nos a concluir que tudo começou sob a orientação da coroa. De todos o mais esclarecedor a "relação de Francisco 58 Alcoforado" . De acordo com esta o infante ordenou a João Gonçalves Zarco "fosse logo a El Rey a Lisboa" e foi o rei quem mandou preparar as embarcações para a viagem de reconhecimento da ilha59 como, depois, de povoamento60. O próprio infante D. Henrique testemunha este real protagonismo de seu pai ao afirmar em 1460 que "Por serviço de El Rey meu senhor e padre de virtuosa memória, (...) comecei a povoar a minha ilha de Madeira haverá ora XXXb anos, E assim mesmo a de Porto Santo E dessy prosseguindo a deserta (...)". Todavia esta ideia contrasta com outra veiculada pelo próprio infante nas cartas de doação das capitanias de Madeira e Porto Santo. Em 1440, ao conceder a posse da capitania de Machico a Tristão Vaz, ele declara que este havia sido "um dos primeiros que por seu mandado fora povoar as ditas ilhas". O mesmo surge quanto ao Porto Santo em 1446 e ao Funchal em 1450. Neste último caso o infante considera João Gonçalves Zarco como "o primeiro que por seu mandado povoara a ilha". Entretanto em 1443 D. Duarte reclamava a sua intervenção referindo as ilhas "que agora novamente o dito infante per nossa autoridade pobra". Mas, já o rei D. Afonso V, em 1454, tem outra opinião ao afirmar que "por serviço de Deus e nosso conquistou e povoou" as ilhas de Madeira e Porto Santo. Esta ideia expressa, mais tarde, pelo capitão do Funchal, Simão Gonçalves da C mara: "esta ilha era uma horta do senhor infante e ele pôs e trouxe a semente e plantou estas canas e a deu a toda a ilha sua própria custa (...)"61. 57
Confronte-se Vitorino Magalhnes GODINHO, Os descobrimentos Portugueses e a economia mundial, vol. II, Lisboa, 1982, p.232. AR releva-se a acHno de Jono Afonso, vedor da Fazenda. 58
. Utilizamos a versno publicada em 1961 por Jean FONTVIEILLE. Publicada: "A Lenda de Machim (...)" in Actas do Congresso Internacional de Hist\ria dos Descobrimentos, III, Lisboa, 1961, 197-238. 59
. "mandoulhe ell Rey fazer prestes hum navjo e hum barynel..." o regresso ao reino: "levou ellRey muyto prazer do que tynha Jono Gez feito..." 60
. "no verno syguinte na etrada de Mayo mandou el Rey fazer prestes trLs navjos (...) e as que ouveses devedor mandou ell Rey dar os omeziados e comdenados que ouvese polas cadeas e reynos (..) EllRey cada verno mandava navjos e ferro e aHo e sementes e gados..." 61
ANTT, C.C., parte I, maHo 27, doc. 22, carta ao rei
15
4. O INFANTE DON HENRIQUE LANZAROTE
CONQUISTA DO SENHORIO DE
O infante D. Henrique não se ficou apenas pela Madeira pois manifestou empenho na conquista de algumas das ilhas das Canárias. Daqui resultou o conflito bélico e diplomático que perdurou até 1479. A questão não era nova, pois arrastava-se já desde o século XIV, novos são os protagonistas e os interesses em jogo. Note-se que esta divergência de opiniões e interesses contagiou os cronistas da Época e repercutiu-se nas vis es veiculadas pela Historiografia peninsular62. A import ncia do conflito não se esgota na expressão das ambições dos seus protoganistas, uma vez que se reflecte no 62
Eis os estudos mais importantes: P. MEREA, "Como se sustentaram os direitos de Portugal sobre as Can
16 devir histórico consequente ao firmar as conexões humanas e comerciais com a Madeira63. A historiografia peninsular dedicou muitas páginas ao tratamento da questão. A conjuntura histórica em que foram escritos estes textos fez com que se estabelecessem duas perspectivas de análise diferentes, de acordo com a nacionalidade do seu proponente. Por Portugal tivemos, num primeiro momento, José da Costa Macedo e o Visconde de Santarém a defender a prioridade da descoberta e a legitimidade da soberania lusíada64. Entretanto, a escola historiográfica espanhola, nomeadamente can ria, reclama a prioridade e soberania castelhana, como se poderá verificar em Elias Serra R fols e Buenaventura Bonnet65. Nada disto novidade pois radica-se na opinião veiculada pelo imaginário nacional, tornada indelével pelos cronistas peninsulares. Assim, em Portugal os cronistas Gomes Eanes de Zurara, João de Barros, Rui de Pina, Garcia de Resende e Gaspar Frutuoso haviam justificado perante os homens do seu tempo e testemunhavam aos vindouros as razões da reivindicação henriquina66. Do último temos o retrato expressivo deste afrontamento: "... os castelhanos contam com isso doutra maneira que nem El-Rei de Portugal, nem o infante D. Henrique, as quiseram largar até chegarem a direito diante do papa Eugénio quarto, veneziano, o qual, vendo isto deu a conquista daquelas ilhas por sentença a El-Rei D. João de Castela no ano mil quatrocentos e trinta e um, por onde cessou esta contenda das Canárias entre os reis de Portugal e Castela"67. 63
"Esbozo de un estudio de la influencia portuguesa en la cultura internacional canaria", in Homenaje a Elias Serra R
Veja-se Costa BROCHADO, Descobrimentos, Lisboa, 1960. 65
Histori\grafos
Veja-se os trabalhos publicados na Revista Hist\ria, da universidade de La Laguna e El Museo Canario.
dos de
66
Gomes Eanes de ZURARA, Cr\nica de GuinJ, Porto, 1973, caps. LXVIII, LXIX, LXXIX,LXXXV, XCV; J.de BARROS, Da Asia, dJcada primeira, parte primeira, Lisboa, 1973, caps. XI-XIII; Ruy de PINA, Cronique del rey Dom Joham II, Coimbra, 1950, p
Ibid., p
17 A disputa pela posse das ilhas Canárias foi o prelúdio de outras e do confronto de objectivos exclusivistas, bem patentes nos reinos peninsulares. A defesa do Mare Clausum e os problemas sucess ricos das coroas provocaram o afrontamento entre Portugal e Castela, ao mesmo tempo que catalizaram as atenções da Europa para uma intervenção directa ou indirecta no conflito. Tudo começou no mundo insular, pois o seu domínio assegurava a hegemonia e exclusivo das navegações e comércio no Atl ntico. A intervenção do infante D. Henrique, a partir de finais do primeiro quartel do século XV, deu um novo rumo querela. Com ele retomou-se a pretensão portuguesa ao domínio e cristianização das Canárias. O alheamento parcial da coroa castelhana favoreceu e reforçou a posição henriquina em face da burguesia andaluza. A esta interessava a posse das Canárias pelo facto de serem um importante mercado de escravos e materiais corantes e, mesmo, base de apoio para as posteriores incursões no litoral africano68. O monarca de Castela, grato pela intervenção da família de Las Casas, decidiu premiar o seu esforço solicitando, em 2 de Maio de 1421, ao papa a confirmação da posse das ilhas de Gran Canaria, Tenerife, La Gomera e La Palma a Afonso de Las Casas69. Perante isto, ao infante D. Henrique restavam apenas duas alternativas: por um lado a solução diplomática, fazendo valer aos direitos portugueses junto do papado e, por outro, o recurso a uma intervenção bélica, legitimada pelo espírito de cruzada, no sentido de ocupar as ilhas ainda não conquistadas. Assim, tivemos as expedições de D. Fernando de Castro (1424-1440) e de António Gonçalves da C mara (1427). No mbito diplomático as vitorias foram efémeras. A concessão papal em 1436 do direito de conquista das ilhas não ocupadas por cristãos durou enquanto não surgiu a reacção castelhana, isto , menos de um mês70. Todavia D. Duarte, ignorando as alegações apresentadas pelo bispo de Cartagena ao concílio da Basileia (1435) e a deliberação publicada sob os auspicios da Comissno Executiva das ComemoraHtes do V Centen
M. A. LADERO QUESADA, "Los seZores de Canarias en su contexto sevillano (1403-1477)", in Anuario de Estudios Atl
M. H., Ndm. 18, p
M. H., Vol. V, ndm. 137, 143.
18 papal, prossegue a política de intervenção directa no arquipélago, concedendo ao infante D. Henrique em 1446 o exclusivo do comércio e navegação71. E, para assegurar esta determinação organizaram-se no mesmo ano três expedições. Em 1448 a questão toma novo rumo com os desentendimentos entre os Bettencourts e os Perazas, o que veio favorecer os desejos do Infante D. Henrique. Maciot de Bettencourt aceitou a proposta de venda do direito de posse do senhorio da ilha de Lanzarote por 20.000 reais brancos ao ano e alguns interesses na Madeira, para onde se retirou com a família72. Com o objectivo de assegurar a posse do senhorio o infante enviou em 1440 e 1441 duas armadas, que provocaram imediata reacção de Castela em 145273. A isto seguiu-se o recurso aos missionários franciscanos com o intuito de evangelizar os aborígenes74. Entretanto em 1455 o monarca Henrique IV de Castela doa aos Condes de Atouguia e Vila Real o senhorio das ilhas de Can ria, Tenerife e Palma75. De imediato a coroa portuguesa solicitou a confirmação papal da referida doação76. Mas, o monarca castelhano, mediante a reclamação de Fernão de Peraza, teve de voltar atrás na sua palavra. A proximidade da Madeira ao arquipélago canário em conjugação com o rápido surto do povoamento e valorização socio-económica do solo madeirense orientaram as atenções do madeirense para esta promissora terra. Assim, decorridos apenas 26 anos de povoamento, os colonos madeirenses actuam na disputa pela posse das Canárias ao serviço do infante. Em 1446 João Gonçalves, sobrinho de Zargo, enviado pelo infante a Lanzarote como plenipotenciário para firmar o contrato de compra da ilha. Acompanham-no caravelas de Tristão Vaz, capitão donatário em Machico e de Garcia Homem de Sousa, genro de Zargo77. Passados alguns anos, em 1451, o infante enviou nova armada, organizada pelos moradores de Lagos, Lisboa e Madeira, participando nela Rui Gonçalves, filho do donatário do Funchal78. Esta intervenção madeirense na empresa can ria conduziu a uma maior 71
Ibid., Ix, ndm. 95, p
72
Ibid., IX, ndm. 174, p
73
Ibid., XI, ndm. 138, p
Ibid., XII, ndm. 144, p
Ibid., XIV, p
76
Ibid., XIV, ndm. 140, p
A. Artur SARMENTO, "Madeira & Can
M. H., Vol. XI, 172-179.
19 aproximação dos dois arquipélagos ao mesmo tempo que influenciou o traçado de vias de contacto e comércio. Do nosso lado foi o saque fácil de mão-de-obra escrava para a safra do a car e o recurso ao cereal e carne, necessários nossa dieta alimentar79. Pelas Canárias foi o recurso Madeira com porto de abrigo das gentes molestadas com a conturbada situação que aí se viveu no século XV. Esta corrente emigratória começou com Maciot de Bettencourt. O sobrinho do conquistador de Lanzarote preferiu o sossego da vila do Funchal ao governo da sua ilha80. Este foi o primeiro passo de ramificação atl ntica desta família normanda81. No desterro de Maciott de Bettencourt acompanharam-no a sua filha Maria e os seus sobrinhos e netos Henrique e Gaspar. Todos eles conseguiram uma posição de prestígio e avultadas fazendas mercê do relacionamento matrimonial com as principais famílias da Madeira. D. Maria de Bettencourt, por exemplo, casou com Rui Gonçalves da C mara, filho-segundo do capitão do donatário do Funchal.
79
Veja-se L.SIEMENS e L. BARRETO, "Los esclavos aborigenes canarios en la isla de la Madera (1455-1505)", in Anuario de Estudios Atlanticos, ndm. 20, 1974, p
G. FRUTUOSO, Saudades da Terra, L I, Ponta Delgada, 1966, 69; ibid., L IV, Vol. II, Ponta Delgada, 1981, p
G. FRUTUOSO, Ob. Cit., L IV, Vol. I, Ponta Delgada, 1977, p
20
2. "(...) QUE AGORA NOVAMENTE O DITO YFANTE PER NOSSA AUTORIDADE POBORA"
Assim se expressava em 1433 o rei D. Duarte, ao conceder a posse das ilhas da Madeira, Porto Santo e Deserta ao infante D. Henrique. A partir de então o infante vê legitimado o seu direito de orientação do povoamento e administração do novo espaço insular. O povoamento e o consequente processo de valorização económica da Madeira surgem, no contexto da expansão europeia dos séculos XV e XVI, como o primeiro ensaio de processos, técnicas e produtos que serviram de base afirmação dos Portugueses no espaço atl ntico, continental e insular. Aqui foram lançadas, na década de 20, as bases sociais e económicas daquilo que será definido como a civilização atl ntica. Tal situação resulta do facto de a Madeira ter sido a primeira rea atl ntica a merecer o impacto da humanização peninsular. Enquanto nas Canárias tardava a pacificação guanche e se esvaneciam as esperanças da posse henriquina, na Madeira os cabouqueiros europeus lan am-se num plano de exploração intensiva do solo virgem. Ao empenhamento dos tradicionais descobridores juntam-se os interesses da coroa, do infante D. Henrique e da comunidade italiana sedeada em Portugal. A década de setenta dada como o momento de arranque efectivo do povoamento dos açores e das Canárias. Ora isto sucede numa altura em que a Madeira surgia já como um importante entreposto de comércio e de apoio navegação. Para isto haviam contribuído as condições oferecidas pela ilha, a conjuntura atl ntica de então, e o forte empenhamento dos promotores e principais protagonistas do povoamento. Nos dois arquipélagos vizinhos os entraves foram enormes. Dum lado os sismos e os vulcões atemorizam os colonos açorianos, do outro foi a forte resistência dos aborígenes canários pacificação castelhana. Os testemunhos dos cronistas são evidentes quanto ao facto da inexistência de uma população sob o solo madeirense. Assim, para além das referências abordagem do Porto Santo por castelhanos, vindos das Canárias, e da presença de Machim na baía de Machico, nada mais indiciava uma preocupação anterior de humanização destas ilhas. Cadamosto afirma "que fora até então desconhecida" e que "nunca dantes fora habitada". idêntica a opinião de Jerónimo Dias Leite82, peremptório em afirmar, que perante os navegadores se deparava uma "terra brava e nova, nunca lavrada, nem conhecida desde principio do mundo até aquela hora". Desta forma o empenho das gentes e autoridades peninsulares, aliado ao investimento e experiência italiana, contribuíram para que em pouco tempo na Madeira a densa floresta fosse substituída por extensas clareiras de arroteamento. luz do acima enunciado, torna-se forçoso considerar que a acção lusíada na década de 20 se define por um processo de povoamento, e nunca colonização, pois 82
p. 9.
Descobrimento da Ilha da Madeira (...), Coimbra, 1957,
21 estamos perante uma porção de terra inabitada cuja paisagem foi humanizada apenas com a entrada portuguesa83. além disso, a peculiaridade do processo de ocupação resulta em muito da situação de abandono em que se encontravam as ilhas, o que permitiu o ensaio de técnicas, produtos e formas de organização do espaço sem qualquer entrave humano. Os resultados deste ensaio foram de tal modo profícuos que o exemplo madeirense terá não só um lugar de evidência no contexto da expansão peninsular, mas surgirá também como ponto de referência ou modelo para as outras experiências de povoamento que se seguiram. De acordo com as crónicas quatrocentistas e quinhentistas, o processo, que decorreu a partir de 1418, foi faseado. Zurara refere quatro expedições ilha antes que o infante ordenasse o envio dos primeiros colonos e clérigos para o arranque do seu aproveitamento. A mesma ideia surge na "relação de Francisco Alcoforado". Pe. Manuel Juvenal Pita Ferreira84 especifica melhor as quatro viagens: Dezembro 141885 e principio de 1419 ao Porto Santo; Junho de 1419 e Maio de 1420 Madeira. Se tivermos em consideração as condições técnicas e náuticas das referidas expedições, teremos de atribuir quatro anos para o reconhecimento cabal da ilha e início da ocupação efectiva. A forma de ocupação e valorização económica da Madeira foi ao encontro das solicitações da conjuntura interna do Reino e do espaço oriental atl ntico. No primeiro caso, surge como resposta disputa das Canárias e ingente necessidade de encontrar um ponto de apoio para as operações do litoral africano. Zurara faz disso eco ao referir que as embarcações portuguesas tinham escala obrigatória na Madeira, onde se proviam de vitualha as ilhas da Madeira, porque havia aí já abastança de mantimentos86. Para os cronistas tudo começou no Verão de 1420. Nesta data o monarca ordenou o envio de uma expedição comandada por João Gonçalves Zarco para dar início ocupação da ilha. Acompanhavam-no Tristão Vaz Teixeira, Bartolomeu Perestrelo, alguns homiziados que queri o buscar vida e ventura for o muitos, os mais delles do Algarve87. De acordo com o capítulo de uma carta régia88, João Gonçalves foi incumbido de 83
Confronte-se o que diz a este prop\sito Carreiro da COSTA em EsboHo Hist\rico dos AHores, Ponta Delgada, 1978, p.53 84
Notas para a Hist\ria de Madeira. I. Descoberta e inRcio do povoamento, Funchal, 1957. 85
Note-se que Jordno de FREITAS ( Madeira, Porto Santo e Deserta. Ilhas que o infante "novamente achou e povoou" , in C.M.P., Vol. III, T.1, Lisboa, 1940, 169-172). Considera que a primeira viagem s\ teve lugar em 1419. 86
87
Cr\nica da GuinJ, cap. XXXII.
J. ob.cit., 53. 88
Dias
LEITE,
ob.cit.,
15-16;
Gaspar
FRUTUOSO,
Esta carta foi pela primeira vez referenciada por
22 proceder distribuição de terras, conforme o regulamento entregue. Estes capítulos de um pretenso regimento para a distribuição de terras são diferentes dos demais que se seguiram, pois para além da demarcação social dos agraciados estabelece um prazo alargado de 10 anos. Assim, os vizinhos de mais elevada condição social e possuidores de proventos recebem-nas sem qualquer encargo, enquanto os pobres e humildes que vivem do seu trabalho apenas as conseguiram mediante condições especiais, só adquirindo as terras que possam arrotear com a obrigatoriedade de as tornar aráveis num prazo de dez anos. Estas cláusulas, a serem verdadeiras, favoreceram a posição fundiária dos primeiros povoadores e contribuíram para o aparecimento de grandes extensões que mais tarde serão vinculadas. A partir de 1433, com a doação do senhorio das ilhas ao infante D. Henrique, o poder de distribuir terras uma atribuição do senhorio, mas sem prejuyzo de forma do foro per nos dado aas ditas ylhas em parte nem em todo nem em alheamento do dito foro89, o que comprova mais uma vez que a primeira iniciativa e regulamento de distribuição de terras coube ao monarca. O infante, fazendo uso destas prerrogativas, delegou nos capit es os seus poderes. A isso junta-se um novo regimento ou foral, que confirma as ordenações régias, estipulando que as terras deveri o ser distribuídas apenas por um prazo de cinco anos, findo o qual caducava o direito de posse e a possibilidade de nova concessão. A primeira missão dos capit es foi proceder distribuição de terras. Assim o testemunha Francisco Alcoforado, ao referir que João Gonçalves Zarco, após a segunda viagem, empenhou-se em tal tarefa. Uma das prerrogativas desta função era a possibilidade de reservar para si e familiares algumas das terras de sesmarias. E foi isso que o mesmo fez. Ainda, segundo Francisco Alcoforado, João Gonçalves Zarco apropriou-se do alto de Santa Catarina, no Funchal e as terras altas de C mara de Lobos. Mais além, na Calheta, tomou dois Lombas para os seus filhos João Gonçalves e Beatriz Gonçalves. Nas décadas seguintes, a concessão de terras de sesmaria e a legitimação da sua posse geraram vários conflitos, que implicaram a intervenção legislativa do senhorio ou o arbítrio do seu ouvidor. Em 1461, os madeirenses reclamavam contra a redução do prazo para aproveitamento das terras de sesmaria, dizendo que estas eram bravas e fragosas e de muytos arvoredos. Contudo, o infante D. Fernando não abdica do foral henriquino e apenas concede a possibilidade de alargamento do prazo mediante análise circunstanciada de cada caso pelo almoxarife90. Desde 1433 e até 1495, a concessão de terras de sesmaria era feita pelo capitão, em nome do donatário. A carta deveria ser lavrada pelo escrivão do almoxarifado, na presença do capitão e do almoxarife. No seu enunciado constavam obrigatoriamente as ;lvaro Rodrigues de AZEVEDO sendo, todavia considerada ap\crifa por alguns historiadores, como JosJ Hermano SARAIVA (Temas de Hist\ria de Portugal, vol. II, pp.109-112) 89
A.R.M., C.M.F., registo geral, T. I, fl. 128-132, publ. in Arquivo Hist\rico da Madeira, vol. XV, pp.20-25. 90
A.R.M., C.M.F., registo geral, T. 1, fls. 204-209, publ. in AHM, vol XV, pp.11-20.
23 condições gerais que regulavam este tipo de concessão do terreno, capacidade de produção e a cultura adequada sua exploração, bem como o prazo de aproveitamento. O colono ou sesmeiro deveria cumprir o clausulado. Findo o prazo estabelecido este podia vender, doar. escambar o fazer dela e em ela como sua própria coisa. São poucas as doações de terras que resistiram ao correr dos tempos e que ficaram a testemunhar e legitimar esta forma de distribuição de terras. Conhecem-se apenas 4 cartas de sesmaria: 1447/Maio/3. Concessão feita por João Gonçalves Zargo a Gil Gonçalves, com condição de aproveitar em 3 anos91; 1452/Dezembro/2. Concessão pelo mesmo João Gonçalves Zargo a Álvaro Gonçalves e Briolange Afonso, com condição aproveitar em 5 anos92; 1454/Fevreiro/11. Carta de firmid o das terras que João Gonçalves Zargo tomou para si, conforme carta de doação93; 1457/Abril/29. Concessão de terras a D. Henrique a Henrique Alemão, por prazo de 5 anos94 com confirmação régia de 18 de Maio; De todos os documentos o mais completo o de 1457. A surgem exaradas as condições em que foi estabelecida a posse das terras. Esta poderá ser considerada uma carta modelo, pois aí juntavam-se todas as recomendações: limites da terra, as benfeitorias a implantar e o tipo de culturas (vinhas, canaviais, horta)95
O povoamento da ilha, iniciado na década de 20 a partir dos núcleos do Funchal e Machico, rapidamente alastrou por toda a costa meridional, surgindo novos núcleos em Santa Cruz, C mara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta do Sol e Calheta. As condições orográficas condicionaram os rumos da ocupação do solo madeirense, enquanto a elevada fertilidade do solo e a pressão do movimento demográfico implicaram o rápido processo de humanização e valorização socioeconómica da ilha. A costa norte tardou em contar com a presença de colonos, contribuindo para isso as dificuldades de contacto 91
1, publ. J.
92
Publ. J. M. Silva MARQUES, ob. cit., Vol. I, pp. 453-
ANTT, Convento de Santa Clara, maHo 1, n M. Silva MARQUES, ob. cit., vol. I, pp. 453-454. 454. 93
ANTT, Convento de Santa Clara, maHo 1, n .1, publ. idem, ibidem, I, pp. 514-515. 94
ANTT, Livro ibidem, pp. 541-543.
das
Ilhas,
fl.
31v ,
publicado
idem,
Este enigm
24 por via marítima e terrestre. Não obstante, refere-se já na década de 40 a presença de gentes em S. Vicente, uma das primeiras localidades desta vertente a merecer uma ocupação efectiva. Aos primeiros obreiros e cabouqueiros seguiram-se diversas levas de gente, entusiasmadas com o progresso da ilha. Neste grupo surgem trinta e seis apaniguados da casa do infante, na sua maioria escudeiros e criados, que adquiram uma posição proeminente ao nível administrativo e fundiário96. Mesmo assim João Gonçalves Zarco sentiu dificuldade em encontrar varões de qualidade para desposarem as suas filhas, tendo solicitado ao monarca o seu envio97. Isto poderá ser o indicativo de que a aristocracia do reino apostava mais nas façanhas bélicas em Marrocos do que num projecto de povoamento. A enxada não lhes era familiar. Por outro lado confirma o fracasso de Zarco no recrutamento de gente nobilitada, que foi suprida com aqueles que pretendiam "buscar vida e ventura"98. Este processo foi faseado podendo-se definir três momentos. Logo na década de vinte foram os aventureiros e companheiros de Zargo e Tristão. Depois em meados da centúria surge novo grupo, atraído pela fama das riquezas da ilha, alguns deles filhos-segundos de famílias nobilitadas do norte. E, finalmente, a partir da década de sessenta, após a morte do infante, o entusiasmo contagiante de estrangeiros, nomeadamente, oriundos das cidades italianas, a quem as portas se encontravam abertas.
96
Sobre a presenHa e import>ncia das gentes da casa do infante veja-se Jono Silva de SOUSA, "A casa do infante D. Henrique e o arquipJlago de Madeira (algumas notas para o seu estudo)", in Col\quio Internacional de Hist\ria da Madeira, Vol. I, Funchal, 1989, 108-127. 97
Saudades da Terra, 217-218.
98
Confronte-se Jer\nimo Dias LEITE, ob.cit., p.16.
25 2.1.D VIDAS E CERTEZAS
1.ORIGEM DOS PRIMEIROS COLONOS: DO ALGARVE ? comum afirmar-se que os primeiros povoadores da Madeira são oriundos do Algarve. Esta ideia filia-se na tradição algarvia da gesta expansionista e na expressão de Jerónimo Dias Leite muitos do Algarve99. Todavia, a dedução parece-nos apressada, uma vez que faltam provas que a corroborem. Senão, vejamos. Numa listagem dos primeiros povoadores referidos nos documentos e crónicas, a presença nortenha (64%) superior algarvia (25%). Por outro lado, os registos paroquiais da freguesia da S (desde 1539), no período de 1539 a 1600, confirmam essa ideia, uma vez que os nubentes oriundos de Braga, Viana e Porto representam 50% do total, enquanto os provenientes de Faro não ultrapassam os 3%100. Tudo isto contraria o estudo de Alberto Iria que, ao contrário do que se possa pensar não foi capaz de responder as duvidas que o tema suscita101. Note-se que esta ideia mantem-se na actualidade e continua a merecer a aprovação de muitos estudiosos102. Todavia, os mais eminentes investigadores madeirenses hesitam entre a procedência minhota ou algarvia dos primeiros colonos103. Ernesto Gonçalves, no entanto, peremptório em apontar a ascendência minhota dos primeiros obreiros do povoamento do arquipélago104. 99
Ob. cit., 16; Gaspar FRUTUOSO, ob.cit., 54.
100
LuRs Francisco de Sousa MELO, "A imigraHno da Madeira" in Hist\ria e Sociedade, n 6, 1979, 39-57; Idem, "O Problema de origem geogr
O Algarve e a Madeira no SJculo XV, Lisboa, 1974, sep. de Ultramar; confronte-se com a crRtica de Fernando J. PEREIRA em O Algarve e a Madeira, Braga, 1975. 102
A.T. MATOS, "Do contributo algarvio no povoamento de Madeira e dos AHores" in Actas das I Jornadas de Hist\ria do Algarve e Andaluzia, LoulJ, 1987, 173-183; "Origem e reminiscLncias dos povoadores das ilhas atl>nticas", in Congresso Internacional. Bartolomeu Dias e a sua Jpoca, Vol. III, Porto, 1989, 241-252. 103
Fernando Augusto da SILVA, Do comeHo do povoamento madeirense , in Das Artes e Hist\ria da Madeira, Vol. VIII, n 37, 5; Joel SERRmO, Na alvorada do mundo atl>ntico , in Ibidem, vol. VI, n 31, 1961, 6. 104
No Minho ao sol de Verno , in Ibidem, vol. IV, n 21, 1955, 45-46; Fernando Vaz PERERIRA FamRlias da Madeira e Porto Santo, vol. I, Funchal, s.d., pp. 224 (n 1) e 248 (n 1).
26 Tendo em consideração que o povoamento da Madeira um processo faseado, em que intervêm colonos oriundos dos mais recônditos destinos, e que de todo o Reino surgem gentes empenhadas nesta experiência tentadora, de prever a confluência de várias localidades, em especial as reas ribeirinhas - Lisboa, Lagos, Aveiro, Porto e Viana -, adestradas no arroteamento de terras incultas. Se certo que do Algarve partem muitos dos apaniguados da casa do infante, com uma função importante no lançamento das bases institucionais do senhorio, não menos certo que do norte de Portugal, nomeadamente da região de Entre Douro e Minho, provêm os cabouqueiros necessários ao desbravamento da densa floresta e preparar o solo para as culturas mediterr nicas - cereal, vinha, cana-de-açúcar e pastel. O Norte de Portugal, quer pelo facto de ser a região do país mais densamente povoada, quer pela sua permanente vinculação economia madeirense, exerceu aqui uma decisiva influência.
2. A DATA DE IN CIO DO POVOAMENTO: 1420-1425-1433 Um dos muitos pontos polémicos no início de História da Madeira a data em que o solo virgem começou a ser desbravado pelos primeiros colonos europeus. Os cronistas são un nimes em definir o ano de 1420 como o de começo. Todavia, surgem opiniões diferentes, como a do infante D. Henrique, que em 1460 declarava: "comecei a povoar a minha ilha da Madeira aver ora XXXb anos...", isto , a partir de 1425 ele iniciara o povoamento da ilha. Mas, na doação régia de 1433, o monarca afirmara "que agora novamente o dito infante per nossa autoridade pobra". Quererá isto dizer que o infante só nesta data assume o comando do processo ? Não. Pelo menos esta não a opinião do infante, que nas cartas de doação das capitanias apresenta João Gonçalves Zarco, Tristão Vaz e Bartolomeu Perestrelo, como os primeiros povoadores por seu mandado. Será que só podemos falar de povoamento a partir de 1425 ou 1433, contrariando a opinião dos cronistas ? A resposta parece ser também negativa, luz daquilo que nos dizem dois documentos. Primeiro, uma sentença do Duque D. Diogo de 6 de Fevereiro de 1483105 refere que "podia haver cincoenta e sete anos, pouco mais ou menos, que a essa ilha fora João Gonçalves Zargo, capit que fora nessa ilha, levando consigo sua mulher e filhos e outra gente...". Depois, noutra sentença Diogo Pinheiro, vigário de Tomar em 1499, afirma: "podera bem aver oytenta annos que a dicta ilha era achada pouco mais ou menos e se começara a povoar"106. Esta versão corroborada em 27 de Julho de 1519 por acórdão da C mara do Funchal em que se dá conta do início do povoamento há cem anos atrás. Ambos os documentos abonam versões diversas: enquanto o primeiro coincide com a data apontada pelo infante, o segundo corrobora os cronistas. Por tudo isto a única conclusão plausível de que o povoamento efectivo terá 105
ANTT, Convento de Santa Clara, maHo 1, ref. Pe. Manuel Juvenal Pita FERREIRA, O arquipJlago da Madeira terra do senhor infante, p.132. ANTT, Cabido Fevereiro 1499.
da
SJ
do Funchal, maHo 1, n
1, 20 de
27 começado a partir do fim do último quartel do século XV. Os seis anos que medeiam entre esta data e o seu reconhecimento não deverão ser encarados como de total alheamento, pois o processo não parou.
28
3. A " ... HORTA DO SENHOR INFANTE" Foi desta forma que o capitão do Funchal em 1511107, em carta dirigida ao rei definiu o período de governo do infante D. Henrique. Na verdade, assim aconteceu. O infante, desde 1433, assumiu de pleno direito a posse das ilhas: procedeu distribuição das terras pelos apaniguados que estiveram empenhados no reconhecimento delas; estabeleceu os regimentos para o governo das capitanias; definiu os seus direitos e usufrutos; ordenou o lançamento de sementes - cereais - e o transplante de videiras e socas de cana. Em pouco tempo a ilha da Madeira transformou-se numa horta que, de direito, pertencia ao senhor infante. Para aí foi estabelecida uma estrutura institucional adequada, tendo como ponto de partida o Infante e as prerrogativas estabelecidas pela coroa em 1433.
1. As capitanias Foi a 26 de Setembro de 1433108 que o infante D. Henrique recebeu das mãos de D. Duarte a posse vitalícia das ilhas de Madeira, Porto Santo e Deserta. De acordo com esta doação o infante detinha a seguinte capacidade de intervenção: 1. jurisdição cível e crime, limitada: "com sua jurdi om cível e crime salvo em sentença de morte ou talhamento de membro...". 2. Usufruto de rendas e direitos: "com todollos djreitos e rendas dellas assy como as nos de djreito avemos e devemos aver". 3. Capacidade de livre intervenção na valorização do espaço: "outrossy lhe damos poder que elle possa mandar fazer das dictas jlhas todollos proveitos e bemfectorias aquellas que entender por bem e proveito das dictas jlhas". 4. distribuição de terras pelos seus criados e demais povoadores: "E dar já perpetuo ou a tempo ou aforar todas as dictas terras a quem lhe aprouver". No último ponto a coroa estabelece que a referida concessão de terras se realize "sem perjuizo da forma do foro per nos dado aas dictas jlhas em parte nem em todo nem amalheamento do dicto foro", com a capacidade de o poder "quitar parte ou todo". Esta situação remete-nos para a existência de um diploma anterior da iniciativa do mesmo monarca, que não possível encontrar e que alguns fazem coincidir com os capítulos de uma carta de D. João I, inserida noutra de 7 de Maio de 1493109. 107
ANTT, C.C., I, MaHo 27 - n
52, 25 Junho.
108
ANTT, Chancelaria D. Duarte, L I, fl. 18, publ. J. M. Silva MARQUES, Descobrimentos Portugueses, Vol. I, Lisboa, 1988, 271-272. 109
ANTT, Provedoria da Fazenda do Funchal, n 1150, fl. 101, publ. J. M. Silva MARQUES, ob. cit., supl. Vol. I, pp.
29 Nesta carta de doação estão claramente expressas algumas limitações, isto aspectos que a coroa não abdica da sua própria intervenção:
,
1. A doação vitalícia: "e aia de nos em todollos dias de sua vjda as nossas ilhas". 2. justiça: "com sua jurdi om civil e crime salvo em sentença de morte ou talhamento de membro mandamos que a alçada fique a nos E venha aa casa do cível de Lixboa". 3. Respeito pelas normas já estabelecidas: "sem perjujzo da forma do foro per nos dado nas dictas jlhas em parte nem em todo...". 4. Direito cunhar moeda: "E Reservamos pera nos que o dicto jffante nom possa mandar fazer em ellas moeda mas praz nos que a nossa se corra nella". Na mesma data a coroa, concedeu todo o espiritual das ilhas ordem de Cristo. Esta doação feita a pedido do infante: "E por o jffante dom anrrique meu jrm o regedor e governador de dicta ordem que no llo Requereo". No entanto, a coroa reserva para si "o foro e o dizimo de todo o pescado que se nas dictas jlhas matar". A validade deste diploma correspondia ao tempo de governo do monarca. Após a sua morte, tudo requeria a confirmação do novo rei. E, foi na realidade isso que sucedeu em 1 de Junho de 1439110, e 11 de Março de 1449111, tendo D. Afonso confirmado a anterior doação. Tal como estava preceituado na primeira doação de 1433 o infante D. Henrique tinha poder de proceder divisão das terras das ilhas e distribui-las como entendesse, estando apenas limitado quanto aos direitos adquiridos resultantes da intervenção da coroa. o caso de João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz, os primeiros obreiros do reconhecimento das ilhas. Eles recebem o encargo de, em nome do infante, coordenarem as tarefas de povoamento dos novos espaços. São os capit es em representação do donatário, por isso, ficaram conhecidos como capit es do donatário. O documento que o estabelece juridicamente não surge em simult neo para as três reas, pois entre eles existe alguns anos de diferença. Primeiro recebeu Tristão Vaz em 8 de Maio de 1440112 o "carrego" das terras entre o caniço e a Ponta de Tristão que ficou conhecida como a capitania de Machico. Este diploma uma peça fundamental, uma vez que nele se estabelecem os mecanismos de intervenção dos interessados e preludia uma nova estrutura de mando. Assim Tristão Vaz exercia o governo em nome do infante - "que elle a mantenha por mym em justiça e em direiro" - de acordo com as seguintes condições:
109-110. 110
ANTT, Chancelaria de D. Afonso V, liv. 19, fl. 19v , publ. por Monumenta Henricina, VI (1964), pp. 316-317. 111
ANTT, Chancelaria de D. Afonso V, liv. 37, fl. 52v , publ. ob. cit., Vol. X (1969), p. 34. 112
ANTT, Chancelaria D. Jono III, 1055, fl. 184, publ. J. M. Silva MARQUES, ob.cit., Vol.I, pp. 403-404.
30 1. doação hereditária de acordo com lei Mental: "E morremdo elle a mym praz que o seu filho primeiro ou ho segundo se tall for que tenha este emcarrego pella guisa suso dita E assy de descemdemte em des emte per linha direita..." 2. administração da justiça, de acordo com os poderes a ele consignados e os foros do infante: "item me praz que elles tenham em esta sobredita terra e jurdi am por mym e em meu nome do vell e crime rresalvando morte ou talhamento de membro que a apella am venha pera mym (...) a mym praz que os meus mandados e correi am seiam hi compridos como em cousa minha propria". 3. privilégios de fruição própria: 1. Monopólio dos moinhos, excepto nos braçais: " o dito Tristam aja pere si todolos moynhos que ouverem em a parte desta ilha... E em esto sse nom emtemdo mo o de brasão que o faço quem quiser nom moendo a outrem... na dita Ribeyra do caniço elle faça os moynhos que lhe prouver". 2. Monopólio de fornos de poia, excepto fornalha para uso próprio: "Item ma praz que todollos fornos de pam em que ouver poya seiam seus. E porem nom embargue quem quiser fazer fornalha pera sseu pam que a faça e nom pera outro nehuu". 3. Exclusivo condicionado da venda de sal: "Item me praz que teemdo elle sall pera vemder que o nam possa vemder outrem (...). E quando o nom tever que o vendam os das ilhas aa sua vomtade ataa que o elle venha". 4. Redizima de todas as rendas havidas pelo infante: "outrossy me praz qo de todo o que eu ouver de renda da dita parte da jlha elle aja de dez huu". 5. Poder de distribuir e retirar terras, sem embargo do o infante o fazer: "item me praz que elle possa dar per suas cartas a terra desta parte fora pollo forall da jlha a quem lhe prouver com tall condi am que aquelle a que der dita terra a aproveite ataa cinquo aunos. E nom a aproveitamdo que a possa dar a outrem(...). E esto nom embargue a mym que me ouver terra por aproveitar que nom seia dada que eu a possa dar a quem minha mercee for". As duas cartas posteriores, que legitimam a posse das capitanias do Porto Santo e Funchal, seguem de perto esta, acrescentando alguns pormenores, que aqui não mereceram qualquer referência. Assim, na de 1 de Novembro de 1446113, em que o rei concedia a posse de ilha do Porto Santo a Bartolomeu Perestrello, acrescenta algumas regalias mais: 1. Direitos sobre serras de gua e outros engenhos: "item me praz que aje de todallas serras de gua que hi fizerem de cada hua hum marco de prate em cada hum anno (...) e esto aje tambem (...) de quallquer enjenho que se hi fezer (...)" 2. Possibilidade de venda das terras de sesmarias: "me praz que os dictos vezinhos posam vender suas herdades aproveitadas a quem lhe prouver..." 3. Usufruto comum do gado bravio, excepto o pastorado: " os gaados bravos posam matar os da hilha sem aver hi outra defesa. Resalvando o gaado que amde nos hilheos ou outro algum lugar arrado..." A última carta a ser concedida foi a João Gonçalves Zarco, a 1 de Novembro de 1450. Ela segue de perto as duas anteriores, surgindo já com os acrescentos supra 113
ANTT, Chancelaria de D. Afonso V, l .33, fl. 85, publ. J. M. Silva MARQUES, ob.cit., Vol. I, pp. 449-450.
31 referidos. Todavia, foi a primeira a merecer a confirmação régia, que teve lugar a 25 de Novembro do mesmo ano114. Aqui o Rei confirma a doação que passa a perpetua, a pedido do infante, mas estabelece uma emenda: "E que honde diz na carta do dicto tyo qe a apella om de morte ou talhamento de membro venha perante elle, queremos que venham perante nos segundo he contheudo na carta del Rey meu senhor e padre susso estprita...". As demais doações para Machico e Porto Santo também mereceram a confirmação da coroa, mas só se conhece a de Machico de 18 de Janeiro de 1452115, que tem o mesmo teor da do Funchal, apenas não refere a usurpação de alçada cuja legalidade havia sido já reposta. No decurso do governo henriquino apenas se colocou o problema da sucessão na capitania de Porto Santo. Bartolomeu Perestrelo terá morrido em 1457, deixando em aberto a sucessão, uma vez que o filho varão, Bartolomeu Perestelo, era menor de 7 anos sem capacidade para assumir ainda o governo da capitania. Entretanto a sua mãe Isabel Moniz, optou pela venda ao genro, Pedro Correia da Cunha, capit da ilha Graciosa. Esta operação foi confirmada pelo infante D. Henrique em 17 de Maio de 1458116. Todavia, na maioridade do referido Bartolomeu Perestrelo, a seu pedido, a coroa considerou nula a referida venda, já confirmada pelo infante D. Henrique117.
OS REGIMENTOS
A administração das ilhas no começo do povoamento fazia-se com poucos regimentos. O fundamental era o foral do infante e as cartas de doação. Do primeiro sabe-se apenas ter existido, pois o infante quem o anuncia em 1440, na carta de doação da capitania de Machico: "E o que eu ey daver na dita ilha he comtheudo no forall que pera ella mandey fazer". O mesmo confirmado pelo novo foral manuelino de 6 de Agosto de 1515118. A diz-se: "assi por forall do jffante dom Anrrique seu tio... esteve sempre e esta em posse de levar e aver, em a dicta sua ylha da Madeira, as rendas 114
ANTT, Chancelaria D. Afonso V, l .37, fl. 52v ,publ.J. M. Silva MARQUES, ob. cit., Vol. I, pp. 488-489. 115
ANTT, Livro das Ilhas, fl. 21, publ. J. M. Silva MARQUES, ob. cit, pp. 490-491. 116
Ibidem, fls. 28-29, publ. por J. M. Silva MARQUES, ob. cit., pp. 547-549; com confirmaHno rJgia de 17 de Agosto de 1459, publicada in Archivo dos AHores, II, pp. 11-14. 117
Conforme confirmaHno rJgia de 15 de MarHo de 1473, ANTT, Livro das ilhas, fl.93v . Confronte-se Gaspar FRUTUOSO, Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1979, p. 66. 118
ANTT, Livro das Ilhas, fl. 146v , publ. Saudades da Terra, 1873, p. 494.
32 e dereitos seguintes, asi do espirituall (...) do senhorio (...)". também em 3 de Agosto de 1461119 o infante D. Fernando, na resposta s reclamações dos moradores do Funchal, insiste nos regimentos do senhor infante D. Henrique, que se perderam. Assim ao referir a reclamação dos moradores para a isenção de algumas dizimas, peremptório: "A isto que respondo que ei hei por bom o foral e regimento que o senhor infante meu padre que Deus aja acerca da dizima das ditas coizas tinha feito e mandava que se fizesse...". O mesmo aparece em Jerónimo Dias Leite120 que da conta de "humas lembranças" do infante "em que lhe encomendava muito ha justiça principalmente, e ha lavran a da terra (...)". Delas o autor enuncia algumas, rematando: "e outras cousas mais meudas com o tudo se contem no regimento e lembrança (que fic o em meu poder)". Quanto s estruturas de governo nas capitanias sabe-se que, para além da presença do capitão e do almoxarife, existia o município. Mas este tinha uma intervenção muito limitada. Assim, não existem paços do concelho, nem bandeira e selo. A par disso, os juízes e procurador do concelho eram impostos pelo capitão, contrariando os regimentos do reino que impunham a eleição dos pelouros. A tudo isto junta-se uma recomendação ao capitão: "que em esta parte nos não torve", o que nunca aconteceu. O relativo menosprezo do infante pela regulamentação dos diversos domínios jurisdicionais do senhorio madeirense deverá resultar do facto de a ilha no período inicial não necessitar de uma excessiva regulamentação, que poderia ser refreadora do impulso povoador. Por outro lado poderá enunciar-se que o infante encontrava-se empenhado num processo mais vasto de conquista das Canárias, de expansão e descobrimento no litoral africano, sobrando-lhe pouco tempo para se empenhar nas coisas da sua ilha. Todavia, as referências indirectas a alguns destes documentos, que não chegaram até nós, atestam o seu real interesse no rápido avanço do povoamento da ilha. As isenções e privilégios conseguidos junto da coroa para os seus súbditos e exarados no seu foral, são exemplo disso121. O extenso rol de reclamações apresentado em 1461, após a sua morte, ao sucessor no senhorio, o Infante D. Fernando, poderão ser o testemunho deste relativo menosprezo ou antes da tendência centralizadora da política henriquina. O infante D. Fernando, ao assumir, em 1460, o governo da casa senhorial do seu tio, herda um pesado fardo político-administrativo. Procurando adequar o governo de ilha nova conjuntura política e satisfação das reclamações dos procuradores enviados ao Reino, define em Agosto de 1461 uma nova din mica institucional, económica e religiosa através dos seus
119
RGCMF, T. I, fls. 204-209, publ. in AHM, Vol. XV, pp.
11-20. 120
121
Ob. cit., p. 26
PrivilJgio de isenHno da dizima e portagens nas mercadorias enviadas ao reino: ANTT, Chancelaria de D. Afonso V, l . 19, fl.17v , carta de 1 de Junho de 1439, publ., J. M. S. MARQUES, ob.cit., vol.I, Lisboa, 1988, pp.400; ANTT, Chancelaria de D.Afonso V, l .25, fl. 13v , carta de 18 de julho de 1449, publ. in idem, ibidem, pp.439-440.
33 apontamentos122. Os poderes discricionários e os privilégios dos capit es sofreram uma grande machadada mercê da aplicação plena da jurisdição estabelecida nas doações de que se faz uma p blica-forma de modo que não possa "entender aalem delle em poer outros foros e a costumes". Ao mesmo tempo estabeleceu-se a necessária vinculação da jurisdição do capitão s directivas régias e da estrutura municipal, conjugadas com o reforço da intervenção do almoxarifado. O avanço mais significativo dado com o município, que se liberta do controlo e intervenção discricionária do capitão, passando os seus oficiais a serem eleitos entre os homens-bons que fazem parte do rol aprovado pelo senhorio. Esta autonomia expressa ainda na concessão do selo e da bandeira. No aspecto económico, os referidos apontamentos anotam a necessidade de adequar a org nica administrativa ao nível do desenvolvimento económico da ilha. Primeiro procura-se estabelecer uma adequada repartição das guas, tão necessárias faina açucareira, depois, o apoio indispensável aos assalariados e pequenos proprietários. No domínio comercial, a intervenção fernandina pautar-se- por uma abertura da ilha aos agentes de comércio nacionais e estrangeiros, que motiva a sua discord ncia em favor da pretensão dos madeirenses para a expulsão dos judeus e genoveses. Era chegado o momento de mudança, pois havia-se ultrapassado o estado zero de desenvolvimento e a ilha só poderia avançar com estas mudanças. A sociedade complexifica-se e requer regulamentos adequados a todas as solicitações do quotidiano. Foi esta a principal tarefa do infante D. Fernando, que teve continuidade nos seus sucessores. O Infante D. Henrique havia lançado a semente, cabendo ao seu herdeiro faz -la medrar e colher o fruto.
2.IGREJA. A dois de Julho de 1420 desembarcou João Gonçalves Zarco no vale de Machico e, de imediato, procedu posse da terra em nome do rei e sua sagra o com a primeira missa, rezada pelos franciscanos que acompanharam a viagem. O texto de Francisco Alcoforado muito claro: "(...) detremynou sajr em terra e levar consygo dous padres que trazia, sajmdo em terra deu gra a a Deos mandou bemzer aguoa e aspargella pello ar (...) mandou dizer mysa (...) Foy a prymeyra mysa que se dise (...) "123 Em Maio do ano imediato, Jo o Gon alves Zarco regressou ilha com tr s navios e a disposi o de proceder ao seu povoamento. De novo o desembarque em Machico e "a primeira cousa que fez foy tra ar huma igreja de Invoca o de Xpo..."124. Depois 122
Veja-se Joel SERRmO, "O infante D. Fernando e a Madeira, 1461-1470", in Das Artes e da Hist\ria da Madeira, 4, 1950, 10-17; Manuel J. Pita FERREIRA, "O infante D. Fernando, terceiro senhor do arquipJlago da Madeira, 1460-1470", in ibidem, 33, 1963, 1-22. 123
A RelaHno de Francisco Alcoforado, publ. por JosJ Manuel de CASTRO, Descobrimento de Ilha da Madeira ano 1420..., Lisboa, SD, p. 90. 124
Ibidem, p. 93.
34 foi o novo reconhecimento da costa, com o assentamento de colonos. Todos os actos eram precedidos pela constru o de uma igreja ou ermida. No Funchal foram as capelas de Santa Catarina e a de Nossa Senhora do Calhau, sendo a ltima considerada pelo autor "a prymeyra casa de jgreja que se fez na ilha"125. Mais al m em C mara de Lobos a do Esp rito Santo, na Quinta Grande a de Vera Cruz, nos Canhas a de Santiago, na Estrela (Calheta) a de Nossa Senhora da Estrela. E conclui o cronista: "...come ou a por em obra a edifica o das jgrejas e llavran a da terra". Como se poder verificar o templo religioso o ponto de diverg ncia do processo de povoamento e foi em torno dele que surgiram as primeiras habita es de madeira para dar abrigo a estes colonos. Daqui resulta a import ncia fundamental da igreja em todo o processo. De acordo com a doa o r gia de 26 de Setembro 1433126 o infante, como mestre da Ordem de Cristo, recebeu tamb m a capacidade de interven o na esperitualidade do novo espa o. O Vig rio de Tomar, local sede da ordem, era quem, em nome do infante, estabelecia a estrutura religiosa, provendo os ministros. Apenas a arrecada o 127 dos d zimos eclesi sticos permanecia a cargo do almoxarife do infante . Para cada capitania foi nomeado um vig rio, que dependia directamente do de Tomar, tendo como fun o a administrar a esperitualidade no recinto da sua jurisdi o. Destes apenas se conhece o nome dos de Machico e Funchal, respectivamente Frei Jo o Garcia e Jo o Gon alves. Parece que esta situa o perdurou por todo o governo do infante D. Henrique, uma 128 vez que em 1461 uma das exig ncias dos moradores do Funchal era o aumento do clero, de modo que fosse assegurado o servi o religioso aos moradores de C mara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta de Sol e Arco da Calheta. N o agradou ao infante a pretens o dos franciscanos, oriundos das Can rias, ao quererem introduzir-se na ilha, ficando subordinados ao vig rio dessas, tal como o estabelecia a letra "dum ad prellara" do papa Nicolau V em 10 de Dezembro de 1450129. Estes havi o-se fixado no arquip lago vizinho desde 1436, mediante autoriza o do Papa Eug nio IV. Tal situa o era entendida como uma inger ncia nos direitos adquiridos pela Ordem de Cristo e uma afronta, tendo em conta o empenho do infante na conquista de algumas dessas ilhas. 125
Ibidem, p. 93.
126
J. M. Silva MARQUES, ob. cit., I, p. 273, 400.
127
Fernando Jasmins PEREIRA, "Bens Eclesi<sticos Diocese do Funchal" in Estudos sobre Hist\ria da Madeira, Funchal, 1991, pp. 325-327. 128
RGCMF, T. I, fls. 204-209, publ. AHM, XV, pp. 11-20. Vejamos o que J dito: "Em esa parte da ylha ho sennor ynfante meu padre que Deos aja nunca pos mays de hum capellam porque emtam a gente era pouca E agora he em mays multiplicaHam asy que hum soo capellam nom pode abrajer a todollos logares..." 129
54.
Confronte-se Monumenta Henricina, III, (1961), pp. 53-
35 O pr prio infante preocupou-se com a administra o religiosa do arquip lago, ordenando a constru o de igrejas e capelas, conforme se deduz do seu testamento de 1460: "Item estabeleci e ordenei a principal igreja de Sta Maria da ilha da Madeira e deshi em diante as outras que si ordenaram, e item estabeleci hi da ilha do Porto Santo e Igreja de Ilha Deserta (...)"130. Quanto aos diversos templos religiosos, que foram erguendo os povoadores em toda a ilha, neste per odo, n o existe consenso entre os diversos historiadores nem dados que abonem com seguran a a data exacta de constru o131. de salientar que a 130
131
J. M. Silva MARQUES, ob. cit., I, p. 590.
Confronte-se Padre Fernando Augusto da SILVA, SubsRdios para a Hist\ria da Diocese do Funchal, Funchal, 1946, pp. 22-35, 299-376; Padre Manuel Juvenal Pita FERREIRA, O ArquipJlago da Madeira Terra do Senhor Infante de 1420 a 1460, Funchal, 1859, pp. 308-352.
36 tradi o veiculada por lvaro Rodrigues de Azevedo132 e Pe. Fernando Augusto da Silva133 apresenta algumas par quias criadas em 1430, 1440 e 1450. N o sabemos em que se fundamenta tal ideia, uma vez que nas reclama es dos moradores do Funchal em 1461, documento j citado, refere-se a exist ncia de um s capel o que dizia missa no Funchal134.
132
"Notas", Saudades da Terra, Funchal, 1873, pp.534-566.
133
SubsRdios
para
a
Hist\ria
da
Diocese
do
Funchal,
pp.22-35. 134
EM 1466 continua a referir-se s\ um vig
37 ERMIDAS, CAPELAS E IGREJAS 1420-1460
LOCAL
DAT A
TIPO
ORAGO
Arco da Calheta
142661
Capela
S. Br s
Calheta
1426
Capela
N Sr Estrela
1430
Capela
Esp rito Santo
1420
Capela
N Sr Concei
142126
Ermid a
Esp rito Santo
142126
Igreja
S o Sebasti o (1)
1425
Conve nto
S o Bernardino
Canhas
1426
Capela
S o Tiago
Deserta
142660
Capela
N Senhora (1)
Machico
142021
Capela
Cristo
1426
Ermit rio
S o Francisco
1450
Igreja
N Sr Concei
Madalena
1450
Capela
Sta Maria Madalena
Ponta de Sol
1426
Capela
N Sr da Luz
Porto Santo
142026
Ermid a
N Sr Piedade (1)
C mara de Lobos
o
o (1)
38 Quinta Grande
1426
Capela
N Sr Vera Cruz
Ribeira Brava
142640
Ermid a
S o Bento
142667
Capela
Santa Cruz
1427
Igreja
Santa Cruz
S. Vicente
1440
Ermid a
S o Vicente
Funchal
1424
Capela
S o Sebasti o
1425
Capela
Santa Catarina
1425
Capela
142560
Igreja
Sta Maria a Maior/N Sr Calhau (1)
1426
Ermit rio
S. Jo o da Ribeira
1426
Capela
S. Pedro e S. Paulo
1454
Capela
S. Paulo
1468
capela
Santo Amaro
1) Fundadas pelo Infante D. Henrique.
N Sr Concei
N Sr Concei
o
o de Cima
39
4.2.D VIDAS E CERTEZAS
1.O SENHORIO DAS ILHAS Um dos aspectos de aproxima o do processo hist rico da Madeira ao das Can rias poder ser a estrutura institucional. O senhorio foi comum a ambos os arquip lagos e a partir dele desenvolveram-se as estruturas de governo que acompanharam o porvir hist rico e serviram de modelo s posteriores iniciativas. Daqui resulta a singularidade e import ncia do conhecimento deste processo institucional. A ideia de conquista e posse das Can rias inicia-se com a transmiss o da titularidade para particulares, adquirida desde 1344, junto do papado. A coroa castelhana s intervir a partir de 1477 quando Diego Garc a de Herrera lhe cede o direito de conquista das ilhas de Gran Canaria, La Palma, Tenerife. Esta interven o da coroa resultou da relativa estabilidade da pen nsula e da necessidade de firmar uma posi o nas ilhas merc da disputa de particulares e coroa portuguesa135. O reconhecimento e ocupa o da Madeira, ainda que com forte colabora o particular, foram de iniciativa da coroa. O empenhamento do infante D. Henrique e dos homens da sua Casa surge como servi o prestado aos intentos da coroa: era uma cruzada de reconhecimento e ocupa o e a coroa chamava a si o direito de posse bem como de administra o. A legitima o institucional para a interven o da casa do 136 infante s ficou estabelecida em 1433 . A partir desta data a gesta de reconhecimento ou descobrimento do Atl ntico ficarou subordinado ao empenho do gr o-mestre da Ordem de Cristo - o infante D. Henrique. O monarca Dom Duarte ao atribuir, em 1433-1439, Ordem de Cristo responsabilidades na expans o atl ntica ia ao encontro dos interesses e pertin cia do infante. Ao mesmo tempo lan avam-se as bases para uma nova estrutura institucional lus ada - senhorio atl ntico insular-, composta pelas ilhas dos arquip lagos da 135
Propositadamente ignoramos a controvJrsia em torno da posse do senhorio das Can
nticos, n 23, 1977, 125-164; Acuerdos del cabildo de Fuerteventura 1605-1659, Santa Cruz de tenerife, 1970, 11-15. 136
Esta doaHno enquadra-se no tipo de senhorio existente em Portugal que fora regulamentado pelas OrdenaHtes Afonsinas e Lei Mental, veja-se: Ant\nio Manuel HESPANHA, Hist\ria das InstituiHtes..., Coimbra, 1983, 282-301, 325; Fernando Jasmins PEREIRA, A Ilha da Madeira no perRodo henriquino (1433-1460), Lisboa, 1961.
40 Madeira e A ores. Durante mais de sessenta anos (1433-1497) a administra o das ilhas esteve a cargo da ordem de Cristo por meio do gr o-mestre. De acordo com a primeira carta de doa o, o infante D. Henrique recebeu o direito de posse do senhorio das ilhas que comp em o arquip lago da Madeira. O afastamento do donat rio das reas de ocupa o, as dificuldades nas comunica es com o reino, em conson ncia com a necessidade de distribuir benemesses pelos principais obreiros do reconhecimento e ocupa o do arquip lago, implicaram uma nova estrutura nas institui es insulares: os capit es do donat rio. Eles foram os l dimos representantes do donat rio que detinham capacidade para administrar a rea (capitania) concedida por carta de doa o. Nas Can rias a situa o foi diferente. Em primeiro lugar somos confrontados com duas formas de interven o na conquista e povoamento do arquip lago. Num primeiro momento tudo correu por iniciativa particular. E s depois, a partir de 1477, surgiu a coroa. Daqui resultou uma diferente op o institucional. Assim para as ilhas conquistadas por particulares, que ficaram conhecidas como senhoriais, vigorou o senhorio. Ao inv s, naquelas em que a coroa actuou no processo de conquista, enviando os seus emiss rios, conhecidas como realengas, a presen a r gia materializada na pessoa dos governadores D. Pedro de Vera e Alonso de Lugo. As prerrogativas enunciadas nas diversas recomenda es r gias associadas pr tica destes aproximaos dos capit es do donat rio da Madeira. Eles, n o obstante a sua situa o de funcion rios r gios, det m privil gios de tipo senhorial, como sejam, o direito de sucess o no cargo e o usufruto do t tulo de adelantado. Ser poss vel uma aproxima o de ambos os modelos institucionais definidos pelos reinos ib ricos para a expans o atl ntica? Note-se que, como referimos de ambos os lados, na ilha ou no continente, deparamonos com uma conjuntura diversa que pesou de forma significativa no lan amento das bases institucionais da nova sociedade. Nas Can rias os condicionalismos internos e externos conduziram a uma gesta de tipo feudal, enquanto na Madeira surge algo diferente que se enquadra nos par metros do senhorialismo em Portugal137. Al m disso, o senhorio das Can rias marcado por la os feudais, como a enfeuda o, enquanto na Madeira estes n o existem, pois com a doa o r gia de 1433 apenas s o concedidas algumas prerrogativas jurisdicionais conducentes sua adequada administra o. Assim o senhorio usava desta jurisdi o em nome do rei, que n o abdicava de certos dom nios jurisdicionais como a pena de morte, talhamento de membro, direito de fazer guerra e cunhar moeda. Nas Can rias Jean de Betencourt usufruia do direito de cunhar moeda. A posse da Madeira foi feita a ordem do rei e s depois a coroa concedeu o senhorio. Nas Can rias foi algo inverso. A conquista come ou com uma campanha 137
LuRs Filipe R. THOMAS, Estruturas quasi-feudais na expansno portuguesa , in Col\quio Internacional de Hist\ria da Madeira,, vol. I, Funchal, 1986, pp.80-87; Ant\nio MURO OREGON, Edad Media en Canarias y America , in I Col\quio de Historia Canario-Americana (1976), Las Palmas, 1977, 43-64; Alfonso GARCIA-GALLO, Los sistemas de colonizaci\n de Canarias y AmJrica en los siglos XV y XVI in ibidem, 423-442.
41 normanda e o necess rio acto formal de vassalagem e presta o de pleito e homenagem (1403-1412) ao monarca de Castela a quem as ilhas pertenciam por bula papal de 1344. Na Madeira o senhorio subdelegou compet ncias em homens da sua casa, atribu ndo-lhes a administra o de reas, que ficaram conhecidas como capitanias. Nas Can rias algo semelhante sucede. Jean de Bettencourt nomeiou para as ilhas um tenente ou governador geral que assegurava a administra o da justi a138. Note-se ainda que na ilha de La Gomera o senhorio delegara no alcalde mayor o poder c vel e de nomear os regedores, alferez, alguacil mayor e escribanos. Num e noutro arquip lago o senhorio usufru a de determinados proventos econ micos resultantes do usufruto do monop lio da recolha, fabrico e venda de certos produtos ou do lan amento de alguns direitos sobre a produ o e com rcio. Assim nas Can rias ele reservava para si o monop lio do com rcio da urzela, conchas marinhas, al m de uma renda senhorial (o quinto) que onerava o dinheiro, o gado e o com rcio139. Na Madeira o senhorio, de acordo com a carta de doa o r gia, detinha o usufruto de todas as rendas e direitos existentes ou a lan ar nesses dom nios. O principal tributo era o d zimo que onerava o aproveitamento dos recursos, a agricultura, pecu ria, pesca, transac es e com rcio. Ao capit o estava reservado o red zimo dos direitos, alguns privil gios exclusivos e a frui o dos r ditos resultantes da explora o das suas terras. O senhorio portugu s das ilhas da Madeira (1433) e A ores (1439) e mais espa o atl ntico (1443) legitimado pelas bulas papais (1452, 1454) assentava n o s no dom nio econ mico-social e institucional, mas tamb m espiritual. Assim os Administradores da Ordem de Cristo, atrav s do Vicariato de Tomar usufru am da administra o espiritual e religiosa do novo espa o ocupado no Atl ntico Insular. Esta situa o manteve-se at 1514 altura em que foi criada a diocese do Funchal com jurisdi o sobre as terras descobertas140. Nas Can rias a coroa nunca delegou o direito de patronato, atribu do em 1486 pelo papa Inoc ncio VIII, mantendo-o como seu exclusivo privil gio141.
138
Le canarien, La Laguna, 1960, CLAVIJO, Historia de Canarias, I, 342. 139
320-323;J.
VIERA
Y
Ibidem, 310.
140
Charles MARTIAL DE WITTE, Les bulles pontificales et l'expansion portugaise au XV eme SiPcle, Louvain, 1958, Les bulles d'erection de la province eclesi<stique du Funchal , in Arquivo Hist\rico da Madeira, XIII, 1962-63; Ant\nio BRASIO, O Padroado da Ordem de Cristo na Madeira , in Arquivo Hist\rico da Madeira, XII, 1960-61. 141
Joseph de VIERA Y CLAVIJO, Historia de Canarias, II, 1952, 476 e segs.
42
5. "... TODA ELA UM JARDIM E TUDO O QUE NELA SE APROVEITA OURO"
Igual a esta observa o de Cadamosto, em meados do s culo XV, contar-se-ia s centenas se todos os visitantes nacionais e estrangeiros tivessem tido possibilidade de o expressar. O progresso e a riqueza econ mica da ilha causaram a estupefac o de todos aventureiros e for o um forte incentivo presen a de novos colonos e de avan o do processo de reconhecimento das ilhas e litoral Atl ntico. Tudo isto, segundo Gaspar Frutuoso142, resultou do espir to empreendedor dos primeiros colonos madeirenses, que sob as ordens dos capit es empenharam-se em "cultivar e beneficiar a terra para dar fruto". Jo o Gon alves Zarco, ap s o reconhecimento da costa meridional da ilha, fixa-se no Funchal enquanto Trist o Vaz recolhe-se ao vale de Machico. a partir destes dois p los, mais tarde sedes das capitanias, que irradia a for a dos cabouqueiros. O processo foi r pido tal como o testemunham os cronistas. Zurara refere-nos que "em breve tempo foi grande parte daquela terra aproveitada"143, sendo corroborado por Gaspar Frutuoso144: "Foi assim tudo tanto em crescimento em ambas as jurdi es, com boa dilig ncia de seus capit es, que em breve tempo se povoou e enobreceu a ilha toda (...). Crescendo as povoa es e moradores com a fama da sua fatalidade..." Desde o in cio, evidente o contraste entre as ilhas do Porto Santo e Madeira. Assim, segundo Zurara na primeira "n o se pode em ela fazer lavra"145. A principal dificuldade estava, segundo Valentim Fernandes146, no "n o aver agoas a terra em sy steril", o que implicou que "n o se fez tanta obra nella como em a ylha de Madeira...". Ali s, esta ltima era "mais nobre e mais rica e mais avendosa". A falta de guas s permitiu as culturas de sequeiro e a valoriza o do pastoreio. Para Zurara a sua import ncia est na cria o de gado. ele quem refere a praga dos coelhos e que "criam-se ali muitos gados". Note-se que foi com a carta de doa o da capitania do Porto Santo que o infante se deu conta da import ncia do gado bravo e apastorado. A estas duas junta-se a Deserta, que segundo Zurara era "inten o de a mandar povoar com as outras", lan ando-se para isso gado. Distribu das as primeiras terras, um longo trabalho os esperava: as queimadas, a constru o de paredes encosta fora, para reten o da terra, o delineamento das levadas para o regadio e aproveitamento da for a motriz nos moinhos, serras de gua e, depois, engenhos a ucareiros. 142
Livro Segundo das Saudades da Terra, P.D., 1979, p.
93. 143
Cr\nica de GuinJ, Porto, 1973, p. 347.
144
Ob. cit., p. 94 e 97.
145
Ob. cit., p. 347.
146
Ob. cit., p. 113.
43 m o de todos estavam as madeiras resultantes do abundante arvoredo que cobria a ilha da Madeira147. O arroteamento das terras implicava o seu desbaste. E foi a que o colono encontrou uma das primeiras riquezas, verdadeira d diva da natureza. Com elas madeiras foi poss vel avan ar na contru o naval e civil, beneficiando a marinha e a cidade de Lisboa. Assim o refere Jer nimo Dias Leite148: "E neste tempo pela muita madeira que daqui levav o pera ho rejno come ar o com ella a fazer navios de gavea, e castello da vante, porque dantes n o havia no rejno..." Todavia, esta riqueza e preciosidade das madeiras durou pouco tempo. Em pouco tempo aquilo que existia em abund ncia passou a ser uma raridade. Para isso ter contribu do a necessidade de desbravar a densa floresta para abrir as arroteias. As queimadas comuns na Europa, tiveram aqui lugar e for o respons veis por um duradoiro inc ndio. o que refere Jo o de Barros: "...assy tomou o fogo posse da ro a e do mais arvoredo, que sete aunos andou vivo no bravio daquellas grandes matas que a natureza tinha criado avia tantas centenas de aunos. A qual destrui o de madeira posto que foy proveitosa pera os primeiros povoadores logo em breve come arem lograr as novidades da terra: os presentes sentem bem este dano, por a falta que tem de madeira e lenha: porque mais queimou aquelle primeiro fogo do que dentamente ora podera delepar for a de bra o e machado. Cousa que o infante muyto sentio e parece que como profecia vio esta necessidade presente que a ilha tem de lenha: porque dizem que mandava que todos plantassem matas,..."149. A quest o da dura o das queimadas, de sete ou nove anos, tem provocado alguma pol mica, havendo quem as considere mais como uma figura de estilo do que uma situa o real150. A par disso de notar o aproveitamento de outros recursos que na poca tinham grande valor comercial. Referimo-nos ao sangue de drago151. Em ambas as ilhas eram abundantes os dragoeiros, mas especialmente no Porto Santo ele mereceu maior aten o dos povoadores, por ser o primeiro e principal recurso dispon vel. A import ncia das madeiras est bem patente no facto de o infante ter determinado, nas cartas de doa o e lembran as e regimentos, de tributar a sua explora o. O infante tinha direito do dizimo das madeiras usadas na constru o de habita es e latadas, das lenhas para uso caseiro e industrial. Todas estas, mesmo situadas nas terras doadas de sesmarias, eram sua propriedade, como se pode inferir da 147
Confronte-se Lisboa, 1940, 111-112.
O
manuscrito
de
Valentim
148
Ob. cit., p. 20.
149
;sia, dJcada primeira, Coimbra, 1932, p. 19.
150
Confronte-se Ant\nio ARAGmO, A Madeira estrangeiros, Funchal, 1981, nota 4, pp. 42-45. 151
Fernandes,
vista
por
Diz Cadamosto: "J uma goma, que eles estilam em certo tempo do ano, e se colhe por esta maneira: fazem alguns golpes de cutelo no pJ da
44 doa o das terras na Madalena a Henrique Alem o: "com condi o que das ditas terras e lugar n o pague sen o o diz mo de tudo o que seus der em ele, salvando paus de teixo, vino, canas e quaisquer tintas que houver e gomas, que tudo seja para mim"152. Contra isto reclamaram em 1461 os moradores do Funchal ao infante D. Fernando no que n o tiveram qualquer apoio. Tamb m nas cartas de doa o das capitanias refere-se a esta importante industria. Assim aqueles que construissem serras de gua153 deveriam entregar ao capit o "um marco de prata em cada um ano ou seu certo valor ou duas t buas cada semana das que costumarem serrar", enquanto ao infante era devido "o diz mo de todas as ditas serras segundo pagam das outras coisas o que serrar as ditas serras". Acresce que nos cap tulos do regimento atribu do a D. Jo o I valoriza-se esta actividade ligada ao aproveitamento das madeiras. A s o referidos os "de menos, que vivam do seu trabalho e de cortar de talhar madeiras...". Outra importante fonte de riqueza ter sido o aproveitamento das ilhas para a cria o de gado. N o obstante, alguns cronistas referirem a exist ncia de gado selvagem no Porto Santo, onde os castelhanos faziam carnagem154, o certo que nas ilhas n o se encontrava qualquer esp cie animal ind gena com utilidade para o homem. por isso que aqui, a exemplo do que vir a suceder nos A ores, o processo de povoamento inicia-se com o lan amento de gado trazido do reino155. Isto era uma forma, n o s de testar a capacidade de sobreviv ncia dos seres vivos, mas tamb m de assegurar um primeiro suplemento alimentar aos primeiros colonos156. Daqui resultou que a cria o de gado se transformou numa das primeiras e principais riquezas. Assim o testemunha, em meados do s culo XV, Cadamosto. Quanto ao Porto Santo ele refere que " abundante de carne de vaca, porcos selvagens e infinitos coelhos", enquanto a Madeira "abundante em carnes". Esta reserva de pastos servia n o s para alimenta o dos primeiros habitantes da ilha, mas tamb m para o abastecimento das embarca es que demandavam a 152
ANTT, Livro das Ilhas, fl. 31v .
Veja-se Jordno de FREITAS, Serras de ;gua da Madeira e Porto Santo, Lisboa, 1937. 153
154
Valentim Fernandes refere: Os castelhanos em conquistando as Can
"cada veram mandava navios com animaes domesticos, ferro, e asso, e gado que tudo frutificava grandemente" (Jer\nimo Dias LEITE, ob. cit., p. 19). 156
Note-se o que suceder< mais tarde nos AHores e aqui com a ilha Deserta. O testemunho de Zurara J paradigm
45 costa africana que, desde 1455, segundo nos informa Zurara, tinham aqui escala obrigat ria na ilha. As culturas de subsist ncia e de exporta
o.
A organiza o do sector produtivo fez-se de acordo com as exig ncias da dieta alimentar dos colonos e as solicita es do mercado europeu. Assim, os elementos t picos da dieta crist -mediterr nica (os cereais, as videiras) s o os primeiros a embarcar. S , depois, num segundo momento, surjiram os produtos de grande procura nas cidades europeias: o pastel e cana de a car. As condi es em que se estabeleceram as primeiras arroteias fizeram com que as sementes de cereal, lan adas sobre as cinzas das queimadas, frutificassem em abund ncia. Diz Jer nimo Dias Leite que de um alqueire semeado se colhiam sessenta, enquanto Diogo Gomes refere "que uma medida dava cincoenta e mais". Cadamosto corrobora o primeiro mas anota que esta rela o foi baixando devido deteriora o do solo. Ainda, segundo ele, a ilha produzia 3000 moios de trigo de que s tinha necessidade de um quarto. O demais era exportado para o reino, tal como o diz Diogo Gomes: "E tinham ali tanto trigo que os navios de Portugal, que por todos os anos ali iam, quase por nada o compravam". Em data, que desconhecemos, estabeleceu o infante D. Henrique ou o rei a obrigatoriedade de envio de mil moios para a Guin , o que era considerado, na d cada de sessenta um vexame para os funchalenses, que prontamente reclamaram ao novo senhor da ilha, no que n o tiveram grande acolhimento por ser "trato de el-Rei". O vinho outra necessidade alimentar, mas tamb m uma exig ncia do culto eucar stico crist o, por isso era imprescind vel a presen a de videiras na bagagem dos primeiros colonos. Todavia, alguns cronistas, a excep o de Zurara e Jo o de Barros que o n o referem, afirmam ter sido o infante quem, num segundo momento, ordenou a vinda de bacelos de malvasia de C ndia. Sucede que a cultura da vinha n o era novidade em Portugal e tinha j uma grande tradi o, nomeadamente no norte. Por isso, natural, que antes das cepas de malvazia de C ndia tenham aportado ilha outras do reino157. A not cia mais detalhada sobre a import ncia deste produto surje em Cadamosto: Os vinhos da Madeira podem reputar-se muito bons, se se considerar, que foram transplantados de fresco, e s o em tanta quantidade, que bastam para os habitantes e ainda sobram para exportar para fora. Entre as outras videiras fez o dito Senhor plantar bacelos de Malvasia que mandou vir de C ndia, os quais produziram muito bem: e por ser o terreno t o gordo e bom, criam as videiras quase mais cachos, do que folhas; e s o eles muito grandes do comprimento de dois a tr s palmos e estou em dizer que at de quatro; coisa a mais bela do mundo para ver. Os canaviais aparecem, num segundo momento, por iniciativa do infante que os Esta ideia J corroborada em carta de Simno GonHalves da C>mara de 25 de Junho de 1511: "naquele tempo que se deram essas terras nno se sabia que outros frutos havia de dar nela senno pno e vinho..." (ANTT, C.C., parte I, maHo 27, doc. 22). 157
46 mandou vir da Sic lia. Neste caso os testemunhos s o claros158, sendo de referir Cadamosto: "E por ser banhada por muitas guas, o dito senhor mandou p r nesta ilha muitas canas de a car, que deram muito boa prova"159. Isto documentado, mais tarde em 1511, por Sim o Gon alves da C mara: que vendo a calidade da terra desta ilha e a teper a della pareceo-lhe q sse podia ddar a uqres e sabendo ha aspeza da trra e hos grandes trabalhos q os primeiros pouoradores tinh em ha romperem detriminou como mt vrtuoso ajudar a seus lauradores e t bee pllo proueito q lhe disso seguya de m dar trazer a planta das canas a esta trra e ordenou e qis q pondo elle a dita pranta em cada hum ano e os lauradores poese ho esmoutar e tirar e laurar e prantar160. A primeira planta o teve lugar no Funchal, num terreno do infante, conhecido como o campo do duque. Daqui os canaviais foram levados para Machico, onde se fabricou o primeiro a car - 13 arrobas -, que foi vendido a cinco cruzados a 161 arroba . Sabe-se que o infante permitiu aos povoadores a constru o de engenhos para a labora o do a car sujeitando-se ao pagamento de 1/3 da produ o. Destes apenas temos not cia do constru do por Diogo Teive, conforme autoriza o escrita do 162 pr prio infante de 1452 . Daqui se infere da exist ncia de um lagar propriedade do senhor infante. Por isso o fabrico do a car fazia-se em exclusivo neste lagar j existente e no novo engenho de gua, pois "que eu n o d lugar a ningu m que possa fazer outro semelhante e n o se podendo todo fazer que eu d lugar a quem me prouver que fa a outro". Do primeiro a car come ou a fazer-se exporta o. Assim Cadamosto d conta da promissora produ o: "... e fabricaram-se a cares pela quantidade de quatrocentos c ntaros, tanto na primeira cozedura, como da mistura e pelo que posso perceber, far-se- com o tempo maior quantidade (...). Fazem-se ali tamb m muitos doces cobertos com suma perfei o". Para Diogo Gomes os da ilha "fabricam a car em tal quantidade que exportado para as regi es orientais e ocidentais".
158
Confronte-se J. Dias LEITE, ob. cit.; Gaspar FRUTUOSO, ob. cit., p. 146. 159
Ob. cit., p. 37.
160
ANTT, C.C., 1
parte, maHo. 27, doc. 22.
161
J. Dias LEITE, ob. cit., p. 102; Gaspar FRUTUOSO, ob. cit., pp. 146. 162
7/8.
RGCMF, T. I, fls. 132-132v , publ. AHM, Vol. XV, pp.
47
5.1. D VIDAS E CERTEZAS 1. O "CICLO DO TRIGO" E A TEORIA DOS CICLOS Este per odo que abrange o governo do infante D. Henrique foi definido como o do ciclo do trigo. Isto , durante mais de quarenta anos a economia madeirense ter-se-ia orientado apenas para a aposta na cultura e com rcio do trigo, que, por sua vez, entendido como um dos principais m beis para a conquista de Ceuta e ocupa o dos arquip lagos163. O que atr s ficou dito prova precisamente o contrario164. Tudo isto come ou em 1949, quando Fernand Braudel argumentou que o processo econ mico das ilhas articulou-se de acordo com o regime produtivo de monocultura165. Ainda, neste ano Orlando Ribeiro esclarecia, que no caso da Madeira n o poss vel encontrar rastros de monocultura no regime de explora o agr cola madeirense166. A mesma opini o tamb m nas Can rias, onde, volvidos vinte anos, Elias Serra Rafols respondia a Francisco Morales Lezcano, enunciando que nunca existiu um regime de monocultura, uma vez que a economia can ria foi dominada por uma variedade de culturas, cuja actua o n o uniforme no tempo e no espa o167. Mais tarde, 163
Confronte-se Vitorino Magalhnes GODINHO, Documentos sobre a expansno portuguesa, vol. III, Lisboa, 1943; idem, Hist\ria Econ\mica e social da Expansno Portuguesa, Lisboa, 1947; idem, A expansno quatrocentista portuguesa.Problemas das origens e da linha de evoluHno, Lisboa, 1944; idem, "Le problPme du pain das l'Jconomie portugaise. XVe- xVIe siPcle", in Revista de Economia, vol. XII, 1959, n .47, pp. 87-113; idem, Os descobrimentos e a economia mundial, vol. III, p. 223-231; Oliveira MARQUES, IntroduHno B Hist\ria da Agricultura em Portugal, Lisboa, 1978, pp.251-254. Mais recentemente Fernando Jasmins PEREIRA (Estudos Sobre Hist\ria da Madeira, p. 64) afirmou que "a cultura cerealRfera constitui a verdadeira base da colonizaHno madeirense". 164
Confronte-se Joel Madeirenses, pp.17-20 e 53-75.
SERRmO,
Temas
Hist\ricos
165
Le MJditerranJe et le Monde MJditerranJen(...), ed. de 1949, 123. 166
167
L'Tle de MadPre (...), Lisboa, 1949, 67.
"El gofio nuestro de cada dia", in Estudios Canarios, XIV-XV1969-1970, 97-99; corroborado por M. A. LADERO QUESADA (Espana en 1492, Madrid, 1978, 205-218), Eduardo AZNAR VALLEJO (La integraci\n de las islas Canarias en la corona da castilla, La laguna, 1983, 455) e Fernando CLAVIJO HERNANDEZ "Los documentos de fletamentos (...)", in IV C.H.C.A., vol. I, 36. A tese de Victor MORALES LEZACANO baseada em F. Braudel
48 Fr d ric Mauro, secundado por Vitorino Magalh es Godinho, retomaram a quest o, enunciando que a economia insular se definiu apenas por um regime de produtos dominantes e n o de monocultura168. Deste modo e, de acordo com uma an lise aturada da economia insular, parece-nos que a mesma n o se regeu por princ pios exclusivistas, de acordo com a prem ncia das solicita es externas. Antes pelo contr rio, o seu desenvolvimento s cioecon mico processou-se de forma variada, sendo a explora o econ mica dominada por estes vectores dominadores, confrontados com as condi es e recursos do meio com as solicita es da economia de subsist ncia. dif cil, sen o imposs vel, conseguir definir um ciclo em que impere a monocultura de exporta o, num espa o amplo e multifacetado como o do mundo insular. Os modelos, embora perfeitamente delineados, n o se ajustam realidade s cio-econ mica, que extremamente variada e enriquecida de m ltiplas matizes. Embora alguns produtos, como o trigo, o a car, o vinho e o pastel, surjam em pocas e ilhas deferenciadas, como os mais importantes e definidores das trocas externas, n o s o os nicos na economia insular. Quem conhece as ilhas sabe que em todas domina a diversidade geo-econ mica, fruto da configura o geogr fica. Esta situa o provoca na Madeira um escalonamento de culturas, impedindo a sua sobreposi o.
surgiu pela primeira vez em Sintesis de la historia economica, Tenerife, 1966, sendo depois reforHada em Las relaciones Mercantiles entre inglaterra y los archipJlagos atlantico ibJricos (...), La laguna, 1970 e em "Cultivos dominantes y ciclos agrRcolas en la historia Moderna de las islas Canarias", in Historia General de las islas Canarias, IV, 1122. 168
FrJdJric MAURO, Le Portugal et l'Atlantique au XVIIe, siPcle (...), Paris, 1960, 501; Idem, "Conjoncture Jconomipque et structure sociale en AmJrique latine depuis d'Jpoque coloniale", in Conjoncture Iconomique, Sctruture Sociales,. Hommage B Ernest Labrouse, Paris, 1974, 237-251; Vitorino Magalhnes GODINHO, "A Divisno da hist\ria de Portugal em perRodos", in Ensaios II, 2 ed., Lisboa, 1978, 12-14.
49
6. "... QUE DEUS P S NO MAR OCEANO OCIDENTAL PARA ESCALA, REF GIO, COLHEITA E REM DIO DOS NAVEGANTES..."
Foi o arquip lago o in cio da presen a portuguesa no Atl ntico, e o primeiro e mais proveitoso resultado desta aventura. O testemunho de Gaspar Frutuoso169 que encima esta parte disso exemplo. V rios s o os factores que se conjugaram para este protagonismo. A inexist ncia de popula o, em conson ncia com a extrema necessidade de valoriza o para o avan o das navega es ao longo da costa africana, favoreceram a r pida ocupa o e crescimento econ mico da Madeira. Por isso, a afirma o do arquip lago madeirense, nos primeiros anos dos descobrimentos, foi evidente: porto de escala ou apoio para as prec rias embarca es quatrocentistas, que sulcavam o oceano; importante rea econ mica, fornecedora de cereais, vinho e a car; modelo econ mico, social e pol tico para as demais interven es portuguesas no Atl ntico170. A juntar a tudo isso temos que o r pido progresso social, resultado do porvir econ mico, condicionou o aparecimento de uma aristocracia-terratenente que, imbu da do ideal cavalheiresco e do esp rito de aventura, se embrenhou na defesa das pra as marroquinas, na disputa pela posse das Can rias e viagens de explora oe com rcio ao longo da costa africana e, at mesmo, para Ocidente. A proximidade da Madeira ao vizinho arquip lago das Can rias, em conjuga o com o r pido surto do povoamento e valoriza o s cio-econ mica do solo, orientaram as aten es do madeirense para as ilhas. Assim, decorridos apenas vinte e seis anos sob a ocupa o, os moradores da Madeira empenharam-se na disputa pela posse das Can rias, ao servi o do infante D. Henrique. Em 1446 Jo o Gon alves Zarco, foi enviado a Lanzarote, como plenipotenci rio para afirmar o contrato de compra da ilha. Acompanham-no as caravelas de Trist o Vaz, capit o do donat rio em Machico e de Garcia Homem de Sousa, genro de Zarco171. Mais tarde em 1451, o infante enviou nova armada, em que participaram gentes de Lagos, Lisboa e Madeira, sendo de salientar, no ltimo caso, Rui Gon alves filho do capit o do donat rio do Funchal172. 169
Livro primeiro das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1979, p.98. 170
Esta ultima ideia ficou expressa no nosso estudo sobre "A Madeira na rota dos descobrimentos e expansno atl>ntica", in Revista da Universidade de Coimbra, vol. XXXIV, 1988, pp. 571-580. 171
JosJ PEREZ VIDAL, Aportaci\n portuguesa a la poblaci\n de Canarias. Datos , in Anuario de Estudios Atl>nticos, n 14, 1968; A. SARMENTO, Madeira & Can
Monumenta Henricina, Vol. XI, 172-179.
50 Para a aristocracia madeirense o empenhamento nas ac es mar timas e b licas , ao mesmo tempo, uma forma de homenagem ao senhor (monarca, donat rio) e de aquisi o de benesses e comendas. Zurara na Cr nica da Guin 173 confirma isso, referindo que a participa o madeirense ia ao encontro dos princ pios e tradi es da cavalaria do reino. O que n o invalida a sua presen a com outros objectivos, como sucede a partir de meados do s culo XV. Os principais obreiros do reconhecimento e ocupa o da Madeira, como criados da casa do infante D. Henrique, foram impelidos para a aventura africana, com participa o activa nas viagens henriquinas de 1445 e 1460 e nas aventuras b licas nas pra as africanas do norte, nos s culos XV e XVI174. O capit o de Machico, Trist o Vaz Teixeira, participou pessoalmente numa das expedi es de 1445, enquanto Jo o Gon alves Zarco mandou duas vezes uma caravela, sob comando do sobrinho lvaro Fernandes. Zurara fala-nos das inten es que moveram estes capit es. Enquanto Jo o Gon alves Zarco surge apenas para bem servir o infante, Trist o Vaz ia por bom desejo para servi o do Infante e muito ao seu proveito. Mas lvaro de Ornelas, escudeiro da casa do mesmo senhor, armou caravela por fazer alguma cousa de sua honra175. A presen a de gentes da Madeira continuar por todo o s culo XV em tr s frentes: Marrocos176, litoral africano al m do Bojador e terras ocidentais. Na primeira e ltima a presen a dos madeirenses foi fundamental. A tradi o refere que o primeiro homem a lan ar-se aventura do descobrimento das terras ocidentais foi Diogo de Teive, que em 1451 ter sa do do Faial procura da ilha das Sete Cidades, mas que no regresso apenas descobriu as ilhas de Flores e Corvo177. Seguiram o seu exemplo outros madeirenses que gastaram muito de sua fazenda para abrir o caminho, mais tarde, trilhado por Colombo.
173
Caps. LXVIII, LXX, LXXV, LXXXVII. O mesmo poder< ser comprovado na biografia que Gaspar Frutuoso faz dos capitnes do Funchal e Machico. 174
Gaspar FRUTUOSO, Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1968; A. SARMENTO, A Madeira e as praHas de ;frica, Funchal, 1932; Jono JosJ Abreu de SOUSA, EmigraHno nos sJculos XV a XVII , in Atl>ntico, n 1, Funchal, 1985, 46-52. 175
Cap. LXX.
176
Veja-se a resenha de feitos em Alberto Artur SARMENTO, A MAdeira e as praHas de ;frica, Funchal, 1932; Jono JosJ de Abreu e SOUSA, "EmigraHno madeirense nos sJculos XV a XVII", in Atl=ntico, n .1, Funchal, 1985, pp. 46-52. 177
Sobre esta figura veja-se o que diz Ernesto GONGALVES, Portugal e a ilha, Funchal, 1992, pp.85-118.
51 6.1. D VIDAS E CERTEZAS
1.A MADEIRA TERRA DESCOBERTA E TAMB M DE DESCOBRIDORES
A valoriza o da Madeira no contexto da expans o europeia tem sido diversa. A historiografia nacional considera-a um simples epis dio de todo o processo e, em face da posi o geogr fica, hesita no seu enquadramento, sendo levada, por vezes ao esquecimento. A historiografia europeia, ao inv s, n o duvida em real ar a singularidade do seu processo neste contexto. Desde F. Braudel (1949), passando por Pierre Chaunu (1955), Fr deric Mauro (1960) e Charles Verlinden (1960), que se afirmou esta nova realidade, que s na actualidade come a a ter plena aceita o entre n s. Para isso contribuiram a cria o do C.E.H.A. (1985) e os tr s col quios internacionais de Hist ria da Madeira, j realizados (1986, 1989, 1992). A Madeira, arquip lago e Ilha, afirma-se no processo da expans o europeia pela singularidade do seu protagonismo. V rios s o os factores que o propiciaram, no momento de abertura do mundo atl ntico, e que fizeram com que ela fosse, no s culo XV, uma das pe as-chave para a afirma o da hegemonia portuguesa no Novo Mundo. O Funchal foi uma encruzilhada de op es e meios que iam ao encontro da Europa em expans o. Al m disso ela considerada a primeira pedra do projecto, que lan ou Portugal para os anais da Hist ria do oceano que abra a o seu litoral abrupto. A fundamenta o de tudo isto est patente no real protagonismo da ilha e das suas gentes. fun o de porta-estandarte do Atl ntico, a Madeira associou outras, como "farol" Atl ntico, o guia orientador e apoio para as delongas incurs es oce nicas. Por isso nos s culos que nos antecederam, ela foi um espa o privilegiado de comunica es, tendo a seu favor as vias tra adas no oceano que a circunda e as condi es econ micas internas, propiciadas pelas culturas da cana sacarina e vinha. Uma e outra condi es contribu ram para que o isolamento definido pelo oceano fosse quebrado e se mantivesse um permanente contacto com o velho continente europeu e o Novo Mundo. Como corol rio desta ambi ncia a Madeira firmou uma posi o de relevo nas navega es e descobrimentos no Atl ntico. O r pido desenvolvimento da economia de mercado, em un ssono com o empenhamento dos principais povoadores em dar continuidade gesta de reconhecimento do Atl ntico, refor aram a posi o da Ilha e fizeram avolumar os servi os prestados pelos madeirenses. Aqui surgiu uma nova aristocracia dos descobrimentos, cumulada de t tulos e benemesses pelos servi os prestados no reconhecimento da costa africana, defesa das pra as marroquinas, ou nas campanhas brasileiras e ndicas178. MODELO DA EXPANS O 178
Confronte-se Jono JosJ Abreu de SOUSA, "EmigraHno madeirense nos sJculos XV a XVII", in Atl>ntico, n .1, Funchal, 1985, pp. 46-52.
52 A Madeira surge, nos alvores do século XV, como a primeira experiência de ocupação em que se ensaiaram produtos, técnicas e estruturas institucionais. Tudo isto foi, depois, utilizado, em larga escala, noutras ilhas e no litoral africano e americano. O arquipélago foi, assim, o centro de divergência dos sustentáculos da nova sociedade e economia do mundo atl ntico: primeiro os açores, depois os demais arquipélagos e regiões costeiras onde os portugueses aportaram. O sistema institucional madeirense apresentava uma estrutura peculiar, definida pelas capitanias. Foi a 8 de Maio de 1440 que o Infante D. Henrique lançou a base da nova estrutura ao conceder a Tristão Vaz a carta de capitão de Machico. A partir daqui ficou definido o sistema institucional que deu corpo ao governo português no Atl ntico insular e brasileiro. Sem dúvida o facto mais significativo desta estrutura institucional deriva de a Madeira ter servido de modelo referencial para o seu delineamento no espaço atl ntico. O monarca insiste, nas cartas de doação de capitanias posteriores, na fidelidade ao sistema traçado para a Madeira. Assim o comprovam idênticas cartas concedidas aos novos capitães das ilhas dos açores e Cabo Verde. O mesmo sucede com a demais estrutura institucional que chegou também a S. Tomé e Brasil179. também os castelhanos vieram ilha receber alguns ensinamentos para a sua acção institucional no Atl ntico, como se depreende do desejo manifestado em 1518 pelas autoridades antilhanas em resolver a difícil situação das ilhas de Cura au, Aruba e La Margarita com o recurso ao modelo madeirense de povoamento. Isto prova, mais uma vez, a presença modelar da ilha no contexto da expansão europeia e demonstra o interesse que ela assumiu para a Europa. João de Melo da Câmara, irmão do capitão da ilha de S. Miguel, resumia em 1532180 de uma forma perspicaz o protagonismo madeirense no espaço atl ntico. Segundo ele a sua família era portadora de uma longa e vasta experiência "porque a ilha da Madeira meu bisavô a povoou, e meu avô a de São Miguel, e meu tio a de São Tomé, e com muito trabalho, e todas do feito que vê...". Isso dava-lhe o alento necessário e abri-lhe perspectivas para uma sua iniciativa no Brasil. Ele reclamava o protagonismo do seu ancestral Rui Gonçalves da C mara que em 1474 comprara a ilha de S. Miguel, dando início ao seu verdadeiro povoamento. A mesma percepção surge em Gilberto Freire que em 1952 não hesita em afirmar o seguinte: - A irmã mais velha do Brasil o que foi verdadeiramente a Madeira. E irmã que se estremou em termos de mãe para com a terra bárbara que as artes dos seus homens,... concorreram para transformar rápida e solidamente em nova Lusitânia"181. Outra componente importante da afirmação da ilha como modelo de referência tem 179
David F. GOUVEIA, "A manufactura aHucareira madeirense[1420-1550]", in Atl>ntico, n . 10, Funchal, 1987, p.131. 180
Hist\ria da ColonizaHno Portuguesa do Brasil, vol. III, p.90; cf Vera Jane GILBERT, "Os primeiros engenhos de aHdcar"in Sacharum, n .3, Sno Paulo, 1978, pp. 5-12. 181
Aventura e Rotina, 2 ed., pp 440-446, 448-449
53 a ver com a organização da sociedade no espaço atl ntico e da import ncia aí assumida pelo escravo. Mais uma vez a Madeira o ponto de partida para esta 182 transformação social. De acordo com S. Greenfield ela serviu de trampolim entre o "Mediterranean Sugar Production" e a "Plantation Slavery" americana. O autor não faz mais do que retomar os argumentos aduzidos por Charles Verlinden183 desde a década de sessenta. Note-se que esta argumentação mereceu alguns reparos na sua formulação, mercê de novos estudos184. Na verdade tudo o concretizado em termos do mundo atl ntico português teve por matriz o sucedido na Madeira. A Madeira foi ao nível social, politico e económico, o ponto de partida para o "mundo que o português criou..." nos trópicos. Neste contexto sumamente importante o conhecimento do sucedido na Madeira quando pretendemos estudar e compreender as outras situações. Bibliografia:
David F. GOUVEIA, "A manufactura aHucareira madeirense[1420-1550]", in Atl>ntico, n . 10, Funchal, 1987, p.131.Hist\ria da ColonizaHno Portuguesa do Brasil, vol. III, p.90; cf Vera Jane GILBERT, "Os primeiros engenhos de aHdcar"in Sacharum, n .3, Sno Paulo, 1978, pp. 5-12. Aventura e Rotina, 2 ed., pp 440-446, 448-449. "Madeira and the beginings of New World sugar cane cultivation and plantation slavery: a study in constitution building", in Vera RUBIN e Artur TUNDEN(eds.), Comparative perspectives on slavery in New World Plantation Societies, N. York, 1977."PrJcJdents et paralPlles europeJns de l'esclavage colonial", in Instituto, vol.113, Coimbra, 1949; "Les origines coloniales de la civilization atlantique. antJcJdents et types de structure", in Journal of World History, 1953, pp. 378-398; PrJcJdents mJdiJvaux de la colonie emn AmJrique, MJxico, 1954; Les origines de la civilization atlantique, NLuchatel, 1966. 182
"Madeira and the cultivation and plantation building", in Vera RUBIN perspectives on slavery in York, 1977.
beginings of New World sugar cane slavery: a study in constitution e Artur TUNDEN(eds.), Comparative New World Plantation Societies, N.
183
"PrJcJdents et paralPlles europeJns de l'esclavage colonial", in Instituto, vol.113, Coimbra, 1949; "Les origines coloniales de la civilization atlantique. antJcJdents et types de structure", in Journal of World History, 1953, pp. 378-398; PrJcJdents mJdiJvaux de la colonie emn AmJrique, MJxico, 1954; Les origines de la civilization atlantique, NLuchatel, 1966. 184
Confronte-se Alfonso FRANCO SILVA, "La eclavitud en Andalucia...", in Studia, n .47, Lisboa, 1989, pp.165-166; Alberto VIEIRA, Os escravos no arquipJlago da Madeira. sJculos XV a XVII, Funchal, 1991.
54 1
Confronte-se Alfonso FRANCO SILVA, "La eclavitud en Andalucia...", in Studia, n .47, Lisboa, 1989, pp.165-166; Alberto VIEIRA, Os escravos no arquipJlago da Madeira. sJculos XV a XVII, Funchal, 1991.
55 7. BIBLIOGRAFIA: ALBUQUERQUE, Lu s de e Alberto Vieira, O arquip lago da Madeira no s culo XV, Funchal, 1986, FERRAZ, Maria de Lourdes de Freitas, A ilha da Madeira sob o dom nio da casa senhorial do infante D. Henrique e eus descendentes, Funchal, 1986, FRUTUOSO, Gaspar, Livro segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1979, GON ALVES, Ernesto, Portugal e a Ilha.Colect nea de Estudos Hist ricos e liter rios, Funchal, 1992, IRIA, Alberto; "O Algarve e a ilha de Madeira no s culo XV(documentos in ditos)", in Studia, n 38, 1974, 131-516, LEITE, Jer nimo Dias, Descobrimento da ilha da Madeira e discurso da vida e feitos dos capit es da dita ilha, Coimbra, 1947, MELO, Lu s de Sousa; "O problema da origem geogr fica do povoamento", in Islenha, n 3, 1988, 19-34(o mesmo estudo j publicado em Hist ria e Sociedade, n.6, 1979), PEREIRA, Fernando Jasmins; Estudos sobre hist ria da Madeira, Funchal, 1991, Quinto Centen rio do descobrimento da Madeira, Funchal, 1922, RODRIGUES, Miguel Jasmins; "Coloniza o e estruturas de poder (do in cio at ao reinado de D. Manuel, Antigo duque...)", in Islenha, n 3, 1988, 46-59, SALDANHA, Ant nio Vasconcelos; As capitanias. O regime senhorial na expans o ultramarina portuguesa, Funchal, 1992, SARAIVA, Jos Hermano; "Para uma Hist ria da Madeira - o Funchal de Zarco", in Temas de Hist ria de Portugal. Espa o portugu s, Vol. II, Lisboa, 1982, 109-123, SERR O, Joel; Temas Hist ricos Madeirenses, Funchal, 1992, SILVA, Fernando Augusto da; "Come o do povoamento madeirense. 1425-1450", in DAHM, VII, n 37 (1967), VIEIRA, Alberto, LEGENDAS PARA AS FOTOGRAFIAS
1. Monumento a Jo o Gon alves Zarco (Funchal) do escultor Francisco Franco, executado em 1927 e inaugurado a 28 de Maio de 1934. 2. Monumento a Trist o Vaz (Machico) de autoria de Anjos Teixeira, inaugurado a 8 de Dezembro de 1792. 3. Capela de Santa Catarina de cerca de 1425, mandada construir por Constan a Rodrigues, mulher de Jo o Gon alves. 4. Altar da Capela de S. Paulo. Mandada construir por Jo o Gon alves Zarco cerca 1426. 5. Capela dos Milagres. Constru da em 1420 e reconstru da em 1803, ap s o aluvi o, gravura de 1850. 6. Monumento ao Infante D. Henrique (Funchal) da autoria de Leopoldo de Almeida, inaugurado a 28 de Maio de 1947. 7. Monumento evocativo do descobrimento do Porto Santo. Escultura de Ant nio Arag o. Inaugurado a 23 de Fevereiro de 1960.