Ilhas-sugar

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VIEIRA, Alberto (1998), As ilhas do Açúcar- A Economia açucareira da Madeira e Canárias nos séculos Xv a XVII,

COMO REFERENCIAR ESTE TEXTO: VIEIRA, Alberto (1998), As ilhas do Açúcar- A Economia açucareira da Madeira e Canárias nos séculos Xv a XVII, Funchal, CEHA-Biblioteca Digital, disponível em: http://www.madeiraedu.pt/Portals/31/CEHA/bdigital/avieira/ilhas-sugar.pdf, data da visita: / /

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AS ILHAS DO AÇÚCAR- A ECONOMIA AÇUCAREIRA DA MADEIRA E CANÁRIAS NOS SÉCULOS XV E XVI ALBERTO VIEIRA1

A Europa sempre se prontificou a apelidar as suas ilhas de acordo com a oferta de produtos ao seu mercado. Deste modo, sucedem-se as designações de ilhas do pastel, do açúcar e do vinho. O açúcar ficou como epíteto da Madeira e de algumas das Canárias, onde a cultura foi a varinha de condão que transformou a economia e vivência das suas populações. Também do outro lado do oceano elas se identificam com o açúcar, uma vez que serviram de ponte à sua passagem do Mediterrâneo para o Atlântico. Daqui resulta a relevância que assume o seu estudo, quando se pretende fazer a reconstituição da rota do açúcar. Para isso estabelecemos um percurso paralelo da evolução da cultura nas ilhas da Madeira, Gran Canaria, Tenerife, La Palma e La Gomera, nos séculos XV a XVII. Concomitante com a abordagem da questão do ciclo produtivo e comercial do produto surgem outras igualmente pertinentes que procuramos dar o merecido relevo. São elas: a evolução da propriedade da terra e da água, a escravatura. A Madeira é o ponto de partida para esta abordagem, por dois tipos de razões. Primeiro, porque foi pioneira na exploração da cultura e na sua expansão ao espaço exterior próximo ou longínquo, incluído as Canárias. A somar a tudo isto temos de assinalar que os núcleos documentais permitem apurar com maior exaustão a realidade sócio-político-económica subjacente ao produto, aclarando algumas lacunas subjacentes à sua abordagem nas Canárias.

O REGIME DE PROPRIEDADE DA TERRA E DA ÁGUA. O conhecimento do regime de propriedade requer um estudo aturado, assente nas fontes documentais que atestem o sistema de relações estabelecido na posse e produção da parca superfície arável. Para a Madeira dispomos de alguns livros de tributação do açúcar aos lavradores, enquanto nas Canárias tal só é possível através dos “repartimientos” e protocolos notariais2. No caso madeirense a historiografia preocupa-se, única e exclusivamente, com as condições jurídicas que regularam a distribuição das terras e depois a degradação do sistema com o alheamento do proprietário da parcela arroteável e a sua fixação no meio urbano. Esta última situação contribuiu para a definição do conhecido contrato de colonia3. Não interessava conhecer quem e como se recebiam as terras de sesmaria, que tipo de propriedade condicionou esta política de doação e distribuição de terras, qual a evolução desta

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. Investigador do Centro de Estudos de História do Atlântico, Funchal - Madeira. . Esta documentação resulta da contabilidade organizada para cada engenho, conforme se infere de documento de 1550(AHM, vol. XIX, nº.98, pp.119-124, 12 de Junho, provisão e regimento para a arrecadação do açúcar). Veja-se José Pereira da COSTA e Fernando Jasmins PEREIRA, Livros de Contas da ilha da Madeira. 1504-1537, Coimbra, 1985, idem, Livros de Contas da ilha da Madeira, Funchal, 1989. Pedro CULLEN DEL CASTILLO(ed.), Libro rojo de Gran Canaria, Las Palmas, 1947; Elias SERRA RÁFOLS e Leopoldo de la ROSA OLIVERA(eds.), Refornación del repartimiento de Tenerife en 1506(...), La Laguna, 1963; Elias SERRA RÁFOLS, Las datas de Tenerife(libros I a IV de datas originales), La Laguna, 1978; Francisca MORENO FUENTES, Las datas de Tenerife, libro V, de datas originales, La Laguna, 1988;idem, Las Datas de Tenerife(libro primero de datas por testimonio), La Laguna, 1992; Francisco Morales Padron, "Canarias en el Archivo de Protocolos de Sevilla", in Anuario de Estudios Atlanticos, VII, 1961; Eduardo AZNAR VALLEJO, Documentos canarios en el registro del sello(1476-1517), La Laguna, 1981. Nos últimos anos foram publicados alguns livros de protocolos dos arquivos provinciais de Las Palmas e Santa Cruz de Tenerife. 3 . É um contrato regulado pelo direito consuetudinário, em que o proprietário da terra a cede a outrem, tendo este a obrigação de a tornar arável, construindo as bemfeitorias, dando-lhe na altura da colheita a metade da colheita. 2

2 estrutura e as suas cambiantes, de acordo com as condições mesológicas do solo arável4. O sistema de propriedade em ambos os arquipélagos ficou definido pela distribuição de terras aos povoadores e depois pela venda, troca ou nova doação. Num e noutro caso as situações são idênticas, variando apenas a forma da sua expressão consoante o processo de povoamento e as peculiaridades de cada ilha. Em ambos a coroa outorgou aos capitães e governadores o poder de distribuir terras aos colonos e conquistadores de acordo com a sua participação no processo e a condição social5. Todas estas doações foram feitas de acordo com normas estabelecidas pela coroa e seguiam o modelo definido para o repovoamento da Península. Para além da condição social do contemplado, das indicações, por vezes imprecisas, da área de cultivo e para erguer benfeitorias, estabelecia-se também o prazo para as arrotear. Sabe-se que, em qualquer dos arquipélagos, o prazo inicial foi sendo reduzido com o avanço do povoamento. Assim, na Madeira dos dez anos iniciais passou-se para cinco, a partir de 1433, o que se manteve não obstante as reclamações dos moradores, que apontavam a dificuldade no seu arroteamento. No caso das Canárias, também os alargados prazos iniciais foram sendo reduzidos. Em Gran Canaria os primeiros colonos tiveram um intervalo de seis anos, enquanto em Tenerife as datas do século XVI referem apenas 2 a 3 anos. Outra condição imprescindível para quem quer que seja adquirisse o estatuto de povoador com posse de terras estava na obrigatoriedade de residência até cinco anos, o estabelecer casa e, para os solteiros, o necessário casamento. Estas condições revelam que o principal intuito desta distribuição de terras era fomentar o povoamento das ilhas. O processo das Canárias não é idêntico ao da Madeira. Enquanto o arquipélago madeirense, que se resume a duas ilhas, foi entre 1439 e 1497 senhorio da ordem de Cristo, que estabeleceu como seus representantes três capitães: João Gonçalves Zarco no Funchal (1450), Tristão Vaz em Machico (1440) e Bartolomeu Perestrelo no Porto Santo (1446). Nas Canárias encontramo-nos perante ilhas realengas (Gran Canaria, La Palma e Tenerife) e de senhorio (Fuerteventura, Lanzarote, La Gomera e El Hierro). Acresce, ainda, neste arquipélago a presença de uma população autóctone que fez atrasar o processo de ocupação e colocou os povoadores perante um novo pretendente à distribuição de terras, isto é os indígenas que aceitaram a soberania castelhana6. Nas ilhas portuguesas a distribuição de terras foi regulamentada, desde o início, pela coroa e, mais tarde, pelo senhorio da ilha, o infante D. Henrique. No primeiro o monarca D. João I ordenara aos capitães que as terras seriam “dadas forras e sem penção alguma aquelles de maior qualidade e a outros que posanças tiverem para as aproveitar. E aos de menor que vivão de seu trabalho de cortar e pilhar madeiras e das criações de gado...”7. Depois, João Gonçalves Zarco, fazendo uso das prerrogativas atribuídas reservou para si e descendentes um importante pecúlio de terras no Funchal e Ribeira Brava. Outras foram concedidas, de acordo com o regimento afonsino, aos que estavam em condições de as aproveitar pois caso contrário perdiam o seu direito de posse. Isto foi o princípio de diferenciação social dos primeiros colonos e a abertura à afirmação da grande propriedade. Também, nas Canárias é patente esta diferenciação social dos agraciados com dadas de terras que, de acordo com cédula real de 14808,Pedro de Vera deveria concede-las aos conquistadores “segun sus merecimientos”. 4 .A descoberta do livro dos estimos do açúcar de 1494 e, depois, de alguns livros do quarto do açúcar permitem responder a algumas das questões atrás equacionadas. Virgínia RAU e Jorge de MACEDO (Veja-se, O Açúcar na Madeira no século XV, Funchal, 1962) possibilitaram-nos o esclarecimento de algumas interrogações sobre a questão. O aparecimento recente de alguns dos livros do quarto e do quinto do açúcar das capitanias do Funchal e Machico permitem essa abordagem. 5 . Confronte-se os capítulos de carta de D. João I com aquilo que refere José de VIERA Y CLAVIJO, Noticias de la Historia general de las Islas Canarias, Santa Cruz de Tenerife, 1967, p. 681. 6 . Confronte-se A. RUMEU DE ARMAS, La conquista de Tenerife, 1494-1496, S. C. T., 1975; Elias SERRA RAFOLS, Alonso Fernandez Lugo primer colonizador espanol, Santa Cruz de Tenerife, 1972; Alfonso Garcia-Gallo, "Los sistemas de colonización de Canárias y América en los siglos XV y XVI" in I CHCA, Las Palmas, 1977. 7 . Capitulo de certa ordenação sobre a concessão de terras aos primeiros povoadores da ilha da Madeira, S.A. (1426), publicado por João Martins da Silva MARQUES, Descobrimentos portugueses. Documentos para a sua História, suplemento ao vol. I, Livro 19, p. 109. 8 . Libro Rojo de Gran Canaria, Las Palmas, 1947, p.1-2, cedula regia de 4 de Fevereiro

3 A concessão de terras de sesmaria e a legitimação da posse geraram alguns conflitos que implicaram a intervenção do senhorio ou o arbítrio do seu ouvidor. Em 1461 os madeirenses reclamaram contra a redução do prazo para aproveitamento das terras de sesmaria, dizendo que eram “bravas e fragosas e de muytos arvoredos”. Contudo, o infante D. Fernando não abdicou do foral henriquino e apenas concedeu a possibilidade de alargamento do prazo mediante análise circunstanciada de cada caso pelo almoxarife. Passados cinco anos os mesmos contestaram de novo o regime de concessão de terras de arvoredos e o modo de as esmontar, pelos efeitos nefastos que causava à safra açucareira. Perante isto o senhorio ordenou aos capitães e almoxarifes que cumprissem os prazos estabelecidos e que fosse interdito o uso do fogo. No entanto, em 1483, o capitão de Machico continuava a distribuir de sesmarias os montes próximos do Funchal, com excessivo prejuízo para os lavradores do açúcar e, por isso mesmo, D. Manuel repreende-o, solicitando que tais concessões deveriam ser feitas na presença do provedor. Finalmente, em 1485, o mesmo proibiu a distribuição de terras de sesmaria nos montes e arvoredos do norte da Ilha, para em princípios do século XVI (1501 e 1508) acabar definitivamente com a concessão de terras em regime de sesmaria. A única ressalva estava nas terras que pudessem ser aproveitadas em canaviais e vinhedos9. Em qualquer dos arquipélagos a prepotência dos capitães e governadores no processo de distribuição das terras gerou inúmeras desavenças que mereceram a intervenção da coroa. Na Madeira o senhorio enviou em 1466 Dinis de Grãa, seu procurador, com plenos poderes para resolver as causas pendentes das reclamações chegadas ao reino, entre as quais as referentes às terras e águas10. Também em Canárias sucederam-se queixas sobre a forma como se procedeu à distribuição de terras e a coroa viu-se na necessidade de enviar representantes seus para repor a legalidade em todo o processo, com poderes para reformar as partidas de terras. Em 1506 surge o licenciado Juan Ortiz de Zarate nas três ilhas realengas que foi substituído por Lope de Sousa em 150911. Na Madeira são poucas as doações de terra que resistiram ao correr dos tempos e que ficaram a testemunhar e legitimar a posse do solo arável ilha. Destas temos notícia de uma de 1457 a Henrique Alemão. Aqui especifica-se a obrigação do sesmeiro de construir casa e de as terras concedidas serem ocupadas com vinhas, canaviais e horta. Noutra de 1470 determina-se que as terras dadas deviam ser plantadas de canaviais12. Por felicidade, no caso das Canárias são muitas as dadas de terras que persistiram no tempo, existindo em Tenerife o livro de datas, já publicado e estudado13. Note-se que também aqui se repetem as mesmas recomendações da Madeira, quanto aos produtos e bemfeitorias a lançar sobre a terra. A tudo isto há que referir, ainda, que as ilhas Canárias onde se implantou a cultura dos canaviais apresentavam um ecosistema distinto do madeirense. Assim, na Madeira os cronistas, excepção feita ao Porto Santo, não se cansam de enunciar duas riquezas fundamentais para medrar os canaviais e a industria subsequente. A ilha é abundante em água e lenhas pelo que a cana de açúcar tem condições para se afirmar. Em face disto as doações de terra não fazem expressa referencia à repartição da água. Esta, no primeiro momento, dá e sobra . Os problemas com a sua falta e a necessidade de regulamentar o seu uso e posse surgem depois. Diferente é, todavia, a situação das Canárias. Tendo em conta a importância que a água assume para a cultura a safra do açúcar é necessário não esquecer a forma da sua distribuição e posse. Se no caso da Madeira este não foi um problema, no início, devido à abundância da mesma, nas Canárias, ao contrario a sua escassez levou a que se estabelecesse logo a sua posse. Deste modo temos dadas de terras com e sem água. Na Madeira a água corria nas ribeiras, em abundância na

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.A.R.M., RGCMF, T. 1, fls. 204.209, 135-138vº, 249-251,51, 287-288, 289vº-291. . AHM, Vol. XV (1972), pp. 32-33, 10 de Maio de 1466. 11 . Elias SERRA RÁFOLS, Leopoldo de La ROSA OLIVERA, Reformación de los repartimentos de Tenerife em 1506, La Laguna, 1963. CF Eduardo AZNAR, Vallejo La integración de las islas Canarias en la corona de Castilha (1478-1526), La Laguna, 1983, pp. 234-235; Vicente SUÁREZ GRIMON, Ob. Cit., Vol. I, pp. 53-56. 12 . J. M. Silva MARQUES,Os descobrimentos Portugueses, vol. I, nº.356 e 423; vol. III, nº.59, pp.84-85. 13 . Elias SERRA RÁFOLS, Las datas de Tenerife, La Laguna, 1978; Francisca MORENO FUENTES, Las datas de Tenerife, libro V, La Laguna, 1988. 10

4 vertente norte. No sul os caudais eram, na época estival, quase todos desviados para as levadas14. É, na verdade, no seu leito e margens que se joga a História da ilha. Facto significativo é o de também as principais freguesias terem à cabeceira uma ou mais ribeiras. O Funchal, principal assentamento da ilha, é cortado por três ribeiras. Aguas e nascentes foram consideradas, nos primeiros documentos emanados para a ilha, como domínio público. Assim, o entendia D. João I no capítulo de um regimento dado a João Gonçalves Zarco onde considerava nesta situação as “fontes, tornos e olhos daugua... prayas e costas do mar, rios e ribeyras”. Todavia, a água foi um problema ao longo da História da ilha, pois desde o começo surgiram açambarcadores a reivindicar para si a posse exclusiva deste bem comum. Em 1461 coloca-se a primeira dificuldade na sua repartição no que o Duque responde que, o almoxarife mais dois homens ajuramentados, repartam “as auguas a cada hum pera seus açuquares e logares segumdo cada hum mereçeer”. Mesmo assim, continuaram as demandas pelo que em 1466 o duque decidiu mandar à ilha, Dinis Anes de Sá, seu ouvidor, com intuito de resolver esta e outras questões15. Nas áreas de maior concentração populacional e de intensivo aproveitamento do solo, como foi o caso do Funchal, a água das ribeiras não foi suficiente para suprir as solicitações dos vizinhos. Deste modo, em 1485 o Duque D. Manuel recomendava que as águas da Ribeira de Santa Luzia fossem usadas apenas nos engenhos, moinhos e benfeitorias que dela se serviam não podendo ser desviadas para outro fim. Idêntica recomendação repete-se em 1496. Note-se que esta ribeira servia vários engenhos e os moinhos do capitão do Funchal. Foi com D. João II que ficaram definidos os direitos sobre a água, que perduraram até ao século XIX. Por cartas de 7 e 8 de Maio estabeleceu-se, de uma vez por todas, que as águas eram património comum sendo distribuídas pelo capitão e oficiais da câmara, entre todos os proprietários pois que “sem as agoas as terras se não podiam aproveitar”. A partir daqui a água é propriedade pública sendo o usufruto para os que possuíssem terras e dela necessitassem. Todavia, desde finais do século quinze, a água passou a ser negociada a exemplo do que sucedia com a terra. É com o regimento de D. Sebastião em 1562 que se procede a uma alteração no sistema primitivo. As águas podem ser vendidas ou arrendadas, o que permitiu aumentar o fosso entre a propriedade da terra e da água16. O documento de 1493 determina de forma evidente a importância assumida pelas levadas no sistema de distribuição de águas. Destas há a considerar as públicas e as privadas. As últimas eram de iniciativa particular precisando de uma autorização. Neste caso temos em 1495 a licença a Pero Fernando para tirar água da Ribeira de Água d’Alto (Ponta Sol). Uma das tarefas dos primeiros colonos foi a tiragem das levadas. Por isso elas são os imemoriais testemunhos do labor do homem insular que se perpetuaram na ilha, a exemplo dos imponentes aquedutos peninsulares. Em 1496 parece que, ao menos no Funchal, estava delineado o sistema de regadio pelo que na Ribeira de Santa Luzia não se permitiu mais a abertura de novas levadas ou a tiragem da água, acima das já existentes. Isto foi resultado da pretensão de alguns heréus quererem tirar outras mais acima das já existentes no sentido de aproveitar as terras acabadas de arrotear. Mas, a coroa insiste na proibição em nova levada em cota superior, punindo os infractores com pesadas penas. Na verdade, segundo nos conta Gaspar Frutuoso, a Ribeira de Santa Luzia servia várias levadas, sendo uma delas para os cinco 14 . Note-se a abissal diferença com as Canárias, onde a água foi sempre escassa e jogou um papel fundamental em todo o processo de ocupação das ilhas. Por outro lado a política estabelecida para a água é semelhante: de património comum passa, a pouco e pouco, para o domínio privado. Confronte-se: J. HERNANDEZ RAMOS, Las Heredades de aguas en Gran Canaria, Madrid, 1954; Antonio M. MACÍAZ HERNANDEZ, "Aproximación al processo de priavatizacion del agua en Canarias, c. 1500-1879", in AGUA y modo de producción, Barcelona, 1990, pp.121-149. 15 . Álvaro Rodrigues de AZEVEDO, "nota XXVI" in Saudades da Terra,Funchal, 1873, p. 673.Carta de 3 de Agosto de 1461, AHM, Vol. XV, 16-18 e de 10 de Maio de 1466, AHM, XV, pp. 32-33. 16 .Confronte-se AHU, Madeira e Porto Santo, nº 3281, 5 de Novembro de 1813. Publicado por E. C. ALMEIDA, Archivo da Marinha e Ultramar. Madeira e Porto Santo, Vol. I, pp. 223-225, 238. Existem livros da distribuição das águas apenas a partir do século XVIII: ARM, Câmara de Santa Cruz, nº.135; Câmara da Ponta de Sol, nº.181; Câmara do Porto Santo, nº.46, 124; BNL, Secção de Reservados, cod. 8391, carta de 19 de Outubro. Em alvará de D. Henrique de 18 de Agosto de 1563(ibidem) determina-se a criação do cargo de avaliador para determinar o preço da água; J. José de SOUSA, "As levadas", in Atlântico, nº. 17, 1989, pp.41-47.

5 moinhos do capitão e um engenho. O Funchal ficou servido, ainda, por outras como a dos Piornais, do Pico do Cardo e Castelejo. Fora do Funchal, Gaspar Frutuoso, refere a levada mandada construir por Rafael Catanho que servia Machico e Caniçal, em que gastou cem mil cruzados. Também na Ribeira dos Socorridos temos outras levadas de iniciativa particular: a do engenho de Luís de Noronha que lhe custou 20.000 cruzados; a de António Correia para as terras da Torrinha17. Outro problema, não menos importante, foi o da partição da água. Desde o início que a coroa recomendara todo o cuidado nisso, ficando com tal encargo o almoxarife, auxiliado por dois homens eleitos para este fim. A sua distribuição era feita para toda a semana, excepto o domingo que ficava comum a todos, pois tal como refere a coroa em 1493 era “comtra comçiencia”. A sua manutenção foi outra preocupação a que o capitão deveria tomar conta, conforme ordem de D. Catarina de 1562. Mais se recomendava que aqueles que não tivessem necessidade das águas que dispunham não as podiam arrendar a ninguém a não ser para se regar os canaviais. Apenas, os que haviam tirado levadas próprias podiam dar ou vender as águas. Neste momento a coroa apoiou a reparação das levadas da Ribeira dos Socorridos, dos Piornais e Castelejo com o intuito de incrementar de novo a cultura dos canaviais, que tinham preferência nesta nova redistribuição das águas18. A tradição de traçar levadas fez com que os madeirenses se tivessem transformado nos seus exímios construtores, levando a tecnologia para todo o lado onde se fixaram. Primeiro, foi as Canárias19 e, depois, na América. Esta perícia e engenho dos madeirenses está evidenciada na reclamação de Afonso de Albuquerque para que o rei lhe mandasse madeirenses “que cortavam as serras pera fazerem levadas, com que se regam as cannas de açúcar”, para desviar o curso do rio Nilo20. Tal como já o referimos, nas Canárias, à excepção das ilhas de La Gomera e La Palma, a água era escassa. Elas foram património da coroa ou do senhorio que, depois a distribuíram pelos povoadores. As “dulas” eram estabelecidas “conforme a la medida de las dichas tierras e repartimiento en ellas fecho” e, acima de tudo, de acordo com a cultura a que estava destinada, merecendo aqui a cana de açúcar um lugar preferencial. Deste modo as “datas” de terras para além de seguirem a área concedida dão conta das culturas a lançar à terra e destas dependia a disponibilidade de água e floresta. Assim temos “datas de regadio” e “secano”. Aqueles que pretendessem investir em infra-estruturas, construindo um engenho, tinham asseguradas trinta fanegas de regadio. Em Tenerife, para a primeira década do século XVI, temos vinte e quatro casos em que se ordena a construção de um engenho de água ou de besta num prazo de dois a três anos. Aqui, nas Canárias o mais importante era a posse da água, pois ela define a importância a assumir pela terra, mercê das possibilidades do seu aproveitamento. Sendo de salientar as dadas de terras para canaviais com a obrigação de construção de um engenho de água. Neste contexto as terras próximas dos “barrancos” tinham maior solicitação e foram reservadas aos principais povoadores21. O valor da água na economia das ilhas está bastante patente na importância que lhe é atribuída pelas autoridades municipais, através das posturas. Aí, para além dos necessários cuidados na preservação das nascentes, ficaram definidas a forma de distribuição e uso da água, através do alcalde, repartidor e “acequiero”. O alcalde das águas era eleito em Janeiro, para um período de seis meses, pelos herederos da 17. ANTT, Livro das Ilhas, fls. 51-51vº;29 de Setembro de 1496, AHM, XVII, pp. 348-349. O mesmo já havia sido estatuído a 22 de Março de 1485, AHM, XV, 151-154; Alvará de 22 de Fevereiro de 1515, AHM, Vol. XVIII, 560-561;Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1979, p. 110, 78. Em 12 de Junho de 1515 é referenciada a levada de Manuel de Noronha na Ribeira dos Socorridos, ARM, RGCMF, t.I, fl.348-349, in AHM, vol. XIX, p. 20. Vide 13 de Janeiro de 1493, AHM, XVI, nº 266, p. 277. 18 .Veja-se lista de heréus feitas em 28 de Abril de 1674 (C.M. Machico nº 85, fl. 312vº-316), e 11 de Julho 1677 (Ibidem, fls. 337vº-341);13 de Janeiro de 1493, AHM, XVI, nº 266, p. 277;19 de Outubro, ARM, RGCMF, T. II, fls. 76-77vº . 19 . Filipe FERNANDES-ARMESTO, The Canary Islands after the conquest, Oxford, 1982; Leoncio ALFONSO PEREZ, Miscelanea de temas canarios, Santa Cruz de Tenerife, 1984, pp. 223-268. 20 .Comentários de Afonso de Albuquerque,vol. II, Lisboa, 1973, parte IV, cap. VII, p.39. 21 . . Fontes rerum canariarum, La Laguna, 1953, vol.VI, p.144; Confronte-se Felipe FERNANDEZ-ARMESTO, The canary islands after the conquest, Oxford, 1982, pp. 48-68; Eduardo AZNAR VALLEJO, La integración de las Islas Canarias en la Corona de Castilla (1478-1526), La Laguna, 1983, pp. 229245; Jimenez SANCHEZ, Primeros repartimientos de tierras y aguas en Gran Canaria, Las Palmas, 1940; A. GUIMERA RAVINA; "El repartimiento de Daute (Tenerife), 1498-1529 III C.H.C.A., Vol. I, 1980, PP. 115-157;Benedicta RIVERO SUÁREZ, El azúcar en Tenerife 1496-1550, La Laguna, 1990, pp. 19-33.

6 água, tendo o poder de sentenciar as causas que a sua distribuição ou abuso gerassem. Depois, para que a água dos barrancos chegasse aos engenhos e canaviais havia de lançar grandes obras de engenharia, só possível com a associação dos vizinhos no chamado “heredamiento o heredad de aguas”. Conhece-se o “heredamiento de las haciendas de Argual y Tazacorte” em La Palma, enquanto em Gran Canaria sabemos da existência em 1501 de outro dos vizinhos de La Palma, para canalizar a água de Tejeda, conhecido como o “heredamiento de La Mina de Tejeda”. Os elevados custos desta obra levaram o cabildo a participar na iniciativa, ficando com metade das águas que depois dava em censos perpétuos, sendo esta uma forma de receita. A sua administração fazia-se pelo “alcalde de aguas”, sendo dois em Gran Canaria e um en Tenerife22. Na ilha de La Palma é de salientar o manancial aquífero da Caldera de Taburiente, que serviu as principais áreas de canaviais: Los Sauces, Argual, Tazacorte. O primeiro foi distribuído a meias entre o mercador catalão Pedro Benavente e o Adelantado. Mais importante foi o “repartimiento” de Juan Fernández de Lugo Señorino, com as “haciendas” de Argual e Tazacorte, onde se inclue o “heredamiento” da agua da Caldeira. Todavia, as grandes obras de condução desta água foram levadas a cabo por Jacome de Monteverde, em 1518, gastando mais de quinze mil cruzados na construção de “acequias”. Novos investimentos seguiram-se em 1555-57 avaliados em duzentos mil ducados23. Nas ilhas de senhorio as águas mantiveram-se como domínio senhorial. Todavia estes facilitaram a sua distribuição aos beneficiários por um alcalde. Deste modo nos diversos sensos garantia-se o uso da água necessária, não havendo a transferência da sua propriedade. No caso da ilha de La Gomera os mananciais eram adequados às necessidades do regadio e da laboração dos engenhos, de modo que o uso não estava sujeito a situações especulativas. A evolução do movimento demográfico acompanhado da valorização das zonas aráveis com as culturas de exportação conduziram a profundas alterações na distribuição e posse das terras. Os mercados interno e externo condicionaram um maior aproveitamento do solo arroteável, tornando-se urgente um adequado reajustamento da estrutura fundiária à nova situação. O aparecimento de capitais estrangeiros e nacionais conduziu à intensificação do arroteamento das terras e provocou alterações na sua posse por meio de transacções por compra, aforamento e arrendamento. Note-se que na Madeira em 1494 generalizou-se o aforamento dos canaviais na capitania do Funchal, com especial incidência nas partes do fundo24 e em Câmara de Lobos. Para o século dezasseis os livros referentes ao quinto dão-nos apenas nove rendeiros na Calheta (1509, 1513-14), Ponta de Sol (1517) e Ribeira Brava (1536). É de salientar o caso da Calheta com sete rendeiros. A lei de 9 de Outubro de 1501 põs termo à concessão de terras de sesmarias, como forma de impedir a diminuição do parque florestal, tão necessário à laboração do açúcar. A partir deste momento, toda a aquisição de terras só poderia fazer-se por compra, aforamento ou transmissão por via familiar, por meio da herança, sucessão e dote. Enquanto a compra e venda surgem como mecanismos de concentração da propriedade nas mãos da aristocracia e burguesia enriquecidas com os proventos da primeira fase de colonização, ou dos estrangeiros recém-chegados, a herança e dote actuam no sentido inverso conduzindo à desintegração da grande propriedade. A primeira situação documenta-se com a maior acuidade no século XVI e mesmo em finais do século anterior, sendo disso prova a escritura de 28 de Janeiro de 1498 em que João Esmeraldo, fidalgo flamengo, compra a Rui Gonçalves da Câmara, filho de João Gonçalves Zarco, as suas terras na Lombada da Ponta de Sol. Em consonância com estas mutações surge a afirmação do sistema de vinculação da 22 . J. PERAZA Y AYALA, Las ordenanzas de Tenerife, S. C.Tenerife, 1976; F. MORALES PADRON, Ordenanzas del concejo de Gran Canaria(1531), Las Palmas, 1974;Cf. Alberto VIEIRA, "Introdução ao estudo do direito local insular", in VII CHCA, pp.675-711; Estatutos del heredamiento de las haciendas de argual y Tazacorte, Barcelona, 1967; Francisco MORALES PADRON, Ordenanzas del concejo de Gran Canaria, Las Palmas, 1974: título: "de los alcaldes de aguas y acequias". 23 .Gaspar FRUTUOSO, Livro primeiro das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1984, p.12. Cf. Ana VIÑA BRITO, Jesús PÉREZ MORERA, José Luis MACHADO PARILLA, La cultura del azúcar. Los ingenios de Argual y Tazacorte, La Palma, 1994, p.20 24 Por partes do fundo entendia-se nos séculos XV e XVI o espaço agrícola que ficava entre C. de Lobos e a Calheta e que integrava a melhor área de canaviais.

7 terra, no reinado de D. Manuel, que veio dar origem ao contrato de colonia25. Na Madeira desde a segunda metade do século XV que se generalizaram os contratos de aforamento e meias que evoluem no século XVI para o contrato de colonia. Este último é uma situação específica na Madeira, que tem a característica de se orientar pelo direito consuetudinário. Note-se que os diversos contratos de arrendamento que chegaram até nós não são uniformes no compromisso entre ambas as partes, pois o senhorio tanto poderia contribuir com as bemfeitorias, ou deixar esse serviço para o colono, reservando, no entanto, a sua posse sem qualquer encargo no fim. A norma era um contrato de duração limitada, obrigando-se o colono ao pagamento de uma renda anual ou a metade da sua produção. No Convento de Santa Clara conhecem-se vários contratos de arrendamento de meias, alguns referem-se a serrados de canaviais, estabelecendo a forma de intervenção das partes e de torna-los rentáveis. Este convento, mercê das doações recebidas ao longo do século XVI, transformou-se no maior proprietário da ilha26. Assim, em 1644 o seu poderio alargou-se a toda a ilha com 408 propriedades declaradas27, transformando-se, por isso mesmo, numa importante empresa agropecuária. Nas Canárias temos também diversas formas de contratos de exploração de terra semelhantes aos da Madeira. Assim, surgem o arrendamento, “apareceria” e censos, com a mesma definição dos da Madeira28. É de referir ainda o chamado contrato de complantación em que o proprietário da terra por arrotear cede-a por um prazo limitado para que a tornar agricultada e só depois disso passará a pagar a renda. Na Madeira o primeiro grupo de colonos é eminentemente nacional, pois só num segundo momento surgem os estrangeiros. Esta situação contraste com as Canárias, onde o estrangeiro está comprometido com a conquista e início da ocupação das ilhas. João Esmeraldo é um exemplo entre muitos os estrangeiros que, entre finais do século XV e meados do século XVI, fixaram morada nas principais áreas de canaviais da vertente meridional. Todos eles, atraídos pelo comércio do açúcar, acabaram investindo os seus proventos em canaviais, engenhos e levadas. Estes, bem relacionados com a alta finança europeia e com os principais centros do comércio europeu, cativaram rapidamente a tenção da aristocracia e burguesia insulares com quem se relacionaram por meio de laços de parentesco. O casamento, com o apetecido dote, foi muitas vezes a forma de alargarem os seus domínios e de firmarem a sua posição na sociedade insular. Assim sucedeu com Benoco Amador que casou com Petronilha Gonçalves Ferreira, viúva de Esteves Eanes Quintal detentor de uma grande quinta em Santo António e terras na Ponta de Sol, e que, por isso mesmo, em poucos anos transformou-se num grande proprietário cuja fazenda foi resultado de compra, casamento e arrendamento, por um lado, e o comércio, arrematação das rendas e empréstimos, por outro29. Idêntica situação surge com João Esmeraldo, Simão Acciaioly, Pedro Berenguer, João Drumond, Urbano Lomelino, João Salviati e Micer Batista. Este último era casado com a filha de Tristão Vaz, capitão do donatário na capitania de Machico. De acordo com o estimo de 1494 é patente um sistema de cultura dos canaviais organizado em regime de média e pequena propriedade pois que a média de produção oscila entre 117,23 arrobas do Funchal e as 632,73 das Partes do Fundo, perfazendo no geral 345,28. No período subsequente (1509-1537) atinge-se uma média de 470,27 arrobas nas duas capitanias, sendo de 171,08 na de Machico e de 537,98 na do Funchal. A área definida pela capitania de Machico surge com o valor mais baixo enquanto na do Funchal e, nomeadamente, nas comarcas da Ribeira Brava e Calheta este valor é 9 vezes superior. Todavia o seu aumento não ficou a dever-se à colheita da comarca do Funchal, onde este se mantém em 307,96 ou 197,56, mas sim das comarcas das Partes do Fundo. Aí, especialmente na Calheta e Ribeira Brava, chega a atingir, 25 . Veja-se Fernando A. da SILVA, A Lombada dos Esmeraldos na ilha da Madeira, Funchal, 1933; Miguel Jasmins RODRIGUES, "Os Esmeraldos da Ponta de Sol. Uma família nobre na ilha", in I CIHM, vol. I, pp.612-666;Alvaro Rodrigues de AZEVEDO, "Anotações", in Saudades da Terra de Gaspar Frutuoso, Funchal 1873, pp. 471-478; Fernando A. da SILVA. Ibidem, II, pp. 171-173. 26 . CF. João José de SOUSA, O Convento de Santa Clara do Funchal, Funchal, 1991, pp. 80-83. 27 . ANTT, Convento de Santa Clara, lº, 18. Cf. João José Abreu de SOUSA, ibidem. 28 . Veja-se J. PERAZA DE AYALA, "El contrato agrario y los censos en Canarias" in Anuário de Historio del Derecho Espanol, 1955, pp. 257-291; Eduardo AZNAR VALLEJO,Ob. Cit., pp. 239-242. 29 . Veja-se João de SOUSA, "Notas para a História da Madeira. Italianos na ilha. Benoco Amador", in "Cidade Campo", supl. do Diário de Notícias, Funchal, 6 de Maio de 1984, p. 6.

8 respectivamente 1867,32 e 1376,17 em 150930. A conjuntura deprecionária da economia açucareira madeirense conduziu a profundas alterações na estrutura fundiária, contribuindo para a concentração dos canaviais nos grandes proprietários. Os de poucos recursos financeiros vêm-se obrigados a abandonar os canaviais, a substituí-los pelos vinhedos ou então a penhorá-los e vendê-los aos grandes proprietários e mercadores. Esta situação contribuiu para o reforço do grande proprietário das Partes do Fundo, nomeadamente nas comarcas da Calheta e Ribeira Brava. Note-se que esta tendência acentuara-se já na transição do século XV para o XVI. A mutação da posse dos canaviais no período de 1494 a 1537, poderá ser aferida pela variância do nome dos proprietários. Entre finais do século XV e a primeira metade do século XVI verifica-se a manutenção de trinta e dois nomes (11%), enquanto no período de 1509 e 1537 apenas se mantiveram dezanove (6%). Estes números poderão significar que a mutação é mais evidente no período de crise que na fase ascendente, por outro lado indicam a maior incidência nas Partes do Fundo, pois que no Funchal permanecem 17 nomes, isto é, 53% do total de nomes em causa. Se é certo que o estimo de 1494 confirma a tendência para a afirmação da pequena e média propriedade no Funchal, Câmara de Lobos e, em parte, da grande propriedade nas Partes do Fundo, também é certo que os dados em estudo para os anos de 1509 a 1537 confirmam a grande propriedade nas Partes do Fundo e da média no Funchal e Câmara de Lobos (comarca do Funchal). Em 1494 no Funchal e Câmara de Lobos os vinte proprietários (15%) representavam metade da produção global da área. Destes apenas dois excediam as 700 arrobas. Nas Partes do Fundo o mesmo número de proprietários (20%) produziu metade do total da capitania. Em 1509, no Funchal, apenas quinze (21%) surgem com metade da produção desta comarca, enquanto nas Partes do Fundo apenas os cinco principais (18%) apresentam-se com 65% da produção global. No cômputo geral da capitania estes contribuem com 55%. A grande propriedade quase inexistente em 1494 com grande destaque na primeira metade do século XVI, nomeadamente nos primeiros decénios. Em 1494 apenas surgem proprietários com mais de 1000 arrobas nas Partes do Fundo e em número reduzido (22%) na zona e 10% no global da capitania). No século XVI estes surgem na capitania do Funchal em número superior com 18% na capitania e 14% no global. Na capitania de Machico esta é quase inexistente uma vez que apenas há notícia de um proprietário com mais de 1000 arrobas. A posição da capitania do Funchal deve-se fundamentalmente aos proprietários sediados nas comarcas da Calheta (35%) e Ribeira Brava (42%). Em 1494, na capitania do Funchal surgem apenas 12 proprietários (5%) com uma produção superior a 1500 arrobas e, no período subsequente (1509-1537) 24 (8%). Os últimos são na sua maioria, oriundos da Ribeira Brava e Calheta. Para 1494 os valores mais elevados são de James Timor (2270 arrobas) e João de França (2500). No período imediato, do século XVI, duplicam, como sucede com Pedro Gonçalves de Bairros da Ribeira Brava que, em 1509, produziu 5 376 arrobas de açúcar, isto é, 28% da comarca e 8% da capitania. Com uma produção superior a 2000 arrobas temos, no período de 1509 a 1537 quinze proprietários maioritariamente oriundos da Calheta e Ribeira Brava, com um valor global de 37% da capitania, enquanto em 1494 eram apenas três, produzindo 9%. Perante esta evidência será legítimo afirmar que na Madeira dominou o sistema de pequena e média propriedade com a cultura do açúcar? Se a conclusão se torna legítima para finais do século XV o mesmo já não poderá dizer-se para a primeira metade do seguinte. Estamos perante a principal modificação na estrutura açucareira neste lapso de tempo de 43 anos. Segundo Virgínia Rau e Jorge de Macedo, “a produção do açúcar beneficiava camadas amplas da população, encontrando-se entre os produtores, além do pequeno e médio lavrador, sapateiros, carpinteiros, barbeiros, mercadores, cirurgiões, moleiros, ao lado de fidalgos funcionários, concelhios e outros, participando por migalhas nos benefícios desta rica produção, [...]. Toda esta miuçalha de pequenos produtores se aproveitava de um organismo montado na ilha, para tornar rentável a sua pequeníssima produção”31. Vitorino Magalhães Godinho, por seu turno, reforça esta caracterização da realidade social madeirense apontando a tendência para 30 31

. Uma arroba é igual a 32,37 lbs. . Ob. Cit., p. 22.

9 a concentração dos canaviais num número reduzido de insulares32. A situação da primeira metade do século XVI apresenta-se diferente pois que o número limitado de proprietários reforça a ideia da concentração dos canaviais nos grupos sociais privilegiados da sociedade insular: aristocracia, mercadores, artesãos e funcionários locais e régios. Em ambos os momentos este grupo de proprietários representava apenas 1% da população da ilha33. Esta tendência concentracionista acentua-se na passagem do século XV para o XVI, uma vez que houve a redução do número de proprietários nas comarcas circunscritas às Partes do Fundo. Aliás, aqui é notória a manutenção dos proprietários, sendo reduzido a mutação por compra e venda, dote ou aforamento. A imutabilidade da propriedade deve-se fundamentalmente à sua vinculação. Assim, entre 15091537, 18% dos canaviais das comarcas das Partes do Fundo estavam vinculados, enquanto no Funchal são só 17%. Estas terras representam 38% da produção da capitania do Funchal. A caracterização da realidade social da estrutura fundiária açucareira é igualmente diversa, sendo definida pela forte participação dos estrangeiros, mercadores e funcionários. O grupo de estrangeiros que surgia já em 1494 com uma forte participação no sector produtivo açucareiro com 17%, reforçará a sua posição, na primeira metade do século XVI, atingindo 20%. Esta situação é reforçada pelo testemunho de Gaspar Frutuoso34. A sua relativa participação em 1494 explica-se pela xenofobia dos mercadores do reino e ilhas e pela ambiguidade da acção da coroa e do senhorio. Até 1498 altura em que o monarca autoriza a permanência dos estrangeiros na ilha, a situação mantinha-se muito precária e os seus interesses molestados pela oposição da burguesia insular e nacional35. Deste modo, a estabilidade e privilégios concedidos aos mesmos contribuíram para a sua rápida fixação na ilha, justificando-se de modo preciso a sua forte participação no sector produtivo na primeira metade do século XVI. Sendo o Funchal o principal centro do comércio madeirense, lógico será de supor a fixação do estrangeiro no burgo e arredores. Assim temos 43% deste grupo na comarca do Funchal e arredores. Na sua maioria são grandes proprietários, uma vez que mais de 50% detém canaviais com produção superior a 1000 arrobas. A sua acção alargou-se depois, a algumas comarcas periféricas com forte incidência na economia açucareira, como Ribeira Brava, Ponta de Sol e Calheta, onde assumem uma posição importante na produção e destacando-se como os principais proprietários, dispondo de extensos canaviais, engenho e numerosos escravos. Destes salientam-se João de Bettencourt na Ribeira Brava com 2450 arrobas de açúcar, João de França, na Calheta com 3632 arrobas e João Esmeraldo na Ponta de Sol com 3277,5 arrobas. No Funchal, é certo, temos grandes proprietários, como Simão Acciaioly, Benoco Amador e João de Bettencourt mas, em contraste, a sua posição no quadro geral não atinge o nível dos supracitados. Aliás, é na Ribeira Brava e Ponta de Sol que estes apresentam a percentagem mais elevada da produção. Em síntese, podemos afirmar que o estrangeiro avizinhado não se preocupou apenas com o sector produtivo, pois o comércio e transporte dos produtos, que os atraíram, mantiveram-se como a actividade principal. Este raramente surge na condição de proprietário mas com o triplo estatuto de proprietário-mercador-prestamista. A classe mercantil atraída pela opulência do açúcar fixou-se nas principais comarcas de produção e comércio do ouro branco. O Funchal, como principal centro de tráfego açucareiro, apresentará condições propícias à sua residência. Note-se que cerca de 60% tinham os seus canaviais nesta comarca. De igual modo sendo a capitania do Funchal definida pela melhor área de canaviais, eles preferem-na às terras de Machico, onde apenas atingem 13% do total. Não obstante, a sua fraca representação numérica na última capitania surgem 31.Ob. Cit., IV, p. 81. 33. Para a dedução deste dado tivemos em conta o número de proprietários em 1494 e entre 1509 e 1537. Ao número total da segunda metade do século XVI, subtraímos 19, que se repetem nos diversos anos em análise para cada comarca. Para o computo da população tivemos em conta os dados disponíveis para 1500, com 15000 habitantes e 1572 com 19172 habitantes; Veja-se Fernando Augusto da Silva, Elucidário Madeirense, vol. III, p. 103. 34 . Livro Primeiro das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1974, pp.84, 103, 110, 119, 124, 126, 130. 35 . Em 1496 os naturais da ilha queixam-se ao monarca contra os estrangeiros, referindo que muitos eram produtores de açúcar o que prejudicava a sua safra: "...e hora Senhor estes estrangeyros sam tomados lavradores e teem grandes arrendamentos em que fasem quantos açuquares querem...", (ARM RGCMF, T. I, fl. 262v?-269vº, 1496, Outubro, 12, Lisboa, regimento régio, publ. no AHM, vol. XVII, p. 254). Em 22 de Março de 1498, por alvará régio, o monarca autoriza a residência e vizinhança dos estrangeiros da ilha, (ARM, RGMCF, t. I., fls. 291vº-292), publ. in AHM, vol. XVII, 1972, p. 369). Veja-se Henrique de Gama BARROS, História da Administração Pública em Portugal, vol. X, 2ª ed., Lisboa, pp. 149-155; V. RAU, "Privilégios e legislação portuguesa referente a mercadores estrangeiros (Séculos XV e XVI)", in Estudos de História, Lisboa, 1958, pp. 131-158.

10 com 35% do açúcar enquanto no Funchal ficam-se pelos 20%. O mercador nacional ou estrangeiro não se dedicava em exclusivo ao comércio, pois repartia a sua actividade por uma multiplicidade de produtos de importação e exportação e alargava-a outros sectores, como o administrativo e produtivo. Assim, estes são em simultâneo proprietários e funcionários concelhios ou régios, com uma forte presença na exploração dos canaviais onde representavam, na primeira metade do século XVI, 24% do total dos proprietários, comparticipando com 30% da produção. A estrutura administrativa das duas capitanias subordinava-se à febre açucareira, sendo definida pelo almoxarifado e provedoria da fazenda. A própria administração local ajustou-se a esta ambiência, sendo a vereação a tribuna de debate das principais questões ligadas ao produto. Ao mercador ou proprietário interessava deter uma posição nesta complexa estrutura administrativa de forma a fazer valer os seus reais interesses nas ordenanças ou posturas municipais, que regulamentavam a safra e comércio do açúcar. Não será por acaso que muitos dos principais proprietários são nas duas capitanias como oficiais régios ou concelhios. Destes registam-se pelo menos trinta e três, na sua maioria da capitania do Funchal, com uma produção de 21%. Sendo a vereação o local de debate e deliberação das principais questões ligadas à safra e comércio açucareiro lógico será admitir a sua participação com assiduidade nas mesmas, como oficiais eleitos ou homens-bons. Note-se que neste grupo 61% são homensbons. Os elementos mais influentes da classe possidente madeirense incluíam-se em qualquer destes grupos. O usufruto da dupla situação social conduziu à sua afirmação no grupo de proprietários de canaviais. Assim 30% dos funcionários e 19% dos mercadores situam-se no grupo com uma produção superior a 1000 arrobas. Para as ilhas das Canárias não dispomos de documentação apropriada que permita idêntico tratamento e assim poder fazer-se uma ideia da dimensão assumida pela propriedade e da ligação entre os proprietários de canaviais e engenho. Sabemos que estes últimos estavam, à partida, favorecidos em relação aos demais, uma vez que tinham garantido no mínimo 30 fanegas de terra. Nesta situação são conhecidas onze dadas em Tenerife. Destas podemos destacar as “Haciendas” do adelantado em Daute, Icod e El Realejo, de Tomás, Justiniano, Bartolomé Benítez e o Duque de Medina Sidónia em La Orotava, Cristóbal Ponte e Mateo Vina em Daute, Blasyno Inglesco de Florentino e Juan Felipe em Güimar e Lope Fernandez em Taganana. Uma das mais importantes propriedades foi constituída por Juan Fernández de Lugo Señorino com as “haciendas” de Argual e Tazacorte. Em 1508 a sua posse passou para Jácome Dinarte que, depois a vendeu, no ano imediato aos Welzers, que as tornaram a vender em 1513 a Jácome de Monteverde. A dimensão da sua propriedade pode ser avaliada pela informação de Gaspar Frutuoso, que refere moerem os engenhos de Janeiro a Julho a cana suficiente para produzir entre sete a oito mil arrobas de açúcar. Os dados relativos à produção são avulsos e não permitem tirar qualquer conclusão. Assim, em La Orotava o engenho que agora é de Pedro de Lugo e que fora de Tomás Justiniano surge com 556 arrobas em 1535 e 1122 arrobas em 1536. Em Daute os dois engenhos de Mateo Viña, que possuía mais de 200 fanegas de canaviais produziam entre 5 a 6 arrobas. E, por fim, a hacienda El Realejo, do Adelantado surge para os anos de 153738 com a produção de 9000 arrobas de açúcar. Em Gran Canaria, um engenho de Telde produziu 1190 arrobas de açúcar em 150436. No século XVII a estrutura fundiária é distinta. Assim, na Madeira dominam os pequenos proprietários de canaviais, o que demonstra ser esta uma cultura subsidiária, que medrava ao lado das outras, talvez pela sua 36

Faltam os livros do diezmo e de contabilidade dos engenhos. Os dados disponíveis surgem a partir do rico núcleo de protocolos notariais disponíveis nos Arquivos Históricos e Provinciais de La Palma e Santa Cruz de Tenerife. Apenas para o período de 1634-1813 temos dados sobre a produção dos engenhos, veja-se J. R. SANTANA GODOY, "Acerca de um recuento decimal de los azúcares de las islas confeccionado por Millares Torres (1634-1813" in A. MILLARES TORRES, História General de las Islas Canarias, Las Palmas, 1979, T. IV, pp. 151-155;"La Hacienda de Daute 1555-1606", in Revista de História de Canarias, 1984-86, XXXVIII, n? 174, pp. 115-150. Referem-se 4 engenhos de adelantado, A. GUIMERA RAVINA "El repartimiento de Daute (Tenerife) 1498-1529", III CHCA, vol. I, 1978, 115-157. Oswaldo BRITO, Argenta de Franquis una mujer de Negocios, S.C.T., 1979, 59-83;C. NEGRIN, "Jácome Monteverde y las ermitas de su hacinda de Tazacorte en La Palma", in Anuario de Estudios Atlanticos, 34(1988);Ana VIÑA BRITO,"Aproximación al reparto de tierras en La Palma a raíz de la conquista", in VII Coloquio de historia Canario Americana, Tomo I, Las Palmas, 1990; IDEM,"Los ingenios de Argual y Tazacorte(La Palma)", in Producción y Comercio de azúcar de caña en época preindustrial, Motril, 1993, pp. 75-93 ; Gaspar FRUTUOSO, Ob.cit., pp.53, 58, 71;Eduardo AZNAR VALLEJO, Ana VIÑA BRITO, "El azúcar en Canarias", in La Caña de azúcar en tiempos de los grandes descubrimientos.1450-1550, Motril, 1990, pp. 173-188.

11 necessidade familiar ou interna. O quadro que a seguir se apresenta é testemunho da diminuta importância dos canaviais na estrutura fundiária madeirense de então. Para 1600 são cento e nove proprietários com 3656 arrobas, o que equivale a uma média de 33,54 arrobas. Esta situação demonstra que a segunda metade do século XVI foi pautada pelo paulatino abandono dos canaviais e a sua substituição pela vinha.

A PRODUÇÃO DE AÇÚCAR. A cana-de-açúcar na sua primeira experiência além Europa demonstrou as possibilidades de rápido desenvolvimento fora do habitat mediterrânico. Gaspar Frutuoso testemunha isso mesmo ao referir que “esta planta multiplicou de maneira na terra, que he o assucar della o melhor que agora se sabe no mundo, o qual com o beneficio que se lhe faz tem enriquecido muitos mercadores forasteiros e boa parte dos moradores da terra”37. Tal evidência catalisou as atenções do capital estrangeiro e nacional que apostou no seu crescimento e promoção, pois só assim se poderá compreender o rápido arranque da mesma. Esta que, nos primórdios da ocupação do solo insular, se apresentava como uma cultura subsidiária, passou de imediato a cultura e produto dominante, situação que manteve por pouco tempo. Na Madeira a cana sacarina, usufruindo do apoio e protecção do senhorio e coroa, conquista o espaço ocupado pelas searas, atingindo todo o solo arável da ilha em duas áreas: a vertente meridional (de Machico à Calheta), com um clima quente e abrigada dos alísios, onde os canaviais atingem 400 m de altitude, dominado pelas plantações da capitania de Machico (Porto da Cruz e Faial até Santana), solo em que as condições mesológicas não permitem a sua cultura além dos 200 metros numa produção idêntica à primeira área. Deste modo a capitania do Funchal agregava no seu perímetro as melhores terras para a cultura da cana-de-açúcar, ocupando a quase totalidade do espaço da vertente meridional. À de Machico restava apenas uma ínfima parcela área e todo um vasto espaço acidentado impróprio para a cultura. Esta diferenciação das duas capitanias torna-se mais visível quando analisamos os dados da produção. Assim, em 1494, do açúcar produzido na ilha apenas 20% é proveniente da capitania de Machico e o sobrante da capitania do Funchal. Em 1520 a primeira atinge 25% e a segunda os 75%. Fernando Jasmins Pereira, numa análise comparada da produção das duas capitanias entre 1498 e 1537, discorda da relação até então estabelecida (3:1) pois, de acordo com a sua análise, a razão situa-se em 4:138 para os primeiros decénios do século XVI, descendo entre 1521-1524 para 3:1 e recuperando na segunda metade do decénio para 4:1. Na capitania do Funchal os canaviais distribuíam-se de modo irregular, de acordo com as condições mesológicas da área. Assim, em 1494 a maior safra situava-se nas partes de fundo, englobando as comarcas da Ribeira Brava, Ponta de Sol e Calheta com 64%, enquanto o Funchal e Câmara de Lobos tinham apenas 16%. Em 1520, não obstante uma ligeira alteração, a diferença mantém-se, pois a primeira surge com 50%, e a segunda apresenta 25%, valor idêntico ao total da capitania de Machico, com 25%. Uma análise em separado das diversas comarcas da capitania do Funchal, na mesma data, evidencia a importância do Funchal em 33%, seguindo-se a Calheta com 27%. As da Ribeira Brava e Ponta de Sol surgem numa posição secundária com 20% cada. Criadas as condições a nível interno por meio do incentivo ao investimento de capitais na cultura da cana-deaçúcar e comércio de seus derivados, do apoio do senhorio, da coroa e da administração local e central, a cana estava em condições de prosperar e de se tornar, por algum tempo, no produto dominante da economia madeirense. O incentivo externo do mercado mediterrânico e nórdico aceleraram este processo expansionista. Assim em meados do século XV os canaviais são motivo de deslumbramento para Cadamosto e Zurara. O primeiro refere que os açúcares “deram muita prova”, enquanto o segundo dá conta dos “vales todos cheios de

37

. Ob.cit., p.113. 56.Veja-se Virginia RAU, Ibidem, p. 15; V. M. GODINHO, Ibidem, p. 80; Fernando Jasmins PEREIRA, O Açúcar Madeirense /.../, p. 95;Veja-se a H. G. de Amorim PARREIRA, "História do Açúcar em Portugal", in Anais da Junta de Investigação do Ultramar. vol. VII (1952) t. I, pp. 31-32; V. RAU, Ibidem, p. 14; Fernando Jasmins PEREIRA, ibidem, p. 100-101.

12 açúcar de que aspergiam muito pelo mundo”39. A fase ascendente, que poderá situar-se entre 1450 e 1506, não obstante a situação deprecionária de 14971499, é marcada por um crescimento acelerado que, entre 1454-1472, se situava na ordem dos 240% e no período subsequente até 1493 em 1430%, isto é uma média anual de 13% no primeiro caso e de 68% no segundo. No período seguinte após o colapso de 1497-1499 a recuperação é rápida de tal modo que em 15001501 o aumento é de 110% e entre 1502-1503 de 205%. Esta forte aceleração do ritmo de crescimento nos primeiros anos do século XVI irá marcar o máximo, atingindo em 1506, bem como o rápido declínio nos anos imediatos. Note-se que apenas em quatro anos atinge-se valor inferior ao do início do século. A situação agrava-se nas duas centúrias seguintes, baixando a produção na capitania de Funchal, entre 1516-1537, em 60%. Na capitania de Machico a quebra é lenta, sendo sinónimo do depauperamento do solo e da crescente desafeição do mesmo à cultura. Mas, a partir de 1521 a tendência descendente é global e marcante, de modo que a produção do fim do primeiro quartel do século situava-se a um nível pouco superior ao registado em 1470. Na década de trinta consumava-se em pleno a crise da economia açucareira e o ilhéu viu-se aos poucos na necessidade de abandonar os canaviais e de os substituir pelos vinhedos. Mesmo assim Giulio Landi, que na década de trinta visitou a ilha, refere que os madeirenses, levados pela ambição da riqueza dedicam-se “apenas ao fabrico do açúcar, pois deste tiram maiores proventos”40. A historiografia tem apresentado múltiplas explicações para esta crise assentes fundamentalmente na actuação de factores externos. No entanto, Fernando Jasmins Pereira com o seu estudo sobre Açúcar Madeirense contraria esta opinião definindo a crise açucareira madeirense como resultado das condições ecológicas e sócio-económicas da ilha:”...a decadência da produção madeirense é, primordialmente, motivada por um empobrecimento dos solos que, dada a limitação da superfície aproveitável na cultura, vai reduzindo inexoravelmente a capacidade produtiva”. Deste modo a crise da economia açucareira madeirense não é apenas resultado da concorrência do açúcar das Canárias, Brasil, Antilhas e S. Tomé mas deriva, acima de tudo, da conjugação de vários factores de ordem interna: a carência de adubagem, a desafeição do solo à cultura e as alterações climáticas. A concorrência do açúcar das restantes áreas produtoras do Atlântico, bem como a peste (em 1526) e a falta de mão-de-obra apenas vieram agravar a situação de queda. A tudo isto acresce em finais do século os efeitos do bicho sobre os canaviais, como é testemunhado para os anos de 1593 e 1602. Deste modo o último quartel do século foi o momento de viragem para culturas de maior rendibilidade, como a vinha. A documentação testemunha esta mudança. Assim, em 1571 Jorge Vaz, de Câmara de Lobos, declara em testamento um chão que “sempre andou de canas e agora mando que se ponha de mallvazia para dar mais proveito...”. Depois, em 1583 Álvaro Vieira vende a Diogo Pires no Caniço um serrado que fora de canas “e agora anda de pão”41. As Canárias são apontadas como uma das áreas concorrentes da Madeira, mas aqui o mais significativo é o facto de terem sido os próprios madeirenses a promovê-la, estando a sua afirmação inegavelmente ligada à sua presença. Acresce, ainda, que foi no momento de crise do açúcar madeirense que mais se notou aí a sua presença, o que prova a emigração orientada dos técnicos ligados à cultura. As socas de cana chegaram às ilhas de Gran Canaria, Tenerife, La Palma e La Gomera, não chegando às ilhas de Lanzarote, Fuerteventura e Hierro, devido à sua esterilidade, como nos conta Gaspar Frutuoso. A documentação pouco nos diz sobre a sua evolução. Para os séculos XV e XVI as informações são escassas e não permitem equacionar o seu volume. Todavia, é ainda possível avaliar a importância da cultura na economia destas ilhas.De acordo com os dados de 1507 podemos concluir que a produção de açúcar foi de 34 545 arrobas em Tenerife e 2727 em La 39

. António ARAGÃO, A Madeira Vista por Estrangeiros, Funchal, 1981, p.37; Crónica de Guiné, Porto, 1973, cap.II, p.17. . António ARAGÃO, ob.cit.p.86. .Fernando Jasmins PEREIRA, Ibidem, p. 158; Em 26 de Março de 1527(ARM. CMF, nº.1305, fl.23v?) os funchalenses fizeram ver ao Rei o prejuizo que lhes causava a concorrência do açúcar de S.Tomé, mas a resposta evasiva da coroa só surgiu a 8 de Fevereiro de 1528(ARM. DA, nº.66); Isabel Drumond BRAGA, "A acção de D. Luís de Figueiredo de Lemos. Bispo do Funchal.1585-1608", III CIHM, 1993, p.572; ARM, JRC, fls. 499vº-500vº, 30 de Maio; fls. 52vº-88, 20 de Agosto.

40 41

13 Palma. Para La Gomera temos referência que rendia ao senhorio 1100 arrobas no ano de 1506. Em Gran Canaria refere-se para o ano de 1534 as 80 000 arrobas. Depois só no último quartel do século XVI temos o valor do diezmo para os anos de 1575 e 1584, que representa, respectivamente, 8 e 10% do total das ilhas, tendo no entanto grande importância nos totais das ilhas de Gran Canaria(48%) e La Palma(34%)42. ILHA

1575

1576

1577

1585

Canaria

338.141 ms

297.659

-

241.162

Tenerife

86.728

129.488

-

85.612

La Palma

125.430

86.632

-

173.544

La Gomera

2.877

21-875

-

5.275

Total

553.176

535.654

408.836

505.593

A Historiografia nota que, a partir de meados do século XVI, a concorrência de outros mercados e o avanço descontrolado dos vinhedos levaram à crise da cultura dos canaviais. Nisto não está de acordo Manuel Lobo Cabrera43 que dá conta de um certo fulgor do seu comércio durante o reinado de Filipe II. Tal como refere a crise surge como resultado da concorrência do antilhano e acima de tudo do encerramento do mercado nórdico, nomeadamente Amberes ao açúcar canario, provocado pela política belicista do monarca. No decurso do século XVII os canaviais das ilhas perderam paulatinamente importância. Apenas na Madeira é notada uma curta época de reafirmação quando se apaga a concorrência do brasileiro. A conjuntura do século foi favorável ao retorno da cultura. Mas esta pouco ultrapassou, num primeiro momento, a área agrícola circunvizinha do Funchal. Assim o comprova o livro do quinto do ano de 1600, que nos 108 proprietários de canaviais apresenta um grupo maioritariamente desta área. Este é quase o único elemento comprovativo da produção de açúcar na ilha no século dezassete, pois só voltamos a ter novas informações a partir de 1689, com a arrecadação do oitavo44. No ano de 1600 é bastante evidente a retracção da área ocupada pelos canaviais. A média propriedade cede lugar à pequena e, mesmo, de muito pequenas dimensões. A maioria (isto é 89%) produz entre 5 e 50 arrobas, o que demonstra estarmos perante uma cultura vocacionada para suprir as carências caseiras, no fabrico de conservas, doçaria e compotas. Até 1640 o movimento descendente agravou-se com a presença, cada vez mais assídua de açúcar brasileiro no porto do Funchal. Em 1616 para garantir o escoamento da produção local e que à saída se fizesse uma distribuição equitativa de ambos os açúcares. A ocupação holandesa das terras a cultura fez renascer na ilha os canaviais para responder à solicitação na Europa e necessidade das indústrias de conserva e casquinha. Em 1643 o número de engenhos existentes era insuficiente para dar vazão à produção dos canaviais. A coroa, de acordo com a provisão régia de 1 de Julho de 1642, pretendia promover de novo o cultivo da cana-de-açúcar por meio de incentivos à reparação dos engenhos, com a isenção do quinto por cinco anos ou a metade por dez anos. Usufruíram deste apoio o capitão Diogo Guerreiro, Inácio de Vasconcelos, António Correa Betencourt e Pedro Betancor Henriques. A situação favoreceu a cultura, afirmando Diogo Fernandes Branco em 10 de Fevereiro de 1649 que as canas estavam “fermozas”, prevendo-se uma grande colheita. Em Outubro goraram-se as expectativas, pois o açúcar lavrado era de má qualidade. O progresso continuou no ano imediato, sendo testemunhado ela construção de dois novos engenhos. Esta foi no entanto uma recuperação passageira uma vez que na década seguinte o reaparecimento do açúcar brasileiro no porto do Funchal trouxe de volta a anterior situação. O açúcar madeirense estava, mais uma vez, irremediavelmente perdido, mercê da concorrência. Ainda, em 1658 procurou-se apoiar os canaviais ao 42

. José SANCHEZ HERRERO, "Aspectos de la organización eclesiástica y administracion economica de la diocesis de Canarias a finales del siglo XVI",AEA, nº 17, (1973.1976), pp. 71-90. 43 . El comercio canario-europeo bajo Filipe II, Funchal, 1988, pp.7, 115-116. 45.ANTT, PJRFF, nº.980,525-539.

14 reduzir-se os direitos sobre a produção para um oitavo, mas a crise era inevitável. A estes incentivos acrescese o facto de os direitos do quinto do açúcar entre 1643 e 1675 não serem devidamente cobrados, pelo que neste último ano se recomendou maior atenção nisso. Depois, por alvará de 15 de Outubro de 1688, a coroa determinou que os direitos que oneravam a produção passassem para um oitavo da colheita sendo a medida mais uma vez definida como uma forma de promover a cultura45. A produção de açúcar torna-se conhecida através dos tributos que recaem directamente sobre o produto. No caso da Madeira tivemos o quarto e, depois, o quinto que oneravam todos os lavradores de cana de acordo com os valores de produção estabelecidos à saída do estendal para os canaviais. Nas Canárias o mais importante é o diezmo pago à Igreja46. Todavia estes livros desapareceram na sua totalidade, restando apenas a informação recolhida por A. Millares Torres47, que contempla o período de 1634 a 1813. Neste período são referenciados sete engenhos nas ilhas de Tenerife, Gran Canaria e La Palma. Os de Gran Canaria - Arucas e Telde - deixaram de apresentar resultados a partir de 1642, sucedendo em Tenerife com o de Daute em 1658.

O ENGENHO. Na moenda da cana utilizaram-se vários meios técnicos comuns ao mundo mediterrânico. A disponibilidade de recursos hídricos conduziu à generalização do engenho de água. Na Madeira, o primeiro que temos conhecimento foi patenteado em 1452 por Diogo de Teive. Este processo resultou apenas nas áreas onde foi possível dispor da força motriz da água, enquanto noutros fez-se uso da força animal ou humana. Os últimos eram conhecidos como trapiches ou almanjaras. Não conhecemos qualquer dado que permita esclarecer os aspectos técnicos deste engenho. Apenas se sabe, segundo Giulio Landi, que na década de trinta do século XVI funcionava um com o sistema semelhante ao usado no fabrico de azeite: “Os lugares onde com enorme actividade e habilidade se fabrica o açúcar estão em grandes herdades, e o processo é o seguinte: primeiramente, depois que as canas cortadas foram levadas para os lugares acima referidos, põem-nos debaixo de uma mó movida a água, a qual triturando e esmagando a cana, extrai-lhes todo o suco”48. Uma das questões que mais tem gerado polémica prende-se com a evolução da tecnologia do fabrico do açúcar, concretamente a passagem do trapiche ao engenho de cilindros. O primitivo Trapettum era usado na Roma antiga para triturar azeitonas e sumagre, sendo, segundo Plínio, inventado por Aristreu, Deus dos Pastores. Mas este tornou-se um meio pouco eficaz nas grandes plantações, tendo-lhe sucedido o engenho de eixo e cilindros. É aqui que as opiniões divergem. Existe uma versão que aponta esta evolução como uma descoberta mediterrânica: Noel Derr e F. O. Von Lippmann atribuíram a descoberta a Pietro Speciale, prefeito da Sicília; a Historiografia castelhana encara isso como um invento de Gonzalo de Veloza, vizinho da ilha de La Palma, que teria apresentado o seu invento em 1515 na ilha de S. Domingos. David Ferreira Gouveia refere esta como resultado do invento do madeirense Diogo de Teive, patenteado em 1452. Outros apontam para a sua origem chinesa. O engenho de três eixos surge mais tarde no Brasil, considerado também uma invenção portuguesa, 46. ANTT, PJRFF, nº.965a, fls. 7 de Novembro de 1654, ordem para reposição do quinto pago por António Correia Betencourt; ibidem, fls. 181-182, 21 de Agosto de 1654, fiança do capitão Diogo Guerreiro; ibidem, fl. 222, 24 de Maio de 1657, empréstimo ao capitão Pero de Betencourt Henriques; ibidem, nº.966, fl.8vº, 4 de Novembro de 1680, alvará de privilégio a Inácio de Vasconcelos. Confronte-se F. MAURO, ibidem, pp. 248-250;ANTT, Convento de Santa Clara, livro nº.19, cartas de 10 de Fevereiro e 18 de Outubro de 1649; ANTT, PJRFF, nº. 396, fl. 63vº. 15 de Novembro; nº.969, fls. 48-vº 46 . Paulino CASTANEDA DELGADO, "Pleitos sobre diezmos del azucar en Santo Domingo y en Canarias" in II CHCA, Vol. II, Las Palmas, 1979, pp. 247272; Benedicta RIVERO SUÁREZ, Ob. cit, pp. 179-186. O diezmo não era taxado pela décima parte das canas mas sim uma arroba em cada vinte de açúcar branco. Daqui resultaram alguns conflitos, resolvidos em 1543 com breve do papa Paulo III que estabelece o diezmo ser a décima parte de todo o açúcar antes de divisão pelos lavradores e donos de engenho, 5% do primeiro açúcar branco e purificado e 4% dos demais tipos de açúcar (Benedicta RIVERO SUÁREZ, Ibidem, p. 183). 47 . Coleccion de documentos para la Historia de Canarias, T. XII, vide José Ramon SANTANA Y GODOY "Acerca de un recuento decimal de los azucares de las islas, confeccionados por A. MILLARES TORRES (1634-1813)" in A. MILLARES TORRES, Historia General de las islas Canarias, Vol. IV, 1977, pp. 151-155. 48 . António ARAGÃO, A Madeira vista por estrangeiros, Funchal, 1981, p.87.

15 inegavelmente ligada aos madeirenses aí radicados49. Na Madeira a primeira referência aos eixos para o engenho data já do último quartel do século XV. Em 1477 Álvaro Lopes tem autorização do capitão do Funchal para que “faça hum engenho de fazer açúcar que seja de moo ou d’alçapremas, ou doutra arte...o qual enjenho será d’augoa com sua casa e casa de caldeiras...”. Depois, em 1485, D. Manuel isentava da dizima “quaesquer teyxos que forem necesarios para eyxos esteos cassas latadas dos enjenhos e tapumes...”. Em 1505 Valentim Fernandes refere que o pau branco era usado no fabrico de “eixos e prafusos pera os enjenhos de açúcar”. A isto associa-se o inventário do engenho de António Teixeira, no Porto da Cruz em que são referidos como aprestos: rodas eixos, prensas, fornalhas espeques (...)50. Os estudos sobre o açúcar nas Canárias não dão grande atenção à tecnologia do engenho. Assim Guillermo Camacho y Perez Galdós descreve este engenho como sendo de três cilindros. O autor baseia-se no documento de 1511 que dá conta de um contrato entre Andrés Baéz e os portugueses Fernando Alonso e Juan González para lhe cortarem 3 eixos sendo um grande e dois pequenos, para uma roda com seus aparelhos. Vinte anos depois temos o inventário do engenho de Cristóbal de Garcia em Telde, onde são referidos a roda e eixos. Todavia J. Perez Vidal é da opinião que o primeiro sistema usado nas Canárias era semelhante ao de fabrico do azeite, pois o moinho de “rodilos” é para ele uma invenção renascentista51. A palavra trapiche entrou depois no vocabulário do açúcar a designar todos os tipos de engenhos de cilindros usados para moer cana. Nos arredores do Funchal, como em Arucas, existe uma localidade com este nome, o que prova ter existido aí um engenho deste tipo. Nas Canárias as “datas de terras” diferenciavam os engenhos de água dos de besta. Na Madeira as condições geo-hidrográficas foram propícias à generalização dos engenhos de água, de que os madeirenses foram exímios criadores. Aliás, aqui estavam criadas as condições para a afirmação da cultura. Enquanto a primeira desfrutava de inúmeros cursos de água e de uma vasta área de floresta, disponibilizando lenha para as fornalhas e madeira de pau branco para a construção dos eixos do engenho. Toda a animação sócio-económica gerada pelo açúcar foi dominada pelo engenho, mas isto não significou que a existência de canaviais fosse sempre sinónimo da presença próxima de um engenho. Aqui, mais do que no Brasil, são inúmeros os proprietários incapazes de dispor de meios financeiros para montar semelhante estrutura industrial e por isso socorriam-se dos serviços de outrem52. No estimo da produção da capitania do Funchal para o ano de 1494 são referenciados apenas 14 engenhos para um total de 209 usufrutuários, dispondo de 431 canaviais. Não é fácil estabelecer o número exacto de engenhos que laboraram nas ilhas. As informações disponíveis são, em muitos dos casos, díspares. Assim, para a Madeira em 1494 são referenciados apenas 14 engenhos, quando noutro documento de 1493 se dava conta da existência de 80 mestres de açúcar. Note-se ainda que Edmund von Lippermann refere para o Funchal 150 engenhos no início do século XVI, número que não se coaduna com os valores razoáveis para a extensão arável da ilha e a produção dos canaviais. Depois, em finais do século XVI, Gaspar Frutuoso refere-nos 34 engenhos, sendo nove na capitania de Machico e os restantes na do Funchal. A sua localização geográfica permite aferir das áreas de maior incidência da cultura no século

49

. The History of Sugar, 2 vols. Londres, 1940-50; História do Açúcar, 2 vols., Rio de Janeiro, 1952;Fernando ORTIZ, Los Primitivos Técnicos Azucareros de America, La Habana, 1955, pp. 13-18. Confronte-se Moacir Soares PEREIRA, A origem dos cilindros na moagem da cana (investigação em Palermo), Rio de Janeiro, 1955;"O açúcar da Madeira. A manufactura açucareira madeirense (1420-1550), in Atlântico, 4 (1985), pp. 268-269. 50 . ANTT, Convento de Santa Clara, maço 13, nº 1, 4 Julho 1477; AHM, Vol. XV, p. 150, Apontamentos de D. Manuel de 22 de Fevereiro;António Baião, O manuscrito de Valentim Fernandes, Lisboa, 1940, p. 112;A. Artur, "Apontamentos históricos de Machico", in DAHM, nº 1, pp. 8-9. A dúvida está na data a atribuir ao inventário, que está anexo ao seu testamento de 7 de Setembro de 1535, ou de 13 de Setembro de 1495, data do testamento de Isabel de Vasconcelos sua esposa. 51 .Guillermo CAMACHO Y Peres, Art. cit., p. 29; AHPLP, Protocolos, nº 733, fl. 81, 5 de Outubro; A. MILLARES TORRES, Historia General de Las Islas Canarias, Vol. III, 1977, pp. 120-121; Luis PEREZ AGUADO, La cana de azúcar en el desarrollo de la ciudad de Telde (siglo XVI), Las Palmas, 1982, pp. 527;Perez Vidal, "El azúcar..." in II Jornadas de Estudios Canarios-América, SCT, 1981, 177. 52 . Em 1499 (AHM, vol. XVII, n?.227, pp.386-387, 20 de Março)refere-se esta situação e os possíveis prejuízos causados à arrecadação do quinto.

16 XVI53. [Mapa dos emgenhos:eng.tif] No século dezassete o número de engenhos era reduzido. Assim, em 1602, Pyrard de Laval refere a existência de 7 a 8 engenhos em laboração. Esta aposta na cultura levou ao necessário o estabelecimento de alguns incentivos à sua reparação, como sucedeu em 1649. Nesta década fala-se apenas de quatro engenhos, destes dois foram construídos em 1650. Daí derivaram, enormes dificuldades em conseguir moer a cana por falta de engenhos suficientes. No Funchal o de André de Betancor há três anos que não funcionava e seria difícil que o fizesse pelo estado em que se encontrava. Ademais, do abandono dos engenhos registava-se o das levadas como sucedia com a do Pico do Cardo e Castelejo em S. Martinho que há trinta anos não era tirada. Para repor a cultura a coroa preparou um plano de recuperação dos engenhos, com empréstimos e a isenção do pagamento do quinto por cinco anos. Estes concentravam-se no Funchal e Câmara de Lobos, o que implicava redobradas dificuldades para a maioria dos lavradores das partes da Calheta, Ponta de Sol e Ribeira Brava54. A mesma dificuldade surge quando pretendemos reconstituir os engenhos das Canárias, pois não existem dados precisos sobre o seu número exacto, sendo as informações avulsas. Talvez, a mais precisa seja a de Thomas Nichols em 1526 e Gaspar Frutuoso na última década do século XVI. Todavia, enquanto os dados fornecidos pelo primeiro podem ser considerados fiáveis, os de Gaspar Frutuoso não parecem corresponder à verdade55. Note-se que ele refere para Gran Canaria vinte e quatro engenhos, enquanto Tenerife surge apenas com três.

ENGENHOS DE AÇÚCAR NAS CANÁRIAS.SÉCULOS XVI-XVII 1502

GRAN CANARIA

-

TENERIFE

-

LA PALMA

2

LA GOMERA

-

TOTAL

2

1515

1526

1540

1560

1590(1)

1590(2)

1632

1634-43

25

12

-

12

8

24

5-9(3)

2

-

12

-

12

8

3

-

2

-

4

-

-

-

5

-

3

-

1

5

-

-

1

-

-

25

29

5

24

16

33

5-9

7

1)Lic. Valcárel 2)Gaspar Frutuoso 3)Segundo Elisa Torres Santana são nove engenhos

[engenhos em Canárias: gc.tif, lp.tif, ten.tif] É de salientar que em La Gomera e La Palma, ilhas de Senhorio, os engenhos são maioritariamente propriedade do senhorio que os arrendava, nomeadamente aos mercadores genoveses e catalães56. No caso de La Gomera temos notícia de quatro destes engenhos, cujo rendimento atesta a dimensão dos canaviais e da 53

.ARM, RGCMF, T. I, publ. in AHM, Vol. XVI, p. 87, doc. 21 Junho 1493;História do Açúcar desde a época mais remota até ao começo da publicação do açúcar de beterraba, Rio de Janeiro, 1941, p. 13; Livro Segundo das saudades da Terra, Ponta Delgada, 1979, pp. 99-135. 55. F. MAURO, ob.cit., p.249 ; ANTT, Convento de Santa Clara, livro nº19, Carta de Diogo Fernandes Branco de 26 de Novembro de 1650 ; ANTT, PJRFF, nº.396, 20 de Outubro de 1648; ANTT, PJRFF, Nº.396, fl.7vº, 5 de Dezembro de 1651; ANTT, PJRFF, nº.396, fl.6vº, 25 de Maio de 1651. 55 . Vide A. CIORANESCU, Thomas Nichols, mercador de azúcar, hispanista y hereje, La Laguna, 1963; Livro primeiro das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1984. 56 . Gloria DIAZ PADILLA e José Miguel RODRIGUEZ YANES, El Señorio en Las Canarias Occidentales La Gomera y el Hierro hasta 1700, S.C.T., 1990, pp. 319-320.

17 estrutura industrial:

ENGENHO

RENDA-ARROBAS

Perazas

1 300

El Tabaibal

600

Valle Gran Rey

500/600

Alojera

310

El Palmar

240

Total

3050

O preço de montagem de semelhante estrutura industrial não estava ao nível da bolsa de todos os proprietários. De acordo com a avaliação, para inventário, do engenho de António Teixeira no Porto La Cruz em 1535 esta benfeitoria estava avaliada em duzentos mil reais. Noutro documento de 1547 refere-se que os canaviais, engenho e água de servidão dos mesmos orçavam os 461.000 reais. Mas em 1600 João Berte de Almeida vendeu a Pedro Gonçalves da Câmara, no Funchal, um engenho pelo valor de 700.000 reais. Em 1644 o engenho de Gaspar Betencourt na Ribeira dos Socorridos foi avaliado em 500.000 rs e no ano imediato o engenho de Baltazar Varela de Lira foi vendido por 422.000 rs57. Para as Canárias temos também notícia de alguns valores referentes ao investimento necessário para a construção de um engenho. Em 1519 o de Miguel Fonte em Daute foi avaliado em 4.641.320 mrs. Nos anos imediatos o seu valor parece descer para depois tornar a subir. Assim em 1556 o engenho de Valle de Gran Rey valia 1.237.417 mrs, enquanto em 1567 um de La Orotava foi vendido por 6.000.000 mrs. Para Gran Canaria temos os engenhos de Francisco Riberol, em Agaete y Galdar, avaliados em 300.000 mrs, o de Francisco Palomar em Agaete, por 750.000 e o de Constantino Carrasco em Las Palmas por 450.000. Ainda, em La Orotava temos dados precisos sobre os custos da construção das diversas infra-estruturas do engenho, conforme o inventário do engenho de Alonso Hernandez de Lugo feito em 158458.

DESIGNAÇÃO

VALOR EM MARAVEDIS

Ingenio

617 696

Casa de Calderas

137 380

Casa de Prensas

42 480

Casa de Pengar

223 264

Casa de Mieles

104 432

TOTAL

1 125 252 mrs.

Os valores de produção dos engenhos insulares são muito distintos dos americanos. Para a Madeira em finais do século XV são referenciados apenas 12 engenhos para um total de 233 proprietários de canaviais. Estes situam-se todos nas partes do fundo, não havendo qualquer referência para os que funcionavam na área do Caniço a Câmara de Lobos.

ÁREA

n1 engenhos

arrobas

média

57 .A. ARTUR, "Apontamentos Históricos de Machico", in DAHM, I, nº 1, pp. 8-9; ARM, Capelas, cx. Nº 8, 19 Janeiro de 1547; ARM, Misericórdia do Funchal, nº.40, fls. 49-58, 11 de Setembro de 1600; ANTT, Convento de Santa Clara, Cx 4, nº 11, 20 de Dezembro de 1644; ARM, Misericórdia do Funchal, nº 42, fls. 249-251, 25 de Março de 1645. 58 . Gloria DIAZ PADILLA, Ob. cit., p. 320;Eduardo AZNAR,Ana VIÑA BRITO, "El azúcar en Canarias", p.185; AHPT, Juan de Anchieta, nº 455, fls. 82 e segs., publ. in Fernando Gabriel MARTIN RODRIGUEZ, Arquitectura domestica Canaria, S.C.T., 1978, pp. 298-304. Tenha-se em conta que o mas maravedis das ilhas equivalem a 390 reais

18 Funchal

2

16 545

8272,5

Partes do Fundo

15

10 548

703,2

TOTAL

17

80 451

4732,4

Tomando em conta, apenas as Partes do Fundo, nota-se que a cada engenho estariam atribuídas mais de cinco mil arrobas, valor elevado se tivermos em conta o estado da tecnologia usada. Também é de referir que estes proprietários de engenho não se situam entre os mais importantes detentores de canaviais. Apenas Fernão Lopes surge com 1600 arrobas, havendo caso de lavradores com valores superiores que não são proprietários de engenho. Note-se, ainda, que Fernão Lopes apresentava mais 2000 arrobas em conjunto com João Esmeraldo. Na primeira metade do século XVI estes valores desceram a mais de um terço, pois a média é de 1478 arrobas.

COMARCA

NUMERO DE ENGENHOS

ARROBAS

AÇÚCAR MÉDIA POR ENGENHO

Funchal

17

17 863

1050,76

Ribeira Brava

6

13 524

2254

Ponta de Sol

5

8011,5

1602,3

Calheta

10

19204

1920,4

Machico

8

9409,5

1176,18

TOTAL

46

68012

1478,52

Outro aspecto de relevo é a relação entre os proprietários de engenho e canaviais. Nesta fase, marcada por profundas alterações na estrutura produtiva, o desfasamento entre ambos os grupos é por demais evidente.

COMARCA

PROPRIETÁRIOS DE CANAVIAIS

PROPRIETÁRIOS DE ENGENHO NÚMERO

% EM RELAÇÃO AOS DE CANAVIAIS

Funchal

126

17

13,5

Ribeira Brava

35

6

17,1

Ponta de Sol

28

5

17,9

Calheta

25

10

40

Machico

55

8

34,5

TOTAL

269

46

17

Deste modo a distinção entre lavradores de cana e proprietários de engenho é muito clara. Note-se que neste grupo apenas seis surgem com valores superiores a 1000 arrobas.

PROPRIETÁRIO

ANO

LOCAL

PRODUÇÃO

João Fernandes do Arco

1509

Calheta

4484,5

João Esmeraldo

1526

Ponta do Sol

3277,5

Gonçalo Fernandes

1534

Calheta

3707,5

José Roiz Castilhano

1534

Calheta

1227,5

Simão Acioli

1530

Funchal

1365

Por outro lado é de salientar que os grandes proprietários de canaviais não são sinónimo de engenho. No século dezasseis alguns situam-se entre os principais produtores, mas a maioria surge com valores de

19 produção muito inferiores, como é o caso de João de Ornelas que em 1530 declarou apenas 70 arrobas de açúcar no Funchal. Deste modo podemos afirmar que estamos perante duas realidades distintas que geram uma dinâmica particular na estrutura produtiva da cana de açúca: os proprietários de canaviais e os de engenho. Nas Canárias, nomeadamente nas Ilhas de Gran Canaria e Tenerife, parece-nos que a situação é diferente. Aqui, a grande propriedade é sinónimo da presença de um engenho surgindo como resultado da forma como se procedeu às dadas de terras, por outro lado os valores médios para a produção por engenho parecem ser mais elevados. Gaspar Frutuoso refere que os dois engenhos da família Ponte em Adeje (Tenerife) laboravam de 8 a 9 mil arrobas de açúcar enquanto o de João de Ponteverde em La Palma ficava-se pelas 7 a 8 mil arrobas. Para Gran Canaria o mesmo indica que os vinte e quatro engenhos cuja safra podia situar-se entre as seis e sete mil arrobas. A partir dos contratos de arrendamento dos engenhos sabe-se que o de D. Pedro Lugo em El Realejo laborava em 1537-38 uma média de 4500 arrobas e que com outro em La Orotava ficava-se por 1122 arrobas. No século XVII temos os valores do diezmo pagos pelos sete engenhos em actividade nas ilhas de Gran Canaria, Tenerife e La Palma, o que nos permite para este período desde 1634 estabelecer a média de produção anual59.

O ESCRAVO E O AÇÚCAR. As ilhas tal qual se apresentavam aos primeiros europeus conduziram a um relacionamento particular do Homem na exploração e aproveitamento do solo. Desse casamento entre a força de vontade dos primeiros europeus e a agressividade dos declives foi possível construir a Europa no Atlântico. A Madeira, mercê da configuração geográfica, foi definida por uma paisagem agrária específica, diferente dos grandes espaços continentais. O excessivo parcelamento das áreas agrícolas (poios), única forma possível de aproveitamento do solo arável e a ampla disseminação na vertente sul e norte condicionaram o sistema de arroteamento e de posse de terras. As grandes e iniciais concessões de terreno foram-se dividindo de acordo com o aumento da população e as experiências agrícolas. A primeira exploração extensiva deu lugar ao intensivo aproveitamento do solo assente nos inúmeros poios construídos pelos proprietários, arrendatários ou meeiros. Em face de tudo isto é difícil, senão impossível, definir a grande propriedade de canaviais, se nos situarmos ao mesmo nível do mundo americano. No caso americano os canaviais avançaram a partir do engenho e estão, quase sempre, ligados indissociavelmente. Isto não sucede na Madeira. Aqui, são muitos os proprietários de canaviais mas poucos os de engenho. Outra peculiaridade da Madeira é a concentração dos engenhos em áreas de maior facilidade de contactos com o exterior, nomeadamente no Funchal, o que nem sempre correspondia às de maior importância no cultivo dos canaviais. Esta diferente estrutura da faina açucareira condicionou outro posicionamento do escravo. Ainda, na exploração agrícola insular torna-se necessário distinguir dois grupos de proprietários: aqueles que haviam entregue as terras a foreiros ou arrendatários e os proprietários plenos. Esta forma de dupla posse da terra marcou de modo evidente a actividade agrícola e favoreceu na Madeira o aparecimento e afirmação do contrato de colonia, a partir do século XVI. Por outro lado, a extensão reduzida dos canaviais não obrigava à existência de um engenho para a transformação da cana, tão pouco de um grupo numeroso de escravos. Por tudo isto, a posição dos escravos na estrutura agrária madeirense deverá ser equacionada de acordo com esta dinâmica do sistema de propriedade na ilha. Se é certo que na exploração directa ou no arrendamento se estabeleceu uma posição clara para o escravo, o mesmo não se poderá dizer com o contrato de colonia60. 59

. Livro Segundo das Saudades da Terra, p. 98,122,90; Benedicta RIVERO SUÁREZ, Ob. cit., p. 53, 71;Agustin MILLARES TORRES, Historia General de las Islas Canarias, Vol. IV, L. P., 1977, pp. 151-155. 60 . O contrato de colonia mereceu inúmeros estudos, sendo de realçar os de: Fernando Augusto da SILVA, "Colonia, contrato de", in Elucidário Madeirense, I, Funchal, 1960, pp.290-291; Jorge de Freitas BRANCO, Camponeses da Madeira, Funchal, 1987, pp.153-187; João José Abreu de SOUSA,"O convento de

20 Também nas Canárias, nas ilhas de Gran Canaria, Tenerife, La Palma e La Gomera, a ligação do escravo à economia açucareira e a dimensão dos canaviais têm de ter em conta algumas especificidades do meio. A conquista propiciou os primeiros escravos de entre os indígenas conhecidos como guanches, como presa de guerra, e a proximidade do continente africano favoreceu o acesso ao mercado de escravos negros fazendo com que estes assumissem alguma importância na sociedade. Acresce, ainda, que a evolução de estrutura fundiária esteve dependente do processo inicial de conquista, que conduziu ao domínio da grande propriedade, depois partilhada por arrendamento, compra e venda ou sucessão. Os dados disponibilizados pelo valioso acervo de protocolos notariais são reveladores da perpetuação de algumas importantes fazendas associadas a engenhos61. Coisa que não encontramos na Madeira . Vemos isso em Tenerife e La Palma . A presença do escravo na constituição das sociedades insulares, desde o século XV, não é um fenómeno isolado, enquadrando-se no contexto sócio-económico em que emergiram: a falta de mão-de-obra braçal para as novas arroteias e a maior necessidade dela por parte de culturas como a cana sacarina geraram a procura; a iniciativa descobridora do Atlântico, em que os madeirenses foram activos protagonistas, e a proximidade do mercado gerador propiciaram o seu encontro. Foi de acordo com esta conjuntura que a escravatura ganhou importância e é aqui que deveremos encontrar a explicação para tal posição. A Madeira, porque próxima do continente africano e envolvida no seu processo de reconhecimento, ocupação e defesa do controlo lusíada, tinha as portas abertas a este vantajoso comércio. Deste modo a ilha e os madeirenses demarcaram-se nas iniciais centúrias pelo empenho na aquisição e comércio de tão pujante e promissora mercadoria do espaço atlântico. À Madeira chegaram os primeiros escravos guanches, marroquinos e africanos, que contribuíram para o arranque económico do arquipélago. Por um lado a safra açucareira implicava uma maior disponibilidade de mão-de-obra, que à falta de livre deveria socorrer-se da escrava, por outro, a proximidade do mercado de origem desta mão-de-obra e o propositado envolvimento dos insulares neste trafico levaram a que as ilhas fossem um dos primeiros destinos até que outros mais florescentes o destronassem. Note-se, por exemplo, a perfeita sintonia entre a curva evolutiva da produção de açúcar e da libertação dos escravos. O número de libertos evoluiu de acordo com a conjuntura açucareira. Na Madeira , a crise da produção e comércio de açúcar, a partir do final do último quartel do século XVI, vai ao encontro do aumento do número de alforrias, cuja curva ascendente se verifica a partir da década de vinte, culminando no final da centúria. O movimento inverso, na primeira metade do século XVII, poderá associarse também a novo incremento da cultura da cana-de-açúcar. Tudo isto foi provocado pela ocupação holandesa do estado de Pernambuco. Este momento de afirmação dos canaviais foi curto e repercutiu-se na curva das alforrias da segunda metade da centúria. Ao invés a expressão geográfica das alforrias é dissonante com a mancha principal dos canaviais. Por isso é mais evidente no Funchal, Câmara de Lobos e Caniço, áreas que estão muito longe de ser as de maior afirmação dos canaviais. Também nas Canárias é evidente esta relação. Tal como nos informa Manuel Lobo Cabrera62, na ilha a partir de meados do século XVI é bastante evidente uma quebra no número de escravos que poderá ser resultado da concorrência do açúcar americano. É o proprietário quem estabelece a forma de intervenção do escravo na sociedade e economia e, como tal, adquire uma posição chave na definição e expressão da escravatura. Nos registos paroquiais ao nome do escravo e origem étnica associa-se sempre o nome do proprietário. A sua distribuição geográfica adequa-se à mancha da expressão da escravatura no arquipélago madeirense. Assim, a capitania do Funchal tem a Santa Clara do Funchal.Contratos agrícolas(século XV a XIX), in Atlântico, nº.16, Funchal,1988, pp.295-303.. 61 .Manuel LOBO CABRERA, La esclavitud en Las Canarias Orientales en el siglo XVI, Las Palmas, 1982, p. 165; Manuel LOBO CABRERA e Ramon DIAZ HERNANDEZ, "La Población esclava de Las Palmas durante el siglo XVII" in AEA, nº 30 (1984), p. 4; CF. Benedicta RIVERO SUÁREZ, Ob. cit., pp. 43-81; Oswaldo BRITO, Ob. cit. 62 . La Esclavitud en las Canarias Orientales..., Las Palmas, 1982, pp.211-212.

21 supremacia com 86% dos proprietários e 87% dos escravos, adquirindo maior expressão no século XVI. No global da circunscrição definida pela capitania do Funchal, temos, mais uma vez, o recinto do Funchal numa posição cimeira com 74% dos proprietários. A par disso a cidade, com as duas freguesias principais de que existe documentação - Sé e São Pedro - apresentam 64% do número de proprietários, distribuindo-se os restantes pelas outras da capitania do Funchal (23%), Machico (11%) e Porto Santo (2%). Quando estabelecemos uma comparação entre o número de proprietários de escravos e o de canaviais verificamos que em todas as áreas o primeiro grupo é superior ao segundo. Este facto poderá ser considerado um indicativo seguro de que nem todos os proprietários de escravos se dedicavam à safra açucareira e que nem todos os escravos existiam para isso. A diferença entre os dois grupos é mais acentuada no Funchal, onde o número de proprietários de escravos é três vezes superior ao de canaviais. Nas “Partes do Fundo” ela não ultrapassa o dobro, no século XVI, e nas comarcas da Calheta, Ponta do Sol e capitania de Machico apresentava valor inferior. O mesmo sucede quando comparamos o número de escravos com o dos proprietários de canaviais e engenhos de açúcar. No século XV esta proporção é diminuta, mas na centúria seguinte, excepto em Ponta do Sol e Machico, atinge valores elevados, sendo a média no Funchal de dez escravos por proprietário, quatro na Ribeira Brava e três na Calheta. Quando comparamos os escravos existentes na ilha com o número de engenhos verificámos diferenças com aquilo que acontece no mundo americano. Nas Antilhas e América do Sul o valor por engenho oscila entre os 800 e 10063, aqui, no global, não ultrapassaria os 30, sendo a média mais elevada no Funchal (com 77 escravos) e Ribeira Brava (com 24 escravos). É de salientar, ainda, que, no total de 46 proprietários de engenhos, dezasseis são do Funchal. Os dados disponibilizados pela investigação levam-nos a concluir o seguinte: num total 502 produtores de açúcar apenas setenta e oito(16%) são possuidores de escravos. Para o século dezassete é maior o número (39%) de proprietários de canaviais com escravos, sem existir qualquer relação de causa e efeito entre ambas as realidades. Assim, por exemplo, Maria Gonçalves, viúva de António de Almeida, é quem surge com o maior número de escravos, sendo diminuta a produção de açúcar. Tenha-se agora em conta a situação nas Canárias . Em Gran Canaria os documentos elucidam-nos da existência de engenhos com 30 a 35. Já em Tenerife e La Palma eles baixam para metade. Mesmo assim na primeira é possível a existência de raros proprietários com número elevado destes que poderá chegar à centena.64. Note-se que para a Madeira o número mais elevado não ultrapassava os 14 apresentados por João Esmeraldo na fazenda da Lombada da Ponta do Sol. A maioria dos proprietários (63%) fica-se por cinco escravos, por isso, tendo em conta o mínimo de mão-de-obra imprescindível para a laboração de um engenho, seremos obrigados a afirmar que a grande força de trabalho que animava os engenhos não era escrava, mas sim livre. A par disso, o máximo que conseguimos reunir foi de vinte escravos de Ayres de Ornelas e Vasconcelos (1556-1587), mas para pai e filho. Na Madeira a tendência era para a existência de um reduzido número de escravos por proprietário. Com um ou dois escravos temos 58% e com mais de cinco a percentagem não ultrapassa os 11%. O grupo daqueles que possuem mais de dez escravos não suplanta os 2%. Estes destacados proprietários surgem, mais uma vez, no Funchal, entendido como o conjunto das duas freguesias e comarca. O perfil do proprietário de escravos define-se pelo reduzido número, pois 89% possuem entre um e cinco escravos. A par disso, se enquadrarmos os escravos na estrutura fundiária dos proprietários, concluiremos pela fraca vinculação à cultura do açúcar: em 104 detentores em simultâneo de escravos e bens fundiários, apenas nove são possuidores de terras com canaviais. Os restantes, na sua maioria, detêm searas e vinhedos. Depois nos signatários de canaviais merece apenas referência Bartolomeu Machado, no Funchal, com dez escravos. 63

. De acordo com Luís M. DIAZ SOLER (Historia de la esclavitud negra em Puerto Rico, Rio Pedras, 1965,155) um engenho de água para laborar necessitava de 37 escravos, entretanto Cirio F. CARDOSO (Negro Slavery (...), Washington, 1983) refere que um engenho idêntico em Vera Cruz necessitava de 80 a 100 escravos, e para o Brasil Eduardo Correia LOPES (A Escravatura (...), Lisboa, 1944, 112) apresenta o número de 100 escravos para a laboração de cada engenho. 64 .Lobo Cabrera, M, “Esclavitud y azúcar en Canarias”, in Escravos com e sem açúcar, Funchal, 1996, 106-109

22 Para as Canárias a análise deve ser diferente, tendo em conta os dados disponíveis. É de salientar que em Gran Canaria na cidade de Telde a maioria dos escravos está em relação directa com a cana de açúcar, pertencendo aos lavradores e proprietários de engenho. Aqui merece a nossa atenção a família de Cristóbal Garcia de Moguer. O próprio, proprietário de engenho tinha ao seu serviço sessenta escravos, sendo trinta e sete no engenho. Nestes incluem-se um canavieiro e um caldeireiro. A situação repercute-se em Gáldar, Guia, Arucas. Agüimes e Agaete, tudo regiões de forte incidência de canaviais. No caso de Tenerife apenas temos conhecimento que Alonso Fernandez Lugo era detentor em 1525 de vinte e oito escravos. Para Daute surgem dois importantes proprietários - Cristóbal de Ponte e Gonzalo Yanes. Em 1506 o engenho de Icod possuía vinte e cinco escravos. Para o século XVII a posição muda, pelo menos em Las Palmas, onde os proprietários de escravos se situam no sector dos serviços, o que prova estarmos perante uma escravatura de cariz patriarcal65. Na ilha de La Palma, uma de fortes tradições açúcareiras é onde se encontram uma percentagem mais elevada da população escrava, chegando a atingir em Santa Cruz de La Palma os 29,9%66 A presença do escravo também está documentada na ilha de La Gomera, sem ser possível estabelecer qual a sua relação. O escravo nas ilhas está indissociavelmente ligado à cultura dos canaviais nestas ilhas, embora sem atingir a proporção de S. Tomé ou do Brasil. Os dados avulsos compilados na documentação, quer da Madeira quer das Canárias testemunham essa relação. Em 1496 a coroa dava conta desta simbiose para a Madeira ao estabelecer a proibição de venda, por dívidas, de bens de raiz “nem escravos nem espravas”, animais e aparelhos de engenho, permitindo apenas a troca nas “novidades” arrecadadas. Noutro documento de 1502, acerca das águas de regadio, o monarca refere que era hábito os proprietários mandarem “os espravos e homes de soldada que tem de reger seus canaveaes”67. A ligação do escravo à fase de cultivo e amanho dos canaviais também pode ser atestada pela presença nas diversas tarefas ligadas à laboração do engenho. O regimento dos alealdadores de 150168 refere que os mestres e lealdadores que fizessem açúcar quebrado sujeitavam-se a severas penas e ordena-se que, caso eles fossem cativos, a coima correria por conta do proprietário. Aqui o serviço dos escravos poderia assumir duas situações distintas: ajudante dos oficiais da safra, ou os mesmos operários especializados. Em 148269, numa demanda sobre a qualidade do açúcar “temperado”, depõem perante a vereação do Funchal os mestres de açúcar, Vaz e André Afonso: o primeiro referia que, por ter estado ausente nas Canárias, um homem, seu cativo, havia temperado o açúcar, enquanto o segundo, também fora da ilha, havia entregue o mesmo trabalho a um moço que o servia de soldada. A estes testemunhos, denunciadores da participação do escravo, como serventes, na cultura e fabrico do açúcar também poderão juntar-se outros que demonstram terem eles actuado na qualidade de oficiais de engenho: primeiro tivemos os escravos canários que se apresentaram na ilha como exímios mestres de açúcar, como se poderá verificar pela cautela posta em 1490 e 1505, quanto à sua expulsão. Desta época apenas temos notícia de dois escravos que foram mestres de engenho, e não sabemos se eram ou não guanches: em 1486 Rodrigo Anes, o Coxo, da Ponta do Sol, estabeleceu em testamento a alforria de Fernando, mestre de engenho, e em 1500 no testamento de João Vaz, escudeiro, refere-se um escravo seu, Gomes Jesus, como mestre de açúcar. Mais tarde, em 1605, é Jorge Rodrigues, homem baço, forro, quem reclama de Pedro Agrela de Ornelas três mil réis de serviço que fizera no seu engenho em 160470. 65 .M. LOBO CABRERA, La Población esclava de Telde en el siglo XVI, Hacienda, nº 150 (1982), pp. 60, 70-71; idem, La esclavitud en las Canarias Orientales en el siglo XVI, Las Palmas, 1982, p. 200;A. CIORANESCU, Historia de Santa Cruz de Tenerife, T. 1, Santa Cruz de Tenerife, 1977 (110) ;Pedro MARTINEZ GALINDO, Protocolo de Rodrigo Fernandez (1520-1526), La Laguna, 1988, p. 107; Manuel MARRERO, "La esclavitud en Tenerife(...)", Revista de História, La Laguna, 1966, p. 77; M. LOBO CABRERA, La Población esclava de las Palmas..., in A.E.A., nº 30, 1984, pp. 229-309. 66 Garrido Abolafia, M., Los esclavos bautizados en Santa Cruz de La Palma(1564-1600),Santa Cruz de La Palma, 1994. 67 .A.R.M. RGCMF, t. 1, fls. 262vº-269vº, regimento régio de 12 de Outubro, in AHM, XVII (1973), doc. n? 203, p. 356; Ibidem, t. 1, 98-98vº, carta régia de 25 de Fevereiro, in Ibidem, nº 258, 429-431. 68 . Ibidem, t. 1, fls. 83vo-94, regimento de 27 de Março, in Ibidem, nº 246, 412-413. 69 . A.R.M., CMF, nº 1297, fl. 45, vereação de 20 de Abril de 1482. 70 .A.R.M. RGCMF, t. 1, fls. 34vº, 36vº, carta de 9 de Março, in AHM, XVI (1973), doc. Nº 145, pp. 241-242; Ibidem, t. 1, fls. 107-107 vº, carta régia de 22 de Janeiro, in Ibidem, nº 284, pp. 451-452. Ao contrário do que refere Manuela MARRERO ("De la esclavitud en Tenerife", in Revista de História, nº. 100, 1952, 434) os escravos também estiveram ligados à safra do açúcar, referenciando-se pelo menos um mestre de açúcar em Telde (M. LOBO CABRERA, Esclavos

23 Em 1601 Jean Moquet dá conta de que os escravos tinham uma activa intervenção na faina dos engenhos, uma vez que o mesmo terá visto um “grand nombre d’esclaves noirs qui travaillent aux sucres dehors la ville”. Certamente que a única particularidade do serviço dos escravos nos engenhos madeirenses residia no facto de eles trabalharem de parceria com homens livres ou libertos, destacando-se aqui os trabalhadores de soldada: em 1578 António Rodrigues, trabalhador, declara em testamento que havia trabalhado sob as ordens de Manuel Rodrigues, feitor do engenho de D. Maria71. No caso das Canárias os estudos mais recentes, nomeadamente de Manuel Lobo Cabrera, têm demonstrado semelhante evidência para os séculos XVI e XVII . No decurso do século XVI é inegável a ligação do escravo ao trabalho nos canaviais e engenho. Ele tem lugar cativo no trabalho dos canaviais e engenho. Neste último caso refere-se a “casa dos negros”, como uma infra-estrutura integrada no complexo do engenho. Por aqui se testemunha e presume da vinculação dos escravos ao engenho, onde executavam as mais variadas tarefas: moedor, prenseiro, bagaceiro e caldeireiro. Eles tanto podiam ser propriedade do senhor de engenho como de outrem que os havia arrendado. Estes contratos de arrendamento de escravos para o serviço do engenho são usuais nas Canárias. É de salientar, ainda, a forte presença de libertos ligados a esta actividade, na condição de operários especializados ou de trabalhadores72. Acresce, ainda que neste arquipélago a actividade do campo era distribuída por esburgadores de cana e arrendatários, o que permitia a um proprietário ser detentor de grandes extensões de canaviais, sem precisar de ter ao seu serviço muita mão-de-obra escrava. Note-se a generalização deste sistema na ilha de Tenerife, o que certamente deverá ter pesado na dimensão assumida pelo escravo na sociedade73. Todavia muitos destes eram possuidores de escravos que os serviam em tais trabalhos. Quase sempre um homem livre que fazia um arrendamento nos diversos domínios da safra açucareira tinha por detràs alguns seus escravos que actuavam como ajudantes. Deste modo estava justificada a ausência dos escravos nos proprietários directos de canaviais e engenhos, o que não é sinónimo da sua ausência no processo. Acresce ainda que o escravo estava por vezes vinculado à terra. Assim sucede em 1522 em La Orotava (Tenerife) em que o regidor arrendou por cinco anos uma propriedade de canas, dando-lhe também três escravos para esse serviço, os quais deve alimentar e vestir74.Esta era uma situação muito frequente em La Palma e Gran Canaria. Em síntese, poderemos afirmar que, na Madeira, a exemplo do que sucedeu nas Canárias, a mão-de-obra utilizada nos engenhos era mista, sendo composta por escravos, libertos e livres, os quais executavam tarefas diferenciadas, sendo os serviços pagos em dinheiro ou açúcar75. Neste grupo de escravos incluíam-se os que pertenciam ao proprietário do engenho mas também outros que aí serviam como gente de soldada. Também no Brasil a mão-de-obra era mista, mas acontece que os escravos dominavam estes serviços. Eles tanto podiam ser pertença do proprietário do engenho de canaviais, ou de outrem, que os alugava. É aqui que se radica a principal diferença entre a ligação do escravo ao açúcar nestas ilhas e do outro lado do Atlântico.

OS PREÇOS DO AÇÚCAR. Não é fácil estabelecer com clareza a evolução dos preços do açúcar no mercado insular porque não existem núcleos documentais que permitam a reconstituição de séries. Os dados disponíveis são avulsos e desconexos. Se no caso da Madeira foi possível reunir o maior número de informações para a década de trinta do século XVI, nas Canárias a situação é igual na Ilha de Tenerife. Além Indios en Canarias, Madrid, 1983 em separata, p. 528, nota 55). AHM, III, 1933, 154-159 ;A.R.M., Capelas, cxa. 118, nº 4, testamento de 9 de Janeiro;Ibidem, n? 684, fl. 370, testamento de 26 de Agosto. 71 . Moquet, Voyages, liv. 1, p. 50, cit. por V. M. GODINHO, Os Descobrimentos e a Economia Mundial, IV, Lisboa, 1983, 201; A.R.M., Misericórdia do Funchal, nº 684, fl. 539vº, testamento de 23 de Julho. 72 . M. LOBO CABRERA, Ob. cit., pp. 233-235; idem, Los libertos en la sociedad canaria del siglo XVI, Madrid-Tenerife, 1983, 51.61. 73 . Cf. Benedicta RIVERO SUAREZ, ibidem, pp.43-93. 74 M. Coello Gómez e outros, Protocolos de Alonso Gutiérrez(1522-1525), SCT, 1980, do.333, p.178. 75 . Alberto VIEIRA, O Comércio Inter-Insular nos séculos XV e XVI, Funchal, 1987, 57.

24 disso dever-se-ão juntar outras condicionantes que influem de forma decisiva nos preços. Em primeiro lugar está a falta crónica de moeda nas ilhas e o recurso ao açúcar como meio de troca, a que se associa nos séculos XV e XVI a sua insistente desvalorização. O açúcar, como moeda de troca, é uma realidade quer na Madeira, quer nas Canárias, mas foi neste último arquipélago que adquiriu melhor expressão76. É necessário ter ainda em conta que a lei da oferta e da procura condicionava de forma evidente a evolução do preço do açúcar ao longo do ano. Deste modo, é de notar uma variação mensal de acordo com o período da safra do açúcar e da presença de embarcações interessadas no seu trato77. Daqui resulta que os preços mais elevados surjam nos meses de Junho e Julho, precisamente no momento em que se disponibilizava o primeiro açúcar do ano e, por isso, a afluência de mercadores era maior. É de notar, ainda, outras variações sazonais no próprio mês de acordo, como é óbvio, com a lei da oferta e da procura.. PREÇO MÉDIO MENSAL DA ARROBA DE AÇÚCAR BRANCO NA MADEIRA JAN

FEV

MAR

ABR

MAI

JUN

JUL

AGO

SET

OUT

NOV

DEZ

1508

-

-

315

-

320

320

290

-

283

286

501

305

1524

450

500

500

-

500

515

535

560

650

-

-

-

O açúcar branco apresentava dois preços, consoante fosse de uma ou duas cozeduras. Na Madeira o último preço correspondia em 1496 a quase o dobro do primeiro. Se tivermos em conta, que em 15 000 arrobas da primeira cozedura ficava apenas 10 000 na segunda, nota-se uma forte valorização do produto final78. Esta insistência no açúcar de segunda cozedura é considerada condição necessária para a valorização do produto, impedindo que chegasse ao mercado europeu em más condições, mas acima de tudo era uma medida benéfica que reduzia para metade a oferta do açúcar, o que favorecia a competitividade do produto numa altura que o mercado se pautava por excedentes. A partir da década de setenta o preço do açúcar entrou em quebra acentuada. Esta ideia está testemunhada nas intervenções do senhorio a partir de 1469 que insiste na solução do monopólio para o comércio. A negação dos madeirenses a semelhante solução levou o Duque D. Manuel a avançar com novas medidas. Assim em 1496 fixa os preços em 350 réis para o açúcar da primeira cozedura e 600 ao da segunda, e passados dois anos opta por estabelecer uma cota máxima de exportação que se cifrava em 120.000 arrobas. Os dados disponíveis revelam este movimento de quebra do açúcar. O primeiro açúcar feito em Machico vendeu-se a 2000 réis arroba. Já em 1469 o seu preço estava em 500 arrobas para o de uma cozedura e 750 para o de duas, Em 1472 temos a notícia que subiu para 1000 réis a arroba, mas esta deverá ser uma situação particular resultante da quebra acentuada da moeda, pois que em 1478 regressou à normalidade. O movimento de queda foi uma constante até princípios do século XVI e só a revolução dos preços inverteu a situação, evidente na década de vinte em ambos os arquipélagos. Esta última conjuntura é comum à Madeira e Canárias. Em ambos os casos é evidente uma inversão de marcha a partir da década de trinta que pode ser entendida com a presença concorrencial de açúcar de outras áreas, nomeadamente do continente americano. Todavia a tendência nas Canárias inverte-se na década de quarenta, certamente como resultado da galopante inflação79. A oferta não se resumia apenas ao açúcar branco, pois a ele devem juntar-se os subprodutos, como as escumas, rescumas, mel, remel, mascavado e mel mascavado e depois alguns derivados, como as conservas e casquinha, que em qualquer dos arquipélagos tiveram grande importância. Em Tenerife as escumas e rescumas 76 . V. M. GODINHO, "Preços e conjuntura do século XV ao XIX" in DHP, Vol. III, pp. 488-516;José Gentil da SILVA, "Echanges et troc: l'exemple des Canaries au debut du XVI siécle" in Annales, XVI, nº 5, Paris, 1961, pp. 1004-1011; Manuel LOBO CABRERA, Monedas, Pesos y Medidas en Canarias en el siglo XVI, Las Palmas, 1989, pp. 10-13; Benedicta RIVERO SUÁREZ, Ob. cit., pp. 147-148. 77 . Fernando Jasmins PEREIRA, Estudos sobre História da Madeira, Funchal, 1991, pp. 232-234. 78 . AHM, Vol XV, pp. 64, carta de 3 Setembro de 1472. 79 .AHM, Vol XV, p. 46, 14 de Julho de 1469; p. 229, 11 de Janeiro de 1490; pp. 313, 318, 3 de Setembro de 1495; pp. 372-380; Gaspar FRUTUOSO, Livro Primeiro das Saudades da Terra, p. 113; Armando de CASTRO, "O sistema monetário" in História de Portugal, Vol. III, Lisboa, 1983, pp. 236-238; Manuel LOBO CABRERA, El Comercio Canario Europeo bajo Felipe II, Funchal, 1988, pp. 117.

25 eram cotadas a metade do preço do branco, enquanto na Madeira e Gran Canaria essa relação só é possível com as rescumas, uma vez que as escumas são muito mais valorizadas. É, ainda, possível estabelecer uma relação entre estes subprodutos e o açúcar branco, expressa nos níveis de produção e preço. Em Gran Canaria no século XVI essa relação fazia-se da seguinte forma: em 2500 arrobas de açúcar correspondem 60% ao branco, 12% às escumas, 8% de rescumas e 20% de açúcar refinado. O mesmo sucede na Madeira no período de 1520 a 153780.

O COMÉRCIO ATLÂNTICO E O AÇÚCAR. O desenvolvimento sócio-económico do mundo insular articula-se de modo directo, com as solicitações de economia euro-atlântica: primeiro região periférica do centro de negócios europeus, ajustaram o seu desenvolvimento económico às necessidades do mercado europeu e às carências alimentares europeias, depois, mercado consumidor das manufacturas de produção continental em condições vantajosas de troca para o velho continente e, finalmente, intervém como intermediário nas ligações entre o Novo e Velho Mundo. Note-se que, a partir de princípios do século XVI, 0 Mediterrâneo Atlântico define-se como centro de contacto e apoio ao comércio africano, Índico e americano. A tudo isto acresce que os interesses da burguesia e aristocracia dirigente peninsular entrecruzam-se no processo de ocupação e valorização económica das novas sociedades e economias insulares. Esta componente peninsular é reforçada com a participação da burguesia mediterrânica, atraída por novos mercados e pela fácil e rápida expansão dos seus negócios. Por isso, um grupo de italianos, mais ou menos ligados às grandes sociedades comerciais mediterrânicas, participa activamente no processo de reconhecimento, conquista e ocupação do novo espaço atlântico. Com efeito, eles interessaram-se pela conquista do arquipélago canário, expedições portuguesas de exploração geográfica e o comércio ao longo da costa ocidental africana. A sua penetração no mundo insular ficou assim facilitada o que os levou a alcançar uma posição muito importante na sociedade e economia insulares. O investimento de capital de origem mercantil, nacional ou estrangeiro surgiu apenas numa óptica da nova economia, afirmando-se como gerador de novas riquezas adequadas a um aproveitamento comercial. Assim, o comércio foi o denominador comum para os produtos a introduzir, sendo valorizados aqueles activadores da nova economia de mercado. Aqui, a cana de açúcar e o cobiçado produto final, o açúcar, detém uma posição cimeira. A Madeira foi no começo o mais importante entreposto. Os descobrimentos aliam-se ao comércio e, por isso, desde meados do século XV, manteve-se um trato assíduo com o reino, activado com as madeiras, urzela, trigo e, depois, com o açúcar e o vinho. Este movimento alargou-se às cidades nórdicas e mediterrânicas, com o aparecimento de estrangeiros interessados no comércio do açúcar. O arquipélago canário, tardiamente associado ao domínio europeu, manteve desde o século XVI um activo comércio com a Península. Neste tráfico intervêm os peninsulares e italianos. Após a conquista, castelhanos, portugueses e italianos repartem entre si o comércio das ilhas. Os flamengos e ingleses, que delinearão as rotas de ligação ao mercado nórdico, surgem num segundo momento. Múltiplas descrições, de finais do século XVI, evidenciam a posição dominante das Ilhas de Tenerife e Gran Canaria na economia do arquipélago. O comércio do açúcar do mercado insular, que ficou circunscrito às ilhas de Gran Canaria, Tenerife, La Palma, La Gomera e Madeira, foi o principal activador das trocas com o mercado europeu. Na Madeira ele assumiu uma posição dominante na produção e comércio entre 1450 e 1550, enquanto que nas restantes praças surge apenas em princípios do século XVI, tendo assumido idêntica posição na década de trinta. O regime do comércio do açúcar madeirense nos séculos XV e XVI, segundo opinião de Vitorino Magalhães Godinho, “vai oscilar entre a liberdade fortemente restringida pela intervenção quer da coroa quer dos poderosos grupos capitalistas, de um lado, e o monopólio global, primeiro, posteriormente um conjunto de 80

.Manuel LOBO CABRERA, ibidem, p. 116 ;Fernando Jasmins PEREIRA, Estudos sobre História da Madeira, Funchal, 1991, pp. 219-224.

26 monopólio cada qual em relação com uma escápula de outra banda”. Deste modo o comércio apenas se manteve em regime livre até 1469, altura em que a baixa do preço veio condicionar a intervenção do senhorio, que estipulou o seu exclusivo aos mercadores de Lisboa. Ao madeirense, habituado a negociar com os estrangeiros, isto não agradou. Mesmo assim o Infante D. Fernando decidiu em 1471 estabelecer o monopólio a uma companhia formada por Vicente Gil, Álvaro Esteves, Baptista Lomelim, Francisco Calvo e Martim Anes Boa Viagem. Desta decisão resultou um aceso conflito entre a vereação e os referidos contratadores. Passados vinte e um anos a ilha debatia-se ainda com uma conjuntura difícil no comércio açucareiro, pelo que a coroa retomou em 1488 e 1495 a pretensão do monopólio, mas apenas conseguiu impor um conjunto de medidas regulamentadoras da cultura, safra e comércio, que ocorrem em 1490 e 1496. Esta política, definida no sentido da defesa do rendimento do açúcar, irá saldar-se mais uma vez num fracasso, pelo que em 1498 foi tentada uma nova solução, com o estabelecimento de um contingente de cento e vinte mil arrobas para exportação, distribuídas por diversas escápulas europeias81. Estabilizada a produção e definidos os mercados do açúcar, a economia madeirense não necessitava de tão rigorosa regulamentação, pelo que em 1499 o monarca acabou com algumas das prerrogativas estipuladas no ano anterior, mantendo-se, no entanto, até 1508 o regime de contrato para a sua venda, pois só nesta data foi revogada toda a legislação anterior, ficando o seu trato em regime de total liberdade. Assim o definiu o foral da capitania do Funchal, em 1515, ao enunciar que “Os ditos açúcares se poderão carregar para o Lavante e Poente e pera todas outras partes que os mercadores e pessoas que os carregarem aprouver sem lhe isso ser posto embargo algum”82. Nas Canárias depara-se-nos uma situação diferente, pois o comércio do açúcar fundamenta-se numa política de abertura a todos os mercados e agentes. Apenas é de notar as restrições impostas pela conjuntura de afrontamento político e religioso, que tem incidência particular no movimento com a Flandres e a Inglaterra, no último quartel do século XVI83. As condições especiais em que sucedeu o processo de conquista favoreceu a abertura a todos os intervenientes interessados e, por consequência, facilitou o relacionamento das ilhas com as cidades italianas e flamengas. A intervenção dos cabildos e da coroa vai apenas no sentido da preservação da qualidade do produto. OS MERCADORES DO AÇÚCAR. A Madeira atraiu a primeira vaga de mercadores forasteiros, mercê da prioridade atribuída à cultura dos canaviais no processo de ocupação. Só o impediram as ordenanças limitativas da sua residência na ilha. Todavia, em meados do século XV a coroa facultou a entrada e fixação de italianos, flamengos, franceses e bretões, por meio de privilégios especiais, como forma de assegurar um mercado europeu para o açúcar. Mas, o impacto e a influência destes foi lesivo para os mercadores nacionais e coroa, pelo que se foi necessário impedir que os mesmos pudessem “asy soltamente trautar todos”, pelo que o senhorio proibiu a sua permanência na ilha como vizinhos. A questão foi levada às cortes de Coimbra de 1472-1473 e de Évora em 1481, reclamando a burguesia do reino contra o monopólio de facto, dos mercadores genoveses e judeus no comércio do açúcar, propondo a sua exploração nesse regime a partir de Lisboa. O monarca comprometido com esta posição vantajosa dos estrangeiros, mercê dos privilégios que lhes concedera actuou de modo ambíguo procurando salvaguardar os compromissos anteriormente assumidos e as solicitações dos moradores do reino ao estabelecer limitações à sua residência no reino e fazendo-a depender de licenças especiais. Quanto à Madeira foi a impossibilidade da sua vizinhança sem licença expressa da coroa 81 .V.M. GODINHO,Ob. cit., IV, 87; A.R.M., C.M.F., registo geral, T, I, fls. 1-1vº, Alcochete, 14 de Julho de 1469, carta do infante sobre o trato do açúcar, in A.H.M., XV, 45-47;Ibidem, fls.1vº-2vº, 25 de Setembro de 1469, carta dos regedores do Funchal in A.H.M., XV, 47-49; Ibidem, fls. 5vº-6, Lisboa, 16 de Outubro de 1478, carta régia sobre o trato do açúcar, in A.H.M., XV, 57; Ernesto GONÇALVES, "João Gomes da Ilha", in A.H.M., XV, 40-47; Idem "João Afonso do Estreito",in D.A.H.M., nº 17 (1954), 4-8 A.R.M., C.M.F., n? 1296, fls. 30vº-31vº, 11 e 28 de Outubro de 1471; Ibidem, nº 1296, fl. 41, 12 de Fevereiro de 1472, Ibidem, n? 2, 1296, fls. 52vº-53, 17 de Agosto de 1472. 82 . A.R.M., RGC.M.F., T. I, fls. 308vº-309, Sintra, 7 e 8 de Agosto de 1508, alvará régio, publ. A.H.M., XVIII, 503-504; Álvaro Rodrigues de AZEVEDO, "notas", in Saudades da Terra, Funchal, 1873, 501. 83 . Confronte-se, Emma GONZÁLEZ YANES, art. cit; Manuel LOBO CABRERA, El Comercio Canario Europeo Bajo Felipe II, Funchal, 1988, p. 7.

27 e a interditação da revenda no mercado local. A Câmara, por seu turno, baseada nestas ordenações e no desejo expresso dos seus moradores ordenara a sua saída até Setembro de 1480, no que foi impedida pelo senhorio. Somente em 1489 foi reconhecida a utilidade da presença dos mercadores estrangeiros na ilha, ordenando D. João II ao duque D. Manuel, então Duque de Beja, que os estrangeiros fossem considerados como “naturaes e vizinhos de nossos regnos”84. Na década de noventa, de novo, os problemas do mercado açucareiro conduziram ao ressurgimento desta política xenófoba. Os estrangeiros passaram a dispor de três ou quatro meses, entre Abril e meados de Setembro, para comerciar os seus produtos, não podendo ter loja e feitor na cidade. Somente em 1493 D. Manuel reconheceu o prejuízo que as referidas medidas causavam à economia madeirense, afugentando os mercadores, pelo que revogou todas interdições anteriormente impostas85. As facilidades concedidas à estadia destes forasteiros conduziram à sua assiduidade bem como à fixação e intervenção na estrutura fundiária e administrativa. A comunidade de mercadores estrangeiros na Madeira foi dominada pela presença de italianos, flamengos e franceses, que surgem no Funchal atraídos pelo tão solicitado “ouro branco”. Os primeiros e de entre eles os florentinos e genoveses foram, desde meados do século XV, os principais agentes do comércio do açúcar alargando depois a sua actuação ao domínio fundiário, possível por meio da compra e laços matrimoniais. Na década de setenta, mediante o contrato estabelecido com o senhorio da ilha, detinham já uma posição maioritária na sociedade criada para o comércio do açúcar, sendo representados por Baptista Lomellini, Francisco Calvo e Micer Leão. No último quartel do século juntaram-se Cristóvão Colombo, João António Cesare, Bartolomeu Marchioni, Jerónimo Sernigi e Luis Doria. A este grupo seguiu-se, em princípios do século XVI, outro mais numeroso que alicerçou a comunidade italiana residente, destacando-se, aqui, Lourenço Cattaneo, João Rodrigues Castigliano, Chirio Cattano, Sebastião Centurione, Luca Salvago, Giovanni e Lucano Spinola. O estrangeiro para manter a amplitude de operações comerciais nas ilhas contava com um grupo de feitores ou procuradores: Gabriel Affaitati, Luca Antonio, Cristovão Bocollo, Matia Minardi, Capella e Capellani, João Dias, João Gonçalves e Mafei Rogell. Note-se que o grupo inicial é, na sua maioria, constituído por italianos, ligados ao comércio do açúcar, e que os segundos pertencem a algumas famílias mais influentes da ilha. Os mercadores-banqueiros de Florença destacaram-se nas transacções comerciais e financeiras do açúcar madeirense no mercado europeu. A partir de Lisboa, onde usufruíam uma posição privilegiada junto da coroa, controlaram uma extensa rede de negócios que abrange a Madeira e as principais praças europeias: primeiro conseguiram da Fazenda Real o quase exclusivo do comércio do açúcar resultantes dos direitos reais por contrato directo a que se seguiu o exclusivo dos contingentes estabelecidos pela coroa em 1498. Assim, tivemos Bartolomeu Marchioni, Lucas Giraldi e Benedito Morelli com uma intervenção marcante no trato do açúcar, na primeira metade do século XVI. A manutenção desta rede de negócios foi assegurada pela acção directa dos mercadores, dos seus procuradores ou agentes subestabelecidos. Benedito Morelli em 1509-1510 tinha na ilha, como agentes para o recebimento do açúcar dos quartos, Simão Acciaiuolli, João de Augusta, Benoco Amador Cristóvão Bocollo e António Leonardo. Marchioni em 1507-1509 fazia-se representar em operações idênticas por Feducho Lamoroto. João Francisco Affaitati, cremonês, agente em Lisboa de uma das mais importantes companhias comerciais da época, participou activamente neste comércio entre 1502 e 1526, por meio de contratos de compra e venda dos açúcares dos direitos reais (1516-1518, 1520-1521 e 1529) e 84 . F. MAURO, ibidem, p. 225;ARM, RGCMF, T, I, fls. 5vº-6, Lisboa 6 de Octubro de 1471, carta régia sobre o trauto do açúcar, in AHM, XV, 57; ibidem, fls. 148-148vº, Breja, 5 de Março de 1473, carta da infanta C. Beatriz acerca dos estrangeiros, in AHM, XV, 68; H, Gama BARROS, Ibidem, X, 152-153; Ibidem, Vol. 330; V. RAU,O açúcar na Madeira /.../, p. 26, nota 27; Monumenta Henricina, XV, Coimbra, 1974, 87-89;ARM, CMF, nº 1298, fl. 37, 22 Dezembro de 1484; Ibidem, fl. 68, 15 de Abril de 1486; Ibidem, fl 87vº, 7 de Junho de 1486; ARM, RGCMF, T. I, fls. 292.293, Lisboa, 7 de Agosto de 1486; ANTT, Gavetas, XV-5-8. Évora, 22 de Dezembro de 1489, sumariado in As Gavetas da Torre do Tombo, IV, Lisboa, 1964, 169-170. 85 . H. Gama BARROS, ibidem, X, 155; Fernando Jasmins PEREIRA, Alguns elementos para o estudo da Historia económica da Madeira [...], 139-162; ARM, RGCMF, T. I, fls. 262vº, Torres Vedras, 12 de Outubro de 1496, in AHM, XVII, 350-358; ibidem, nº 1302, fls. 83-83vº, 26 de Novembro de 1496. ;ARM, RGCMF, T. I, fls. 291vº-292, Lisboa 22 de Março de 1498 in AHM, XVII, 369. Veja-se Alvaro Rodrigues de AZEVEDO "Anotações", in Saudades da Terra, Funchal, 1873, 681-682.

28 pagamentos em açúcar a troco de pimenta. O mesmo actuou, ainda, em sociedade com Jerónimo Sernigi, João Jaconde, Francisco Corvinelli e Janim Bicudo, quer isoladamente, tendo para o efeito como feitores e procuradores na ilha, Gabriel Affaitati, Luca António, Cristóvão Bocollo, Capela de Capellani, João Dias, João Gonçalves, Matia Manardi e Maffei Rogell. A penetração deste grupo de mercadores na sociedade madeirense foi muito acentuada. O usufruto de privilégios reais, o relacionamento familiar favoreceram a sua mistura com a aristocracia terratenente e administrativa. A sua intervenção é notada na estrutura administrativa, abrangendo os domínios mais elementares do governo, como a vereação e as repartições da fazenda, todas com intervenção directa na economia açucareira. São maioritariamente proprietários e mercadores de açúcar. Instalaram-se nas terras de melhor e maior produção e tornaram-se nos mais importantes proprietários de canaviais. Assim, sucedeu com Rafael Cattano, Luis Doria, João e Jorge Lomelino, João Rodrigues Castelhano, Lucas Salvago, Giovanni Spinola, João Antão, João Florença e Simão Acciaiuolli e Benoco Amatori. Também, os franceses e flamengos, a exemplo dos italianos, surgem na ilha, desde finais do século XV, atraídos pelo rendoso comércio do açúcar. No entanto, não se enraizaram na sociedade insular, mantendo uma condição errante. O seu interesse é única e exclusivamente a aquisição do açúcar a troco dos seus artefactos, alheando-se da realidade produtiva e administrativa. O caso de João Esmeraldo é a excepção. Os franceses afirmaram-se pelas operações de troca em torno do açúcar, enquanto os flamengos mantiveram uma posição subalterna e mesmo como grupo interveniente no mercado madeirense. Os franceses tiveram uma presença muito activa no comércio do açúcar, na primeira metade do século XVI. Eles surgem com frequência nas comarcas do Funchal, Ponta do Sol, Ribeira Brava e Calheta, onde adquiram grandes quantidades de açúcar que transportavam aos portos franceses nas suas embarcações. Neste trato evidenciaram-se mestre António, Archelem, António Coyros, António Caradas e Francisco Lido. Os últimos aliavam à Madeira a rede de negócios das Canárias, que surge como ramificação das praças nórdicas e andaluzas. As escápulas, até 1504, e o produto dos direitos reais eram canalizados ao mercado europeu, quer por carregação directa, quer ainda, por negócio livre ou a troco de pimenta. Este açúcar era arrendado por mercadores ou sociedades comerciais, sediados em Lisboa, sendo de destacar a actuação dos italianos, como João Francisco Affaitati e Lucas Salvago. As operações comerciais em torno do açúcar, no período de 1501 e 1504, estiveram centralizadas em mercadores ou sociedades comerciais que, a partir de Lisboa, controlaram esse trato por meio de uma complicada rede de feitores ou procuradores. A sua intervenção, que se apresentava dominante nos três primeiros decénios do século, decresceu de forma acentuada na última década. Isto atesta que os mercadores estrangeiros, em face da conjuntura de instabilidade do mercado açucareiro madeirense nos primeiros trinta anos abandonaram o seu comércio fazendo-o substituir pelo de outras origens. A comunidade italiana controlava a quase totalidade do comércio do açúcar com as principais praças europeias sendo seguida da portuguesa e da castelhana. Os mercadores nórdicos não apresentam uma posição de relevo nestas operações. Isto demonstra, mais uma vez, que a rota e mercado flamengo mantiveram-se sob o controlo da nossa feitoria. No período que decorre de 1490 a 1550, verifica-se que os italianos detiveram o exclusivo do comércio na primeira década e uma posição dominante nas duas seguintes, sendo substituídos pelos portugueses na década de trinta, e também por castelhanos e franceses. Ainda, no grupo dos mercadores estrangeiros nota-se uma tendência concentracionista, pois apenas os cinco principais detêm 71% do açúcar transaccionado. Todos eles apresentam valores superiores a dez mil arrobas, enquanto nos nacionais apenas um tem mais de 1080 arrobas. João Francisco Affaitati, mercador cremonês de família nobre, chefe da sucursal em Lisboa da companhia Affaitati, uma das principais dessa praça, surge no período de 1502 a 1529 como o principal activador do comércio do açúcar madeirense, tendo transaccionado sete vezes mais açúcar que todos os portugueses. Durante este período, arrematou em 1502, as escápulas de Águas Mortas, Liorne, Roma e Veneza. Conjuntamente com Jerónimo Sernigi, João Jaconde e Francisco Cornivelli conseguiu a

29 venda do açúcar dos direitos (1512-1518, 1520-1521, 1529) e actuou em operações diversas de compra directa de açúcar e da sua troca por pimenta ou dívidas. Para manter esta amplitude de actividades comerciais contava na ilha com um grupo numeroso de feitores ou procuradores: Gabriel Affaitati, Luca Antonio, Cristóvão Bocollo, Matia Manardi, Capella de Capellani, João Dias, João Gonçalves e Mafei Rogell. Por outro lado aceitou procuração de Garcia Pimentel, Pedro Afonso de Aguiar e João Rodrigues de Noronha. A rede de negócios funchalense, em torno do trato do açúcar, foi criada e incentivada pelo mercador estrangeiro, alemão ou italiano, que aí aportou depois da reconfortante e vantajosa escala em Lisboa. Ele controlou as principais sociedades intervenientes no comércio açucareiro, não obstante ter morada fixa em Lisboa, Flandres ou Génova. O seu domínio atinge, não só, as sociedades criadas no exterior com intervenção na ilha, mas também, o grupo de agentes ou feitores e procuradores subestabelecidos no Funchal. A sua escolha é criteriosa: primeiro os familiares, depois os compatrícios enraizados na sociedade e só, depois, os madeirenses ou nacionais. As principais casas intervenientes no trato açucareiro madeirense podem ser definidos de acordo com o número de representantes, destacando-se então, Baptista Morelli, B. Marchioni, Welser, Claaes, Charles Correa, Pero de Ayala e Pero de Mimença. Os Welsers e Claaes actuaram na praça do Funchal por intermédio de agente estabelecido em Lisboa, respectivamente, Lucas Rem e Erasmo Esquet, que depois subestabelecem feitores. O primeiro tinha como interlocutores no Funchal, em princípios do século XVI, João de Augusta, Bono Bronoxe, Jorge Emdorfor, Jácome Holzbuck, Leo Ravenspurger e Hans Schonid. Os procuradores e feitores, na sua condição de interlocutores dos mercadores europeus não se ligam apenas a uma sociedade, pois distribuíram a sua acção por um grupo numeroso de societários. E estes por sua vez não se prendem apenas a um representante, concedendo-os a um grupo variado de feitores e procuradores. Na primeira situação tivemos Benoco Amatori que representava B. Marchionni, B. Morelli, Álvaro Pimentel e Jerónimo Sernigi. E, na segunda, João Francisco Affaitati que, entre 1500-1529, estava representado por Gabriel Affaitati, Luca Antonio, Cristóvão Bocollo, Capella de Capellani, João Dias, João Gonçalves, Matia Manardi, Mafei Rogell e Lucas Giraldi. Na segunda metade do século XVII o açúcar madeirense foi paulatinamente substituído pelo brasileiro. Neste circuito de escoamento e comércio é evidente a intervenção de madeirenses e açorianos. A oferta de vinho ou vinagre era compensada com o acesso ao rendoso comércio do açúcar, tabaco e pau-brasil. Mas o trajecto destas rotas comerciais ampliava-se até ao trafico negreiro, cobrindo um circuito de triangulação. Para isso os madeirense criaram a sua própria rede de negócios, com compatrícios fixos em Angola e Brasil. Diogo Fernandes Branco é o exemplo perfeito da nova situação. A sua actividade incidia, preferencialmente, na exportação de vinho para Angola, onde trocava por escravos que, depois, ia vender ao Brasil por açúcar. O circuito de triangulação fechava-se com a chegada à ilha das naus, vergadas sob o peso das caixas de açúcar ou rolos de tabaco. Depois seguia-se outro processo de transformação do produto em casca ou conservas. Esta era uma tarefa caseira que ocupava muitas mulheres na cidade e arredores. Os mercadores, como Diogo Fernandes Branco, coordenavam todo o processo, de acordo com as encomendas que recebiam, uma vez que o produto depois de laborado deveria ter rápido escoamento. Os principais portos de destino situavam-se no norte da Europa: Londres, St Malo, Amburgo, Rochela, Bordéus. Ele foi o interlocutor directo dos mercadores das praças de Lisboa (no caso Manuel Martins Medina), Londres, Rochela ou Bordéus, satisfazendo a sua solicitação de vinho e derivados do açúcar a troco de manufacturas, uma vez que o dinheiro e as letras de cambio, raramente encontravam destinatário na ilha. A par disso manteve a sua rede de negócios, apoiado em alguns mercadores de Lisboa, e das principais cidades brasileiras. São múltiplas as operações comerciais registadas na sua documentação epistolar. À primeira vista parece-nos que o mesmo se especializou em duas actividades paralelas: o comércio de vinho para Angola e Brasil e o de açúcar e derivados para adocicar os manjares dos repastos da mesa europeia. Estas actividades comerciais de Diogo Fernandes Branco não são de modo algum episódicas, no contexto da estrutura comercial madeirense da segunda metade do século dezassete, pois comprovam uma das dominantes

30 estruturais: a ilha com intermediária entre os interesses da burguesia comercial do Novo e Velho Mundo. Um dos componentes deste puzzle era o porto do Funchal, onde uma chusma de pequenos burgueses que aguardam a oportunidade de singrar em tais negócios. Angola, Brasil são os outros dois vértices deste triângulo. Episodicamente surge-nos Barbados, que só singrou a partir da afirmação hegemónica da burguesia comercial britânica no mundo atlântico. As Canárias estiveram também ao longo do século XV-XVI, sujeitas à investida de mercadores forasteiros, que participaram activamente na conquista e ocupação, relançamento das bases da estrutura sócio-económica, e também na activação e manutenção dos circuitos comerciais: primeiro os portugueses e genoveses, depois, os flamengos e franceses. Os genoveses, fortemente implantados na Andaluzia, participaram activamente, desde o século XIV, no comércio da urzela e escravos do arquipélago. Este interesse comercial fê-los comprometerem-se com o processo de conquista e conduziu ao reforço das suas actividades comerciais e da sua posição na sociedade nascente. Desalojados das suas feitorias e cidades no Mediterrâneo, impedidos de aí comerciar pelos árabes e pelas rivalidades políticas dos seus irmãos, procuraram no Mediterrâneo Atlântico o lugar ideal para assentar a sua morada. A Madeira, Gran Canaria e Tenerife foram, assim, nos séculos XV e XVI, a sua pátria atlântica, onde se fixaram como vizinhos, tornando-se em poderosos proprietários, mercadores e prestamistas. De entre estes e outros estrangeiros de diversas proveniências podemos identificar três tipos, de acordo com o modo de fixação: 1. Conquistadores que se tomam parte activa nas conquistas das Canárias, como guerreiros e financiadores das expedições; 2. Povoadores, que surgem após a conquista, usufruindo dos incentivos inerentes ao processo de ocupação; 3. Mercadores, solicitados pelo desenvolvimento das relações de troca locais, que surgem temporariamente, dedicando-se ao comércio de manufacturas e açúcar, apoiados na intervenção dos seus compatrícios aí residentes. Conquistadores e povoadores adquiriram importância na sociedade nascente, em Tenerife e Gran Canaria, tornando-se nos mais importantes hacendados, como Cristóbal Ponte e Tomás Justiniano, que em Tenerife como são os mais ricos a seguir aos Lugo. F. Clavijo Hernandez considera que a ilha de Tenerife foi o centro mercantil dos genoveses. Estes financiaram a conquista e a plantação e safra dos canaviais. Inclui-se aqui, para Gran Canaria, Francisco Riberol, Antonio Manuel Mayuello, Bautista Riberol e Jacome Sopranis. A sua importância fica revelada pela posse do patronato de capela maior do convento de S. Francisco e pela designação de uma rua - calle de los genoveses. Tal como na Madeira, alargaram o seu poder à vida administrativa local, como funcionários ou rendeiros dos direitos reais. É o caso de Juan Leandro e Luis de Couto, que em 1524 era o arrendatário das terças reais86. A este grupo de vizinhos juntou-se outro mais numeroso de estantes. O número de mercadores genoveses referenciados em Gran Canaria sob este título, de acordo com a enumeração de Guilherme Camacho y Pérez 86

. Manuel LOBO, Ibidem, 19; Manuela MARRERO, Los genoveses en la organization de Tenerife [...], 57; Eduardo AZNAR, ob. cit.,196; Augustin GUIMERÁ RAVINA, "El repartimiento de Daute (Tenerife: 1498-1529); in III C.H.C.A., I, 1978, 127-128, 133-134;Fernando CLAVIJO HERNANDEZ, Protocolos del escriban Hernán Guerra, 39-40;A.H.P.L.P., S.A. Clemente, nº 2316, fl. 436, Galdar, 22 de Janeiro de 1524, dívida aos arrendatários das terças reais. , nº 1296, fl. 41, 12 de Fevereiro de 1472, Ibidem, nº 2, 1296, fls. 52v?-53, 17 de Agosto de 1472. 86 . A.R.M., RGC.M.F., T. I, fls. 308vº-309, Sintra, 7 e 8 de Agosto de 1508, alvará régio, publ. A.H.M., XVIII, 503-504; Álvaro Rodrigues de AZEVEDO, "notas", in Saudades da Terra, Funchal, 1873, 501. 86 . Confronte-se, Emma GONZÁLEZ YANES, art. cit; Manuel LOBO CABRERA, El Comercio Canario Europeo Bajo Felipe II, Funchal, 1988, p. 7. 86 . F. MAURO, ibidem, p. 225;ARM, RGCMF, T, I, fls. 5vº-6, Lisboa 6 de Octubro de 1471, carta régia sobre o trauto do açúcar, in AHM, Xv, 57; ibidem, fls. 148148vº, Breja, 5 de Março de 1473, carta da infanta C. Beatriz acerca dos estrangeiros, in AHM, XV, 68; H, Gama BARROS, Ibidem, X, 152-153; Ibidem, Vol. 330; V. RAU,O açúcar na Madeira /.../, p. 26, nota 27; Monumenta Henricina, XV, Coimbra, 1974, 87-89;ARM, CMF, nº 1298, fl. 37, 22 Dezembro de 1484; Ibidem, fl. 68, 15 de Abril de 1486; Ibidem, fl 87v, 7 de Junho de 1486; ARM, RGCMF, T. I, fls. 292.293, Lisboa, 7 de Agosto de 1486; ANTT, Gavetas, XV-5-8. Évora, 22 de Dezembro de 1489, sumariado in As Gavetas da Torre do Tombo, IV, Lisboa, 1964, 169-170. 86 . H. Gama BARROS, ibidem, X, 155; Fernando Jasmins PEREIRA, Alguns elementos para o estudo da Historia económica da Madeira [...], 139-162; ARM, RGCMF, T. I, fls. 262vº, Torres Vedras, 12 de Outubro de 1496, in AHM, XVII, 350-358; ibidem, nº 1302, fls. 83-83vº, 26 de Novembro de 1496. ;ARM, RGCMF, T. I, fls. 291vº-292, Lisboa 22 de Março de 1498 in AHM, XVII, 369. Veja-se Alvaro Rodrigues de AZEVEDO "Anotações", in Saudades da Terra, Funchal, 1873, 681-682. 86 . Manuel LOBO, Ibidem, 19; Manuela MARRERO, Los genoveses en la organization de Tenerife [...], 57; Eduardo AZNAR, ob. cit.,196; Augustin GUIMERÁ RAVINA, "El repartimiento de Daute (Tenerife: 1498-1529); in III C.H.C.A., I, 1978, 127-128, 133-134;Fernando CLAVIJO HERNANDEZ, Protocolos del escriban Hernán Guerra, 39-40;A.H.P.L.P., S.D.

31 Galdos, é quatro vezes superior ao dos vizinhos87. Ao invés, em Tenerife os vizinhos representam 57%. A primeira situação explica-se pelo facto de a maioria se dedicar ao comércio de exportação de açúcar e à importação de manufacturas, o que implicava um movimento assíduo nas ilhas e entre esta e a Europa. Estes, na sua maioria, tinham as lojas instaladas na costa andaluza, mantendo uma rede de negócios em todo o mundo atlântico, servindo-se para isso dos familiares, feitores ou procuradores. Francisco Riberol, por exemplo, um dos mais importantes mercadores genoveses, residia ora em Sevilha, ora em Gran Canaria, tendo, aliás, nesta ilha grandes interesses na economia açucareira. Os genoveses são na sociedade canária como os mais representativos da comunidade italiana, não obstante a presença activa dos lombardos e dos florentinos nas operações financeiras. Entre estes últimos sobressaem Juanoto Berudo, florentino e conquistador de La Palma e Jacome de Carminátis, lombardo, que aliava o comércio à agricultura e à actividade artesanal. A comunidade flamenga assume igual importância na economia e sociedade canária. Não obstante a intervenção isolada de um ou outro como mercador ou conquistador no século XV, eles só chegam em força ao arquipélago nos começos do século XVI, adquirindo notoriedade a partir da década de vinte. Atraídos pelo comércio do açúcar e das plantas tintureiras (pastel, urzela), estabeleceram uma rota importante para a exportação. A sua actividade alargou-se a todos os sectores do mercado, desde a venda em tenda à concessão de empréstimos em dinheiro e mercadoria, ao comércio externo das ilhas. Deste modo, criaram uma importante rede de negócios no arquipélago, a partir das ilhas de Gran Canaria, La Palma e Tenerife88. Esta última atraiu maior número de mercadores dos países baixos, tendo-se afirmado como principal pólo de fixação e manobra. Eles são maioritariamente visitantes, sendo reduzido o número com morada fixa. O mercador flamengo, com a mesma facilidade que o genovês, penetrou na sociedade insular adquirindo o estatuto de vizinho, relacionando-se com as principais famílias e comandando os activos circuitos comerciais com as cidades de origem - Bruges e Anvers. Apenas em La Palma surge uma pequena comunidade fixa com forte implantação no meio sócio-económico da ilha. Em primeiro lugar tivemos a intervenção dos Welsers na economia canária por intermédio de Juan Bisen e Jácome de Monteverde, investindo capitais no sector produtivo com a compra de importantes terrenos em Tazacorte e los Llanos. Jácome de Monteverde, ao adquirir a titularidade deste património fundiário tornou-se um dos principais proprietários do arquipélago. A ele juntaram-se em 1562 os Van de Walle que aí fixaram morada e adquiriram terrenos. Esta família conduziu à valorização das rotas comerciais das Canárias com a Flandres. O mercador flamengo, com a mesma facilidade que o genovês, penetrou na sociedade insular adquirindo o estatuto de vizinho, relacionando-se com as principais famílias e comandando os activos circuitos comerciais com as cidades de origem - Bruges e Anvers89. Nas Canárias as companhias não surgem apenas no sector comercial, pois esta forma de associação alarga-se também ao sector produtivo e aos transportes. É de referir em especial, no sector produtivo, a aquisição em 1513, pelos Welsers, de importantes canaviais em Tazacorte (La Palma), que depois trespassaram aos seus agentes, Juan Bissan e Jácome de Monteverde. Em Gran Canaria são frequentes os contratos de companhia entre os lavradores de açúcar e os mercadores ou mesmo entre os primeiros e os canavieiros. Estas actuaram também de modo diverso em três partes distintas - mercado europeu nórdico e mediterrânico, no litoral africano e no litoral americano. Nas praças de Las Palmas, Santa Cruz e Garachico formam-se sociedades, compostas por mercadores locais e forasteiros, com o objectivo de comerciar nas três partes. Geralmente chegavam aí a partir de Sevilha e Cadiz, subestabelecendo-se por feitores ou procuradores. Com os mesmos 87

. Ob. cit., 524. Este autor referencia oitenta e oito mercadores genoveses, sendo 81, 82% vizinhos. Na nossa recolha das fontes impressas apenas encontrámos cinquenta e quatro sendo 70% estante 29% vizinhos. 88 . Manuela MARRERO, Los mercadores flamengos [...], 601-609, refere que "los flamencos son conocidos como tales. En esta primera mitad des siglo XVI venden los productos más solicitados en los centros mercantiles y tratan de ampliar actividad comercial. Pero la actividad de los flamencos es doble. Unos participan tanto de la producción como de la distribuicción mientros otros prestan sus servicios por cuenta ajena" (Ibidem, 609). 89 . Giles Hana, mercador flamengo, vizinho de Daute (Tenerife) casou-se com Francisca de Carminatis filha do mercador lombardo, Juan Jácome de Carminatis que por sua vez era casado com Juana Joven, filha de Jaime Joven, mercador catalão, vizinho de Tenerife; Juan de Xembrens, mercador flamengo, vizinho de Tenerife, casou-se com Ana de Betencor, filha de Guillén de Betencor. Veja-se Manuela MARRERO, Los mercadores flamengos [...], 611-614.

32 objectivos surgiu em 1536 outra companhia, fundada por três mercadores de Barcelona, que pretendia comerciar o açúcar das Canárias e escravos, tendo Cádiz como centro de redistribuição. A estes seguiu-se, em 1574, nova iniciativa de mercadores de Barcelona com idêntico objectivo90. Nesta trama de relações comerciais entre a Andaluzia e as Ilhas Canárias dominam acima de tudo, as companhias de familiares, em que se conjugavam os laços de parentesco com os comerciais. As principais casas italianas, flamengas e andaluzas, organizadas ou não em sociedade, subestabeleciam familiares seus nas principais praças destas ilhas, nomeadamente em Las Palmas, Garachico e Santa Cruz. Aí encontramos os Sopranis, Coronas, Veintinigla, etc. Em Gran Canaria, no primeiro quartel do século XVII, o panorama da comunidade mercantil envolvida no comércio de açúcar muda de figurino, assim, à menor persistência dos genoveses junta-se a ausência inglesa e reduzida presença dos flamengos, isto determinado pela conjuntura política91. O COMÉRCIO DO OURO BRANCO . O comércio do açúcar destaca-se no mercado madeirense dos séculos XV e XVI como o principal animador das trocas com o mercado europeu. Durante mais de um século a riqueza das gentes da ilha e o fornecimento de bens alimentares e artefactos dependeu do comércio do produto. O mesmo sucedeu nas Canárias, a partir do século XVI. Todavia, neste período a sua venda e valor sofreram diversas oscilações, mercê da conjuntura do mercado consumidor e da concorrência dos mercados insulares e americanos. O dispêndio do açúcar do lavrador fazia-se de forma diversificada. As vendas directas aos mercadores, muitas vezes de antemão, associam-se os pagamentos de dívidas ou por trocas de produtos e serviços. Na Madeira, os livros do quarto e do quinto, como forma de controlo dos direitos em jogo, contabilizam o modo como os lavradores dispendiam o seu açúcar. Nas Canárias são os diversos contratos existentes nos protocolos notariais. A partir daqui poderá saber-se quem eram os principais compradores, como testemunhar do seu uso no pagamento de serviços92. Apenas para a Madeira, na primeira metade do século dezassete é possível estabelecer com clareza essa forma de dispêndio do açúcar conseguido por proprietários de canaviais e engenhos. No global tivemos cerca de 81.280 arrobas distribuídas por 2.492 compradores. A tendência é para a disseminação pelos pequenos compradores, acabando com os interesses monopolistas de algumas casas comerciais, que haviam dominado o comércio na época de apogeu. Note-se que o lavrador de canas e o proprietário do engenho serviam-se usualmente do produto da sua safra para o pagamento da mão de obra assalariada que necessitavam. Entre 1509 e 1537 há referência a diversos pagamentos em açúcar por serviços prestados na lavoura e laboração do engenho e, mesmo na compra de qualquer manufactura ou prestação de serviço artesanal. O pagamento dos serviços da safra do açúcar atingem 31,41%, sendo 16,62% no cultivo e apanha da cana e 14,59%, sendo dominados pelos sapateiros (27,62%) e ferreiros (24,48%). Por fim, registe-se que esta distribuição diversificada dos lucros acumulados por proprietários de canaviais e mercadores de açúcar contribuiu para um manifesto progresso da sociedade madeirense no século dezasseis, com evidentes reflexos no quotidiano e panorama artístico e arquitectónico93. É de salientar nas Canárias a antecipação do dinheiro ou produtos pelos mercadores aos lavradores a troco da entrega do açúcar na altura da safra, o que permitia uma perfeita vinculação ou subordinação do sector 90

.Ibidem, 351, nota 177; José PERAZA DE AYALA, "História de la casa de Monteverde", in Nobiliário de Canarias, II, La Laguna, 1959, 491-579; Manuel LOBO CABRERA, "Los Vecinos de las Palmas y sus viages de pesqueria [...]" III C.H.C.A., II, 1978, 471;Guilherme CAMACHO Y PÉREZ GALDÓS, "El cultivo de la caña de açúcar[...]" in A.E.A., nº 7 (1961), 33-34; Manuel LOBO CABRERA, "Gran Canaria y Indias [...]", IV C.H.C.A., I, 143-173; Manuela MARRERO RODRIGUES, "Una sociedad para comerciar en Castilla, Canarias y Flandres en la primera mitad del siglo XVI", III C.H.C.A., I, 1978, 161;J. M. MADURELL MARIMON, "Notas sobre el antiguo comercio [...]" A.E.A., nº 3 (1957), 563-592; IDEM,"El antiguo comercio [...]", A.E.A., nº 7 (1961),71-74; Idem, "Miscellanea de documentos historicos Atlânticos", A.E.A., nº 25 (1979) 224-225, 235-238. 91 . Elisa TORRES SANTANA, El Comercio de las Canarias Orientales en Tiempo de Filipe III, LP., 1991, pp. 304-308. 92 . Apenas para o Funchal em 1536, Ribeira Brava em 1517 e 1536, Ponta do Sol em 1526 e 1537 e Calheta em 1509, 1514 e 1534; veja-se Fernando Jasmins PEREIRA, Livro de contas da ilha da Madeira 1502-1537, Vol. II, Funchal 1989. 93 . David Ferreira de GOUVEIA, "O açúcar e a economia madeirense (1420.1550). Consumo de excedentes", Islenha, nº 8, (1991), pp. 11-22.

33 produtivo. Também aqui, não obstante algumas posturas limitativas, os pagamentos dos trabalhadores da safra fazia-se em açúcar o que permitia uma redistribuição do produto entre os seus diversos intervenientes94. E no caso de Tenerife, aos poucos e poucos, passou a servir de meio de pagamento e de troca. O açúcar foi, durante mais de um século, o principal activador das trocas da Madeira com o exterior. As dificuldades sentidas com a penetração no mercado europeu levaram a coroa a intervir no sentido de manter um comércio controlado, que a partir de 1469 passou a ser feito sob o permanente olhar do senhorio e coroa. A situação manteve-se até 1508, altura em que a coroa aboliu o regime de contrato. A partir de uma das medidas tomadas pela coroa (o contingentamento de 1498) para defesa do mercado do açúcar madeirense poder-se-á fazer uma ideia dos principais mercados consumidores. As praças do mar do norte dominavam o comércio, recebendo mais de metade das escápulas estabelecidas: aqui a Flandres adquire uma posição dominante, o mesmo sucedendo com os portos italianos para o espaço mediterrânico. Se compararmos estas escápulas com o açúcar consignado às diversas praças europeias no período de 1490 e 1550, verifica-se que o roteiro não estava muito aquém da realidade. As únicas diferenças relevantes surgem nas Praças da Turquia, França e Itália, sendo de salientar na última um reforço acentuado de posição, que poderá resultar da actuação das cidades italianas como centros de redistribuição no mercado levantino e francês. DESTINO FLANDRES

MERCADO.1490-1550

MERCADORES.1490-1550

ARROBAS

ESCÁPULAS.1498 %

ARROBAS

%

ARROBAS

40.000

%

33

1O5896,5

39

11375,5

2

FRANÇA

9.000

13

500

-

8469,5

2

INGLATERRA

7.000

6

1438

1

1072

-

ITÁLIA

21.000

30

140626

52

407530,5

80

PORTUGAL

7.000

6

20657

10

23798

5

TURQUIA

15.000

13

2372,5

1

-

-

32

-

68185

13

OUTROS

Os dados disponíveis para o comércio do açúcar na Madeira evidenciam a constância dos mercados flamengo e italiano. O reino, circunscrito aos portos de Lisboa e Viana do Castelo surge em terceiro lugar com apenas 10%. Observe-se que o porto de Viana do Castelo adquiriu, desde 1511, grande importância neste circuito e daí com Espanha e Europa nórdica. Aliás, no período de 1581 a 1587 Viana é o único porto do reino mencionado nas exportações de açúcar, mantendo, todavia, uma posição inferior à 1490-1550. Esta função redistribuidora dos portos a norte do Douro ficara, já evidenciada entre 1535 e 1550, pois das cinquenta e seis embarcações entradas no porto de Antuérpia com açúcar da Madeira, dezasseis são do norte e apenas uma de Lisboa. Na primeira 50% são provenientes de Vila do Conde, 31% do Porto e 19% de Viana do Castelo. Aliás, em 1505 o monarca considerava que os naturais desta região tinham muito proveito no comércio do açúcar da ilha. Em 1538 este trato era assegurado por um numeroso grupo de grupos de mercadores daí oriundos. Entre eles estavam Aires Dias, Baltazar Roiz, Diogo Alvares Moutinho e Joham de Azevedo. O mesmo sucede nas trocas com o mundo mediterrânico onde se contava com os entrepostos de Cádiz e Barcelona, que surgem no período de 1493 a 1537 com os portos de apoio ao comércio com Génova, Constantinopla, Chios e Águas Mortas95. Os dados da exportação para o período de 1490 a 1550, testemunham esta realidade: a Flandres surge com 39% e a Itália com 52%. Todavia, é de salientar a posição dominante dos mercadores italianos na condução deste açúcar, uma vez que eles foram responsáveis pela saída de 78% do açúcar. Note-se que no início foram inúmeras as dificuldades para a presença de estrangeiros. Somente a partir da década de oitenta do século XV 94

. Manuel LOBO CABRERA, El Comercio Canario Europeo Bajo Filipe II, Funchal, 1988, pp. 113-114; Benedicta RIVERO SUAREZ, Ob. cit., pp. 147-148. . Joel SERRÃO, "Nota sobre o comércio do açúcar entre Viana do Castelo e o Funchal...", in Revista de Economia, III, 209-212;Virginia RAU, A Exploração e o comércio de sal em Setúbal, Lisboa, 1951;A.R.M., RGCMF, T. I, fls. 301-301vº, Lisboa, 15 de Março de 1505, carta régia, publ. in A.H.M., XVII, 453454;Domenico GEOFFRÉ, Documenti sulle relazioni fra Genova ed il Portogallo del 1493 al 1539, Roma,1961, 18-20, 266-265, 268-270, 277-279, 284-285, 290-292, 309-310, José Maria MADURELL MARIMÓN, art. cit., 486-487, 493-494, 497-499, 501-502, 521-522, 564-564. 95

34 surgiram os primeiros como vizinhos, que se comprometeram com a cultura e comércio do açúcar. Para a segunda metade do século dezasseis escasseiam os dados sobre o comércio do açúcar madeirense. Somente entre 1581 e 1587 temos nova informação. Neste período a ilha exportou 199.300 arrobas de açúcar para o estrangeiro e 4830 para o porto de Viana do Castelo. A partir de princípios do século XVI o comércio do açúcar diversifica-se. A Madeira que na centúria de quatrocentos surgira como o único mercado de produção, debater-se-á, a partir de finais desse século, com a concorrência do açúcar das Canárias, de Berberia, de S. Tomé e, mais tarde, do Brasil e das Antilhas. Esta múltipla possibilidades de escolha, por parte dos mercadores e compradores, condicionou a evolução do comércio açucareiro. Todavia, o açúcar madeirense manteve uma situação preferencial no mercado europeu (Florença, Anvers, Ruão), sendo o mais caro. Talvez, devido a este favoritismo encontramos com frequência referências à escala na Madeira de embarcações que faziam o seu comércio com as Canárias, Berberia e S. Tomé. Esta situação deveria, de igual modo, explicar a venda de açúcar madeirense em Tenerife, no ano de 150596. O comércio açucareiro na primeira metade do século XVI era dominado na Europa do Norte pelas ilhas e litoral do Atlântico, nomeadamente, entre as primeiras, a Madeira, Tenerife, Gran Canaria e La Palma. Assim, na década de trinta os navios normandos ocupados neste comércio dirigiam-se preferencialmente a esta área. Convém anotar que a maioria das embarcações que rumavam a Marrocos, com escala na Madeira à ida e no regresso, o que valorizou a Madeira no comércio com a Normandia. A situação dominante do mercado madeirense perdurou nas décadas seguintes, não obstante a forte concorrência da ilha de S. Tomé que se firmou, entre 1536 e 1550, como o principal fornecedor de açúcar à Flandres. Todavia, esta posição cimeira da ilha de São Tomé só é patente a partir de 1539. NAVIOS PORTUGUESES COM AÇÚCAR PAR ANTUÉRPIA 1536-155097 ORIGEM CABO GUER

AÇÚCAR 1

CARGA MIXTA 1

TOTAL 2

CANÁRIAS

1

5

6

CABO VERDE

1

7

8

MADEIRA

28

28

56

SÃO TOMÉ

88

38

16

16

16

LISBOA

A Madeira, que até à primeira metade do século dezasseis havia sido um dos principais mercados do açúcar do Atlântico, cede lugar a outros (Canárias, S.Tomé, Brasil e Antilhas). Deste modo as rotas desviam-se para novos mercados, colocando a ilha numa posição difícil. Os canaviais foram abandonados na quase totalidade, fazendo perigar a manutenção da importante industria de conservas e doces. O porto funchalense perdeu a animação que o caracterizara noutras épocas. É aqui que surge o arquipélago vizinho. O comércio canário, baseado nos mesmos produtos que o madeirense, será um forte concorrente na disputa dos mercados nórdico e mediterrânico. Os produtos dos dois arquipélagos surgem, lado a lado, nas praças de Londres, Anvers, Ruão e Génova. A única vantagem do madeirense resultava de ter sido o primeiro a penetrar com o açúcar e o vinho no mercado europeu, ganhando a preferência de muitos vendedores e consumidores. O comércio com as principais praças europeias fazia-se com assiduidade a partir das ilhas de Gran Canaria e Tenerife. Este movimento comercial adquiriu uma importância primordial nas trocas externas do arquipélago uma vez que no período de 1549 a 1555 há notícia de cinquenta e oito partidas ou chegadas de navios no percurso de Anvers às Canárias. Segundo A. Cioranescu o comércio da ilha de Tenerife fazia-se com maior 96 97

. Acuerdos del cabildo de Tenerife, I, p. 83. Nº 447, 26 de Março de 1505. . V. M. GODINHO, ob.cit., vol. IV, pp.98-99.

35 assiduidade com os Países baixos, sendo apenas limitado pelas guerras e conflitos religiosos. Contudo o tráfico mais importante do porto de Santa Cruz orientava-se no sentido da Inglaterra, baseando-se na oferta de vinho e urzela, resultado, certamente da abertura do porto de Bristol ao tráfico com as Canárias, proposta em 1538 por Carlos V. Em Gran Canaria o comércio nórdico, nomeadamente com a Flandres, estava em função do açúcar, no entanto os flamengos só surgem aí a partir de 1532 e, com toda a pujança, na década de cinquenta. A ilha recebia uma variedade de produtos manufacturados de que sobressaem os tecidos de diversas qualidades, oriundos dos mercados de Anvers, Ruão, Holanda e Gante. Estes produtos eram trocados com dinheiro e açúcar por mercadores genoveses e flamengos, distinguindo-se neste grupo Bernardino Anehesi, Jerónimo Lerca, Lamberto Broque, Sébastian Búron e Jerónimo Fránquez98. O açúcar canário oriundo de Tenerife, Gran Canária, La Palma e La Gomera, surge no mercado europeu a partir de princípios do século XVI. A comunidade italiana, residente em Cádiz e Sevilha e com intervenção activa no arquipélago, traçou as rotas deste comércio com o mar do Norte e o Mediterrâneo. A sua activação nas primeiras décadas do século XVI condicionou a presença de mercadores peninsulares e estrangeiros, que se instalaram em Tenerife, Gran Canaria e La Palma. O porto de Cádiz, importante praça comercial peninsular, funcionou como centro de redistribuição e comércio no Mediterrâneo. A conquista do mercado nórdico é mui posterior, mercê do forte enraizamento deste mercado no comércio e consumo do açúcar madeirense. A primeira carga de melaço canário enviada a Antuérpia, em 1512, não foi do agrado dos eventuais clientes99. Somente a partir da década de trinta o açúcar canário agradou em pleno ao gosto flamengo, beneficiando para isso da quebra do açúcar madeirense e da presença da comunidade flamenga no arquipélago. O trato com as praças nórdicas era assegurado, em parte, pelos portugueses de Vila do Conde, Lisboa e Algarve, que faziam valer a maestria e experiência, adquiridas no trato do açúcar da Madeira. Em síntese, a colónia italico-flamenga, residente ou estante nas ilhas de Gran Canaria e Tenerife, foi o principal elo de ligação aos mercados de comércio e consumo do açúcar. Aqui, como na Madeira, ambas as comunidades esqueceram os antagonismos religiosos para se unirem em prol duma causa comum, o comércio do açúcar, repartindo entre si o domínio do mercado açucareiro. Não é fácil estabelecer uma ideia sobre este comércio de açúcar das Canárias, mais uma vez faltam dados credíveis para o testemunhar. Mesmo assim é possível compilar alguns que podem ilustrar essa realidade para as ilhas de Gran Canaria e Tenerife. NAVIOS E O COMÉRCIO DO AÇÚCAR 1506-1625 ILHAS

ESPANHA CÁDIZ

SEVILHA

OUTROS

ITALIA

PORTUGAL

FRANÇ A

FLANDRES

OUTRO S

TOTA L

TOTAL

GRAN CANARIA 1556-1598100

206

48

-

254

13

19

44

49

4

383

TENERIFE 15061551

33

-

3

36

-

1

3

12

-

52

TOTAL

240

55

3

298

14

20

64

62

6

454

Os contratos de fretamento de navios para o transporte de açúcar evidencia que o mercado peninsular dominado por Sevilha e Cádiz - e o principal destino das embarcações e não o terminus do seu percurso, uma vez que estes pontos, a exemplo do que sucedeu em Portugal com Viana do Castelo e Lisboa serviram de entreposto para a colocação do produto nos mercados nórdicos e mediterrânico. Certamente que o reduzido 98 .E. STOLS, "Les Canaries et l'expansion coloniales des Pays-Bas méridionaux...", in IV C.H.C.A., vol. I, 908; J. A. GORIS, (Ob. cit., 157, 165, 167) refere o envio de três naus de Anvers (1508-1540) às Canárias para comprar açúcar; Clarence H. HARING, ob. cit., 23; Manuel LOBO CABRERA, "El comercio entre Gran Canaria y Flandres hasta 1558...", 32-33. 99 . Vitorino Magalhães GODINHO, Ibidem, IV, 98. 100 . Movimento geral em branco.

36 número de embarcações e destino à península itálica deve-se a isso mesmo. Note-se que, quer genoveses, quer florentinos fizeram das cidades peninsulares bases para a afirmação no mercado atlântico. No caso da Flandres é significativa a presença de contactos directos o que prova uma estratégia distinta. EXPORTAÇÃO DE AÇÚCAR EM KGS ILHAS

ESPANHA

ITALI A

TOTAL

PORTUGA L

FRANÇ A

FLANDRE S

OUTRO S 7360

CÁDIZ

SEVILHA

OUTRO S

GRAN CANARIA 1556-1598

1496720,02

106720,02

-

1603440,04

441388, 17

28346,58

338005,6 8

436200,1

TENERIFE 15061551

440680

-

2665

443345

-

441601725

1725

16767,5

TOTAL

1938136,02

112555,02

825

2046785,04

441388, 17

72506,58

386531,6 8

437967,52

TOTAL

2854030,77 551138

7360

3479919,27

Esta valorização dos portos peninsulares torna-se mais evidente quando somos confrontados com o volume do açúcar transportado. Cádiz é indiscutivelmente o grande mercado do açúcar de Canárias. Numa posição modesta surgem os postos de Flandres, França e Itália. Em Gran Canaria, os mercados franceses e da Flandres, dominados por Ruão e Amberes, não consomem só açúcar branco, pois registam-se outras variedades como o de panela, remel e a conserva. EXPORTAÇÃO EM KGS AÇÚCAR

ESPANHA CÁDIZ

SEVILHA

1496720,02

106010,22

PANELA

1495

1587

REMEL

534448,06

CONSERVA

4460,37

BRANCO

OUTR OS

ITALIA

PORTUGAL

FRANÇ A

FLANDRES

OUTRO S

28346,58

338005,6

436200,1

7360

48181,98

26154,75

TOTAL 1602730, 24

441388,17

3082 534448,0 6

1865,87

209438,7 747,5

138

7066,17

TOTAL

2854030,77 77409,75 743886,76

6125,47

A solução possível para debelar a crise da industria açucareira madeirense, desde a segunda metade do século dezasseis, foi o recurso ao açúcar brasileiro, usado no consumo interno ou como animador das relações com o mercado europeu. Por isso os contactos com os portos brasileiros adquiriram uma importância fundamental nas rotas comerciais madeirenses do Atlântico Sul. Tal como o refere José Gonçalves Salvador101 as ilhas funcionaram, no período de 1609 a 1621, como o “trampolim para o Brasil e Rio da Prata”. É o mesmo quem esclarece que este relacionamento poderia ter lugar de modo directo, ou indirecto, sendo este último rumo através de Angola, S. Tomé, Cabo Verde ou Costa da Guiné. Aqui definia-se um circuito de triangulação, de que são exemplo as actividades comerciais de Diogo Fernandes Branco, no período de 1649 a 1652. Note-se que desde finais do século dezasseis estava documentado o comércio do açúcar, servindo os portos do Funchal e Angra como entrepostos para a sua saída legal ou de contrabando para a Europa. Este comercio do açúcar do Brasil, por imperativos da própria coroa ou por solicitação dos madeirenses, foi alvo de frequentes limitações. Assim em 1591 ficou proibida a descarga do açúcar brasileiro no porto do Funchal, medida que não produziu qualquer efeito, pois em vereação de 17 de Outubro de 1596 foi decidido reclamar junto da coroa a aplicação plena de tal proibição. Desde 1596 é evidente uma activa intervenção das autoridades locais na defesa do açúcar de produção local, prova evidente de que se promovia esta cultura. Em Janeiro deste ano os vereadores proibiram António Mendes de descarregar o açúcar de Baltazar Dias. 101

.Cristãos-novos e o comércio no Atlântico meridional, S.Paulo, 1978, p.247.

37 Passados três anos o mesmo surge com outra carga de açúcar da Baía, sendo obrigado a seguir o seu porto de destino, sem proceder a qualquer descarga. O não acatamento das ordens do município implicava a pena de 200 cruzados e um ano de degredo. Esta situação repete-se com outros navios nos anos subsequentes até 1611: Brás Fernandes Silveira em 1597, António Lopes, Pedro Fernandes o grande e Manuel Pires em 1603, Pero Fernandes e Manuel Fernandes em 1606 e Manuel Rodrigues em 1611102. A constante pressão dos homens de negócio do Funchal envolvidos neste comercio veio a permitir uma solução de consenso para ambas as partes. Em 1612 ficou estabelecido um contrato entre os mercadores e o município em que os primeiros se comprometiam a vender um terço do açúcar de terra. Note-se que desde 1603 estava proibida a compra e venda deste açúcar, sendo os infractores punidos com a perda do produto e a coima de 200 cruzados. Mas a partir de Dezembro de 1611 ficou estipulado que a venda de açúcar brasileiro só seria possível após o esgotamento do da terra. Para assegurar este controlo, os escravos e barqueiros foram avisados que, sob pena de 50 cruzados ou dois anos de degredo para África, não poderiam proceder ao embarque de açúcar sem autorização da câmara. Em 1657 a proporção de cada açúcar era de metade103. Após a Restauração da independência de Portugal o comércio com o Brasil foi alvo de múltiplas regulamentações. Primeiro foi a criação do monopólio do comércio com o Brasil, através da Companhia para o efeito criada, depois o estabelecimento do sistema de comboios para maior segurança da navegação. A esta situação, estabelecida em 1649, ressalva-se o caso particular da Madeira e Açores, que a partir de 1650 passaram a poder enviar, isoladamente dois navios com capacidade para 300 pipas com os produtos da terra, que seriam depois trocados por tabaco, açúcar e madeiras. Mais tarde, ficou estabelecido que os mesmos não podiam suplantar as 500 caixas de açúcar. O movimento das duas embarcações da Madeira fazia-se com toda a descrição, conforme recomendava o Conselho da Fazenda, mediante as licenças e a sua entrega deveria ser feita no sentido de favorecer todos os mercadores da ilha. Alguns destes navios, fora do número estabelecido para a ilha, declaram sempre serem vitimas de um naufrágio ou de ameaças de corsários, o que não os impedem de descarregarem sempre algumas caixas de açúcar. Será esta uma forma de iludir as proibições estatuídas ? Todavia os infractores sujeitavam-se a prisão104. Nas Canárias para o século XVII, só temos dados sobre o movimento de exportação de açúcar da Ilha de Gran Canaria no primeiro quartel da Centúria105.

ESPANHA DESTINO

Nº de navios

EUROPA AÇÚCAR

DESTINO

Nº de navios

AÇÚCAR

Cádiz

1

736

França

7

46801

Sevilha

7

5835

Flandres

1

1138,5

Outros

2

Total

10

Total

8

6571

47939,5

Neste momento é bastante evidente uma inversão nos mercados de destino aqui comandados por Sevilha e os portos franceses.

A PROJECÇÃO DA MADEIRA NO MUNDO AÇUCAREIRO. A Madeira, arquipélago e Ilha, 102

. ARM, RGCMF, t.III, fl. 44vº; Idem, DA, caixa IV, nº. 504; fls 12vº-13vº, refere-se as medidas proibitivas de 1591, 1597 e 1601;Ibidem, nº.1314, fls.40vº41vº;Idem, Camara Municipal do Funchal, nº.1312, fls.7-8vº, nº.1313, fls.20-23, nº.1313, fls. 6, 49vº, 51, 52-52vº, 59, nº.1316,fls. 24-25, 33-33vº nº.1318,fls.37vº-38. 103 . Ibidem, RGCMF, tomo II, fl.44Vº; t. III, fl. 103; idem, DA, caixa II, nº.250;Idem, Camara Municipal do Funchal, nº.1315, fl.61; nº.1316, fls.39-39vº; nº.1322, fls.56-56vº ; nº.1333,fls.5vº-6vº. 104 . Ibidem, nº.396, fls. 75vº-76; ARM, RGCMF, t.IX, fls. 29vº-30vº, 10 de Junho de 1664. 105 . Elisa TORRES SANTANA, El Comercio de Las Canarias Orientales en tiempos de Felipe III, Las Palmas, 1991, p. 300.

38 afirmou-se no processo da expansão europeia pela singularidade do seu protagonismo. Vários são os factores que o propiciaram e que fizeram com que ela fosse, no século XV, uma das peças-chave para a afirmação da hegemonia portuguesa no Novo Mundo. Além disso ela é considerada a primeira pedra do projecto, que lançou Portugal para os anais da História do oceano que abraça o seu litoral abrupto. O Funchal foi uma encruzilhada de opções e meios que iam ao encontro da Europa em expansão. À função de porta-estandarte do Atlântico, a Madeira associou outras, como “farol” Atlântico, o guia orientador e apoio para as delongas incursões oceânicas. Por isso, nos séculos que nos antecederam, ela foi um espaço privilegiado de comunicações, tendo a seu favor as vias traçadas no oceano que a circunda e as condições económicas internas, propiciadas pelas culturas da cana sacarina e vinha. Uma e outra contribuíram para que o isolamento definido pelo oceano fosse quebrado e se mantivesse um permanente contacto com o velho continente europeu e o Novo Mundo. Como corolário desta ambiência a Madeira firmou uma posição de relevo nas navegações e descobrimentos no Atlântico. Outra componente importante da afirmação da ilha como modelo de referência tem a ver com a organização da sociedade no espaço atlântico e da importância aí assumida pelo escravo. Mais uma vez a Madeira é o ponto de partida para esta transformação social. De acordo com S. Greenfield ela serviu de trampolim entre o “Mediterranean Sugar Production” e a “Plantation Slavery” americana. O autor não faz mais do que retomar os argumentos aduzidos por Charles Verlinden desde a década de sessenta. Note-se que esta argumentação mereceu alguns reparos na sua formulação, mercê de novos estudos106. Na verdade, tudo o que foi concretizado em termos do mundo atlântico português teve por matriz o sucedido na Madeira. A Madeira foi ao nível social, político e económico, o ponto de partida para o “mundo que o português criou...” nos trópicos. Neste contexto é sumamente importante o conhecimento do sucedido na Madeira quando pretendemos estudar e compreender as outras situações. Colombo abriu as portas ao Novo Mundo e traçou o rumo da expansão da cana de açúcar. Note-se que esta cultura não lhe era alheia, pois o navegador tem no seu curriculum algumas actividades ligadas ao comércio do açúcar na Madeira. O navegador, antes da sua relação afectiva ao arquipélago, foi, a exemplo de muitos genoveses mercador do açúcar madeirense. Em 1478 ele encontrava-se no Funchal ao serviço de Paolo di Negro para conduzir a Génova 2400 arrobas a Ludovico Centurione. Com esta viagem e, depois da larga estância do navegador na ilha, Colombo ficou conhecedor da dinâmica e importância do açúcar da Madeira. Em Janeiro de 1494, aquando da preparação da segunda viagem, o navegador sugere aos reis católicos o embarque de 50 pipas de mel e 10 caixas de açúcar da Madeira para uso das tripulações, apontando o período que decorre até a Abril como o melhor momento para o adquirir. A isto podemos somar a passagem do navegador pelo Funchal no decurso da terceira viagem em Junho de 1498 podemos apontar como muito provável a presença de socas de canas da Madeira na bagagem dos agricultores que o acompanhavam. Note-se que neste momento a cultura dos canaviais havia adquirido o apogeu na ilha, mantendo-se uma importante franja de canaviais ao longo da vertente sul107. A tradição anota que as primeiras socas de cana saíram de La Gomera. Todavia a cultura encontrava-se aí nesse momento em expansão, enquanto na Madeira estava já consolidada. Note-se que ainda estão por descobrir as razões que conduziram Colombo, no decurso da Terceira viagem, a fazer um desvio na sua rota para escalar o Funchal. Na verdade, a Madeira foi a primeira área do Atlântico onde se cultivou a cana-deaçúcar que, depois, partiu à conquista das ilhas (Açores, Canárias, Cabo Verde, S. Tomé e Antilhas) e 107.S. GREENFIELD,"Madeira and the beginings of New World sugar cane cultivation and plantation slavery: a study in constitution building", in Vera RUBIN e Artur TUNDEN(eds.), Comparative perspectives on slavery in New World Plantation Societies, N. York, 1977; Carles VERELINDEN,"Précédents et paralèlles europeéns de l'esclavage colonial", in Instituto, vol.113, Coimbra, 1949; "Les origines coloniales de la civilization atlantique. antécédents et types de structure", in Journal of World History, 1953, pp. 378-398; Précédents médiévaux de la colonie en Amérique, México, 1954; Les origines de la civilization atlantique, Nêuchatel, 1966;Alfonso FRANCO SILVA, "La eclavitud en Andalucia...", in Studia, nº.47,Lisboa, 1989, pp.165-166; Alberto VIEIRA, Os escravos no arquipélago da Madeira. séculos XV a XVII, Funchal, 1991. 107 . Cristóbal Colón, Textos y documentos completos, Madrid, Alianza Editorial, 1984, p. 160; Fray Bartolomé de las CASAS, Historia de las Indias, Vol. I, México, Fundo de Cultura Económica, 1986, p. 497.

39 continente americano. Por isso mesmo o conhecimento do caso madeirense assume primordial importância no contexto da História e geografia açucareira dos séculos XV a XVII. O açúcar da Madeira ganhou fama ao nível do mercado europeu. A sua qualidade diferenciava-o dos demais e fê-lo manter-se como o preferido de muitos consumidores europeus. Deste modo o aparecimento de açúcar de outras ilhas ou do Novo Mundo veio a gerar uma concorrência desenfreada ganha por aquele que estivesse em condições de ser oferecido ao melhor preço. Um testemunho disso surge-nos com Francisco Pyrard de Laval: “Não se fale em França senão no açúcar da Madeira e da ilha de S. Tomé, mas este é uma bagatela em comparação do Brasil, porque na ilha da Madeira não há mais de sete ou oito engenhos a fazer açúcar e quatro ou cinco na de S. Tomé”108. E refere que no Brasil laboravam 400 engenhos que rendiam mais de cem mil arrobas que, segundo o mesmo, são vendidas como da Madeira. O mais significativo desta situação do novo mercado produtor de açúcar é que o madeirense encontra-selhe indissociavelmente ligado. Na verdade, a Madeira foi o ponto de partida do açúcar para o Novo Mundo. O solo madeirense confirmou as possibilidades de rentabilização da cultura através de uma exploração intensiva e de abertura de novo mercado para o açúcar. É a partir da Madeira que se produz açúcar em larga escala que veio a condicionar os preços de venda, de forma evidente nos finais do século XV. Também o íncola foi capaz de agarrar esta opção, tornando-se no obreiro da sua difusão no mundo Atlântico. A tradição anota que foi a partir da Madeira que o açúcar chegou aos mais diversos recantos do espaço atlântico e que os técnicos madeirenses foram responsáveis pela sua implantação. O primeiro exemplo encontramos em Rui Gonçalves da Câmara, quando em 1472 comprou a capitania da ilha de S. Miguel. Na sua expedição de posse da sua capitania fez-se acompanhar de canas da sua Lombada, que entretanto vendera a João Esmeraldo, e dos operários para a tornar produtiva. A estes seguiram-se outros que corporizaram diversas tentativas frustadas para fazer vingar a cana de açúcar nas ilhas de S. Miguel, Santa Maria e Terceira109. Em sentido contrário avançou o açúcar em 1483, quando o governador D. Pedro de Vera quis tornar produtiva a terra conquistada nas Canárias. De novo a Madeira surge disponibilizar as socas de cana para que aí surgissem os canaviais. Todavia, o mais significativo é a forte presença portuguesa no processo de conquista e adequação do novo espaço a economia de mercado. Os portugueses em especial o Madeirense surge com frequência nestas ilhas ligando-se ao processo de arroteamento das terras, como colonos que recebem datas de terras na condição de trabalhadores especializados a soldada, ou de operários especializados que constróem os engenhos e os colocam em movimento. No caso de La Palma refere-se um Leonel Rodrigues, mestre de engenho que ganhou esse estatuto em 12 anos de trabalho na Madeira.110 É de referir também idêntico papel para as ilhas Canárias na projecção da cultura às colónias castelhanas do novo mundo. Assim, em 1519 Carlos V recomendou ao governador Lope de Sousa que facilitou a saída de mestres e oficiais de engenho para as Índias111. O avanço do açúcar para sul ao encontro do habitat que veio gerar o boom da sua produção, deu-se nos anos imediatos ao descobrimento das ilhas de Cabo Verde e S. Tomé. Todavia, só nesta última, pela disponibilidade de água e madeiras, os canaviais encontraram condições para a sua expansão. Deste modo em 1485 a coroa recomendava a João de Paiva que procedesse à plantação de cana do açúcar. Para o fabrico do açúcar refere-se a presença de “muitos mestres da ilha da Madeira”. É, alias, aqui que se pode definir o 108

. Viagem de Francisco Pyrard de Laval, Vol. I, Porto, 1944, p. 228. . Gaspar FRUTUOSO, Livro Quarto das Saudades da Terra, Vol. II, pp. 59, 209-212; V. M. GODINHO, ob. cit., Vol. IV, F. Carreiro da COSTA, "A cultura da cana-de-açúcar nos Açores. Algumas notas para a sua História" in Boletim da Comissão Reguladora do Comércio de cereais dos Açores, nº 10, 1949, 15-31. 111. Conquista de la Isla de Gran Canaria, La Laguna, 1933, p. 40;José PÉREZ VIDAL, Los Portugueses en Canarias. Portuguesismos, Las Palmas, 1991; Felipe FERNANDEZ-ARMESTO, ob. cit., 14-19;Pedro MARTINEZ GALINDO, Protocolos de Rodrigo Fernandez (1520-1526). Pimera parte, La Laguna, 1982, pp. 67, 84-90; Guilhermo CAMACHO Y PÉREZ GALDOS, "El cultivo de la cana de azúcar y la industria azucarera en Gran Canaria (1510-1535) in AEA, nº 7, 1961, 35-38; Maria LUISA FABRELLAS, "La producción de azúcar en Tenerife" in Revista de História, nº 100, 1952, 454/475Gloria DIAZ PADILLA, e José Miguel RODRIGUEZ YANES, El Señorio en Las Canarias Occidentales..., Santa Cruz de Tenerife, 1990, p. 316. 111 . CF. José PEREZ VIDAL, "Canárias, el azúcar, los dulces y las conservas", in II Jornadas de Estudios Canarios-America, Santa Cruz de Tenerife, 1981, p. 176-179. 109

40 prelúdio da estrutura açúcareira que terá expressão do outro lado do Atlântico. A partir do século XVI a concorrência do açúcar das Canárias e S. Tomé aperta o cerco do açúcar madeirense o que provocou a natural reacção dos agricultores madeirenses. Deste modo sucedem-se as queixas junto da coroa, que ficou testemunho em 1527112. Em vereação reuniram-se os lavradores de cana para reclamar junto da coroa contra o prejuízo que lhes causava o progressivo desenvolvimento desta cultura em S. Tomé. A resposta do rei, no ano imediato113, remete para uma análise dos interesses em jogo e só depois, no prazo de um ano, seria tomada uma decisão, que parece nunca ter vindo. Note-se que a exploração fazia-se directamente pela coroa e só a partir de 1529 surgem os particulares interessados nisso. Enquanto isto se passava, do outro lado do Atlântico davam-se os primeiros passos no arroteamento das terras brasileiras. E, mais uma vez, é notada a presença dos canaviais e dos madeirenses como os seus obreiros. A coroa insistiu junto dos madeirenses no sentido de criarem as infra estruturas necessárias ao incremento da cultura. Aliás, o primeiro engenho aí erguido por iniciativa da coroa, contou com a participação dos madeirenses. Em 1515 a coroa solicitava os bons ofícios de alguém que pudesse erguer no Brasil o primeiro engenho, enquanto em 1555 foi construído por João Velosa, apontado por muitos como mnadeirense, um engenho a expensas da fazenda real. Esta aposta da coroa na rentabilização do solo brasileiro através dos canaviais levou-a a condicionar a forja de mão-de-obra especializada, que então se fazia na Madeira. Assim, em 1537 os carpinteiros de engenho da ilha estão proibidos de ir à terra dos mouros114. Com tais condicionantes e colocados perante o paulatino decréscimo da produção açucareira na ilha, muitos madeirenses foram forçados a seguir ao encontro dos canaviais brasileiros. Deste modo em Pernambuco e na Baia, entre os oficiais e proprietários de engenho, pressente-se a presença madeirense. É de salientar que alguns destes madeirenses se tornaram em importantes proprietários de engenho como foi o caso de Mem de Sá, João Fernandes Vieira o libertador de Pernambuco. É a partir daqui que se estabelece um vínculo com a Madeira, continuado através do trafico ilegal de açúcar para o Funchal ou então ao mercado europeu com a designação da Madeira. Este movimento seguia as ancestrais ligações entre os que do outro lado do Atlântico via florescer a cultura e aqueles que na ilha ficavam sem os seus benefícios. Veja-se, por exemplo, o caso de Cristóvão Roiz de Câmara de Lobos que em 1599 declara ter crédito em três mestres de açúcar de Pernambuco em cerca de cem mil réis de uma companhia que teve com Francisco Roiz e Francisco Gonçalves115. Perante esta situação do mercado açucareiro atlântico e a melhor capacidade concorrencial doutras áreas, o açúcar insular estava irremediavelmente perdido. Os canaviais foram desaparecendo paulatinamente das terras, dando lugar aos vinhedos. Apenas a conjuntura da segunda metade do século dezanove permitiu o seu retorno. Mas foram efémeras as tentativas para a produção de açúcar e mesmo assim só possível mediante uma política proteccionista. Os canaviais perderam a sua função de produtores do açúcar, o ouro branco dos insulares, mas em contrapartida favoreceram uma produção alternativa de mel e aguardente. Hoje não mais se fala do ouro branco das ilhas, mas sim do seu rum ou aguardente e mel São eles os herdeiros desta cultura na Madeira e Canárias.

112

. ARM, CMF, Vereações 1527, fl. 23vº, 26 de Março. . ARM, D. A., nº 66, 8 de Fevereiro 1528. 114 . Alberto LAMEGO, "onde foi iniciado no Brasil a lavoura canavieira, onde foi levantado o primeiro engenho de açúcar" in B. Açúcar, nº 32, 1948, pp. 165168; Arquivo Geral da Alfândega de Lisboa, livro 54, fl. 41; Documentos para a História do Açúcar, ed. I, A. A. Vol I, Rio de Janeiro, 1954, pp. 121-123, 5 de Outubro 1555; ARM, RGCMF, T. I, fl. 372vº. 115 . Em 1579 (ARM, Misericórdia do Funchal, nº 711, fls. 114-115) Gonçalo Ribeiro refere ser devedor a Manuel Luís mestre de açúcar, "que agora está em Pernambuco". José António Gonsalves de MELLO, João Fernandes Vieira. Mestre de Campo do terço da infantaria de Pernambuco, Vol. II, Recife, 1956, pp. 201-267. ARM, J.R.C., fls. 391-396, Testamento de 11 de Setembro de 1599. 113

41

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