Heitor Moura 2009 Reconstituicao Da Populacao De Escravos

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RECONSTITUIÇÃO DA POPULAÇÃO DE ESCRAVOS E SEUS DESCENDENTES POR MODELAGEM DEMOGRÁFICA Heitor Pinto de MOURA FILHO1 RESUMO Discutimos, neste texto, as vantagens da modelagem demográfica no estudo da demografia da escravidão em situações com fontes incompletas. Comentamos rapidamente sobre a evolução da demografia histórica em geral, listando algumas técnicas conhecidas de reconstituição de populações. Mostramos como o estudo da população cativa e seus descendentes, no Brasil, tem a ganhar pela incorporação de certos macro resultados que não podem ser obtidos de forma direta a partir das fontes disponíveis, mas podem ter seus contornos delineados através de modelagem demográfica. PALAVRAS-CHAVE:

ESCRAVIDÃO,

MODELO

DEMOGRÁFICO,

RECONSTITUIÇÃO DE POPULAÇÃO ABSTRACT This text discusses the advantages of demographic modeling in the study of the demography of slavery in situations of incomplete sources. We rapidly comment on the evolution of historical demography in general, listing some well-known techniques of population reconstruction. We show how the study of the Brazilian slave population and its descendants can benefit from incorporating certain macro results which cannot be obtained directly from available sources, but can have their limits delineated through demographic modeling. KEY-WORDS:

SLAVERY,

DEMOGRAPHIC

RECONSTRUCTION 1

Uniconsult, Rio de Janeiro; e-mail: [email protected]

MODEL,

POPULATION

Discutimos, neste texto, as vantagens da modelagem demográfica no estudo da demografia da escravidão em situações com fontes incompletas. De início, comentamos rapidamente sobre a evolução da demografia histórica em geral, analisando algumas técnicas conhecidas de reconstituição de populações. Em seguida mostramos como o estudo da população cativa e seus descendentes, no Brasil, tem a ganhar pela incorporação de certos macro resultados que não podem ser obtidos de forma direta a partir das fontes disponíveis, mas podem ter seus contornos delineados através de modelagem demográfica. Em pouco mais de meio século de existência como uma disciplina acadêmica estruturada, a demografia histórica expandiu-se em várias dimensões: a) sobre tipos diversos de fontes; b) sobre períodos que remontam, com abrangência, a cinco séculos e, pontualmente, a milênios; c) sobre temas que extrapolaram o estritamente demográfico para abranger variados aspectos das relações familiares e sociais; d) sobre técnicas que extrapolaram a simples reconstituição de famílias, para acompanhar a evolução metodológica da demografia moderna; e e) sobre contextos sociais os mais diversos, e todas as regiões do planeta. Quanto a fontes, temos presenciado nos últimos anos uma importante ampliação do leque de fontes utilizadas, para além dos registros demográficos de batismos, casamentos e sepultamentos. Têm sido regularmente empregadas tanto fontes com registros múltiplos, como (no Brasil) as listas nominativas ou livros de movimentação de pacientes em hospitais, quanto fontes massivas de registros individuais, como arquivos notariais e judiciais. Fontes pontuais, como registros de associações, fazendas e empresas também vêm sendo pesquisadas. A disponibilidade de uma ampla gama de informações nessas fontes levou ao inevitável cruzamento de dados até então desconexos, fortalecendo

estudos multi-geracionais ou prosopográficos, além de tornar mais abrangentes os bancos de dados acumulados em pesquisas sucessivas. Quanto ao período de estudo, a disponibilidade de fontes ainda é o principal determinante dessa escolha. É difundida a periodização, segundo a qualidade das estatísticas coevas disponíveis, em épocas estatísticas, proto- e pré-estatísticas. Embora esta periodização reflita a realidade das estatísticas compiladas e agregadas na época, não traduz adequadamente as possibilidades dos métodos da demografia histórica, pois foi exatamente o foco de Louis Henry sobre os registros paroquiais que lhe permitiu retroceder seus estudos a épocas proto- e pré-estatísticas e, ainda assim, gerar, através da reconstituição de famílias, estatísticas modernas sobre estes registros passados. PaulAndré Rosenthal afirma “...a produção, por Louis Henry, em 1958, de uma periodização contínua, que se estendia do século XVII ao século XX, marcou o nascimento da demografia histórica como disciplina”. E mais: “O que Henry realizou foi obter a aceitação para a idéia de uma absoluta neutralidade e continuidade, estatística e demográfica; isto significava que os resultados obtidos pelos historiadores demógrafos a partir dos registros paroquiais podiam ser combinados com as estatísticas publicadas dos séculos XVIII e XIX e com as estatísticas contemporâneas estabelecidas pelo INSEE, para formar séries estatísticas homogêneas (ROSENTHAL 1997:5,26).”2 Quanto a temas e contextos sociais, os historiadores têm-se desdobrado na busca de indícios e medidas, nessas mesmas fontes, para os mais variados comportamentos sociais: arranjos nupciais, práticas conjugais e maternais, compadrios, distribuição de atividades econômicas por sexo e idade, nível de alfabetização e de “numerização”, entre outros. Os estudos cobrem comunidades de tamanhos e estruturas variadas, sejam elas vilarejos tradicionais, grupos de oriundi de certas regiões deslocados para outros espaços ou ainda comunidades conceituais, definidas por sua origem, sua atividade ou mesmo pelos destinos de seus descendentes. Ao se reunirem múltiplos estudos monográficos,

2

Maria Luiza Marcílio expressou idéia semelhante: “A Demografia Histórica começou, em suas primeiras análises, testando o método da Reconstituição de famílias de uma paróquia ou de conjunto de paróquias, e com a finalidade expressa de calcular taxas gerais e especiais de fecundidade, de nupcialidade e de mortalidade, para populações pré-estatísticas (sem dados censitários ou quantitativos sobre sua população).” (MARCÍLIO 2004)

eventualmente complementados por registros massivos, tornou-se possível analisar a demografia de regiões maiores e até de populações inteiras, em espaços nacionais. Em decorrência dessa possibilidade de obtenção, pela demografia histórica, de estatísticas fidedignas, cobrindo épocas pré- e proto-estatísticas, houve uma natural extensão dos interesses, dos métodos e das técnicas demográficas modernas aos dados levantados por pesquisadores interessados em épocas mais remotas. Formou-se, assim, um contínuo estatístico e explicativo que se expande para trás, a períodos anteriores àqueles para os quais dispomos de levantamentos censitários e dados estatísticos confiáveis. Talvez seja essa a principal realização extra-muros do projeto original de Henry: seus métodos e as extensões que geraram foram capazes de extrair do passado estatísticas suficientemente precisas para se acoplarem, em pé de igualdade, àquelas obtidas modernamente por censos e pesquisas amostrais detalhadas. As pesquisas desenvolvidas no último meio século gerou, na Europa, impressionante densidade de estudos monográficos e de análises de registros com cobertura nacional, resultando, de imediato, num conhecimento detalhado da transição demográfica europeia, o que hoje talvez seja o carro-chefe dos resultados demográficos. A situação dos estudos de demografia histórica no Brasil, entretanto, ainda não permitiria proclamarmos conclusões gerais e pluri-seculares, pela falta de suficiente cobertura geográfica e temporal e devido a nossa impressionante diversidade social. Fazendo um apanhado da demografia histórica no Brasil, Bacellar, Scott e Bassanezi (2005) identificaram desequilíbrios claros em nossos estudos: um viés geográfico, com predomínio de foco na região Sudeste; um viés relativo às fontes, com predomínio de foco nas listas nominativas em oposição à recuperação de arquivos paroquiais; um viés quanto ao tipo de abordagem, em favor da história da população em oposição a abordagens estritamente demográficas; e, por fim, um desequilíbrio temporal, com concentração de estudos nos períodos para os quais há disponibilidade de listas nominativas. Embora possamos compreender estas concentrações de pesquisas em função das preferências dos pesquisadores, da facilidade de trabalho com certas fontes em oposição a outras e até em decorrência das regras dos programas de pós-graduação, é fato que o universo de fontes demográficas brasileiras permanece desigualmente estudado e

longe de ser conhecido na abrangência com que se conhecem os registros paroquiais e outras fontes demográficas europeias. Além desses vieses das pesquisas, devemos ter em conta que existem características próprias da sociedade brasileira – como a ausência de regras fixas para a nomeação dos filhos e os altos índices de natalidade ilegitima3 – que reduzem significativamente, aqui, a eficiência da rígida aplicação do método Henry-Fleury, além das importantes limitações à qualidade do dados aproveitados que já impõe usualmente4. Em Portugal, onde se encontram dificuldades semelhantes, importantes adaptações foram acrescidas ao método de reconstituição de famílias, ampliado para a reconstituição de vidas individuais, a partir da combinação de múltiplas fontes documentais (AMORIM 1995). Assim, além dos registros paroquiais, fontes precípuas para o método HenryFleury de reconstituição de famílias, tornou-se imperativo examinar uma variedade de outras fontes, igualmente trabalhosas de serem compiladas. Como proposta de trabalho coletiva para ampliar os horizontes da demografia histórica no Brasil, aqueles autores sugerem tanto o redirecionamento de fontes, com maior ênfase no levantamento de registros vitais, como providências práticas, tais como a padronização dos critérios de agregação. Além disso, consideram importante a realização de comparações com as experiências americanas do norte e hispânica e com as dos países ibéricos. Com relação à demografia da escravidão no Brasil, embora esses redirecionamentos de pesquisas, sem dúvida, possam trazer novas fontes para o conhecimento coletivo, não serão capazes de resolver em curto prazo duas dificuldades de monta. A primeira é o enorme tempo e volume de recursos humanos e financeiros necessários para analisar e digitalizar as informações existentes em arquivos públicos e privados – estes, religiosos e laicos – disponíveis no Brasil, para que se atinja uma massa crítica suficiente para a agregação dos resultados em análises sintéticas. E mais, como notou Wrigley (1966), embora gerando dados bem mais complexos, o esforço de

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Sobre ilegitimidade, ver, por exemplo, (NAZZARI 1996) e (KUZNESOF 1990). "However impressive the technique of collecting parish register data into individual and family life histories, Henry's analytical methods are often employed in ways that are rigid in their use of demographic measures, highly selective in the portion of the data collected that can be used, and extremely awkward for multivariate analysis."(GUTMANN e ALTER 1993: 159) 4

levantamento de famílias é pelo menos cem vezes maior do que o de meramente contar eventos vitais, para ser anotados em planilhas. Além do esforço de levantamento, a cobertura de famílias efetivamente reconstituídas, relativamente à população total de uma região, é usualmente pequena. No caso de populações cativas no Brasil, além do mais, a abrangência dos eventos vitais registrados relativamente ao universo desses eventos para todos os escravos e descendentes, mesmo em pequenas regiões, é ainda mais reduzida do que para a população livre. A segunda dificuldade, mais restritivas e definitiva, é como substituir a grande quantidade de informações perdidas no passado ou, mesmo, que nunca chegaram a existir, mas que seriam essenciais para os estudos demográficos5. Ao avaliar, a situação da demografia histórica latino americana, Pérez Brignoli (2004) propõe uma programação talvez mais centrada na América hispânica, com primasia para o exame das consequências do encontro demográfico entre europeus e populações indígenas. Quanto à escravidão, considera que “Se conoce bastante bien la trata pero falta mucho que investigar en cuanto a la demografía de la esclavitud, particularmente en el siglo XIX”. Em termos metodológicos, é taxativo ao rejeitar a aplicação sistemática de métodos europeus (“Salvo excepciones como la “inverse”y la “back-projection”, los métodos propuestos obedecen a fuentes y problemáticas muy específicas, y resultan difícilmente aplicables en otros contextos.”). Concordamos que não se podem aplicar impensadamente métodos criados em contextos históricos tão diversos dos nossos, mas discordamos que sejam, ipso facto, dificilmente aplicáveis ou que, por essa razão, devam ser descartados. Os problemas enfrentados pelos estudos de demografia histórica são variados e muitos deles talvez únicos, mas os métodos têm, cada qual, seus objetivos, vantagens e desvantagens, que vale a pena ter na algibeira, para enfrentarmos as dificuldades que nos aguardam atrás da próxima esquina. De modo a

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Este problema é uma unanimidade. Citamos dois estudiosos: “Uncertainty as to the size of the Brazilian population at the beginning of the nineteenth century makes it difficult to establish a benchmark for analysis of trends in the period prior to 1872.”(MERRICK e GRAHAM 1979:26) e “Os dados conhecidos para a demografia do passado colonial brasileiro são, em geral, fragmentários e descontínuos, além de se apresentarem revestidos de pouca credibilidade. Deste modo, não se tem a visão integral das suas estruturas demográficas e muito menos da dinâmica da sua população [nosso grifo].” (BALHANA 1986:21)

esclarecer como são de difícil aplicação à demografia da escravidão no Brasil, relacionamos rapidamente, a seguir, os principais métodos difundidos para a reconstituição de populações. Isto não significa, contudo, que devam ser abandonados, pois, cada qual, traz importantes soluções eventualmente aproveitáveis nos estudos sobre o Brasil. Em termos de requisitos de dados estatísticos, os principais métodos de reconstituição agregada de populações dependem, além da proximidade de algum levantamento censitário, da existência de pelo menos uma série de óbitos bastante completa, para gerarem resultados confiáveis. Mais usualmente, exigem também a disponibilidade de uma série de nascimentos/batismos. Tendo em mãos essas séries temporais, os historiadores demográficos (através de métodos variados, como projeção retroativa, projeção inversa, projeção inversa generalizada ou método das tendências) podem reconstituir os tamanhos e as distribuições etárias das respectiva populações, atingindo, assim, a possibilidade de calcular taxas demográficas e outros indicadores fundamentais para a análise populacional. A “projeção retroativa” (back projection), sugerida por Wrigley e Schofield, para dados ingleses entre 1541 e 1871 (quando houve um censo), exige as duas séries, de batismos e óbitos anuais, e um censo ao final do período. O sistema de equações que utiliza, no entanto, é indeterminado, tendo uma infinidade de soluções possíveis (BONNEUIL 1993:57). A projeção inversa (inverse projection), desenvolvida por Ronald Lee, pede as mesmas séries, mas com o censo no início do período em vez de no final, o que usualmente é mais difícil, dado que se trata de época ainda mais remota. Sendo as séries vitais completas e de qualidade, a projeção inversa consegue reconstituir populações inteiras em grande detalhes. Robert McCaa é bem claro ao explicitar a necessidade de boas estatísticas vitais para a aplicação do método6 (McCAA 1993:55). 6

Noutro texto explica: “Inverse projection is a logical inversion of conventional projection techniques. The method is used to infer refined demographic statistics – mortality, fertility, and population age structures – from crude data –annual totals of births and deaths and an estimate of initial population size. Instead of deriving counts from age-specific rates as with conventional cohort projection, inverse projection estimates age-specific rates from counts. The technique is particularly suited for studying

Jim Oeppen (1993), em seguida, generalizou estas duas abordagens, no que chamou de projeção inversa generalizada (generalized inverse projection), de modo a fugir da mencionada indeterminação matemática, pela minimização de certos indicadores. Seu modelo, no entanto, é extremamente dependente de bons dados sobre migrações. Complementando esse conjunto de modelos de reconstituição, Noël Bonneuil (1993) desenvolveu modelo para dar conta da situação em que se dispõe de séries para óbitos e nascimentos, porém não se tem informação censitária. Baseia-se na tendência da esperança de vida ao nascer. Um pouco mais próximo do nosso contexto no Brasil, surge a situação em que os dados da série de óbitos são claramente defeituosos. Para tratar deste caso, que estudaram na Nova Castilha dos séculos XVII a XIX, onde os registros de óbitos se mostravam demasiadamente falhos, Livi Bacci e Reher desenvolveram métodos indiretos para estimar tamanho, fertilidade, mortalidade e nupcialidade, mas sempre baseados na existência de, pelo menos, a série para batismos. “O que fizemos foi basear nossa estimativa inteiramente nos dados de nascimentos, utilizando mortalidade e migrações estimadas. Ou seja, a população num momento qualquer é composta pelos que foram batizados nos 82 anos anteriores, sumetidos a um fator de sobrevivência e a uma taxa de emigração intrínseca” (LIVI BACCI e REHER 1993:68). Em que a modelagem demográfica se distingue desses diversos métodos de reconstituição? A diferença fundamental é não depender de séries temporais de óbitos ou nascimentos. Mas, se não dispomos destas séries, de que adianta fazermos cálculos baseados em hipóteses soltas no ar? É exatamente neste ponto que a modelagem traz vantagens próprias, podendo introduzir, de modo logicamente concatenado, em qualquer momento do período modelado, qualquer parâmetro sobre taxas vitais ou sobre populações que se queira. Trata-se, de certa forma, de uma projeção inversa (que começa do momento mais antigo caminhando em direção ao mais recente), baseada não em séries populations of the past where age details are scarce (...) The inverse method requires good vital registration data, which for historical studies limits its usefulness primarily to the European cultural area.” (McCAA 2001) [Nosso grifo]

de eventos vitais, mas em distribuições de taxas demográficas hipotéticas, que podem ser adaptadas pontualmente aos dados históricos. Embora, não disponha de estatísticas seriais equivalentes às existentes noutros países, a historiografia sobre escravidão no Brasil já dispõe de um importante acervo de populações analisadas e é bastante clara sobre diversas questões demográficas. Assim, mesmo pontuais, referentes a pequenos contingentes e regiões limitadas, temos informações sobre taxas vitais, de natalidade e mortalidade, além de composições da população por sexo, origem e condição social. A modelagem recorre – como qualquer outro modelo de reconstituição de população – à lógica da equação demográfica, para recriar uma evolução populacional que se sujeita às restrições que quisermos impor – quanto à população total inicial, final ou intermediária, quanto a distribuições etárias e a parâmetros de fecundidade, de natalidade e mortalidade. Os problemas decorrentes da falta de dados sobre fluxos migratórios, como nos demais métodos, continuam de grande importância. Como exemplo do tipo de flexibilidade possível, mostramos a seguir alguns resultados obtidos por modelo apresentado no Congresso da ABEP-Associação Brasileira de Estudos Populacionais de 2008, em que combinamos uma série para o número anual de escravos importados para Pernambuco, do século XVI até 1850, com taxas de natalidade e fertilidade plausíveis, de modo que a população de escravos e descendentes de africanos calculada para 1872 corresponda ao total enumerado pelo censo7.

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Este trabalho foi desenvolvido como extensão da análise das fontes demográficas sobre Pernambuco no século XIX, através de modelagem da população, exposta em (MOURA FILHO 2005) e do desenvolvimento de um modelo de uma população genérica submetida ao tráfico de escravos, apresentado em (MOURA FILHO 2006). Esses modelos não são estocásticos, nem simulam micro-eventos. Foram construídos para reproduzir a evolução de populações, através da equação demográfica parametrizada, modelada por funções contínuas. Em Anexo, mostramos esquematicamente as interrelações entre variáveis e parâmetros utilizadas no modelo de tráfico (2006) .

12.000

Número de escravos desembarcados

Períodos com dados estimados

PERÍODO 1

1.000.000

Períodos com dados detalhados por viagem

PERÍODO 2

PERÍODO 3

10.000

População

8.000

6.000

4.000

100.000

10.000

População de africanos 2.000

População de brasileiros População total

0 1560

1590

1620

1650

1680

1710

1740

1770

1800

1.000 1560

1830

1660

1710

1760

1810

1860

Figura 1 – Pernambuco (1560-1850). Evolução anual de escravos desembarcados.

Figura 2 – Modelo-Pernambuco (15601872). Evolução da população masculina, segundo a nacionalidade.

Fonte: Silva e Eltis (2008)

Fonte: H.Moura (2008)

3.500

10.000 1670

3.000

1800

2.500

1830 1860

2.000 1.500 1.000

1670

9.000

1770

1770

8.000 Composição etária

Composição etária

1610

1800

7.000

1830

6.000

1860

5.000 4.000 3.000 2.000

500

1.000 0

0

10

20

30

40

50

60

70

80

90

100

Figura 3 – Pernambuco-modelo. Composição etária da população africana masculina

0 0

10

20

30

40

50

60

70

80

90

100

Figura 4 – Pernambuco-modelo. Composição etária da população brasileira masculina

Fonte: H.Moura (2008) Computada este evolução geral da população fictícia, podemos obter “estatísticas” totalmente impossíveis de serem conseguidas de outra forma, como a evolução das distribuições etárias, de africanos e de brasileiros ao longo de três séculos! Estes resultados – hipotéticos, é claro – apresentam, contudo, a enorme vantagem de se amoldarem sucessivamente a novos dados, novas restrições, que surjam das pesquisas de campo. Se acreditamos nos parâmetros que estas pesquisas nos fornecem, podemos ter certeza de que os limites que o modelo calcula para os demais parâmetros – como taxas

de natalidade e mortalidade, por exemplo – traçam um contorno lógico inescapável para os valores desconhecidos. Para melhor explicitar o interesse da modelagem demográfica ao estudo da demografia da escravidão no Brasil, diante das falhas das fontes de que dispomos sobre população escrava e seus descendentes, é interessante avaliarmos estas fontes quanto as características que julgamos fundamentais para a elaboração de estatísticas seriais: seu grau de cobertura sincrônica do universo e de disponilidade diacrônica. Para isso, partimos de três categorias: fontes agregadas, onde não há referências a indivíduos; fontes individualizadas, porém massivas, isto é, que pretende descrever um conjunto de tamanho próximo ao do universo; e fontes pontuais, que podem referir-se a indivíduos ou a agregados, mas somente dentro de seu ambiente restrito. A relação abaixo não pretende ser exaustiva, sendo, antes, indicativa dos elementos das respectivas classes. Fontes agregadas: a) o recenseamento geral de 1872 b) levantamentos provinciais de população c) os relatórios do registro de matrículas de escravos (possivelmente com registros detalhados, por paróquia) d) relatórios de alfândegas e consulados e) estimativas coevas para a população total de certa região 2) Fontes individualizadas porém massivas a) listas nominativas b) registros paroquiais c) registros notariais d) arquivos judiciais 3) Fontes pontuais a) registros de instituições, principalmente de saúde e caridade b) arquivos de empresas, fazendas e famílias c) notícias de chegada ou apreensão de navios negreiros (relatórios de portos e autoridades sanitárias, arquivos consulares e diplomáticos, jornais etc.) Uma primeira questão que desejamos levantar é o fato de que a simples existência

de dados não nos garante bases depuradas ou aproximação de cobertura de certo universo regional. Cada tipo de fonte traz qualidades e desvantagens próprias. Assim, as fontes individuais, por sua especificidade, costumam apresentar um grau de confiabilidade mais alto, bem como costumam indicar maior gama de informações sobre cada pessoa, ao passo que as fontes agregadas são menos confiáveis quanto à qualidade de dados e raramente cobrem todo o universo nomeado. As estatísticas agregadas mais representativas de que dispomos sobre escravos (o censo de 1872, os levantamentos provinciais e a matrícula de escravos) apresentam sérios problemas de qualidade e de cobertura para serem empregadas “no estado” em estudos macro-demográficos, conforme demonstrou Robert Sleenes, entre outros8. Requerem, assim, ajustes bastante detalhados e técnicos. Não obstante essas dificuldades, estas estatísticas, devidamente ajustadas, ainda representam as melhores informações agregadas de que dispomos sobre a população cativa e descendente de africanos, no Brasil da época. Os relatórios de alfândegas e consulados, por sua vez, referem-se a universos menores, dos eventos sujeitos a fiscalização ou tributação. Quanto às estimativas, constituem em geral meras repetições de um número oficial ou da opinião de terceiros, não acrescentando informação demográfica valiosa, além de nos informar sobre a difusão do conhecimento estatístico. As fontes individualizadas, porém de caráter massivo, representam o maior potencial de dados, mas ainda exigem, como comentado acima, enorme esforço de catalogação e levantamento primário, antes de adquirirem uma “massa crítica” que autorize sua agregação como representativa da população de escravos no Brasil. Os muitos estudos pontuais já realizados, contudo, podem fornecer importantes marcos sobre taxas demográficas (fecundidade, natalidade, mortalidade), sobre composição da população de escravos e seus descendentes (por sexo, condição social, origem) e, até, sobre as distribuições etárias dessas subpopulações em certos momentos. Estes pontos de referência são essenciais à modelagem demográfica. As fontes pontuais, semelhantemente às fontes individualizadas acima, ainda não 8

A análise crítica realizada por Robert Sleenes (1976) demonstrou as dificuldades de se extrairem dados completos e “limpos” de incoerências do recenseamento de 1872 e das matrículas de escravos.

foram analisadas em número suficiente para adquirirem representatividade por si só. Tornam-se igualmente importantes, no entanto, como provedoras de parâmetros e referenciais para a modelagem. É importante, aqui, distinguirmos parâmetros demográficos reais, obtidos de estudos de caso, mesmo que relativos a pequenos universos, de cálculos aproximados sobre números genéricos e desvinculados de fontes primárias. Ao cruzarmos as características de cobertura do universo de cada um desses tipos de fonte com sua disponibilidade temporal, vemos que hoje dificilmente temos a possibilidade

de

construir

séries

temporais

bastante

longas

e

abrangentes

geograficamente para autorizar análises análogas às que vemos publicadas sobre regiões européias e da América do Norte. Se combinamos essa restrita oferta de fontes com nossa demanda ótima, das informações de que gostaríamos idealmente de dispor para uma análise demográfica precisa, compreendemos a imensidão e possivelmente a irrealidade desta tarefa. Poderíamos relacionar, como requisitos para um conjunto completo de dados demográficos o seguinte: a) referir-se ao universo de pessoas em certo âmbito geográfico, no período em estudo; b) relacionar o total de pessoas residentes (ou presentes) nessa região em certo momento, distribuídas por idade e sexo e, se possível, segundo outras características, tais como estado civil, nacionalidade, condição social e classificação de cor/origem étnica; c) indicar o número de nascimentos e falecimentos, bem como de casamentos, ocorridos num período logo anterior ou logo subsequente ao momento de corte acima, distribuídos segundo as mesmas classificações e com anotações suplementares, como a idade dos falecidos e dos noivos; modernamente passamos a exigir também informações adicionais sobre a mãe, como sua idade ao dar a luz e sua paridade naquele parto; d) indicar o número de pessoas entradas ou saídas nessa região em caráter permanente, isto é, imigrantes e emigrantes, igualmente distribuídos por idade e

sexo e pelas categorias acima; o tráfico de escravos, de chegada de africanos ou doméstico, constitui situação especial dessas estatísticas; sendo os movimentos migratórios cíclicos, intra- ou inter-anuais, importantes, caberia pedirmos também dados sobre eles; e) no caso de dados demográficos sobre escravidão, haveriam ainda de indicar as trocas de condição social ocorridas nesse mesmo período, tais como alforrias, fugas e eventuais retornos à escravidão. Percebem-se, deste elenco, as dificuldades de se conseguirem dados regulares e confiáveis com todas essas características ou mesmo somente com algumas delas. Embora sujeitas a problemas de várias ordens, as estatísticas agregadas mencionadas acima nos fornecem marcos relevantes para totais populacionais em certos momentos. A maior dificuldade quanto a estatísticas demográficas no Brasil colonial e imperial referese, sem dúvida, a dados agregados sobre os movimentos vitais e, sem dúvida, sobre migração9. Embora constantes dos registros paroquiais, não temos garantias da amplitude de cobertura dos registros de eventos vitais e, pelo contrário, sabemos das muitas exceções que ficaram de fora dos livros paroquiais. Sobre esta questão, é interessante lembrarmos que, além das falhas, erros e exceções explicitadas pelos estudos sobre o Brasil, a comparação internacional relativa a registros vitais e a levantamentos censitários em sociedades pouco desenvolvidas só nos faz supor, para o Brasil dos séculos XVIII e XIX, níveis de erro e falta de cobertura iguais ou piores aos conhecidos no próprio Brasil e em outros países de cultura e desenvolvimento econômico semelhante, no início do 9

M.L.Marcílio explicita o caráter obrigatório e universal dos registros vitais no Brasil, mas escreve “O grande problema, no entanto, foi o da conservação desses livros paroquiais, particularmente em um País como o Brasil, onde pouco se cultivou a prática e o valor da arquivística. Boa parte dos registros paroquiais brasileiros não existe mais: sofreram a ação predatória conjugada do tempo, dos insetos e especialmente do Homem (MARCÍLIO 2004).” Sérgio O.Nadalin enfatiza a importância das migrações internas e ultramarinas na colonização do Brasil, lembrando que “As lições de Martius traduzem-se numa primeira apreensão, na perspectiva da história demográfica: a história do Brasil é uma história de migrações.” Entretanto, “Também há que se observar a complexidade do problema posto não só pela tese de Martius, mas pela própria realidade colonial e, finalmente, a ausência quase absoluta de dados empíricos que sustentem uma melhor abordagem da problemática (NADALIN 2003).”

século XX, por exemplo, período sobre o qual já encontramos grande número de estudos10. Quanto a estatísticas sobre a população cativa, tais problemas claramente se amplificam. Tratando especificamente da escravidão no Brasil, Livi-Bacci (2002) resume: "É quase impossível verificar a (...) confiabilidade [de taxas demográficas sobre escravos], pois na equação entram muitas variáveis tais como: a idade ao chegar ao Brasil; o término da vida ativa pela invalidez e doença ou morte; as alforrias; a fuga (muito freqüente); a eventual perda de observação (por venda ou fuga) etc.". Procuramos mostrar, neste texto, a utilidade dos recursos de modelagem demográfica para enfrentar um problema inerente ao estudo da escravidão no Brasil, que é a inexistência de fontes para certos tipos de dados demográficos. A modelagem não tira dados do chapéu, mas, baseada sobre dados presentemente disponíveis e considerados confiáveis, consegue determinar faixas logicamente plausíveis para os valores dos dados inexistentes. Ao restringir, numericamente, o campo das opções possíveis, fornece ao historiador um instrumento forte, que até autoriza o cálculo de séries temporais de dados para os quais não existem fontes diretas. Esses mesmos resultados poderão confirmar ou corrigir valores obtidos em fontes coevas. Como principal vantagem desta metodologia, vemos a possibilidade de se acompanhar em detalhes as múltiplas dinâmicas demográficas, algo quase impossível de se fazer sobre dados históricos, quando estudamos a demografia da escravidão no Brasil. Rio de Janeiro, março de 2009 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMORIM, Maria Norberta (1995). Demografia histórica. Um programa de docência. Viseu, Universidade do Minho-Instituto de Ciências Sociais. 113.p. BACELLAR, Carlos de Almeida Prado, et al. (2005). "Quarenta anos de demografia histórica." Revista Brasileira de Estudos de População 22(2): 339-350. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbepop/v22n2/v22n2a09.pdf BALHANA, Altiva Pilatti (1986). A população. in Maria Beatriz Nizza da SILVA. O Império luso-brasileiro, 1750-1822. Lisboa, Editorial Estampa. p. 19-62. 10

Sobre os problemas encontrados em recenseamentos em geral e em países pouco desenvolvidos ver, por exemplo, Barclay (1958:56-92), Shryock & Siegel (1976), Willigan & Lynch (1982:79-108) e Francis Gendreau (1988).

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ANEXO – REPRESENTAÇÃO ESQUEMÁTICA DE RELAÇÕES MODELADAS Modelo de uma população de escravos e seus descendentes

COMPOSIÇÃO ETÁRIA E MORTALIDADE MASCULINA

POPULAÇÃO INICIAL

Distribuição etária dos homens chegados

Razão de masculinidade dos chegados Número de homens chegados Número total de chegados

Distribuição de mortalidade dos homens População masculina

Número de mulheres em idade fértil

Razão de masculinidade ao nascer

Número de homens nascidos

Distribuição etária da fecundidade total

Número de nascimentos vivos

Número de mulheres nascidas

Populaçao feminina

Fecundidade total por mulher

DETERMINANTES DA FECUNDIDADE

Distribuição de mortalidade das mulheres

Distribuição etária das mulheres chegadas Parâmetros Número de mulheres chegadas

COMPOSIÇÃO ETÁRIA E MORTALIDADE FEMININA

Variáveis

Figura 5 – Interrelações entre parâmetros e variáveis num modelo de evolução de uma população de escravos e seus descendentes. Os parâmetros são determinados a partir de taxas demográficas conhecidas e podem ser alterados para que os totais de grupos da população atinjam números históricos desejados. Fonte: H.Moura (2006).

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