SANCHES, M. A. (Org.) Congresso de Teologia da PUCPR, 9., 2009, Curitiba. Anais eletrônicos... Curitiba: Champagnat, 2009. Disponível em: http://www.pucpr.br/eventos/congressoteologia/2009/
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GENEALOGIA DO TRABALHO RELIGIOSO: ESTUDOS PRELIMINARES
Leandro Inácio Leite1
PRELIMINARES
Este artigo pretende analisar textos doutrinários e manifestações dos órgãos colegiados da Justiça do Trabalho sobre a relação entre trabalhadores religiosos e as instituições religiosas para as quais prestavam serviços. Dessa análise busca-se evidenciar as tendências legislativas e doutrinárias majoritárias no transcorrer do período republicano estudado. O corte epistemológico é realizado na análise prioritária das reclamatórias trabalhistas propostas por trabalhadores pertencentes a denominações não católicas, e dentre estas, principalmente, as denominações evangélicas neopentecostais. Para este artigo, irrelevante a nomenclatura eclesiástica atribuída ao trabalhador religioso, conceituando-se este como aquele que está à frente da denominação que representa, ou,
aquele que tem como única fonte de sustento pessoal e familiar o que recebe da
instituição religiosa que representa. Uma abordagem genealógica sobre os textos legais mostra-se adequada, pois a análise genealógica proposta tem como vantagem a percepção de que o fenômeno que se pretende analisar não aparece em um momento mágico na história; ao contrário, o pensar sobre o fato social da maneira como ele é concebido hoje é o mesmo que observar um rio que, ao percorrer a História, recebe água dos mais variados afluentes ideológicos. A pesquisa genealógica, como nos diz Foucault (1979), antes de se prestar para indicar a origem dos fatos, apresenta as circunstâncias que propiciaram não o surgimento, mas a eclosão de um modus. Este agir já se fazia presente mesmo antes de ser constatado. Todavia, é a eclosão, o tornar-se generalizado ou útil para o contexto analisado, que permite à pesquisa genealógica demarcar o seu instante inicial de estudo. Para a análise genealógica dos julgamentos de reclamatórias trabalhistas entre o trabalhador religioso e a denominação a que está ligado observa-se que é relevante compreender o modo como se constituiu o seguimento evangélico no Brasil, mais 1
Bacharel em Direito. Mestrando do Curso de Pós-Graduação em Teologia da PUCPR.
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propriamente, a chegada dos primeiros grupos evangélicos no país, retrocedendo-se no tempo até pouco antes da Proclamação da República.
PRIMEIROS GRUPOS EVANGÉLICOS
Rubens Alves (1981, p. 129) indica a chegada dos primeiros grupos protestantes no início do século XIX. Esses grupos evangélicos iniciais pensavam a religião trazida como integrante exclusivamente de sua cultura, não pretendendo nem integrá-la nem deixar-se mesclar pela cultura religiosa existente no Brasil, a qual era quase totalitariamente católica. É com a chegada dos grupos evangélicos vindos dos Estados Unidos da América do Norte que aporta no Brasil um protestantismo missionário proselitista caracterizado pela conceituação do Catolicismo como “paganismo mascarado” (ALVES, 1981, p. 131). A contrapartida católica em defender-se através de perseguições aos protestantes que se estabelecem no Brasil influencia na demarcação dessa divisão entre protestantes e católicos (ALVES, 1981, p. 131). Desse embate entre católicos e protestantes, Rubens Alves apresenta-nos dois fatos relevantes para este estudo: primeiro, que o pensamento católico era inquestionável nas instituições civis brasileiras; segundo, que com a chegada do protestantismo missionário, o embate fez com que este se aliasse àquilo que poderia abrir-lhe caminho; alianças essas que contrastavam com o pensamento dominante e culminaram por influenciar o próprio protestantismo: Protestantismo, religião de estrangeiros e brasileiros marginalizados, acuados pela intolerância católica, em busca de um lugar ao sol e de ar para respirar, é compreensível que ele tenha pesado e medido suas palavras, aplaudindo com entusiasmo a causa Republicana, a separação da Igreja e do Estado, bem como todas as iniciativas semelhantes de se diminuir o poder do Catolicismo que o ameaçava, sem entretanto voar mais alto. (ALVES, 1981, p. 129)
Instituída por um positivismo que se pensava separado de instituições religiosas, a República deve, agora, legislar tanto para o grupo católico majoritário quanto para os aliados republicanos protestantes. A pretensão da República em separar o Estado da Igreja, o estabelecimento no Brasil dos protestantes aliados à causa republicana e o embate entre protestantes e católicos são três conjunturas sociais existentes à época que influenciaram no processo legislativo sobre o arcabouço legal que fundamentará as decisões judiciais sobre o vínculo de emprego do
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trabalhador religioso.
GENEALOGIA LEGISLATIVA
A Lei, uma vez publicada, deve atingir a todos que sob sua jurisdição se encontram. Não pode ser analisada a priori com as suposições que constituem cada cidadão individualmente. Todavia, embora o romantismo jurisdicional tenda a idealizar a formação da Lei fora de seu contexto social para depois aplicá-la, é inegável que tanto legisladores quanto julgadores possuem posicionamentos pessoais que abarcam uma ideologia sobre a qual firmarão seus posicionamentos. Embora o tempo se encarregue de apresentar novas interpretações ao texto legal que permitem maior amplitude social à letra da lei, essas posições ideológicas da Lei não ficam desapercebidas ao se observar o contexto social que antecede ou segue ao texto legal. O Pe. Eugênio Carlos Callioli, Doutor em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade da Santa Cruz em Roma, apresenta, no decorrer da evolução legislativa nacional, duas tendências em relação à postura do Estado em face do “fator religioso” (CALLIOLI, 2002, p. 9): a) Aconfessionalidade: período entre a Proclamação da República e a Constituição de 1934, no qual a produção legislativa tende a laicização, o que, todavia, flexibiliza-se pouco a pouco; b) Reaproximação: período iniciado com a Constituição de 1934 até o presente. A legislação permite o desenvolvimento das entidades religiosas. O Estado tende, agora, a aproximar-se das entidades religiosas visando uma cooperação quando os interesses de ambos coincidam. Sobre estas tendências deve-se sempre ter em mente a existência de dois grandes campos religiosos da incidência legislativa: o católico e o protestante. Ainda sobre o ordenamento legislativo brasileiro e a sua relação com a religião, Callioli ressalta a umbilicalidade existente entre a Igreja Católica e o Império, sendo a Igreja tida, à época, como um “departamento ordinário do governo” (CALLIOLI, 2002, p. 10). Compreender a Igreja como mero “departamento do governo” ressalta tanto a união Estado/ Igreja quanto a ingerência daquele nesta por uso dos direitos do padroado (MATOS, 2009). Entre a Constituição do Império e a Proclamação da República (1824-1889) o Brasil sentia os ventos de movimentos europeus como o “iluminismo, a maçonaria, o liberalismo
148 político e os ideais democráticos americanos e franceses” (MATOS, 2009), o que conduziria o Estado à abertura para religiões não-católicas. Todavia, Pio IX, no intento de aumentar a autonomia da Igreja Brasileira, ataca a maçonaria (Encíclica Quanta cura e seu Sílabo de Erros) e desencadeia a “Questão Religiosa” (1872-75), o que conflita com interesses dos estadistas nacionais (simpatizantes das novidades européias e, muitos deles, maçons), enfraquece o Império, e, indiretamente, auxilia na liberdade religiosa no país, que, no caso dos protestantes, desde o início do séc. XIX, almejavam esse objetivo (MATOS, 2009). Em contraposição aos documentos legislativos do Império, a Proclamação da República trouxe uma ideia claramente antireligiosa para fundamentar a separação entre Estado e Igreja. A Constituição do Império de 1824 ressaltava, conforme já afirmado, essa umbilicalidade Estado/Igreja em dispositivo que indica expressamente a Religião Católica Apostólica Romana como „Religião do Império‟, impedindo, inclusive, em outro artigo, a eleição dos que não professassem a Religião do Estado: Art. 5.º – A religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do Império. Tôdas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo. (BARRETO, 1971, p. 05).2 Art. 95 – Todos os que podem ser eleitores são hábeis para serem nomeados deputados. Exceptuam-se: 3.º) Os que não professarem a religião do Estado. (BARRETO, 1971, p. 23)
Por fim, havia artigos (art. 103, 106, 141) que dispunham que o Imperador e outros agentes políticos deviam se comprometer a manter a Religião Católica Apostólica Romana: Art. 103 – O Imperador, antes do ser aclamado, prestará nas mãos do presidente do Senado, reunidas as duas câmaras, o seguinte juramento: “Juro manter a religião católica apostólica romana, a integridade, e indivisibilidade do Império, observar e fazer observar a Constituição política da nação brasileira e mais leis do Império, e prover ao bem geral do Brasil, quanto em mim couber”. (BARRETO, 1971, p. 27/28).
Apesar de manter-se ligada à Religião Católica, a Constituição do Império, garantindo a inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, não impedia a existência de outros grupos religiosos, porém limitava a atuação deste (art. 5º; art. 179, 5.º):
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A grafia dos textos das Constituições do Brasil citadas foi mantida em conformidade com a obra indicada.
149 Art. 179 – 5.º) Ninguém pode ser perseguido por motivo de religião, uma vez que respeite a do Estado, e não ofenda a moral pública. (BARRETO, 1971, p. 42).
A primeira Constituição Republicana, em 1891, extingue qualquer vinculação explícita do Estado com grupos religiosos, apresentando essa posição nos arts. 11 e 72: Art. 11 - É vedado aos Estados, como à União: 2 .º) Estabelecer, subvencionar, ou embaraçar o exercício de cultos religiosos; Art. 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos têrmos seguintes: § 3º) Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para êsse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum. § 6.º) Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos. § 7.º) Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o govêrno da União, ou dos Estados. § 28) Por motivo de crença ou de função religiosa, nenhum cidadão brasileiro poderá ser privado de seus direitos civis e políticos nem eximir-se do cumprimento de qualquer dever cívico. (BARRETO, 1971, p. 110, 137, 139, 140)
As Constituições Republicanas posteriores trataram do tema quase que repetindo os artigos existentes na que a antecedia. Reforçavam postura de separação, mas explicitavam, cada vez mais, o ideal de cooperação que se tem atualmente. Abaixo, observam-se os textos constitucionais: CF/1934 – Art. 17 - É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: II - estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos; III - ter relação de aliança ou dependência com qualquer culto, ou igreja sem prejuízo da colaboração recíproca em prol do interêsse coletivo; (BARRETO, 1971, p. 254). CF/1937 – Art. 32 – É vedado à União, aos Estados e aos Municípios: b) estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos; (BARRETO, 1971, p. 443). CF/1946 – Art. 31 – À União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios é vedado: II - estabelecer ou subvencionar cultos religiosos, ou embaraçar-lhes o exercício; (BARRETO, 1971, p. 18). CF/1967 – Art 9º - À União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios é vedado: II - estabelecer cultos religiosos ou igrejas; subvencioná-los; embaraçar-lhes o exercício; ou manter com êles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada a colaboração de interêsse público, notadamente nos setores
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educacional, assistencial e hospitalar; (BARRETO, 1971, p. 348). CF/1969 – Art. 9º - À União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios é vedado: II - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o exercício ou manter com êles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada a colaboração de interêsse público, na forma e nos limites da lei federal, notadamente no setor educacional, no assistencial e no hospitalar; e (BARRETO, 1971, p. 727).
Como observado, apesar da separação Estado/Igreja iniciada com a República, esta separação não teve contornos de opressão, permitindo, gradativamente, o estabelecimento de uma igualdade de tratamento jurídico entre a Igreja Católica e demais denominações religiosas, o que, atualmente, mesmo com a manutenção da laicidade do Estado, não impede nem a cooperação entre Estado e Igreja nem a liberdade religiosa das instituições. No que diz respeito à relação Estado/Igreja, Callioli (2002, p. 11-24) ressalta alguns Princípios Informadores do Ordenamento Jurídico Atual, dentre os quais: a) Princípio da Autonomia: O art. 19 da Carta Constitucional de 1988 afirma a laicidade do Estado, todavia, não o coloca contrário à atividade religiosa, mas autoriza-a e não exclui colaboração entre Estado e Igreja: Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;
b) Princípio da Cooperação: Indica que tanto Estado quanto Igreja interessam-se pelo Ser Humano, e, embora a esfera de atuação de cada um possa ser peculiar, o cuidado do Ser Humano não prescinde a nenhum dos dois. Os textos dos quais este princípio pode ser depreendido são o art. 19 da Constituição Federal e o art. 5º, VI: Art. 5º - VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
c) Princípio da Liberdade Religiosa: Reconhecido em diversos documentos internacionais (como, por exemplo: a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem; a Declaração Universal dos Direitos Humanos; o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos; a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ou Pacto de São José da Costa Rica). No Brasil, o art. 5º, VI, bem como o art. 19, ambos da Constituição Federal de 1988, descrevem
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esse princípio. A liberdade religiosa engloba a dignidade da pessoa humana e a Constituição de 1988 chega a reconhecer esse direito como “um direito inato e anterior à lei”, conforme art. 5º, caput: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
Os três princípios acima descritos podem ser depreendidos da Carta Constitucional de 1988, e, com maior ou menor semelhança, das demais Constituições Republicanas, ficando a abrangência dos textos legais condicionada apenas à interpretação da Lei pelo Judiciário. Em relação a dispositivos legais pertinentes à questão trabalhista, no que se refere ao tema do trabalho religioso, nada surge no início do período republicano. Nos primeiros anos da República, várias foram as conquistas sociais da classe trabalhadora, lutas estas que conduziram a uma evolução legislativa, conforme apresentado por Amauri Mascaro Nascimento (1987). É com a compilação e aprimoramento das normas esparsas trabalhistas existentes até a década de 1940 que a relação de emprego passa a ser gerida pela Consolidação das Leis do Trabalho – CLT. A CLT, por sua vez, não menciona nada em especial sobre o vínculo de emprego entre os trabalhadores religiosos e as instituições a que estão ligados, limitando-se as discussões sobre esse tema, a partir de então, àquilo que se entende por Empregador e Empregado: Empregador – CLT - Art. 2º - Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço. § 1º - Equiparam-se ao empregador, para os efeitos exclusivos da relação de emprego, os profissionais liberais, as instituições de beneficência, as associações recreativas ou outras instituições sem fins lucrativos, que admitirem trabalhadores como empregados. Empregado – CLT - Art. 3º - Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.
Da definição descrita na CLT para Empregador e Empregado, o trabalhador religioso somente seria considerado empregado da instituição religiosa à qual estava ligado se sua relação jurídica fosse enquadrada na definição legal de empregado. Até o momento, inexiste norma expressa proibindo a caracterização do trabalhador religioso como empregado celetista. Entretanto, doutrinadores e o Judiciário convencionaram
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(como pode ser observado pela jurisprudência majoritária) que o trabalhador religioso não possui vínculo empregatício com a instituição a que esteja ligado. Ressalva deve ser feita, na questão legislativa, ao recente e ainda não internalizado Acordo entre Brasil e Santa Sé (BALDISSERI, 2009), que trata dos trabalhadores religiosos católicos e será posteriormente mencionado neste artigo como paradigma da compreensão jurídica da mudança de concepção da religiosidade pós-moderna.
GENEALOGIA DOUTRINÁRIA
Primeiramente, importa conhecer o posicionamento doutrinário majoritário na atualidade sobre o tema proposto (vínculo de emprego do trabalhador religioso), e, posteriormente, retroceder até o mais próximo da Proclamação da República para vislumbrar se é possível identificar nuances de mudança nesse período. A título de conhecimento ressalta-se que a doutrina comumente excetua a relação entre trabalhador religioso e instituição religiosa no que diz respeito ao exercício de atividades de natureza não espirituais ou vocacionais, sendo exemplos dessas atividades o ministrar aulas em estabelecimento de ensino não ligado à instituição religiosa da qual o trabalhador religioso faz parte. Nestes casos, o vínculo de emprego tem sido considerado existente. Todavia, o foco do presente artigo é exatamente a verificação dos posicionamentos jurisdicionais nas relações de trabalho em que o trabalhador religioso atua em atividades entendidas como sendo de natureza espiritual ou vocacional, diretamente ligadas à instituição religiosa da qual é integrante. Nesses casos, a doutrina majoritária atual compreende pela impossibilidade de caracterização do vínculo de emprego de religioso. Alice Monteiro de Barros (2005) comunga do entendimento doutrinário majoritário, podendo seu posicionamento ser sintetizado na afirmação de que “em se tratando de trabalho de natureza espiritual e vocacional, com a finalidade de propagar a fé, ele não se situa dentro dos limites fixados pelos art. 3º e 442 da CLT” (BARROS, 2005, p. 448). Nascimento mantém a mesma posição de Barros, seja na 14ª edição de seu livro (NASCIMENTO, 1997, p. 410), seja na sua 5ª edição (NASCIMENTO, 1987, p. 336-337), da qual é possível transcrever a afirmativa de que: O trabalho religioso não configura um contrato de emprego. Tal se dá porque o trabalho religioso não é considerado profissional, no sentido técnico do termo. Os seus propósitos são ideais, o exercício de uma vocação. O fim a que se destina é de ordem espiritual não profissional. A atividade religiosa é desenvolvida desinteressadamente e não como meio de obtenção de utilidades econômicas. Paul
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Durand salienta que o trabalho dos religiosos para as suas ordens não visa a obtenção de um salário. A retribuição que recebem os clérigos por tais serviços não tem natureza salarial. A atividade ou trabalho é simplesmente o acessório, cujo principal é o “aperfeiçoamento moral ou a prática de caridade para com o próximo. (NASCIMENTO, 1987, p. 336-337).
Negam, também, a existência de vínculo de emprego entre trabalhador religioso e a instituição a que ele está filiado, entre outros doutrinadores atuais: Délio Maranhão (SÜSSENKIND, 2000, p. 326) e Ives Gandra da Silva Martins Filho (MARTINS FILHO, 2002, p. 39-40). Em textos mais antigos é possível, igualmente, observar que a posição atual da doutrina não sofreu alterações no passar dos anos. Nascimento cita jurista argentino que, em 1968 já afirmava que “os serviços que prestam os trabalhadores nos templos e outros lugares destinados ao culto não oferecem caráter laboral, pela ausência de lucro próprio das atividades religiosas, de finalidade altruística, benéfica e inclusive ultraterrena” (NASCIMENTO, 1987, p. 337). Barros apresenta posicionamentos doutrinários mais antigos, porém não contraditórios à doutrina majoritária atual. Primeiramente, cita Célio Goyatá que, em artigo escrito em 1953, afirma que o trabalhador religioso ligado à instituição religiosa por votos não é considerado empregado (BARROS, 2005, p. 446). Ainda segundo Barros, em texto de 1958, J. Antero de Carvalho, citando Dorval de Lacerda, propõe que o trabalhador religioso seja classificado como autônomo por não poder se verificar em sua relação com a instituição a qual está ligado os “requisitos próprios do contrato de trabalho” (BARROS, 2005, p. 448) Pelo exposto, observa-se que, pelo menos desde o início da vigência da CLT, a doutrina majoritária entendia por inexistente o vínculo de emprego entre o trabalhador religioso e a instituição a qual este estava ligado por votos.
GENEALOGIA JURISPRUDENCIAL
Igualmente ao método utilizado em relação à legislação e à doutrina, convém retroceder no tempo para verificar as mudanças nos posicionamentos dos tribunais superiores sobre a existência da relação de emprego entre as instituições religiosas e o trabalhador religioso. Elencam-se decisões de órgãos colegiados para ilustrar que não houve mudanças
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significativas no posicionamento jurisprudencial sobre a inexistência de vínculo de emprego entre trabalhador religioso e a instituição religiosa que o acolhe. Em 1955 já era possível observar julgado do Tribunal Superior do Trabalho (TST – Processo n.º 7.963/55; Relator Min. Carvalho Júnior) negando a existência de vínculo de emprego entre uma igreja e um colportor, elencando entre as razões da decisão que: As obrigações assumidas pelo colportor resultam do chamado de uma vocação religiosa, do apelo que sente em sua alma para dedicar-se a uma nobre missão espiritual. E é nesse sentido místico que assume o encargo, sem outro objetivo senão o de servir à sua religião (BARROS, 2005, p. 450).
Em 1962 o posicionamento dos Tribunais Regionais mantinha-se semelhante, como pode ser observado pelo julgado abaixo: as normas que disciplinam as relações entre o pastor, o templo e seus fiéis têm sua fonte de inspiração no Poder Espiritual. O pastor protestante, a exemplo do padre da Igreja Católica Romana, sem atividade leiga, vive de espórtulas tiradas das prebendas, donativos dos crentes. Confundir espórtulas com salários, contraprestação de serviço, importa em deformação da crença religiosa, em farsa de princípios, no reconhecimento de trabalho mercenário. O pastor é carente de ação no foro trabalhista pela inexistência de relação empregatícia. (Ac. 687/62, TRT, 1ª Reg., LTr., 30:184). (NASCIMENTO, 1987, p. 338).
Mesmo após a Constituição de 1988, a jurisprudência atual mantém entendimento pela inexistência do vínculo empregatício do trabalhador religioso, como demonstram os julgados elencados por Barros (2005, p. 439-446) e por Martins Filho (2002, p. 46) dentre os quais serve de exemplo decisão do TST abaixo relacionada: RELAÇÃO DE EMPREGO – TRABALHO RELIGIOSO – PASTOR. Inexiste contrato de trabalho entre um pastor e sua igreja. Apesar da atividade intelectual e física, o traço de união é a fé religiosa, decorrente da vocação, sem a conotação material que envolve trabalhador comum (TST, 1ª Turma, RR 104323/94, Re. Min. Ursulino Santos, Acórdão n. 4842/94, in DJ 25.11.94).
MUDANÇAS DE PARADIGMA
Uma nova compreensão do trabalho religioso começa a ser vislumbrada tanto pelo Judiciário quanto pela doutrina. Essa mudança de posicionamento, todavia, não se pauta em nova perspectiva sobre o trabalhador religioso, mas no desvirtuamento das instituições religiosas,
situação
que
ganha
maior
relevância
nas
denominações
evangélicas
neopentecostais. Esse desvirtuamento se caracteriza pela compreensão de que o objetivo de certas
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instituições religiosas não fica restrito à propagação da fé, mas visa contraprestações financeiras na prestação de seus serviços religiosos (ROSSI, 2008, p. 108-116). Embora o fenômeno neopentecostal tenha surgido no Brasil com maior amplitude na década de 1970, com o surgimento da terceira onda (ROSSI, 2008, p. 108-116), a compreensão desse desvirtuamento pelo judiciário é mais recente. Rodrigo Carelli (2004, p. 85) elenca acórdão do TST que, apesar de entender o vínculo inexistente, vislumbra a possibilidade deste em caso de desvirtuamento da instituição religiosa: AGRAVO DE INSTRUMENTO - PASTOR EVANGÉLICO - RELAÇÃO DE EMPREGO - NÃO-CONFIGURAÇÃO - REEXAME DE PROVA VEDADO PELA SÚMULA Nº 126 DO TST. O vínculo que une o pastor à sua igreja é de natureza religiosa e vocacional, relacionado à resposta a uma chamada interior e não ao intuito de percepção de remuneração terrena. A subordinação existente é de índole eclesiástica, e não empregatícia, e a retribuição percebida diz respeito exclusivamente ao necessário para a manutenção do religioso. Apenas no caso de desvirtuamento da própria instituição religiosa, buscando lucrar com a palavra de Deus, é que se poderia enquadrar a igreja evangélica como empresa e o pastor como empregado. No entanto, somente mediante o reexame da prova poder-se-ia concluir nesse sentido, o que não se admite em recurso de revista, a teor da Súmula nº 126 do TST, pois as premissas fáticas assentadas pelo TRT foram de que o Reclamante ingressou na Reclamada apenas visando a ganhar almas para Deus e não se discutiu a natureza espiritual ou mercantil da Reclamada. Agravo desprovido. (4ª Turma, Min. Ives Gandra Martins Filho, TST: AIRR – 3652/2002-900-05-00; Publicado no DJ 09/05/03).
Sobre a percepção do desvirtuamento é importante ressaltar o recente Acordo entre Brasil e a Santa Sé no qual as Altas Partes mencionam a inexistência de vínculo de emprego entre trabalhador religioso católico e a Santa Sé, todavia, ressalvando hipótese de desvirtuamento: Artigo 16 - I - O vínculo entre os ministros ordenados ou fiéis consagrados mediante votos e as Dioceses ou Institutos Religiosos e equiparados é de caráter religioso e portanto, observado o disposto na legislação trabalhista brasileira, não gera, por si mesmo, vínculo empregatício, a não ser que seja provado o desvirtuamento da instituição eclesiástica. (BRASIL, MRE).
Pendente de internalização, a menção a desvirtuamento da instituição no Acordo demonstra a plausibilidade dessa ocorrência, sendo, talvez, o primeiro texto legal explícito em indicar tanto o desvirtuamento quanto em afirmar a inexistência de vínculo empregatício entre o trabalhador religioso e a instituição religiosa.
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CONCLUSÕES PRELIMINARES
A perspectiva genealógica proposta neste artigo releva pontos cruciais para a percepção do objeto de estudo deste artigo, qual seja, a compreensão pelo judiciário sobre a inexistência de vínculo de emprego entre trabalhador religioso e instituição religiosa. Primeiramente, pelo estudo genealógico do tema proposto é possível observar que o questionamento judicial sobre a existência de vínculo de emprego entre trabalhadores religiosos e instituições religiosas, mesmo não estando volumosamente sempre presente no judiciário, não pode ser admitido como um fenômeno recente. Segundo, inegável as mudanças que ocorreram na compreensão da religiosidade pósmoderna. Após essa nova compreensão de religiosidade, o Judiciário, com respostas pautadas em pressupostos ideológicos não tão generalizáveis hodiernamente faz com que a “justiça” proposta pelos julgadores produza a injustiça que se pretende evitar. Terceiro, o recente aumento no número de reclamações trabalhistas nos tribunais trabalhistas indica, ao menos, a necessidade de se verificar quais os afluentes sociais que propiciaram esse acréscimo. Entre a chegada dos primeiros grupos evangélicos ao país, o início da República com a separação oficial entre Estado/Igreja e o atual arcabouço legislativo com a recente assinatura de Acordo entre Brasil e Santa Sé, observa-se, pelo breve estudo genealógico empreendido, que nem a legislação nem a jurisprudência nem a doutrina sofreram mudanças significativas desde a época da Proclamação da República até o presente. Mesmo após as mudanças de interpretação comumente trazidas por novas Constituições, tanto doutrina como jurisprudência mantiveram-se inalteradas, cooperando para que não se configurasse a relação de emprego entre a instituição religiosa e o trabalhador religioso. O recente surgimento da hipótese de desvirtuamento da instituição religiosa (quando ocorre alteração de objetivos da instituição, a qual, principalmente, passa a visar lucro em sua atuação) demonstra o vislumbre, pelo Judiciário, de que mudanças ocorreram no campo religioso. Fenômeno religioso sobre o qual paira certa bruma de inacessibilidade (em parte devido ao consagrado Princípio de Separação Estado/Igreja), o Judiciário mantém-se cauteloso na análise e assimilação desse desvirtuamento, continuando a compreender o trabalhador religioso sem as atuais perspetivas monetarizantes da religiosidade pós-moderna. É, porém, necessário, para enfrentar esse novo modelo de religiosidade, que o
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Judiciário o compreenda e julgue os processos envolvendo o trabalhador religioso considerando essas novas concepções que já estão internalizadas tanto nas instituições religiosas quanto nos trabalhadores religiosos e demais fiéis. Tais julgamentos, todavia, ainda são incipientes pelo que se constata da jurisprudência pátria. A tendência dos julgamentos de reclamatórias trabalhistas envolvendo trabalhadores religiosos que tinham negado o vínculo empregatício com a instituição religiosa à qual estavam ligados pode ser alterada através de melhor compreensão sobre o desvirtuamento da instituição religiosa, o que, através da análise genealógica da legislação, doutrina e jurisprudência, evidencia-se pela monetarização religiosa cujas raízes podem ser observadas na religiosidade neopentecostal evangélica desde o início da década de 1970 e já se encontra disseminada em toda religiosidade pós-moderna por meio da chamada Teologia da Prosperidade. O Judiciário tem compreendido o desvirtuamento da instituição religiosa e a consequente existência de vínculo empregatício entre o trabalhador religioso e a instituição religiosa quando esta, no intuito de negociar produtos religiosos, faz uso de um trabalhador religioso para intermediar a relação entre igreja/fornecedora e fiel/consumidor. Aberta a cunha do desvirtuamento da instituição religiosa no já cimentado pensamento doutrinário nacional sobre a relação de trabalho entre instituição religiosa e trabalhador religioso, a possibilidade de caracterização do vínculo de emprego deste trabalhador religioso tem se demonstrado mais palatável ao Judiciário. O posicionamento jurisdicional nos julgados que decidem pelo vínculo empregatício do trabalhador religioso conseguem refletir uma alteração na própria religiosidade pósmoderna, a qual não pode mais ser delimitada a um grupo religioso apenas. Embora no espaço aberto pela jurisprudência atual e minoritária pareça somente ser inserida a questão do desvirtuamento, os textos bíblicos que mencionam ser o trabalhador digno de seu salário (Lc 10,7; 1Cor 9,14; 1Tm 5,18) podem ganhar contornos de maior efetividade ao relacionarmos seu conteúdo não apenas à dignidade do trabalhador, mas, igualmente, à dignidade tanto do trabalho quanto do próprio salário. Interpretação que não causa espanto mais à religiosidade pós-moderna monetarizada nem à religiosidade social tradicional, ainda mais quando observamos que para a Dignidade da Pessoa Humana do trabalhador religioso é imprescindível avançarmos sobre o já consagrado Direito ao Trabalho Digno e, como Robert Castel (NARDI, 2002, p. 141-146), compreendermos aquilo de que tanto Jesus Cristo quanto o apóstolo Paulo já forneciam vislumbres: que a Dignidade do Salário é capaz de fornecer o liame entre a Dignidade do
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Trabalhador e a Dignidade do Trabalho.
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