UNIRIO Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Centro de Ciências Humanas Escola de História
Memória e espaço da clausura: Narrativas Sobre a Experiência Prisional na Fortaleza De Santa Cruz
Rio de Janeiro Agosto/2004
1. Introdução A Fortaleza de Santa Cruz, localizada na Estrada Eurico Gaspar Dutra, Jurujuba na cidade de Niterói, no Estado do Rio de Janeiro, possui enorme importância na história das instituições prisionais do Brasil. A construção é tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico nacional (IPHAN), fls. 141, conforme o processo nº 207 – T, Inscrição nº 122, Livro Histórico fls. 22 e Inscrição nº274, Livro das Belas Artes fls. 47 data 4 de outubro de 1939.1 Sua história tem início em 1555 quando o francês Villegaignon instala peças de Artilharia no Promontório, à entrada da Barra.2 Tomada por Mem de Sá, em 1567, tal Fortaleza foi ampliada e transformada no principal ponto de defesa da Baía de Guanabara recebendo o nome de Fortaleza de Nossa Senhora da Guia. A partir de 1632, seu nome foi substituído por Fortaleza de Santa Cruz da Barra.3 Em setembro de 1710, seus fogos repeliram a expedição de Duclerc, quando intentou entrar a Barra. No entanto, no ano seguinte, uma nova expedição francesa, a de Duguay – Trouin, a Fortaleza foi tomada quando estava pouco guarnecida. O governo regencial, ordenando em 1831, os desarmamentos gerais das fortalezas, determinou quanto a esta, que fosse reduzida a meio armamento, ficando um canhão em Bateria e outro sob abóbada e desarmados inteiramente o Forte do Pico e as Baterias de Praia de Fora, que, naquela época, estavam subordinadas a sua defesa.4 Em 4 de dezembro desse mesmo ano, a Fortaleza de Santa Cruz recebe como presos que tentaram uma sublevação contra a Regência.5 Outro movimento importante na fortaleza foi quando em 1892, revoltou-se o Sargento Silvino, que, com os presos prendeu os oficiais e obrigou a Fortaleza de Laje a aderir. Em
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.AHEx. Ministério do Exército. Fortaleza de Santa Cruz – jul/2003. Documento interno, sem identificação de autoria. Sobre Fortificações, caixa 4. 2 . MENDONÇA, Milton Teixeira de (colaborador). Ministério do Exército. Secretaria Geral do Exército. AHEx Documento interno, sobre Fortificações, caixa 4. 3 Ibidem. 4 Revista Trimestral da IHGB. Augusto Fausto de Souza Salvador. Rio de Janeiro, 1885. P.103. 5 AHEx. Ministério do Exército. Fortaleza de Santa Cruz. Jul/ 2003. Documento interno, Sobre Fortificações, caixa 4.
1905, houve o levantamento dos praças instigados pelo Cabo Joca contra o Tenente Torres, que acabou assassinado e mutilado.6 A partir de 1917, passa a ser guarnecida pelo 1º Grupo de Artilharia de Costa, já desativado. Em 1964, a Fortaleza de Santa Cruz passa a receber presos políticos da Ditadura Militar implantada a 1º de abril. E em 6 de julho de 1968, é criado o Presídio do Exército que fora abolido oficialmente em 1982.7 No entanto, uma outra fonte aponta a ativação do Presídio do Exército para 1967.8 Em 1567, Salvador Corrêa de Sá dá vulto às obras de fortificação instaladas e deixadas pelos franceses. As construções da Capela de Santa Bárbara, da “cova-da-onça” e das “prisões do passado” datam do século XVII. No século seguinte, a construção da cisterna. Em julho de 1863, instala-se a Bateria “Santa Teresa” ou do “Imperador”. Nesse mesmo mês, instalam-se as Baterias “25 de Março” e “2 do Dezembro.”9 Dentro da Fortaleza, algumas prisões figuram de forma contundente. A “cova-da-onça” foi o local destinado à tortura de presos com o objetivo de fazê-los confessar os crimes: lâminas cortantes serviam pra triturar o corpo humano, cujos restos eram jogados ao mar através de um poço. O nome “cova-da-onça” era uma gíria muito comum no princípio do século e designava um “valhacouto de malfeitores”. Houve um bar de má fama com esse nome no Rio Antigo (1900).10 As “prisões do passado” localizam-se em frente à cisterna. Erguem-se cinco celas onde ficavam aprisionados ao enforcamento, sendo que três destas celas destinavam-se para homens em pé e as outras duas para homens agachados ou deitados. Estas celas destinavam-se principalmente, aos escravos fugidos e recapturados. Em frente a essas cinco celas encontrava-se a forca. Os condenados eram obrigados a ver o enforcamento dos outros, até chegar o dia deles. Quando o escravo chegava era colocado na mais alta. No outro extremo, o que estava na última seria o enforcado do dia seguinte. Esvaziada a cela mais baixa o que estava na primeira acima passava para ela, e assim por diante. O condenado iria
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PONDE, Francisco Paula E Azevedo, Defesa Do Porto e da Cidade do Rio de Janeiro em Quatro Séculos. Rio de Janeiro: Imprensa do Exército, 1967. 7 AHEx. Ministério do Exército.Síntese Histórico jul/2003. Documento interno, sem identificação de autoria. Sobre Fortificações caixa 4. 8 TEIXEIRA, Milton de Mendonça. (colaborador). Ministério do Exército. Secretaria Geral do Exército. AHEx. Documento interno, sobre Fortificações, caixa 4 9 Ibidem. 10 Ibidem.
assistindo um enforcamento por dia, passando para celas mais baixas até chegar a última para então ser levado à forca.11 Os presos políticos do regime militar de 1964 estiveram nas celas coletivas, nas “prisões do passado” e nas casas, que tinham um conforto muito maior, onde também estiveram soldados e oficiais presos localizadas distante das outras prisões. Alguns presos famosos da Fortaleza foram: Tiradentes, Frutuoso Rivera – primeiro presidente do Uruguai, André Artigas, Januano da Cunha Barbosa – fundador do IHGB, Bento Gonçalves, Almirante Eduardo Wandenholk, Giuseppe Garibaldi, João Antônio Lavalleja, Plínio Salgado, Juarez Távora e Brigadeiro Eduardo Gomes.12 Este artigo tem por objetivo principal analisar a experiência de ex-presos políticos no espaço prisional da Fortaleza de Santa Cruz, durante o Golpe Militar de 1964. Além disso, visa-se a elaboração etnográfica desse espaço de clausura, à luz dos relatos de ex-prisioneiros políticos. Busca-se, ainda, identificar a documentação primária pertinente ao espaço prisional da Fortaleza. Para a consecução de tais objetivos, utilizou-se os procedimentos teórico-metodológicos da História Oral, no sentido de registrar e problematizar a experiência da clausura vivenciada por ex-presos políticos do período pós-64. O presente trabalho desenvolvido no âmbito da disciplina de Seminário de Pesquisa em História Oral, sob a orientação da Professora Icléia Thiesen, está inserido na linha de pesquisa Memória e Espaço. Definiu-se alguns eixos a serem seguidos neste estudo. O que foi preservado e transmitido sobre a experiência da prisão na fortaleza? Como os presos se relacionaram entre eles e entre a direção carcerária? Quais as estratégias de sobrevivência eventualmente construídas por esses personagens?
2. História Oral e o espaço da clausura: poder e resistência
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José Roberto Rezende, Ousar Lutar:memórias da guerrilha que vivi Depoimento a Mouzar Benedito. São Paulo: Viramundo, 2000, p. 127. 12 Milton de Mendonça Teixeira (colaborador). Ministério do Exército. Secretaria Geral do Exército. AHEx
A história oral permite fazer uma história do tempo presente ressaltando a importância das memórias subterrâneas que se opõem à memória oficial. Há essa necessidade a de privilegiar a análise dos excluídos porque “o longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais”. 13O controle da memória funciona impedindo acesso aos pesquisadores nos arquivos e empregando “historiadores da casa”. E ainda, fora dos momentos de crise, as memórias tornam-se mais difíceis de emergir. No entanto, “indivíduos e certos grupos podem teimar em venerar justamente aquilo que os enquadradores de uma memória coletiva em um nível mais global se esforçam por minimizar ou eliminar”14. Diante de tal insistência, exige que se recorra ao instrumento da história oral. A vontade de esquecer os sofrimentos do passado vêm, muitas vezes, depois da comemoração dos acontecimentos traumatizantes. Essa comemoração é trazida à tona pela memória majoritária da sociedade ou do Estado que quer diminuir a dor, fazer desaparecer sua responsabilidade sempre a posteriori. A memória individual é indissociável da organização social. Portanto, nenhuma história de vida é construída fora da sociedade, dessa mesma maneira nenhuma pode deixar de refleti-la, ao mesmo tempo que é única. Na Fortaleza de Santa Cruz, a idéia do panoptismo de Bentham a que Foucault se refere aplica-se perfeitamente: “É uma forma que se exerce sobre os indivíduos em forma de vigilância individual e contínua, em forma de controle de punição e recompensa e em forma de correção, isto é, de formação e transformação dos indivíduos em função de certas normas”.15 Foram realizadas duas entrevistas temáticas com ex-prisioneiros políticos encarcerados pelos regimes oficiais no período da ditadura militar. Alguns fragmentos coletados no trabalho de campo são analisados a seguir.
3. Fragmentos de memória sobre a experiência prisional 13
Michael Pollack. Memória, esquecimento e silêncio in Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.2, n..3, 1989, pp 3-15 p.5. 14 Ibidem. p. 12.
Etnografia das entrevistas:
A entrevista com N. R. realizou-se na sua residência na Zona Sul do Rio de Janeiro no dia 14 de julho de 2004 e durou um pouco mais de meia hora. Depois de dias tentando encontrá-lo em casa, e depois que finalmente consegui falar com ele ao telefone, a entrevista ainda foi adiada por algumas semanas porque ele alegava falta de tempo. Argumentei a urgência da entrevista, considerando os prazos estabelecidos no calendário universitário. Então, ficou marcado para dois dias depois – uma quarta-feira de manhã. Eu cheguei e fiquei realmente impressionada. Ele tem, com certeza, mais de 1,90 e a voz incrivelmente grave – ainda mais grave pessoalmente do que ao telefone. Ao final da entrevista, já me sentia bem mais à vontade. Ele procurou um livro pra mim (Ousar Lutar de José Rezende) mas mostrou a desordem em que se encontravam os seus livros, e, por isso, não conseguia encontrá-lo. Aceitei uma carona até a UNI-RIO e fomos até lá conversando. A entrevista com P. R. realizou-se na sua residência na Zona Sul do Rio de Janeiro no dia de julho de 2004 e durou mais ou menos uma hora e meia. O encontro tinha sido combinado através de uma ligação telefônica no dia anterior. Mas a epopéia de telefonemas tinha começado há, pelo menos, duas semanas antes, passando pelo Grupo Tortura Nunca Mais (General Polidoro, 238 sobreloja Botafogo) –que faz reuniões com familiares de expresos políticos mortos e desaparecidos - e, inclusive, uma assessora parlamentar que acabou não sendo encontrada. Ficou combinado que o ponto de encontro seria em frente a uma lanchonete de uma rede de fast-food. Ele disse que estaria usando calça jeans e eu só percebi que isso não ajudaria muito depois de chegar ao local e ver os minutos passando. Mas esses minutos não foram mais do que cinco depois da hora combinada – às cinco horas. Ainda assim, ele pediu desculpas pelo atraso. O entrevistado sugeriu que nos sentássemos na lanchonete. Eu disse que o barulho prejudicaria a gravação. Ele convidou, então, para ir até a casa dele. Fomos andando a, apenas, cem metros de distância. Ao final , mostrou-se disposto a
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Michel Foucault. A verdade e a forma jurídicas, Rio de Janeiro: Nau, 1996. p.103.
colaborar em uma nova entrevista ou qualquer outra coisa em que precisasse da sua colaboração. Os dois entrevistados compartilharam a mesma cela e chegaram à Fortaleza de Santa Cruz num mesmo dia de julho de 1974. Eles ocuparam uma das duas celas coletivas – celas A e B – a outra ocupada, em março do mesmo ano, pelo grupo de d0oze pessoas que vinham da Ilha Grande. P. R. e N. R. estavam num grupo maior (entre vinte e quarenta homens) que vinham dos vários quartéis do Rio de Janeiro, nesse caso, tinham estado por último no Batalhão de Guardas em São Cristóvão. Nas narrativas aparece tomando um espaço considerável dessas memórias, a idéia de uma função, de um experimento exclusivo – pelo menos, entre os vários espaços de confinamento por onde passaram esses ex-presos políticos – da Fortaleza de Santa Cruz. Tratava-se de um projeto classificatório dos presos com o objetivo de agrupá-los em: recuperados, recuperáveis e irrecuperáveis. Então para isso: “eles instituíram uma série de medidas e tratamentos dentro da fortaleza que visavam uma pressão diária, constante, psicológica e chegou até a uma pressão física mesmo, agressão física mesmo, no sentido de estudar a reação de cada preso.”16
Esse projeto tinha se iniciado, talvez, porque a ditadura, naquele momento, resolveu movimentar a seção S-5, uma seção mais psicológica. O médico encarregado da fortaleza era o capitão Arquimedes, um psiquiatra, a quem cabia o estudo da reação de cada preso. É razoável supor que esse esquema tenha sido montado por militares que queriam manter seus privilégios e contestavam a abertura lenta, segura e gradual do general Geisel.17 O projeto classificatório exigia uma série de medidas de pressão constante sobre esses homens, como, por exemplo, reter os alimentos que as famílias levavam no dia das visitas, aos sábados, até ficarem estragados e comidos pelos ratos quando eram entregues aos presos. Outros tipos de provocações eram realizadas, conforme assinalado por P. R.:
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Entrevista com P. R. concedida à autora em 21/07/2004. Ottoni Fernandes Júnior, O baú do guerrilheiro, Rio de Janeiro: Record, 2004. p.247.
“de repente vêm um livro que não tem nada a ver, o cara implica, apreende o livro, não dá pra você, nem devolve pra família; aí você reclama todo dia, aquele desgaste, esse tipo de desgaste que era a provocação diária.”18
Já N. R. lembrou que, naquela ocasião, havia o problema de “água, eles só abriam de cinco da manhã às cinco e meia (...) todo mundo tinha que tomar banho naquela água (...) tinha que tomar banho com um litro de água e a gota que caía na cabeça tem que passar no corpo todo e sair no pé, senão não toma banho.”19
Parece que o tal projeto ficou mais orquestrado e agressivo a partir da chegada, na fortaleza, do grupo que veio dos quartéis. No entanto, quando o espaço é analisado verifica-se um comprometimento à rigidez, o cerceamento e a humilhação no tratamento dos presos políticos: “nós tínhamos uma janela mínima com uma grade fortíssima que, no entanto, existia em torno dela pelo menos numa área de um metro de distância dela, talvez, um pouco mais, uma faixa amarela pintada da qual a gente não podia ultrapassar. Essa janela tinha uma guarita que tinha um soldado permanentemente armado com um fuzil FAL, que a ele era encarregado de olhar se a gente ultrapassava essa linha; aí havia uma ameaça de ele atirar no caso da gente ultrapassar essa linha”.20
As duas celas, A e B, eram quase iguais. Ottoni Fernandes Júnior enclausurado na cela ocupada pelo grupo que veio da Ilha Grande, também se recorda da faixa amarela, da constante ameaça e difícil situação em que se encontravam na fortaleza. Havia algo de errado. Ele relembra o momento quando chegaram ao Iate Clube de Niterói e um camburão os aguardava para transportá-los até a fortaleza: “A violência dos soldados comandados pelo
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Entrevista com P. R. concedida à autora em 21/07/2004. Entrevista com N. R. concedida à autora em 14/07/2004. 20 Entrevista com P. R. concedida à autora em 21/07/2004. 19
tenente Bronzo surpreendeu a todos. Fomos algemados e colocados no camburão. Na fortaleza, ao descermos, cada um recebeu um capuz preto que cobriu nossas cabeças.” 21 Os dois entrevistados lembraram-se das péssimas condições das péssimas condições de higiene das tais celas coletivas que eram realmente grandes – 30 metros de fundo, 15 de frente e abóbada, no ponto mais alto, estava a uns 15 metros de altura; beliches de metal espalhados pela cela.22 As celas escavadas na rocha, tinham uma canaleta que corria a água e os ratos. O expoente dessa insalubridade era o “ratódramo”, assim chamado porque: “era a noite toda rato escorrendo ali pela canaleta, era uma canaleta de cimento, feita pra escorrer a água que minava, da parede de fundo da cela.”23 Para tentar escapar a essa condição, uma estratégia de sobrevivência afastava, infelizmente, para não muito longe, os ratos. Mas, ainda assim, a constante permanência desses roedores associados biologicamente e psicologicamente à transmissão de doenças perturbava as condições existenciais desses homens. Por alguma sorte, eles haviam descoberto “que o macete era deixar a lata de lixo com alguma comida, que eles [os ratos] só ficavam na lata de lixo (...) tinha duas latas de lixo que ficavam o resto de comida.”24 Para estes entrevistados, o espaço prisional da Fortaleza de Santa Cruz encaixava-se de alguma forma no tal projeto classificatório, que exigia medidas duras, provocações constantes, com o objetivo de testar a resistência dos presos, para então agrupá-los, obter sucesso minando internamente a organização dos presos políticos, diminuindo a combatividade. Parece que teve algum êxito, embora numericamente muito pouco, já que alguns dos presos transferidos dos quartéis foram saindo, ou, porque tinham penas leves, ou ainda, porque tiveram suas prisões preventivas relaxadas. Ao contrário, a cela ocupada pelos homens transferidos da Ilha Grande permaneceu sempre com o mesmo efetivo – doze. É difícil achar que esse êxito tenha ocorrido necessariamente devido ao exclusivo projeto classificatório dentro da fortaleza porque os divergentes do regime militar em quase todo o período de confinamento e tortura, houve aqueles que optaram por diminuir a resistência. Na Fortaleza de Santa Cruz, não foi diferente: “alguns não aderiram a essa greve [de fome], foram removidos, como privilégios, na verdade, 21
Ottoni Fernandes Júnior. O baú do guerrilheiro. p.244. Ibidem. 23 Entrevista com P. R. concedida à autora em 21/072004. 22
para as casas onde moravam os soldados e oficiais presos (...) que tinham um conforto muito maior.”25 Dentro da cela ocupada pelo grupo transferido dos quartéis, havia um ex-militar que sofria com sérias perturbações mentais. A dedução não poderia ser outra; ele havia aderido às práticas dos militares, mas insistia em fazer isso dentro da cela que compartilhava com os demais, queria mostrar para a repressão que havia se regenerado e fazia isso às vistas dos companheiros de cela. Discutia sempre com os demais, não aceitava ser representado pelo coletivo. Ao que tudo indica, ele já chegou nessa condição, que tinha se iniciado devido ao processo de torturas. Por uma alegação de sobrevivência física, depois de já terem optado por turnos de revezamentos para vigiar Ubajara durante a noite, o grupo, então, de seis a oito pessoas, decide amarrá-lo para que possam dormir e exigem sua transferência definitiva, junto à direção carcerária, para o Hospital Central do Exército. Os militares insistem para que ele seja desamarrado e diante das negativas, todos dessa cela, exceto o preso perturbado, são colocados sob espancamento dentro de uma solitária e são jogadas lá dentro duas ampolas de gás lacrimogêneo. E então, tudo ficou ainda mais assustador. José Roberto Rezende conta como foi aquela noite: “As ampolas batiam na grade, estouravam e, além do gás, os cacos de vidro caíam no chão. Alguns estavam descalços e, como se não bastasse o desespero causado pelo gás num ambiente minúsculo, não podiam nem mexer os pés, por causa dos vidros quebrados. (...) Ficamos [cada] um em meio a uma verdadeira porcaria: lágrimas e catarro saindo em profusão e grudando em todo mundo. Além disso, uma horrível sensação de fogo queimando a pele”.26
Na manhã do dia seguinte, uma tropa voltou e levaram dois presos Cláudio Torres da Silva e José Roberto Gonçalves de Rezende - para as “celas do passado”- escolhidos aleatoriamente. Essa escolha é confirmada por José Rezende encaixa-se no tal projeto de provocações a que eram submetidos. “As tais celas do passado foram construídas há muito tempo, em forma de arco, aproveitando o desnível da rua. A primeira delas tinha 1,80 m de 24 25
Entrevista com N. R. concedida à autora em 14/07/2004. Entrevista com P. R. concedida à autora em 21/07/2004.
altura, a segunda 1,60 e assim iam diminuindo até a última que tinha 70 centímetros de altura. Eu fui colocado nessa última e o Gaúcho na seguinte, com 90 centímetros de altura. Ele era alto, grande mesmo (...)”.27 Cabe aqui uma observação. Os mecanismos que afastam dos presos a noção do tempo passado surtiram efeito na Fortaleza de Santa Cruz. Ottoni Fernandes Júnior relata a ida, para ele, dos oito homens para a solitária e em seguida dos dois companheiros para as “celas do passado” da seguinte maneira: “no dia seguinte [ao dia 14 de novembro, portanto dia 15] Mico [José Rezende] e Cláudio foram retirados da solitária e levados para a ‘cela do passado’. (...) No dia 16 de novembro, quando trouxeram o café da manhã, comunicamos que estávamos em greve de fome. (...) No dia 18, o chefe da Polícia do Exército esteve conosco (...) e respondeu que os dois companheiros já tinham sido tirados da ‘cela do passado’ e levados para o 1º Batalhão de Guardas”.
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Dessa forma, José Rezende e Cláudio Torres da Silva entram no dia
15 de novembro e saem antes, ou ainda, no dia 18. No entanto, José Rezende fala que passou dentro da “cela do passado” foram bem mais do que quatro dias: “Depois de sete dias na ‘cela do passado’, finalmente, às vésperas da eleição de 1974 [a eleição é no dia 15, portanto, trata-se do dia 14], nos levaram de volta pra junto dos demais presos”. 29 Logo depois da volta ao xadrez da turma que estava na solitária, numa articulação com os presos que ocupavam a outra cela, decide-se por uma greve de fome. Depois da cena de extrema violência, “ a gente tinha que lutar pela sobrevivência física (...) de forma que a gente, então, resolveu fazer uma greve de fome para sair da fortaleza (...) as nossas condições eram de cessasse, aquele ambiente repressivo fosse removido, a direção do presídio fosse trocada (...)”.30
Como pode uma única greve de fome reivindicar ao mesmo tempo a saída da fortaleza e a troca da direção do presídio? Essas reivindicações divergem ainda de outra se comparadas as
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José Roberto Rezende, op. cit., p. 129. Ibidem. 28 Ottoni Fernandes Júnior, op. cit., p.249-250. 29 José Roberto Rezende, Ousar Lutar, p.130. 30 . Entrevista com P. R. concedida à autora em 21/07/2004. 27
apresentadas por Ottoni Fernandes Júnior: “Além da volta de Cláudio e Mico, queríamos o fim das arbitrariedades, dos espancamentos, a remoção dos presos anti-sociais, a melhoria das condições carcerárias, a permissão para trabalhar com artesanato.”31 Foi uma greve rápida (entre três a cinco dias), diferente de outras do movimento dos presos políticos. É necessário ressaltar que as famílias foram avisadas da greve no dia de visitas por que não faz sentido fazer uma greve de fome sem ninguém tomar conhecimento. E foram elas, as famílias, que se mobilizaram junto com os advogados, visitando juízes militares, ministros dos tribunais superiores, o que resultou na interferência na Fortaleza de Santa Cruz. O encontro com o coronel Milton, chefe da Polícia do Exército, no dia seguinte, com o major Miranda parece ter surtido efeito e por uma semana mais ou menos tiveram um bom tratamento. “Mas no dia 28 de novembro, a turma da cela B foi mandada de volta para a Ilha Grande, seguida logo depois pelo resto do pessoal”.32 Ainda restaram presos políticos na cela coletiva quatro homens, entre os quais P. R.. Parece ainda, que havia outros três presos que estavam em casas – onde ficavam os oficiais e soldados presos. Eram eles o coronel Jefferson Cardin e os irmãos Manes. A transferência deles deu-se em abril de 1975, segundo o relato de P. R..
4. Considerações finais Há trinta anos, chegavam no Presídio do exército na Fortaleza de Santa Cruz homens enclausurados pelo órgãos oficiais do regime militar. Os acontecimentos vividos pessoalmente ou vividos por tabela, que povoam as narrativas dos ex-presos políticos, são as únicas que tentam esclarecer o que se passou dentro das masmorras da fortaleza. A existência do “coletivo” na fortaleza é um traço da influência dos presos vindos da Ilha Grande, e que depois contagiou aqueles transferidos dos quartéis. O “coletivo” foi uma forma que os presos políticos encontraram para se organizar internamente, uma organização que extrapolava as redes de fora da cadeia. Eles não haviam deixado de ser políticos porque estavam presos. Dessa maneira, eles podiam fazer frente ao regime e, de alguma forma, resistir às arbitrariedades. Isso foi muito importante para as conquistas que eles conseguiram, através 31
. Ottoni Fernandes Júnior, O baú do guerrilheiro, p.250.
de greve de fome, de contato com as famílias, com o exterior, de denúncias de maus tratos aqui no Brasil e no exterior. Como já foi dito antes, eles não sabiam exatamente quantos dias haviam se passado. Nenhum entrevistado, nenhum dos outros dois que contaram suas vidas em cárcere em livros autobiográficos souberam dizer precisamente o dia da transferência para a fortaleza. O dia de visitas ora aparece como sendo o sábado, ora o domingo. Além disso, não sabem exatamente o dia da saída da fortaleza. Mas, quando próximo a greve de fome, quase todos falam de uma data mais ou menos próxima, que seria 15 de novembro de 1974, o aniversário da Proclamação da República e a vitória do MDB. A alusão a um desses fatos acontece porque se trata de homens ligados a vida política, a militância contra o regime. O fato de terem passado por outras instituições prisionais antes e depois da transferência para a fortaleza (pelo menos nos depoimentos a que tive conhecimento) contribuiu para um embaralhamento na descrição do espaço, dos motivos que levaram à greve de fome, das recordações sobre o cotidiano, sobre os companheiros de cela. A todo momento surge a comparação entre os espaços de confinamento e a narração de uma ou outra situação que tenha ocorrido em outro lugar que não a Fortaleza de Santa Cruz. É bastante comum frases do tipo: “porque lá na Ilha Grande era diferente...”, ou ainda “no Batalhão de Guardas, eu fiquei...” É interessante como as “lembranças mais próximas, aquelas de que guardamos recordações pessoais, os pontos de referência geralmente apresentados nas discussões são como mostrou Dominique Veillon, de ordem sensorial: o barulho, os cheiros, as cores”.33 O barulho dos ratos à noite, a faixa que tinha pintada no chão que dependendo dos relatos poderia ser uma ou mais, em todos os depoimentos essa faixa é amarela. São pontos importantes no registro da memória. O preso político tem um grau de identificação muito maior com o grupo. Uma solidariedade que amotina essas pessoas em favor de um objetivo: o fim da ditadura. Esse fenômeno é mesmo percebido e falado pelos próprios entrevistados e, diante da saída de alguns, ou pelo menos, de um afastamento das lutas do grupo – nesse caso, em virtude do tal projeto classificatório – verifica-se um enorme sentimento de frustração por parte dos membros do grupo que ali permaneceram. Por outro lado, constata-se pelas entrevistas a vontade de 32
Ibidem.
reafirmar que o grupo, agora diminuído, está ainda mais coeso, mais forte diante da repressão. O grau de identificação passa a ser ainda maior, na medida em que os componentes mais fracos teriam sido eliminados. Na Fortaleza de Santa Cruz não ficou nenhum preso comum enquadrado pela Lei de Segurança Nacional. Como último ponto, vale a pena destacar que na Fortaleza de Santa Cruz e mesmo no Arquivo Histórico do Exército, entre suas publicações, não há nenhum documento sobre a permanência de presos políticos em 1974 nesse espaço, pelo menos, aquelas a que se pôde ter acesso. Através das entrevistas cedidas à autora, buscou-se analisar as duas experiências de clausura dentro da Fortaleza de Santa Cruz. Além disso, junto com os outros dois relatos – de José Roberto Rezende e de Ottoni Fernandes Júnior – tentou-se ampliar o foco para a análise da experiência do grupo encarcerado – das relações estabelecidas dentro desse espaço, as estratégias de sobrevivência. Os objetivos foram esboçados somente porque uma memória subterrânea conseguiu emergir para confrontar com a memória oficial de Estado. Nenhuma fonte primária pertinente ao espaço da Fortaleza durante a ditadura militar foi localizada pela autora até a entrega desse artigo.
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