Chiapas: uma luta contra o neoliberalismo Janaína Castilho Marcoantonio - no USP 3096577 “Antes que morram os autores do neoliberalismo, este será declarado crime contra a humanidade” Pablo González Casanova
Em primeiro de janeiro de 1994, enquanto o governo mexicano firmava com os Estados Unidos e o Canadá o Tratado de Livre Comércio (NAFTA), indígenas de diferentes etnias do Estado de Chiapas, liderados pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), pegaram em armas para lutar por autonomia e justiça social. Entre as causas imediatas da insurreição, estão as medidas exigidas pelos Estados Unidos para que o México pudesse ser parte do NAFTA e a crise enfrentada pela produção do café. Durante o governo de Lázaro Cárdenas (1935-40), realizou-se uma ampla reforma agrária, com a criação de terras comunais (os ejidos), que não poderiam ser vendidas. Em 1992, no entanto, por exigência dos Estados Unidos, a medida foi revogada. Sem políticas que os protegessem, os camponeses, endividados, passaram a vender seus lotes, e rapidamente as terras voltaram a se concentrar nas mãos de poucos proprietários 1. No Estado de Chiapas, em 1994, enquanto 91% dos produtores possuíam menos de cinco hectares de terra, apenas 112 proprietários dominavam 12% das terras. A produção cafeeira sofreu queda significativa entre 1989 e 1993, por três fatores: a queda dos preços de exportação (provocada pela ruptura das cláusulas econômicas da OMC – Organização Mundial do Comércio – e o estabelecimento de um mercado livre), a sobrevalorização do peso (uma vez que o café é cotado em dólares) e a queda na produtividade em até 35% (devido à saída de cena do Inmcafé*). Até o início da guerra, cerca de 70% da colheita permanecia no campo sem destino certo 2. Antecedentes históricos A luta indígena no México vem de longa data: quando o México se tornou independente da Espanha, em 1821, o desejo da classe criolla dominante era configurar
um Estado moderno liberal, nos moldes europeus. Até então, os indígenas viviam em terras comunais, protegidas pelas Leis das Índias. Essas terras não podiam ser vendidas e aos índios lhes era garantido o direito de explorá-las 3. O Estado de Chiapas, até então pertencente à Guatemala, foi incorporado ao México em 1824, mesmo ano em que o legislador José Luis Moura, por decreto, extinguiu o regime de propriedade privada e declarou a inexistência dos índios perante a lei. A palavra índios deixou de ser utilizada 4. A economia liberal baseava-se na propriedade privada e as terras comunais eram vistas como um entrave à modernização do país. A Constituição Liberal de 1857 passou a permitir a comercialização das terras ocupadas pelos índios. Pela primeira vez, os índios não contavam com amparo jurídico para proteger suas terras. Os índios converteram-se também em parias políticos. Suas tradições e línguas foram duramente combatidas, num massacre não visto desde os primórdios da colonização. Isso levou à formação de uma consciência social excludente, que conduziu à intolerância. Os índios eram tidos como a representação da selvageria e do atraso 5. A ditadura do general Porfírio Díaz (1875-1910) marca o período de formação dos grandes latifúndios. Pressionados, os povos indígenas passaram a se organizar e a formar exércitos. Os partidos de oposição abraçaram a causa indígena, que desta forma ganhou projeção nacional. Isso culminou na queda de Porfírio Díaz e na Revolução Mexicana de 1910. Entre outras medidas, a Revolução estabeleceu, por meio do artigo 27 da Constituição de 1917, o sistema ejidário de terras (sistema de terras comunais que eram concedidas para cultivo e não podiam ser vendidas). No entanto, somente sob o governo populista de Lázaro Cárdenas (1934-1940), o artigo foi posto em prática. Nova abordagem O grande mérito do movimento zapatista em Chiapas é se afirmar como um movimento legitimamente indígena, feito por índios de diferentes etnias que querem ver sua pluralidade respeitada e representada em nível nacional. O indigenismo integracionista, corrente de pensamento predominante no século XX em favor dos indígenas, entendia que era preciso integrar (leia-se assimilar) o índio à cultura dominante. Colocavam-se como porta-vozes da causa indígena sem, no entanto,
conhecer suas reais necessidades. Isso pode ser em parte explicado pela forma como se consolidou o nacionalismo mexicano. O nacionalismo no México antecedeu ao Europeu. No momento da Independência, foi marcado por forte sentimento anticolonialista e antiespanhol. Durante as invasões norte-americana (1847) e francesa (1864-67), assumiu também um caráter antiimperialista. O liberalismo doutrinário cedeu lugar a um liberalismo pragmático: as festas religiosas foram substituídas por festas cívicas; a idéia de Nação passou a coincidir com as datas e os heróis da República. A escola era vista como o centro unificador da República, responsável pela difusão de um pensamento único. O museu, por meio da xilogravura, da litografia, da fotografia e da pintura, exaltava a paisagem natural e pintava os diferentes grupos étnicos denominando-os indistintamente “mexicanos” 6. Como explica o filósofo Luis Villoro, a concepção de um Estado Nacional deriva da idéia de um contrato social entre indivíduos iguais entre si. A esse Estado, deve corresponder uma nação homogênea, com um único conjunto de leis, uma única língua, uma única educação e uma única cultura. Essa é uma idéia de Nação projetada que não encontra respaldo no México real, pois ignora sua diversidade 7. Para Luis Hernández Navarro, três fatos se sobressaem na guerra de Chiapas 8: 1) o vazio jurídico na atual legislação para tratar a questão indígena e a pretensão do governo de reduzi-la a uma questão cultural: o artigo 4 da Constituição reconhece os direitos culturais dos índios, mas não os políticos e territoriais; o artigo 27 protege as terras indígenas (não os pueblos), mas não viabiliza o restabelecimento de terras comunais; 2) o deslocamento das demandas indígenas do âmbito social para o político: o desejo de autonomia é a palavra-chave; os indígenas entendem que a luta pela terra não tem sentido se não forem modificadas as relações de poder; 3) A reviravolta do índio na sociedade urbana: o zapatismo acelerou o processo de revalorização da identidade indígena e a percepção de que o direito à diferença é a base de uma sociedade democrática. A luta chiapaneca não é simplesmente uma luta pela terra; se pretende uma luta nacional, e tem recebido apoio internacional ao se afirmar como uma luta contra a opressão imposta pelo neoliberalismo. É uma luta pela autonomia, por uma democracia de fato e pelo resgate dos valores de comunidade.
O direito de autonomia é criticado por alguns intelectuais sob a alegação de que, ao tentar estabelecer governos próprios, os povos indígenas tendem ao isolamento 9. Ao contrário, o direito de autonomia significa a liberdade de tomar suas próprias decisões, adequadas às suas distintas realidades, e de vê-las respeitadas no âmbito nacional. Para isso, querem resgatar a democracia direta, por meio de seu principal mecanismo: assembléias locais, com participação ativa da comunidade. Atualmente, os limites municipais no Estado de Chiapas não obedecem à lógica das áreas povoadas, mas sim dos recursos naturais a serem explorados e dos interesses econômicos. Muitas vezes, os pueblos encontram-se a longas distâncias de suas cabeceiras municipais. Daí a demanda zapatista por autoridades locais representativas. Um ano depois da insurreição, tomaram posse em Chiapas dois governadores: Eduardo Robledo Rincón (o representante institucional, nomeado pelo governo federal) e Amado Aveñado (governador em rebeldia, escolhido pelos indígenas). O governo oficial foi marcado pela contração de uma dívida de um bilhão de novos pesos, o que comprometeu o orçamento, resultando num governo local sem poder de ação, com 90% do orçamento dependente do governo federal e dependendo do Exército militar para garantir a ordem. O governo de transição em rebeldia, ao contrário, foi uma referência moral, e sua manifestação mais importante é a existência de Conselhos Municipais e a declaração de regiões autônomas pluriétnicas, com governos regionais
10
. Segundo Luis
Hernández Navarro, os municípios autônomos são uma via para desmilitarizar o conflito, levando representantes civis eleitos e não militares a exercerem o poder 11. A luta chiapaneca é tampouco uma luta pelo poder. Nesse sentido vai de encontro ao novo zapatismo, em cujo discurso, apesar da herança ideológica marxista, leninista e guevarista, não há uma idéia estritamente classista, nem uma proposta de tomada de poder político. Sua luta é por uma nova ética política. “Entrar na disputa eleitoral, e agir segundo a mecânica de ocupar posições políticas, teria como conseqüência imediata a neutralização da capacidade de convocação e mobilização que o zapatismo tem conseguido”, afirma Luis Hernández Navarro 12. Para Luis Villoro, três princípios do movimento norteiam essa nova ética: 1) “Tudo para todos, nada para nós”: o poder como renúncia de si para alcançar o bem de todos contrasta com a concepção de poder dos partidos políticos, que representam uma classe
ou grupo de interesse; 2) “Mandar obedecendo”: a concepção de que o poder não é próprio, mas sim derivado; não consiste em impor a própria vontade, mas em realizar a vontade alheia; aquele que se encontra numa posição de poder na verdade não detém o poder – é seu instrumento; 3) “Comunidade”: contrariamente ao individualismo ocidental, para os indígenas, a vida só adquire sentido quando compreendemos que fazemos parte de uma realidade que nos abarca; dessa forma, a democracia não deveria basear-se apenas no ato eleitoral, mas nas comunidades concretas, em todos os âmbitos da sociedade (povoados, bairros, grêmios, associações), cuja tarefa seria manter o sentido de comunidade e ajudar a construir comunidades mais amplas, até chegar à nação 13. A IV Declaração da Selva Lacandona, em primeiro de janeiro de 1996, conclamava a sociedade à formação da Frente Zapatista de Libertação Nacional. Causaram grande reação em certos grupos as propostas de não almejar a tomada do poder e de não permitir a participação na FZLN de pessoas que ocupam postos de governo. Entretanto, coloca Fernanda Navarro, “para muitos de nós a FZLN tem significado uma opção à paralisia política”, e acrescenta: “diante da organização partidarista cimentada em estruturas hierárquicas e paralisadas, que não permitem a livre discussão nem a tolerância e tampouco o exercício da democracia, nos vemos hoje tentados a nos manifestar mais pela tomada do espaço do que pela tomada do poder” 14. A resposta do governo A resposta do então presidente Ernesto Zedillo ao levante zapatista foi a pior possível: ofensiva militar contra os rebeldes; fortalecimento do poder dos fazendeiros; nomeação de Robledo Rincón; adiamento das reformas; aumento do clima de repressão, medo e insegurança; adiamento de acordos interpartidários rumo à democracia; manipulação da opinião pública; atentados contra os direitos humanos; aumento do poder da ala “dura” do Partido Revolucionário Institucional (PRI); dependência crescente dos Estados Unidos (sempre prontos a oferecer seus serviços aos governos enfrentando guerras de guerrilha); deterioração da imagem internacional do país 15. A ação de grupos paramilitares é peça fundamental na ofensiva do governo contra os zapatistas. Seu ápice foi o massacre de Acteal, em 22 de dezembro de 1997, em que 45 pessoas foram mortas pelo grupo Máscara Roja. O governo tenta simular a ação desses
grupos, formados majoritariamente por indígenas, com o discurso de que se trata de lutas entre as comunidades. Na verdade, eles são recrutados e treinados com recursos estaduais e federais para fazer o trabalho “sujo”. Os zapatistas, que a princípio escolheram a luta armada, ao conseguir o apoio nacional e internacional resolveram ceder às pressões da sociedade civil e buscar a paz por meio do diálogo. Entretanto, a disposição do governo para o diálogo foi desacreditada após ter voltado atrás em suas posições firmadas no Acordo de San Andrés. Em 2001, o presidente direitista Vicente Fox, do Partido Acción Nacional (PAN) assume como o primeiro presidente eleito, após mais de 70 anos da ditadura do PRI. Segue com a política neoliberal de seu antecessor. Em 2003, diante da indisposição do governo em dialogar com o EZLN, os zapatistas suspenderam qualquer negociação. Notas 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9.
10. 11. 12. 13.
“Reformas procuram evitar efeitos da desagregação do campesinato”. Folha de São Paulo, Caderno Brasil, 13.07.2003. Navarro, Luis Hernández. “O café e a guerra”. Artigo publicado no jornal mexicano La Jornada, em 30.01.1994. In: Chiapas: Construindo a esperança. Florescano, Enrique. “Lutas indígenas e camponesas”. La Jornada, 01.12.1998. In: Chiapas: construindo a esperança. Buenrostro y Arellano, Alejandro. As raízes do fenômeno Chiapas: o já basta da resistência zapatista. Florescano, Enrique. “Lutas indígenas e camponesas”. La Jornada, 01.12.1998. In: Chiapas: construindo a esperança. Idem. Villoro, Luis. “O futuro dos povos indígenas / I”. La Jornada, 25.07.1998. In: Chiapas: construindo a esperança. Navarro, Luis Hernández. “Reconstrução das identidades índias”. La Jornada, 19.07.1995. In: Chiapas: construindo a esperança. Héctor Díaz-Polanco, em seqüência de artigos publicados em La Jornada no período de 25 a 28.10.1996, critica duramente a posição de Héctor Aguilar Camín, para o qual a busca indígena pela autonomia os levaria ao isolamento. In: Chiapas: construindo a esperança. Navarro, Luis Hernández. “Chiapas um ano depois”. La Jornada, 19.12.1995. In: Chiapas: construindo a esperança. Navarro, Luis Hernández. “Municípios autônomos: a razão estratégica”. La Jornada, 21.07.1997. In: Chiapas: construindo a esperança. Navarro, Luis Hernández. “O verdadeiro legislador”. La Jornada, 30.01.1996. In: Chiapas: construindo a esperança. Villoro, Luis. “O poder e o valor”. La Jornada, 12.07.1996. In: Chiapas: construindo a esperança.
14. Navarro, Fernanda. “Para pensar de outra maneira! O desafio Zapatista”. La Jornada, 21.1.1996. In: Chiapas: construindo a esperança. 15. Villoro, Luis. “Erro ou estupidez?”. La Jornada, 15.2.1995. In: Chiapas: construindo a esperança.
Bibliografia BUENROSTRO Y ARELLANO, Alejandro. As raízes do fenômeno Chiapas. O já basta da resistência zapatista. São Paulo. Alfarrabio, 2002. OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de, & BUENROSTRO Y ARELLANO, Alejandro (org). Chiapas. Construindo a esperança. São Paulo. Paz e Terra, 2002. GALEANO, Eduardo. “Artemio Cruz y la segunda muerte de Emiliano Zapata”. In: Las venas abiertas de America Latina. Buenos Aires, Catálogos, 2003, 22ª Edição. Jornal Folha de São Paulo: Reformas procuram evitar efeitos da desagregação do campesinato. Caderno Brasil, 13.07.2003. México 10 anos depois: Enfraquecidos, zapatistas têm apoio externo. Caderno Mundo, 02.01.2004.