Figuras De Mulher A Mae A A

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Tânia Navarro-Swain

Figuras de mulher em Simone de Beauvoir: a mãe, a prostituta Tânia Navarro-Swain Professora do Departamento de História da Universidade d4e Brasília. Doutora pela Universidade de Paris III Sorbone. Fez seu pós-doutorado na Universidade de Montreal, onde lecionou durante um semestre e na Universidade du Quebec à Montreal (UQAM), onde foi professora associada ao IREF, Institut de Rechereches et Etudes Féministes. Ministrou um curso de Estudos feministas na graduação e tralha em linha de pesquisa com a mesma denominação na Pós-Graduação. Resumo: A definição do ser humano como “mulher” organiza práticas sociais que de-limitam sua importância e suas atividades culturais no tempo e no espaço. No Ocidente temos visto a produção de imagens e representações negativas do feminino em épocas diversas, constituídas em densas redes discursivas interligando filosofia, teologia, medicina, direito, educação, senso comum, tradições orais e escritas. Estas imagens, longe de representarem a repetição do mesmo, de uma situação igual em todos os lugares, indicam apenas a necessidade de interação de normas, variáveis, porém construtoras de seres subjugados, ou seja, seres que escapam a todo momento das dominações impostas, que precisam da repetição incessante da disciplina para responder aos modelos requeridos. Encontramos assim a mãe e a prostituta, imagens que fizeram correr rios de tinta, desde que foram analisadas por Simone de Beauvoir, binômio inseparável da representação social das mulheres: mãe/esposa, em discursos sobre família, sexo domesticado, moralidade, espaço privado, reprodução do social; prostituta, mulher pública, liberação do vício e da devassidão latentes no feminino. Palavras-Chave: Práticas Sociais, Representações Culturais, Discursos Instituídos. Abstract: The definition of the term human being as being a “woman”, organizes social practices that delimit its importance and its cultural activities in time and space. We have seen the production of images and negative representations of the feminine character in several times. Those images are constituted in dense discursive nets which link philosophy, theology, medicine, the laws, education, common sense, oral and written traditions. Far from representing the repetition of a same situation everywhere, they simply indicate the need of interaction of norms and variables which are the builders of subdued subjects. In other words, subjects that escape of the imposed dominances at every moment and that need the incessant repetition of the discipline to answer to the requested models. In this way we find the mother and the prostitute – images that allowed rivers of ink to run, since they were analyzed by Simone of Beauvoir, who is an inseparable binomial of the women’s social representation: mother/wife, in speeches about family, domesticated sex, morality, private space, reproduction of the social; prostitute, public woman, liberation of the addiction and the latent feminine libertinism. Keywords: Social Practics, Cultural Representations, Instituted Speech.

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“O que é uma mulher?” perguntou Simone de Beauvoir em 1949 (Beauvoir,ed.1961:7). As evidências em geral tendem a se desconstruir quando analisadas atentamente: o que é o feminino, o que é a feminilidade? Fêmea ou mulher ou mulher porque fêmea? Em que ordem de evidências instituiu-se a reprodução, a procriação enquanto marco decisivo na divisão dos seres e em que ordem de representações definiu-se feminino e masculino em patamares hierárquicos e assimétricos na constituição das relações sociais? Meio século de feminismos permitiu uma intensa produção teórica a este respeito, inspirada de alguma forma pelo “On ne naît pas femme, on le devient” de Simone de Beauvoir (Beauvoir,ed. 1966,13), obra incontornável para os feminismos contemporâneos. A releitura do “Segundo Sexo” em 1999 permite a atualização de reflexões em torno dos papéis e dos corpos sexuados, constituídos em identidades sexuais. Entretanto, se as teorias feministas continuam a desenvolver sua análise crítica do social, debruçando-se sobre os mecanismos constitutivos da divisão dicotômica do humano e do próprio esquema binário de construção da realidade, os movimentos feministas vêm perdendo seu lugar de fala, sua força subversiva, na me-dida em que decretou-se, no senso comum e nos mídia, que o feminismo acabou, que a igualdade foi conseguida, que as mulheres já ocupam seu lugar ao sol. Tenho ouvido jovens universitárias perguntarem candidamente se é possível ser feminista e feminina, mas sobretudo, indagarem se os feminismos são ainda necessários. Simone de Beauvoir questionava a noção de feminilidade em 1949 e 50 anos depois as imagens do “ser mulher”, do “ser feminina” permanecem ancoradas no imaginário social, traduzidas em trejeitos e modelos normatizadores que reiteram a naturalização dos papéis sociais. Quantas mulheres recusam os feminismos, receosas da assimilação às lesbianas, às “mal-amadas”, às

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“feias”, às excluídas do desejo e do olhar dos homens, sem perceber que continuam a se colocar enquanto o Outro do “verdadeiro” sujeito, o masculino, assujeitando-se às normas da beleza, da sedução, enquanto eixos norteadores de suas vidas? Quantas mulheres percebem que se atrelam a um destino “natural”, o da “verdadeira mulher”, mãe e esposa, cumprindo os desígnios das representações sociais institucionalizadas? Um olhar mais amplo percebe, sob o verniz de “conquistas” liberais em tempos de globalização, a multiplicidade de experiências no espaço vivido das mulheres: a desigualdade de salários e de oportunidades, a pobreza e o analfabetismo preferencialmente feminino, a violência específica que sofrem em seus corpos e em seu lugar no mundo, a eliminação sistemática de bebês-meninas em certos países, a mutilação sexual, a banalização da prostituição, todas formas de violência social contra as mulheres enquanto mulheres. A definição do ser humano como “mulher” organiza práticas sociais que delimitam sua importância e suas atividades culturais no tempo e no espaço. No Ocidente temos visto a produção de imagens e representações negativas do feminino em épocas diversas, constituídas em densas redes discursivas interligando filosofia, teologia, medicina, direito, educação, senso comum, tradições orais e escritas. Estas imagens, longe de representarem a repetição do mesmo, de uma situação igual em todos os lugares, indicam apenas a necessidade de interação de normas, variáveis, porém construtoras de seres subjugados, ou seja, seres que escapam a todo momento das dominações impostas, que precisam da repetição incessante da disciplina para responder aos modelos requeridos. A construção e desvalorização do ser “mulher” aparecem como resultado da idéia de uma essência jungida à um corpo deficiente, à um espírito fraco e superficial, a uma moral escorregadia e duvidosa que pedem uma vigilância constante e a domesticação de seus pendores para o deslize e o mal. Benoîte Groult Caderno Espaço Feminino, v. 11, n. 14, Jan./Jul. 2004

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(Groult, 1993) publicou um livro que reúne as pérolas destiladas ao longo do tempo sobre as mulheres, mesclando os discursos de autoridade dos Aristóteles, Paulo, Agostinho, Tomas de Aquino, Jerônimo, Crisóstomo e outros padres da Igreja, dos Lutero, Freud, Rousseau, Proudhon, Nietszche, Hegel, dos Baudelaire, Musset, Balzac , Rabelais etc, que as condenam à ignorância, à domesticidade, à submissão, ao silêncio, à penitência e à resignação, dada sua “natural” inferioridade , marcada em seu corpo ao nascer, pelo estigma e a maldição do feminino, “segundo sexo”, macho mutilado e imperfeito. Diabolizado desde a lendária Eva, (Delumeau, 1978) o feminino seria, porém, resgatado em seu próprio corpo pela fecundidade, pela possibilidade de reproduzir o humano e sobretudo, o masculino (apud Paulo, Epístola Coríntios). Em seu lado obscuro, portanto, toda mulher deveria carregar o pecado e a fraqueza moral e em seu lado luminoso, o dever e a alegria da maternidade.

O eterno esquema binário 1 Evidentemente existe uma enorme literatura a este respeito, mas escolhi basearme o livro de Simone de Beauvoir como um discurso inaugural das críticas e análises feministas sobre a apropriação dos corpos transformados em mulheres; estas reflexões teóricas centram-se, na atualidade, nas questões de subjetivação, identidade e construção corpórea do feminino social. 2 Ver por exemplo, a este respeito, as análises feministas dos anos 1970, feitas por Monique Wittig, Adrienne Rich, Christine Delphy, Carole Pateman, Collete Guillaumin, Nicole-Claude Mathieu, Gayle Rubin.

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Encontramos assim a mãe e a prostituta, imagens que fizeram correr rios de tinta, desde que foram analisadas por Simone de Beauvoir1, binômio inseparável da representação social das mulheres: mãe/esposa, em discursos sobre família, sexo domesticado, moralidade, espaço privado, reprodução do social; prostituta, mulher pública, liberação do vício e da devassidão latentes no feminino. Estas categorias, que habitam a imagem do feminino são fundadas nas premissas da heterossexualidade e nas matrizes institucionais do patriarcado2. Assim, as mulheres só realizariam seu ser no mundo no encontro incontornável com o masculino, para dar-lhe uma descendência e apaziguar seu desejo. A maternidade seria seu destino e sua transcendência, a prostituição a imanência na impureza de seu sexo.

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O capítulo sobre a maternidade em Simone de Beauvoir é longo, invocando testemunhos e exemplos em sua argumentação. O que salta aos olhos é sua dimensão política, na medida em que desde o início se concentra em uma longa análise da questão do aborto, da liberdade que deve acompanhar a decisão de ser mãe; aponta para a hipocrisia social que impede o aborto e se desinteressa pela criança ao nascer (Beauvoir, 1966:291). Todo o início de seu discurso sobre a maternidade é um debate sobre a liberação do aborto, as condições psicológicas das mulheres cuja gravidez é indesejável e a necessidade do controle de nascimento. Afirma que “[…] O “birth-control’ e o aborto legalizado permitiriam à mulher assumir livremente sua maternidade. […] Gravidez e maternidade são vividas de maneira muito diferentes, de acordo com suas circunstâncias, na revolta, resignação, satisfação, entusiasmo” (idem,301). Assim, desnaturaliza uma questão que finalmente é moral e histórica, inserida em uma trama de valores que se travestem em verdades definitivas. A maternidade perde assim seu caráter inexorável e toma em sua análise uma perspectiva de retomada de seus corpos pelas mulheres, identificando na procriação compulsória uma das chaves do poder patriarcal. De Beauvoir discute e desmistifica o desejo de maternidade, o amor materno como partes constitutivas do feminino. Sublinha que “[…] É preciso estar atento pois as decisões e os sentimentos expressos pela jovem mãe não corresponde sempre à seus desejos mais profundos”(idem, 301). Afastando o essencialismo que fixa as mulheres numa classificação e num modelo único, tenta mostrar o múltiplo da experiência concreta das mulheres em práticas sociais diversas. Mostra a relação contraditória das mulheres em relação à vontade de ser mãe em diferentes fases de suas vida ou num misto de desejo/repulsa. Indica igualmente a força da relação com o pai da criança: “A mulher modelará muitas vezes seus sentimentos Caderno Espaço Feminino, v. 11, n. 14, Jan./Jul. 2004

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sobre os de seu marido se lhe tem afeto: acolherá gravidez e maternidade com alegria ou desagrado segundo ele demonstre orgulho ou impaciência”, afirma (idem, 306). Esta contextualização do amor materno é inovadora na medida em que o discurso social torna inseparável a imagem da “verdadeira mulher” e da mãe. As mulheres tornar-se-iam sexo e sexualidade, na medida em que seu ser só atinge a plenitude na prática heterossexual. O corpo das mulheres só seria inteligível se adequado às matrizes determinantes de sua ação e de suas imagens. Inserida nesta trama de representações Simone de Beauvoir, mesmo desconstruindo o essencialismo, nele recai ao declarar que: “É pela maternidade que a mulher cumpre integralmente seu destino fisiológico: é sua vocação ‘natural’ pois todo seu organismo é orientado pela perpetuação da espécie”(idem, 290). Esta afirmação é, entretanto, matizada, pois para ela “[…] a sociedade humana não é nunca apenas natureza” (idem, 290). Temos assim, para a autora, uma base ‘natural’, biológica, sobre a qual se inscreveriam os ditames sociais: “[…] diz-se de uma mulher que se ela é coquette, ou apaixonada ou lésbica ou ambiciosa é ‘por não ter filhos’; sua vida sexual, seus objetivos, os valores que afirma seriam apenas substitutos de filhos. […] É uma moral social e artificial que se esconde sob este pseudonaturalismo. Que uma criança seja o fim supremo da mulher, isto é uma afirmação que tem apenas o valor de um slogan publicitário” (idem,338). As mulheres retomam, desta forma, a posse de seu corpo enquanto ser social, cujo destino deixa de ser atrelado a seu potencial reprodutor: este passa a ser uma escolha, livre, de um sujeito no mundo. A possibilidade aqui, apaga a necessidade. A construção social dos papéis surge claramente nesta análise, marco importante na quebra da imagem que fazia da maternidade a essência e a razão de ser da mulher, núcleo

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de coerência do feminino. De Beauvoir considera que “[…] não existe ‘instinto’materno: a palavra não se aplica de forma alguma à espécie humana. A atitude da mãe é definida pelo conjunto de sua situação e pela maneira pela qual ela se assume. E é, como vimos, extremamente variável” (idem,324). As reflexões teóricas dos feminismos que se seguiram analisaram este determinismo biológico e identificaram na construção e na apropriação dos corpos das mulheres o aparatus histórico e social da divisão binária da sociedade. Deste modo a declaração do naturalismo “[…] que o status de um grupo humano, como a ordem do mundo que assim o instaura, é programado do interior da matéria viva”(Guillaumin, mars 1978:10) é criticada por Collete Guillaumin: “É uma idéia singular que as ações de um grupo humano, de uma classe, são ‘naturais’: que elas são independentes das relações sociais, que elas pré-existem à toda história, à todas condições concretas determinadas” (Guillaumin, mars 1978:11). Betty Friedan, por sua vez, analisa a mística do feminino, e o assujeitamento das mulheres americanas: “A mística da mulher pretende que o único valor para uma mulher e seu único dever residem na realização de sua feminitude. […] que não pode desabrochar senão na passividade sexual, na aceitação da dominação do marido e o dom de si no amor (Friedan, 1963: 40/41). Para esta autora, tão denegrida e vilipendiada à época, a imagem desta mulher dos anos 50/60 se resume na definição: “profissão-do lar” (Friedan, 1963: 41). E acrescenta: “Um mundo sem fronteiras se reduzia às dimensões de um lar quente e confortável” (Friedan, 1963: 41). A análise de Friedan, que traduz as mesmas inquietações de Beauvoir penetra, entretanto, mais profundamente nos mecanismos representacionais que instituem o feminino enquanto essência imutável: “Quando uma mística é suficientemente forte ela encarna sua própria representação nos fatos. Ela se alimenta nos Caderno Espaço Feminino, v. 11, n. 14, Jan./Jul. 2004

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3 O volume 3 das Dames du XII siècle de Georges Duby (Gallimard, 1996) nos traz os indícios da construção discursiva, pelo discurso religioso, das representações de perversidade intrínseca das mulheres e sobretudo, da instituição do casamento e da sexualidade heterossexual, como elemento de ordenação do mundo, em uma realidade composta de práticas múltiplas. O autor, entretanto, adota esta linha de análise.

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fatos que deveriam contradize-la e se infiltra em cada interstício da cultura […]” ( Friedan, 1963: 61). De Beauvoir comenta, porém, que “[…] quantidade de mulheres são intimidadas por uma moral que mantém a seus olhos seu prestígio, mesmo se elas não podem seguí-la em sua conduta […] (Beauvoir, 1966: 298). Se entendemos as representações sociais como uma forma de conhecimento socialmente elaborada e partilhada, que nas relações sociais institui a realidade (Jodelet,1989:36) podemos entender, assim, o assujeitamento das mulheres a um saber elaborado em lugares de autoridade que as reduz a um corpo/sexo/ matriz. A instituição social do casamento e a maternidade como seu corolário aparece nestas imagens constitutivas do “ser mulher” como o locus ideal do feminino no social; entretanto, a análise feminista vai além desta cristalização de um destino binário do mundo, identificando a matriz heterossexual como o mecanismo produtor de corpos “diferentes” e complementares, inexoravelmente ligados.3 Assim, em 1981, Adrienne Rich indaga se: “[…]a grande questão do feminismo […] não é também a da heterossexualidade obrigatória para as mulheres, como meio de assegurar um direito masculino de utilização física, econômica e afetiva sobre as mulheres? (Rich, 1981:31). E continua “Mas a incapacidade de ver na heterossexualidade uma instituição é da mesma ordem que a incapacidade de admitir que o sistema econômico nomeado capitalismo […] é mantido por um conjunto de forças que compreendem tanto a violência física quanto a falsa consciência” (Rich, 1981:31). De fato, a diferença biológica adquire sua importância num conjunto semiótico e simbólico, que tem como referente a reprodução; no sistema representacional do patriarcado, onde o masculino se erige como norma do humano, pólo hierarquicamente superior, a capacidade de procriação do feminino torna-se o próprio feminino.

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Isto faz do ser humano, mulher, a fêmea humana, cuja existência se justifica apenas na sua capacidade de reprodução. Guillaumin sublinha que “[…] ideologicamente as mulheres são o sexo, inteiramente sexo e utilizadas neste sentido […]. O sexo é a mulher, mas ela não possui um sexo: um sexo não pode possuir a si mesmo” (Guillaumin, mars 1978:7). No confinamento da mulher à sua função reprodutiva, Beauvoir já comentava que “[…] ela engendra na generalidade de seu corpo, não na singularidade de sua existência” (Beauvoir, 1966:308). Assim, por um lado, o discurso da ‘natureza’ faz da possibilidade de procriação a essência das mulheres, tirando-lhes ao mesmo tempo o papel de sujeito e a posse de seu corpo; por outro, a instituição do casamento em particular e da heterossexualidade obrigatória em geral fazem com que as mulheres possam ser apropriadas individual e coletivamente pelos homens em sua força de trabalho e na produção de sua sexualidade. Tecida em uma densa rede discursiva que entrelaça memória, tradição e autoridades diversas a representação da verdadeira mulher “mãe e esposa”, “do lar”, é ainda hoje a imagem e o quotidiano da maioria das mulheres. A multiplicidade dos desejos e da experiência das mulheres, já apontadas por Simone de Beauvoir, tende a se fechar em torno da homogeneização do Mesmo. O eterno feminino, está assim presente nas tecnologias de reprodução do gênero: o senso comum, os mídia em suas diferentes formas (televisão, cinema, impressos) e os discursos sociais dotados de autoridade (religioso, político, médico, jurídico, científico). A análise de Beauvoir em 1949 é ainda totalmente válida em nossos dias, ao analisarmos revistas femininas como Nova, Elle, Marie Claire: “Os jornais femininos ensinam abundantemente à mulher ‘do lar’ a arte de permanecer atraente sexualmente mesmo lavando a louça, de continuar elegante na gravidez, de Caderno Espaço Feminino, v. 11, n. 14, Jan./Jul. 2004

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conciliar coquetterie, maternidade e economia […]” (idem, 342), comenta de Beauvoir.

A banalização da prostituição

4 Ver Merlin Stone. “Quand Dieu était femme”. Ed. Ètincelle, Montréal, 1979.

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Isto nos leva à figura da prostituta, o lado sombrio e negativo da representação construída sobre a mulhermãe na historicidade discursiva ocidental. Simone de Beauvoir inicia seu capítulo sobre a prostituição afirmando que “o casamento […] tem como correlato imediato, a prostituição” e cita Morgan, que, em seu evolucionismo, assegura a existência da prostituição desde o início dos tempos. A famosa frase “a mais antiga profissão do mundo” cria e reproduz a idéia da existência inexorável da prostituição; nesta asserção é mantida no senso comum a noção da essência maléfica e viciosa das mulheres que através dos tempos se concretiza na figura da prostituta. Beauvoir se insurge contra esta afirmativa e declara que “nenhuma fatalidade hereditária, nenhuma tara fisiológica pesa sobre elas (as prostitutas)” (idem, 377). Delimitada pela noção de essência e permanência, a prostituição vai perdendo sua historicidade e a própria variação semântica da palavra desaparece sob generalizações no mínimo insustentáveis. Por exemplo, a “prostituição sagrada” na antiguidade dos povos orientais é uma interpretação anacrônica, pois insere em valores do presente – o sexo mercantilizado – a análise de um ritual simbólico de renovação da vida.4 Mas assegura, no discurso oficial, a representação das mulheres enquanto prostitutas desde a aurora dos tempos conhecidos. A questão é igualmente aqui: o que é uma prostituta? Cada época tem sua definição e seus limites que vão desde a mulher que não é casada e tem um amante até a profissão que ela exerce, como até pouco tempo, no Brasil, as aeromoças. Se o termo contém uma suposta relação mercantil, a representação da prostituta

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atinge todas aquelas que não se enquadram na norma da esposa-mãe. Beauvoir afirma que “a prostituta é um bode expiatório; o homem descarrega nela sua torpeza e a renega” (idem, 376) e continua […] a prostituta não tem direitos de uma pessoa, nela se resumem, ao mesmo tempo, todas as figuras da escravidão feminina.” E descreve o que significa para ela a prostituição: “a baixa prostituição é um trabalho penoso onde a mulher oprimida sexualmente e economicamente, submetida ao arbítrio da polícia, à uma humilhante vigilância médica, aos caprichos dos clientes, destinada aos micróbios e à doença, é realmente submetida ao nível de uma coisa” (idem, 389). Afirma ainda que “[...] a maior parte das prostitutas estão moralmente adaptadas à sua condição; isto não significa que elas sejam congenitamente ou hereditariamente imorais, mas que se sentem, com razão, integradas à uma sociedade que reclama seus serviços” (idem, 388). Estas frases contém um sem-número de questões: a prostituição como o resultado de relações sociais hierárquicas de poder; como resultado igualmente de uma situação moral invertida; como objetificação total da mulher nas instâncias sexual e econômica submetida à ordem masculina; como instituição partícipe do funcionamento do sistema patriarcal; como uma forma de trabalho. Estes indícios analíticos irão alimentar o debate feminista posterior, como veremos adiante. De Beauvoir analisa as possíveis causas que levariam as mulheres à prostituição e em sua argumentação transparece uma passividade, uma lassidão, uma indiferença ligada inclusive à classe social. Para a autora, no meio camponês “[…] há um grande número de jovens que se deixam deflorar pelo primeiro que aparece e que acham natural em seguida, dar-se a qualquer um” (idem, 379). Acrescenta ainda: “[…] elas haviam consentido com indiferença, sem sentir nenhum prazer” (379). Os exemplos que invoca, de ingenuidade, deiCaderno Espaço Feminino, v. 11, n. 14, Jan./Jul. 2004

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xam, entretanto, perceber o estupro e a violência na vida das prostitutas: “Srta.G. de Bordeaux, saindo do convento com 18 anos, deixa-se levar por curiosidade e sem malícia à uma tenda onde é deflorada por um desconhecido” (idem, 379), […] S., com 14 anos, deflorada por um jovem que a atrai para sua casa sob o pretexto de apresentar-lhe sua irmã”, etc(idem, 380), exemplifica. A este respeito, Beauvoir comenta: “Estas jovens que cederam passivamente, sofreram com certeza o traumatismo do defloramento; gostaríamos de saber a influência psicológica que esta brutal experiência teve sobre seu futuro; mas não se psicanalisa “as putas”, elas não sabem se descrever e se escondem sob os clichês” (idem, 380). Meninas abandonadas pelos pais, pelos amantes ou maridos, falta de oportunidade de trabalho, falta de capacitação, sedução e exploração, escravidão sexual, medo, são causas arroladas por Beauvoir para a prostituição. Coloca portanto, sob o signo do social a existência da prostituição num contexto de violência implícita ou explícita, desmascarando “a mais antiga profissão do mundo”. Entretanto, faz uma diferença entre a prostituta e a hetaïra, da qual a “star” seria o último avatar, pois para a autora “Sempre houve entre a prostituição e arte uma passagem incerta, pelo fato que se associa de forma equívoca, beleza e voluptuosidade” (idem, 390). E define: “[…] sirvo-me da palavra ‘hetaïra’ para designar todas as mulheres que tratam, não somente seus corpos, mas sua personalidade inteira como um capital à explorar” (idem,390). Por um lado Beauvoir desnaturaliza a prostituição e aponta para um sistema de poder e violência, que arrasta grande número de mulheres à prostituição; por outro, analisa as vedettes como “grandes” prostitutas, que escolhem esta condição para melhor se promover. Ou seja, é uma decisão de carreira e neste caso, a profissão passa pelo corpo, obstáculo ou força, mas

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sempre intermediário: a mulher é seu corpo. Neste caso, diz Beauvoir: “[…] paradoxalmente, as mulheres que exploram ao extremo sua feminitude criam uma situação quase igual à de um homem; a partir deste sexo que as dá aos machos como objetos, elas se reencontram sujeitos (idem, 392). E acrescenta […] o dinheiro tem um papel purificador [...] fazer o homem pagar […] é transformá-lo em instrumento [...] a posse sexual é ilusória, é ela que o possui no terreno mais sólido da economia” (idem, 393). Este argumento é retomado nos dias atuais em termos de poder: a mulher teria algo tão desejável que faria o homem se submeter a pagar por isto, diz a revista Nova em 1999. O patrão que paga um salário torna-se assim instrumento e posse de seu operário? Que estranho poder é este que deteria o vendedor, tributário do comprador? Que tipo de raciocínio é este que seria destruído em segundos por qualquer estudante de economia e se sustenta na análise da prostituição? De toda maneira, o dinheiro ganho pelas prostitutas raramente fica em suas mãos. Em nossos dias, o debate gira ainda em torno destas questões: Beauvoir conseguiu identificá-las e os termos de sua análise, mesmo que modificados, ainda estão presentes.5 De fato, no estupro e no abandono material e psicológico encontram-se raízes da prostituição; no aliciamento para o mundo artístico, inumeráveis jovens desaparecem no tráfico de internacional de mulheres; muitas são vendidas e confinadas em bordéis; no apelo ao consumo e na falta de oportunidades de trabalho, na ausência de capacitação profissional e mesmo de alfabetização, outras passam a vender seus corpos. Estas são situações de fato, levadas em conta pelos feminismos quando se debruça sobre a experiência singular das mulheres, colocando-se em sua defesa e proteção. Sob a égide da legalização da prostituição encontram-se estes casos díspares e um imenso mercado que mal disfarça seus interesses. A mercadoria é

5 O debate feminista atual sobre a prostituição tem se dividido em dois campos: o que defende a prostituição como profissão e o que advoga a extinção da prostituição pelos mais diversos meios.

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o corpo ou o sexo das mulheres e meninas. Por vários motivos, a prostituição não pode ser assimilada a um trabalho, a uma profissão: numa relação profissional ou mercantil, o que se vende é o trabalho ou o produto do trabalho. Na prostituição, o corpo das mulheres seria seu produto? Como ser força de trabalho e ao mesmo tempo seu produto? Isto é a re-naturalização do sexo feminino, a sua transformação de ser hu-mano em carne, cujo destino é a satisfação do desejo de outrem. Confundir prostituição e trabalho é dotá-la de uma dignidade que não possui no imaginário e na materialidade social – o linguajar popular exprime o desprezo social em relação à prostituta ao usá-la como um dos insultos máximos. É a forma falaciosa de justificar o completo assujeitamento das mulheres a seu corpo sexuado, mergulhando-as na total imanência. É a melhor maneira de perpetuar a prostituição, igualmente, na medida em que as próprias mulheres defenderiam sua profissionalização, para escapar ao opróbrio, às perseguições legais e à própria auto-representação, fincada num imaginário de degradação. Assim, discriminalizar é uma coisa e profissionalizar é algo muito diferente: discriminalizar é proteger as mulheres prostituídas do arbítrio legal e da exploração dos cafetões; profissionalizar é integrá-la ao funcionamento do mercado de trabalho, banalizando e normalizando a apropriação das mulheres pelos homens, na expressão paroxística da matriz heterossexual, na reafirmação do patriarcado enquanto sistema. A prostituição é, portanto, uma instituição social que materializa a apropriação geral da “classe” dos homens em relação à “classe das mulheres”, (Guillaumin, 1978) historicamente constituída nas relações sociais e que tende a ser naturalizada. A prostituição enquanto “escolha” de uma “profissão” obscurece a profunda esquizofrenia do olhar lançado sobre as prostitutas, destituídas de toda perspectiva psicológica, capazes de cindir, no exercício da se-

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xualidade, da “ profissão” , seu corpo e sua mente, seu corpo e suas emoções. Evidentemente, os consultórios de psicólogos e psicanalistas estão repletos de mulheres e homens com problemas sexuais; as prostitutas, entretanto, não são afetadas por estas disfunções, já que se trata de um “trabalho”, de uma “escolha”. As imagens que são produzidas pela televisão, pelo cinema, pela literatura, mostram os bordéis como casas de alegre convivência, de felizes encontros, de doces recordações – para os homens talvez – escondendo a sombria realidade de seres despojados de seu corpo e de sua humanidade. Imersa em suas condições de produção e limitada pelos instrumentais teóricos de que dispunha, Simone de Beauvoir pode, entretanto, detectar as questões que hoje ainda fazem problema.6

Pequena questão final Falar constantemente de maternidade e de prostituição como construções binárias do feminino, não é, finalmente, reinstalá-las no discurso social, refazer a dicotomia, mesmo ao criticá-las? A materialidade das relações sociais apelam, entretanto, para um posicionamento político e a análise crítica é um dos vetores que pode rasgar as tramas dos discursos e suas práticas.

6 A escolha de referências de autoras feministas dos anos 1970 é proposital, na medida em que aponta para o vigor das análises realizadas à época e retomadas, em vários casos, por autoras de renome na atualidade, como Judith Butler e Teresa de Lauretis.

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Figuras de mulher em Simone de Beauvoir: a mãe, a prostituta

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Caderno Espaço Feminino, v. 11, n. 14, Jan./Jul. 2004

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