EM QUE DEUS CREMOS? Pe. Murah Rannier Peixoto Vaz Após refletirmos sobre a fé, a capacidade humana de intuir a existência de Deus, se faz necessário refletir sobre quem é esse Deus? O Deus dos cristãos é um Deus comunidade, formado por 3 pessoas tão perfeitamente unidas no amor que formam um único Deus. Nesse primeiro encontro refletiremos sobre a 2ª pessoa da Santíssima Trindade, o Filho: Jesus Cristo, pois é Jesus quem nos introduz nesse mistério trinitário. QUEM É JESUS? Jesus é a pessoa mais conhecida da face da terra. Muito se fala e muito se escreve sobre, nem sempre com exatidão, e às vezes até distorcendo a sua figura. Vamos tentar recordar alguns dados biográficos acerca dele: Nasceu em Belém, a cidade do rei Davi, no tempo do rei Herodes. Teria vivido por um período na sua infância na região do Egito. Foi criado em Nazaré, pequena aldeia da Galileia, o que levou-o a ser chamado por vezes de Nazareno e também Jesus de Nazaré. Sua mãe era Maria e seu pai adotivo era José. Era carpinteiro, profissão aprendida de seu pai adotivo. Tinha por volta de 30 anos quando assumiu a sua missão e foi crucificado cerca de 3 anos depois. No Credo rezamos dizendo que “foi crucificado sob Pôncio Pilatos”. O fato do nome de Pilatos aparecer ali indica o tempo em que ele foi crucificado, era o período em Pilatos era o governador da Judéia, ou seja, Jesus é um personagem histórico, real e concreto, não é uma história inventada ou um “conto da carochinha”, mas alguém que viveu realmente. Aponta também uma realidade política, pois a cruz era o modo romano de condenar alguém a morte e aquele período era um período situado dentro da dominação romana de toda a região do oriente.
JESUS É O CRISTO Uma questão que precisa ser levantada e problematizada é a forma como a expressão “Jesus é Cristo” acabou por ser absorvida ao longo do desenvolver da história e acabar por ser tido como o sobrenome de Jesus. No entanto, a palavra Cristo (do grego Christós e do hebraico Meshiah) significa ungido. Portanto, toda vez que aparece o termo Cristo ou Messias relacionado a Jesus, significa que está se fazendo uma profissão de fé afirmando-se que Jesus é o “ungido de Deus Pai”. No AT a unção era feita aos reis, aos sacerdotes e, em alguns casos mais raros, aos profetas. O NT no ato do nascimento de Jesus traz o anúncio de quem ele é pela boca de um anjo: “Hoje nasceu para nós um Salvador que é o Cristo Senhor” (Lc 2,11). Também em outra passagem se afirma: “aquele que se chama Cristo, nascesse da esposa de José na descendência messiânica de Davi” (Mt 1,16).
O próprio nascimento de Jesus, enquanto sua encarnação, o seu fazer-se homem, é uma obra do Espírito Santo, que é aquele que é a própria unção (Cf. Mt 1,21). Sobre isso podemos afirmar aquele que o ungiu é o Pai, aquele que é ungido é o Filho e o foi no Espírito Santo, que é a própria unção. Mas o que significa dizer que Jesus é o ungido de Deus Pai (Cristo/Messias)? O AT aponta algumas profecias, entre elas de que da casa (descendência) de Davi sairia um homem que seria o Messias/Cristo, e que ele viria para ser uma espécie de líder, um rei, para guiar e governar Israel e seu povo, conduzindo-o à sua realização, prosperidade e paz. Mas interpretavam esse Messias como um líder político e humano para instaurar um Reino nessa terra. Sobre isso, diversas passagens apontam Jesus com o título messiânico de “Filho de Davi” (Jo 6,15, Lc 24, 21), como no caso do cego Bartimeu que gritava à beira do caminho: “Filho de Davi, tende piedade de mim”. Entre as profecias também havia no livro do profeta Isaías duas outras: uma delas fala sobre o servo sofredor, sobre o qual seriam lançados todos os pecados do povo e ele que era sem pecado os carregaria sobre si. Também no livro do profeta Isaías é dito que nasceria um filho de uma virgem e ele seria chamado de Emanuel, ou seja, Deus conosco. Sobre essa realidade, o profeta Jeremias chega a dizer que Deus mesmo virá para ser o pastor de seu povo e Ele mesmo o alimentará e apascentará. Todas essas profecias, aparentemente separadas uma da outra, se unem e se cumprem em Jesus, nele todas as profecias do AT foram sintetizadas e realizadas.
JESUS É DEUS OU NÃO? Algumas vezes perguntamos a algumas pessoas: “Jesus é Deus?” e elas dizem quase imediatamente: “Não, Jesus é o Filho de Deus, mas ele não é Deus”. E aí, está correta essa expressão? Como explicar? Antes de entrarmos em grandes discussões e debates eu resumiria em um ditado popular: “Filho de peixe, peixinho é”. Portanto, Jesus é sim Deus, Jesus é Deus com o Pai e o Espírito Santo. Dizer que Jesus é “Filho de Deus” significa que Ele é da mesma essência do Pai, ou seja, Jesus é Deus. A afirmação “Jesus é o Filho de Deus” é o fundamento da fé inicial dos apóstolos, tanto é que era uma afirmação que incomodava aos judeus, pois era afirmar que ele era Deus. Quando Jesus foi interrogado pelo Sumo Sacerdote: “És tu o Cristo, o Filho de Deus bendito? Ao que respondeu: Eu o sou (Mc 14, 61-62)”. “O Sumo Sacerdote então rasgou as vestes e disse: Para que desejamos ainda testemunhas? (...) Ouvistes a blasfêmia. Que vos parece? E unanimemente o julgaram merecedor da morte” (Mc 14,64-65). Pode surgir uma nova dúvida: “Mas nós também não somos filhos de Deus? Sim, mas o somos a partir do nosso batismo. Jesus é o Filho único de Deus, mas pelo batismo por participarmos de sua vida, em cujo corpo fomos inseridos, como que enxertados nele, mas nós não éramos filhos antes do batismo, e sim criaturas de Deus. Éramos criaturas, e criaturas muito amadas, por sinal, mas o batismo nos fez filhos no Filho, nos elevando a uma outra condição.
Uma das passagens mais óbvias e claras sobre a divindade de Cristo é o momento em que Tomé se encontra com Jesus ressuscitado e expressa: “Meu Senhor e meu Deus” (Jo 20,20). A segunda parte está bem clara, mas a primeira também está para quem é da região de Jesus. A nós que não conhecemos tanto da cultura ou da tradição judaica pode parecer meio obscuro e não percebermos. Vejamos então esse significado: o termo Senhor vem de Kyriós, que é a tradução grega do termo hebraico Adonai que também significa Senhor e era aplicado para falar de Deus. Para aprofundar um pouco mais na divindade de Jesus seria bom vermos algumas passagens: O Evangelho de João em seu primeiro capítulo faz questão de destacar a divindade de Jesus e de sua preexistência eterna junto ao Pai: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio junto de Deus. Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito (Jo 1,1-3)”. Portanto, o poder, a honra, a glória e a adoração devida ao Pai, também o são devidos à Jesus. Se analisarmos o próprio nome Jesus, que deriva do hebraico Yeshuah, significa “Deus Salva” ou também “Deus é salvação”.
JESUS É HUMANO? Parece estranho levantar essa questão, mas depois de uma primeira dificuldade em aceitar a divindade de Jesus por parte de alguns teólogos do primeiro e segundo séculos, o pêndulo da história virou de lado e após algum tempo passou-se a ter dificuldade em aceitar a humanidade de Jesus, pensando-se que ele fosse apenas Deus. Um dos questionamentos era: “Como Deus pode morrer?” Jesus se faz solidário a nós em tudo, assumindo na totalidade a nossa condição humana, se fazendo homem e assumindo até mesmo a morte. Sobre isso podemos ver algumas passagens: “O Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). “Sendo ele de condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus. Mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e assemelhando-se aos homens. E, sendo exteriormente reconhecido como homem, humilhou-se ainda mais, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz” (Fil 2,5-8). “Formaste-me um corpo” (Hb 10,5-7). “Foi manifestado na carne” (1 Tm 3,16).
Jesus é o ungido de Deus Pai que vem para guiar e conduzir o seu povo, é aquele que vem para nos resgatar do pecado, assumindo sobre si nossas culpas. Tomando sobre si o pecado, ele religa o que estava separado. A exemplo da cruz, com sua trave vertical, ele une de novo céu e terra, Deus e os homens, e, com sua trave horizontal, une a
humanidade entre si. Ele é Deus conosco, um Deus que não se contenta em ficar nas alturas, longe de nós, mas que desce à nossa condição humana e vem se fazer próximo de nós. O Deus cristão é o Deus único e verdadeiro, o qual vê a condição de seu povo, ouve o seu clamor e desce para habitar no meio de nós. Em Jesus, Deus se despoja de sua glória, poder, eternidade, e imortalidade, para assumir nossa condição humana frágil, finita, mortal. Portanto, Jesus é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, sendo 100% Deus e 100% homem, ou seja, uma pessoa e duas naturezas (humana e divina). Jesus veio ao mundo para construir com a humanidade a amizade que Deus já tinha querido construir no princípio, como vimos no relato do Gênesis, mas ali havia uma relação de criatura e Criador, onde há um desnível que desequilibra a relação. Deus já tinha a intenção de colocar-nos numa condição de igualdade, mas a humanidade é muito impaciente e apressada, quis chegar à condição divina sem Deus, não como Deus, e colocando-se no lugar de Deus. Quando isso acontece é sempre um risco, pois “o apressado come cru ou queima a língua”. A serpente falando sobre o fruto, sinal do limite humano, nossa distinção com Deus que é ilimitado, afirma que quando o fruto fosse comido, Adão e Eva seriam como deuses. Até o momento Eva não via necessidade alguma no fruto, mas ao ser dita a mentira, surgiu em Eva a soberba que a fez mudar de ideia e se ver atraída pelo fruto. Tomou-o e o comeu, mas não se tornou deusa. Muito pelo contrário, perdeu tudo que tinha e não ganhou nada. Porém, o projeto de Deus não mudou, e Jesus vem insistir em instaurar essa amizade de um modo pleno. Jesus faz o caminho inverso ao nosso: o da humildade e do rebaixamento. Em Jesus, Deus desce à nossa condição humana e agora não há mais o abismo de criatura e Criador, pois o Criador assumiu a condição de criatura. Todavia, em um segundo momento, Jesus faz um movimento de subida. Ele que havia se rebaixado se eleva novamente à condição de glória, poder e divindade, mas não abandona a sua humanidade. Pelo contrário, Jesus eleva a condição humana à uma divina condição, além de nos fazer também filhos muito amados de Deus Pai. Essa divina condição é uma realidade que participamos desde já, mas ainda não em sua plenitude, pois isso só se consumará plenamente no fim dos tempos.
O AGIR DE JESUS E O AGIR DO CRISTÃO Jesus era um homem de comunhão, tanto com o Pai quanto com os irmãos. Antes de cada decisão, Jesus se retirava para estar a sós em oração e comunhão com o Pai. Ensinou também os seus discípulos a orar, chamando também eles a Deus de Pai. No momento crucial do enfrentamento da cruz, Jesus também foi buscar forças na oração. A palavra oração em latim e em português (oratio-oração) traz uma alegre coincidência, parece nos convidar a ir uma em direção a outra, ora e age, reza e trabalha. Oração e ação são fundamentais no caminho do seguimento e imitação de Jesus. Segundo o livro dos Atos dos Apóstolos, Jesus “Passou por esse mundo fazendo o bem” (At 10,38), demonstrando o amor de Deus encarnado em gestos, palavras e ações. No Evangelho de São Lucas, após o seu batismo por João Batista, ele entra na sinagoga, toma o rolo de Isaías e proclama: “‘O Espírito do Senhor está sobre mim e ele me ungiu e me enviou para proclamar a boa nova aos pobres, a libertação aos cativos, a recuperação
da vista aos que estão cegos e o ano da graça do Senhor’. Depois de ter proclamado a leitura, fechou o rolo, sentou-se e disse: Hoje se cumpriu essa passagem das escrituras” (Lc 4,18). Jesus nos apresenta em seu agir a doação de si mesmo, o espírito de sacrifício e de serviço, e tudo isso porque tem algo que o motiva: o amor pela humanidade. O agir do cristão deve se assemelhar ao agir de Jesus, a uma imitação de sua pessoa, e isso também passa por uma luta pessoal na transformação da realidade, assinalando assim um amor concreto e não de palavras. Instaurar o Reino de Deus significa lutar para que esse Reino possa começar desde já em nosso meio, construindo-o sobre o alicerce da paz, do amor e da justiça. Nós, que fomos ungidos no batismo e inseridos nesse corpo de Cristo, também fomos feitos sacerdotes, profetas e reis, por esse mesmo motivo fomos feitos partícipes da missão de Cristo e da Igreja. Isso também inclui uma luta por uma transformação sócio, política, econômica, cultural e religiosa. Sobre isso, O Evangelho de Mateus apresenta Jesus dizendo que nem um copo d’água dado por amor será esquecido no Reino dos Céus e o próprio São Paulo nos exorta: “Enquanto houve tempo, pratiquemos o bem para com todos”. CONCLUSÃO Certa vez Jesus perguntou aos seus discípulos sobre quem diziam os homens que ele era? As respostas não foram animadoras: uns diziam que ele era João Batista, outros que ele era Elias ou algum dos outros profetas. Jesus, provavelmente decepcionado, então vira-se para os discípulos e pergunta: “E vós, quem dizeis que eu sou?”. Como que dizendo: Eles dizem tudo isso, mas e vocês que caminham comigo, que me ouvem desde o princípio, quem dizeis que eu sou? Hoje as visões equivocadas sobre Jesus são muitas. Uns o apresentam como o maior psicólogo que existiu, as vezes também como guerrilheiro aos moldes de Che Guevara, ainda como um grande administrador. No entanto, precisamos a aprender a dizer como Pedro que toma a palavra e professa: “Tu é o Cristo, o Filho de Deus vivo”. A reação de Jesus à essa afirmação é: “Bem aventurado (feliz) és tu Simão, filho de Jonas, pois não foi por obra humana que te foi revelado isso, mas por meu Pai que está nos céus” (Mt 16,16-23). Pedro faz sua profissão de fé em Jesus e reconhece quem ele é porque abriu seu coração ao Pai que lhe revelou o Seu Filho amado. Que nós também saibamos sempre abrir os nossos corações ao Pai, para reconhecer quem é Jesus e para que encontremos a verdadeira alegria no encontro com ele, caminho, verdade e vida.