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O ECA E A EDUCAÇAO: A CRIANÇA E A INFÂNCIA NOS CAMINHOS DO DIREITO BRASILEIRO Roberta Martins de Araujo1 Claudio Reis2 Apresentação Como se sabe, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), formulado há exatos 20 anos, constitui-se como um conjunto de leis e normas jurídicas, bastante amplo e avançado. Nele as questões referentes à infância e ao adolescente são tratadas de modo substancialmente diferente quando comparado às leis existentes no passado. Neste texto, pretende-se discutir como estas duas dimensões (Educação e Direito), passaram a ser relacionadas de maneira concreta a partir da década de 1990, em decorrência do referido documento. Até então, como será visto, grande parte das leis criadas pelo Estado brasileiro dirigidas à população infanto-juvenil tinha como perspectiva jurídica noções como “criminalidade” e “delinqüência”. Alguns apontamentos sobre a relação criança/infância A população infantil ocupa um lugar de destaque na sociedade atual, seja no âmbito político, econômico, cultural, jurídico, pedagógico, da saúde, entre outros. A ela, olhares atentos são direcionados, demonstrando que este é um grupo social inserido num importante processo de desenvolvimento e apropriação das qualidades humanas3.
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Pedagoga, Especialista em Fundamentos Políticos e Filosóficos da Educação pela UNIOESTE – Campus de Foz do Iguaçu, pesquisadora do Grupo de Pesquisa Educação, Trabalho e Sociedade (GPETS), da Universidade Federal do Rondônia – Unir/ Campus de Vilhena. 2 Sociólogo, Dr. em Ciências Sociais pelo IFCH/UNICAMP, Professor Adjunto do Departamento Acadêmico de Ciências da Educação (DACIE) da Universidade Federal de Rondônia – UNIR. 3 Ao criar a cultura humana - os objetos, os instrumentos, a ciência, os valores, os hábitos e costumes, a lógica, as linguagens -, criamos nossa humanidade, ou seja, o conjunto das características e das qualidades humanas expressas pelas habilidades, capacidades e aptidões que foram se formando ao longo da história por meio da própria atividade humana (MELLO, 2007, p.3).
2 Com isso, evidencia-se a importância de se garantir determinadas condições sociais para o seu pleno e efetivo desenvolvimento. O reconhecimento desta singularidade/identidade infantil nem sempre esteve presente no pensamento social coletivo, embora, a criança como personagem histórico, social e cultural faça parte da história humana desde suas formas mais tradicionais de organização. Os estudos e pesquisas ligados à historiografia da criança e da infância apontam a inexistência da percepção dessa identidade infantil durante um longo período da história4, sendo a criança, concebida como um “vir a ser”. Em outras palavras, uma contraposição ao adulto, subjugada à condição de inferioridade ou mesmo de insignificância. Contudo, atualmente, várias produções acadêmicas das mais diversas áreas do conhecimento têm focado seu objeto de estudo sobre a população infantil abordando a criança e a infância em suas diferenciações conceituais, utilizando epistemologias distintas, que consideram estas desde as relações sociais, econômicas, culturais e políticas até uma definição universal e descontextualizada do referido objeto. (PRESTES, 2008). Essa perspectiva universal descaracterizada pode ser facilmente verificada na definição unilateral do vocábulo criança, apresentado no dicionário de língua portuguesa: Criança. [Do b – lat. Creantia, criantia]S. f. 1. Ser humano de pouca idade, menino ou menina. [Sin.: párvulo, e (lus.) puto.] 2. Pessoa ingênua, infantil: não desconfia de nada, é uma criança. 3. Ant. Criação, educação. Criança de peito. A que ainda mama; menino de peito. (HOLANDA, 1999, p. 578).
Nestes termos, a criança pode ser compreendida essencialmente pela sua classificação etária e diferenciada basicamente pelo seu sexo. Em outras palavras, esta abordagem aponta para a existência do modelo único de criança, desconsiderando os aspectos plurais existentes na realidade social, além disso, não a reconhece enquanto sujeito histórico, cultural e político, singular em suas representações e formas de apropriação das habilidades humanas. Sobre a infância, o mesmo dicionário apresenta a seguinte definição: 4
De acordo com Ariès somente por volta do Século XIV surgiram timidamente as primeiras manifestações acerca do sentimento de infância; “Já desde o século XIII, uma tendência do gosto procurava exprimir na arte, na iconografia e na religião (no culto dos mortos) a personalidade que se admitia nas crianças, e o sentido poético e familiar que se atribuía à sua personalidade.” (ARIÈS, 1981, p.157).
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Infância. [Do lat. Infantia.] S.f. 1. Período de crescimento do ser humano, que vai do nascimento até a puberdade, meninice, puerícia. 2. As crianças. 3. fig. O primeiro período de existência duma instituição, sociedade, arte, etc. 4. Psicol. Período da vida que vai do nascimento à adolescência, extremamente dinâmico e rico, no qual o crescimento se faz concomitantemente, em todos os domínios, e que, segundo os caracteres anatômicos, fisiológicos e psíquicos, se divide em três estágios: primeira infância, zero a três anos; segunda infância, de três a sete anos; e terceira infância, de sete anos até a puberdade. 5. Bras. Pop. Ingenuidade, simplicidade: Aquele senhor é de uma infância!♦ Primeira Infância. Psicol.. V. infância (4). Segunda Infância. Psicol.. V. infância (4). Terceira Infância. Psicol.. V. infância (4). (HOLANDA, 1999, p. 1106).
De acordo com a definição apresentada, a infância é uma etapa da vida do ser humano biologicamente determinada, sendo ela invariável, seja a criança do sexo feminino ou masculino, rica ou pobre, negra ou branca, “normal” ou “deficiente”, entre outras distinções. Ainda é necessário frisar que os caracteres psicológicos não necessariamente acompanham os biológicos e, portanto, há uma contradição ao conceituar a infância dentro de uma perspectiva hermética apenas de crescimento e fases. (PRESTES, 2008). De qualquer forma, essa visão sobre a criança e a infância é ainda predominante e amplamente difundida no senso comum. Seja na escola ou nos diversos espaços sociais ocupados pela criança, ela ainda é concebida como um indivíduo incapaz, passivo, que necessariamente precisa de alguém que faça algo por/para ela, um sujeito incompleto, imbuído da mais profunda inocência, ingenuidade e pureza. Ao definir a criança e a infância com base nestes moldes universais, desconsideram-se as interações dela com o mundo, compreendendo-a a partir de uma concepção linear de desenvolvimento – não reconhecendo a importância da sua participação na produção cultural, social e histórica da humanidade. Além disso, Prestes aponta o seguinte: A infância, além de nomear um período de vida do homem, deve ser entendida em diferentes aspectos. A criança não está estaticamente inserida nela. Há diferenças políticas, econômicas, sociais e culturais que corroboram para diferentes conceitos de infância de acordo com o espaço e o tempo que ela ocupa. É necessário considerar o contexto e as referências ao entorno da infância para uma aproximação do conceito, pois está articulada a época, classe social e raça. (PRESTES, 2008, p. 20).
4 Esta concepção universal de sujeito tem como um de seus fundamentos o pensamento liberal do século XVIII, representada por Kant, Locke, Rousseau, entre outros. Para esses autores, a relação entre os homens é determinada por leis naturais, sendo mais conhecidas como jusnaturalismo5. Partindo da premissa de que todos os homens são naturalmente livres e iguais, a desigualdade também seria algo natural oriundo da própria busca fracassada pela liberdade e realização pessoal. No entanto, partindo de uma análise histórica, em que se considere a existência de profundos antagonismos entre classes sociais diferentes, pode-se afirmar que as bases do mundo social não estão em leis naturais. Desse modo é possível retirar da reflexão a idéia de leis naturais colocando em evidência, por outro lado, os diversos interesses político-ideológicos existentes na realidade. Seguindo tal reflexão, a criança, enquanto sujeito histórico, ocupa o tempo e o espaço de determinada sociedade respeitando uma específica organização social. Portanto, não existe uma infância linear e universal, pois, dependendo da classe social em que está inserida, ela acaba desempenhando determinados papeis, usufruindo ou não a sua condição de infante. A partir de uma leitura materialista e histórica, a sociedade capitalista surge a partir da própria luta entre as classes e não, como afirmam os liberais, pela máxima “todos os homens são iguais perante as leis”. Portanto, se tudo que é social é histórico também não faz sentido afirmar que a infância está fora do âmbito das disputas de interesses existentes nas sociedades. Sua caracterização, longe de ser puramente natural ou biológica é fundamentalmente cultural e social. Em grande medida é justamente isso que diferencia o próprio ser humano dos demais animais. A infância do ser humano é mais longa e incomparavelmente mais complexa - por seu conteúdo e pelo caráter das mudanças psíquicas que têm lugar em seu desenvolvimento - do que o que acontece com os filhotes dos animais, é uma conquista humana. A infância é o tempo em que a criança deve introduzir-se na riqueza da cultura humana histórica e socialmente criada reproduzindo para si qualidades especificamente humanas. Isso permite às novas gerações subir nos ombros das gerações anteriores para superá-las no caminho do desenvolvimento tecnológico, científico e do progresso social. (MELLO, 2007, p. 07).
Por este ângulo, a infância e a criança são entendidas para além do aspecto biológico. A sua expressão humana, mesmo dentro de certas particularidades, representa 5
O Jusnaturalismo é uma doutrina do pensamento liberal que postula a existência do direito baseado por leis naturais, isto é, pressupõe que todos os homens são livres e iguais por natureza. (TONET, 2005, p.81).
5 a distinção entre o próprio ser humano e os outros animais. Dessa maneira, esse personagem social, a criança, é central para qualquer forma de organização social. Seja para a manutenção ou para a superação de determinada ordem sistêmica, não se pode deixar de considerar a sua existência. Ao considerar os vários elementos constitutivos da realidade material sobre a qual os indivíduos estão inseridos, o enfoque abstrato sobre as categorias criança e infância torna-se insuficiente e superficial para dar fundamento e profundidade a esta discussão. Inserindo a criança e a infância no processo de produção cultural e social da história humana, Kramer discorre o seguinte: Crianças são sujeitos sociais e históricos, marcadas, portanto, pelas condições das sociedades em que estão inseridas. A criança não se resume a ser alguém que não é, mas que se tornará (adulto, no dia em que deixar de ser crianças). Reconhecemos que é específico da infância: seu poder da imaginação, a fantasia, a criação, a brincadeira, entendida como experiência de cultura. Crianças são cidadãs, pessoas detentoras de direitos, que produzem cultura e nela são produzidas. Esse modo de ver as crianças favorece entendê-las e também ver o mundo a partir do seu ponto de vista. A infância, mais que estágio, é categoria histórica: existe história humana porque o homem tem infância. As crianças brincam, isso é que as caracteriza. (KRAMER, 2006, p. 15).
Em suas representações, por meio de suas linguagens, interações com o mundo e com as pessoas, a criança se apropria e formula uma visão de mundo de maneira muito própria, isto é, são sujeitos da história que produzem história. A
infância,
de
modo
geral,
concretiza-se
“independentemente
do
reconhecimento que se possa ter de suas dimensões. É a parte da vida em que se dão as primeiras descobertas do mundo das relações que, a partir do ambiente e do sujeito, possam acontecer.” (NUNES e SILVA, 2001, p. 10). A teoria Histórico-Cultural6 apresenta uma base epistêmica que mais se aproxima da definição de sujeito, neste caso da criança, que se pretende abordar neste trabalho. De qualquer forma, não é objetivo discorrer longamente acerca dos fundamentos e definições desta teoria. A partir da concepção Histórico-Cultural, a criança pode ser definida da seguinte forma: 6
Lev. S. Vigotski (1896-1934) foi o precursor da teoria Histórico-Cultural. Sobre aporte teórico do Materialismo Histórico se dedicou a pesquisar sobre o processo de aprendizagem e desenvolvimento humano por meio de uma visão crítica e histórica dos estudos da psicologia.
6 [...] a criança como sujeito de sua atividade, capaz e competente na sua relação com o mundo. Tal visão contribui para uma criança rica em potencialidades e competências, ativa e ansiosa para se engajar no mundo da cultura, historicamente constituído. A infância, por sua vez, é entendida não como um acontecimento estático, mergulhado em um vazio social, mas sim como um fenômeno concreto (material e imaterial) e, por isso, mediatizado por temas sociais, políticos e econômicos do mundo contemporâneo. (SOUZA, 2007, p.131).
Conceber a criança como sujeito ativo e participativo no processo de interação social é reconhecer a complexidade de sua existência e suas possibilidades. Oferecer à criança um ambiente desafiador que incite sua curiosidade e estimule suas ações é algo certamente relevante e indispensável para se ter uma concepção de infância humanamente viável. Portanto, considera-se que as categorias criança e infância são distintas entre si, mas ao mesmo tempo complementares. Nesse sentido pode-se entender a infância como momento da vida humana no qual se realizam as primeiras aproximações com o mundo e a cultura, período de intenso e acelerado processo de desenvolvimento. Em sua obra, “História das crianças no Brasil”, Priore desenvolve a seguinte reflexão: As crianças brasileiras estão em toda parte. Nas ruas, à saída das escolas, nas praças, nas praias. Sabemos que seu destino é variado. Há aquelas que estudam, as que trabalham, as que cheiram cola, as que brincam, as que roubam. Há aquelas que são amadas e, outras, simplesmente usadas. Seus rostinhos mulatos, brancos, negros e mestiços desfilam na televisão, nos anúncios da mídia, nos rótulos dos mais variados gêneros de consumo. [...] No mundo atual, essas mesmas crianças passam de reis a ditadores. Muitas atitudes parecem incompreensíveis aos nossos olhos. Quase hostis. [...] Numa sociedade desigual e marcada por transformações culturais, teremos recepcionado, ao longo do tempo, nossas crianças da mesma forma? Sempre choramos do mesmo jeito a sua perda? O que diferencia as crianças de hoje, daquelas que as antecederam no passado? Mas há, também, questões mais contundentes: por que somos insensíveis às crianças que mendigam nos sinais? Porque as altas taxas de mortalidade infantil, que agora começam a decrescer, pouco nos interessam? Essas respostas entre tantas só a história pode nos dar. (PRIORE, 2007, p. 08).
Dada às contradições e desigualdades existentes ao longo da história, nem todas as crianças usufruem da prerrogativa de vivenciar sua infância em toda sua riqueza de experiências, tendo por base a promoção e garantia dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo de sua proteção integral. Obviamente que estes dilemas não se encontram somente no cenário social brasileiro.
7 Se para Marx, a forma das relações entre homem e mulher expressa o nível de desenvolvimento alcançado pela sociedade em que estão inseridos, o mesmo se pode dizer da relação entre os adultos e as crianças. (MELLO, 2007) Diante do exposto, discorremos agora uma breve análise sobre o processo de reconhecimento histórico da singularidade/identidade infantil. A população infanto-juvenil como sujeito de direito No âmbito jurídico-social, foi no século XX que se deram as grandes transformações no tocante às leis protetivas da infância e juventude. A transposição da doutrina do menor em situação irregular para a doutrina da proteção integral configura a mudança de paradigma sobre a concepção de infância no âmbito da esfera jurídicopenal. (MATOS e GONÇALVES, 2007). Podemos destacar várias legislações criadas no Brasil para o atendimento da criança e do adolescente, bem como Tratados e Convenções Internacionais, dos quais o Brasil é signatário7. Todavia, será destacado, neste tópico, os Códigos de Menores de 1927 (Código Mello Mattos), Código de Menores de 1979 e a Lei Nº 8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Em linhas gerais, pode-se dizer que as leis menoristas8 anteriores ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foram marcadas por alguns pontos em comum. Desde o Código Criminal de 1830 até o Código de Menores de 1979, tais leis tinham como orientações certas doutrinas que tratavam o público infanto-juvenil somente enquanto
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As ordenações das Manuelinas (1521) e Filipinas (1603) que tratavam das crianças abandonadas; a Lei do Ventre Livre (1871) que resguardava a relação mãe e filho e a família escrava; Lei-Decreto nº 1.313 que determinava sobre a idade mínima de 12 anos para o trabalho; Lei nº 4.242 (1921) que criou o Serviço de Assistência e Proteção a Infância Abandonada e Delinqüente; o Decreto Federal nº 3.799 (1923) que criou o primeiro juízo de menores no Rio de Janeiro, Declaração de Genebra (1924) documento internacional sobre os Direitos da Criança; Código de Menores (1927) primeiro documento legal para a população menor de 18 anos; Criação do Ministério da Educação e da Saúde Pública (1930); Decreto-Lei nº 3.799 (1941) que instituiu o Serviço de Assistência aos Menores (SAM); as Nações Unidas criam o UNICEF (1946); Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948); Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959); Lei nº 4.513 (1964) que cria a Fundação Nacional do BemEstar do Menor (FUNABEM), com posterior criação das Fundações Estaduais de Bem-Estar do Menor (FEBEMs); Lei nº 4.513 (1974) Política Nacional do Bem Estar do Menor; Ano Internacional da Criança (1979); Lei nº 6.697 (1979) Segundo Código de Menores no Brasil; Criação da Pastoral da Criança (1983); Surgimento do Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua /MNMMR (1985); Promulgação da Carta Magna do Brasil (1989); aprovação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança (1989); Lei nº 8.069/90 Estatuto da Criança e do Adolescente; criação do Conselho Nacional da Criança e do Adolescente (1992); I Conferência Nacional dos Direitos da Criança (1995). 8 Legislação aplicada à pessoa menor de 18 anos de idade incompletos.
8 tipo social perigoso, os chamados menores desvalidos9. Para tanto, tinham como preocupação principal a manutenção da ordem social, em detrimento do bem-estar da infância. Nesse sentido, as leis destinadas à população infanto-juvenil eram dirigidas basicamente àquelas crianças e aqueles adolescentes considerados “delinquentes” – afinal eles eram entendidos como um grande risco à harmonia social. Em certo sentido, o ECA surge em decorrência de uma determinada concepção jurídica, que se opõe às visões anteriores predominantes na tradição da legislação brasileira. Uma primeira destas é a Doutrina do Direito Penal do menor, que segundo Ferreira (2008) pode ser caracterizada da seguinte maneira, Por esta concepção, o direito só se ocupa com o menor a partir do momento que ele pratique um ato delinqüente. Adotou-se tal concepção na legislação brasileira, o Código Criminal de 1830 e 1890, permanecendo até a entrada do Código de Menores de 1979, não obstante vigorasse, no plano internacional, a Doutrina Jurídica da Proteção Integral. Centrando o seu foco na questão da delinqüência praticada pelo menor, por uma questão óbvia, o direito à educação não foi tratado nas legislações que adotaram esse enfoque. O viés concebido preocupava-se mais com o menor delinqüente do que com o menor cidadão. (FERREIRA, 2008, p. 39).
Como considera o autor, a preocupação dos juristas e da sociedade de modo geral era assegurar e garantir o controle social, tendo como foco apenas uma determinada parcela do público infantil. Isto porque, a normatização e o controle dos direitos deste determinado grupo social tinha como objetivo garantir, sobretudo, o bemestar e a tranquilidade das elites. Anteriormente ao ECA, os delitos cometidos por esse setor da população eram tratados tendo em vista uma concepção geral de Direito criminal que de fato criminalizava a pobreza. (STRECK, 2008). Uma segunda corrente doutrinária que orientou as leis menoristas é a Doutrina da Situação Irregular, [...] para essa doutrina, os menores apenas são sujeitos de direito ou merecem a consideração judicial quando se encontrarem em uma determinada situação caracterizada como “irregular”, e assim definida em lei. O Código de menores – Lei 6.697, de 10/ 10/ 1979 – adotou tal doutrina. Nessa maneira de ver, o direito à educação, quando tratado, não visava atingir toda a população infanto-juvenil, mas tão somente aquela que se encontrava em situação irregular. Havia, pois, uma discriminação legal quanto a situação do menor, somente recebendo 9
Compreendido na época como crianças e adolescentes em situação de abandono ou em conflito com a lei.
9 respaldo jurídico aquele que se encontrava em determinada situação prevista na lei, ou seja, em situação irregular; os demais não eram sujeitos ao tratamento legal. (FERREIRA, 2008, p. 40).
Diante do exposto, fica evidente o modo como a criança era vista pelo direito até pouco tempo, isso significa que a responsabilidade do Estado em relação à ela – no que se refere ao combate dos maus tratos no âmbito familiar e social, além da garantia do acesso à educação, por exemplo – era praticamente inexistente. Contrariamente a isso, uma outra corrente doutrinária, que surge influenciada pela Declaração dos Direitos Humanos (1948), corresponde à Doutrina da Proteção Integral. Esta, [...] representa um avanço em termos de proteção aos direitos fundamentais, posto que calcada na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, tendo, ainda, como referência documentos internacionais, como a Declaração dos Direitos da Criança, aprovada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas, em 20/ 11/ 1959, as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e Juventude – Regras de Beijing – Res. 40/ 33, de 29/ 11/ 1985, as Diretrizes de Riad, de 1/ 3/ 1988 e a Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20/ 11/ 1989 e aprovada pelo Congresso Nacional Brasileiro em 14/ 9/ 1990. (FERREIRA, 2008, p. 40).
A doutrina da proteção integral se coloca como um marco na história das políticas destinadas à infância e à juventude. Isto porque pela primeira vez a lei que trata especificamente da população infanto-juvenil passou a abarcar este público em sua universalidade, sendo reconhecidas suas vicissitudes e singularidade. E tendo como premissa, o direito à proteção integral e a garantia do direito à vida. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei 8.069/ 90, conseqüência desta nova doutrina, representa não somente um salto qualitativo no sentido de garantir e zelar o cumprimento e a proteção dos direitos da infância, mas também normatiza instituições que desempenham um trabalho preventivo e educacional, e não apenas punitivo. Além disso, determina medidas socioeducativas destinadas aos “menores em conflito com a lei”, objetivando a ressocialização destes jovens para a sociedade. Portanto, o ECA se caracteriza essencialmente pela perspectiva do trabalho preventivo e protetivo, diferentemente dos Códigos anteriores que tinham como princípio a resolução de problemas com base no olhar “criminal” sobre os “menores desvalidos”, que estabeleceria com esta parcela da sociedade, uma relação de caráter conservador e discriminatório.
10 Essa alteração legislativa, encontrada no referido Estatuto, pode ser visualizada da seguinte forma: Art. 4º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. (BRASIL, 1990).
Esta nova concepção de direito se consolida no Brasil a partir do processo de redemocratização na década de 1980, e muito influenciada pelos Acordos Internacionais remetentes aos Direitos Humanos. Como uma das principais características deste processo que marca o fim do regime militar no país é a ampla organização e participação dos movimentos sociais no âmbito do Estado e da sociedade civil, não é equivocado afirmar que o Estatuto da Criança e do Adolescente surge justamente como fruto das discussões e reivindicações dos diversos setores sociais. Ao contrário dos códigos de menores elaborados por experts, o novo texto legal incorpora a ação de um movimento social. Na segunda metade dos anos 1980, impulsionados pela necessidade de mudanças, fim da censura e conseqüentes denúncia da ineficácia da ação de órgãos como Funabem ou Febem, redemocratização do país e do processo constituinte de 1988, a sociedade brasileira vislumbrou um sonho. Era uma utopia ou um desejo que colocava a infância como portadora de direitos, quando se criticava o descaso, a omissão [...] do ponto de vista conceitual o Estatuto abandona o paradigma da ‘infância em situação irregular’ e adota o princípio de ‘proteção integral à infância.’ (BASÍLIO , 2008, p. 20-21).
Então a percepção de que a criança e o adolescente devem ser vistos de forma integral, deve-se muito à pressão e participação ativa dos movimentos sociais da década de 1980. A própria Constituição Federal de 1988 foi fruto desses movimentos políticos e sociais. A Carta Magna do país incorporou decisivamente os principais princípios estabelecidos pelo constitucionalismo construído no pós Segunda Guerra Mundial. Obviamente que a rejeição ao regime militar contribuiu enormemente para essa absorção. Com a Constituição de 1988, o tema da Educação passou a se tornar um elemento central nos ordenamentos jurídicos do Brasil. E isso certamente influenciou a redação do ECA. A partir da redemocratização, a educação deixou de ser um tema
11 exclusivo dos educadores strictu sensu e passou ser referência também para os operadores do direito. Por sua vez, estabelecida a relação entre essas duas importantes áreas do conhecimento e da vida social, os professores também, não podiam deixar de desconsiderar as contribuições que vinham surgindo do campo desse “novo Direito”. O ECA como orientador pedagógico Como se sabe, nos dias atuais, um dos grandes problemas enfrentado pelos profissionais da Educação corresponde à crescente violência ocorrida no interior dos estabelecimentos escolares. Esse fato, certamente coloca professores e funcionários diante de uma questão bastante delicada. Afinal, além dos conteúdos programados para o ensino e aprendizagem, tarefas típicas de tais profissionais, eles também estão tendo que enfrentar questões não ensinadas em seus cursos de formação. Entretanto, apesar dos 20 anos de vigência do ECA, pouco se conhece sobre ele. Parte deste desconhecimento ocorre justamente por seu avanço legal não ter sido incorporado e difundido de modo profundo pelos representantes do direito brasileiro, ainda marcado fortemente por pressupostos conservadores. Devido a esse ambiente hostil, muitas vezes a redução da maioridade penal surge legitimada, por tais profissionais, que sugerem esta medida como uma das saídas aos problemas que envolvem a relação crime/juventude. Nestes momentos nos quais o ECA é desconsiderado, a concepção jurídica que criminaliza a pobreza parece ser a mais presente. Todos sabem que o problema da “violência escolar” está relacionado a inúmeras outras questões sociais: desemprego, tráfico de drogas, falta de perspectiva profissional dos jovens, desemprego das famílias, exacerbação do consumo, entre muitos outros. Diante de tal cenário, é certo que o interesse ao estudo escolar estará comprometido. Não há dúvida que as crianças, mas, sobretudo os jovens, diante de uma vida social perversa e excludente não sentirão a necessidade de apreender “o mundo mágico do conhecimento”. No entanto, a constatação de tal fenômeno não resolve o problema. É preciso lidar diariamente com essa situação, o que certamente não é tarefa fácil. O ECA, como um conjunto de normas jurídico-legais, serve justamente como um instrumento que pode orientar professores e funcionários em suas atividades diárias.
12 Esse Estatuto, de certo modo, pode ser um importante auxílio para os educadores que têm um cotidiano de trabalho marcado pelos inúmeros e complexos problemas sociais, aos quais estão envolvidos crianças e adolescentes. O Estatuto da Criança e do Adolescente tem características peculiares do ponto de vista legislativo. Traz em seu bojo concepções de proteção de direitos, de deveres, a indicação de quem deve proteger e as penalidades se não o fizerem e, ainda, punições de cunho claramente penal, para adolescentes infratores. É um ordenamento completo em uma só lei. Mas, saindo do foco da peculiaridade, o ponto de maior importância é a essência conceitual implícita na norma: a proteção integral. Tudo se orienta por essa premissa. Desde a conceituação de criança e adolescente até o que e quem deve prestar assistência. Tudo parte do princípio da proteção integral ao ser em desenvolvimento. No caso do direito à educação, o professor representa o Estado na garantia desse direito. Portanto, quando o educador observa que uma criança ou adolescente está em situação de risco por falta de assistência, cabe esse profissional, utilizar todos os recursos disponíveis para fazer com que o Estado cumpra sua obrigação constitucional e institucional de prestar proteção e assistência. Para que isso seja possível, é necessário um alto grau de organização e compreensão dos direitos plenos da criança e do adolescente, além dos direitos do próprio educador para o correto desenvolvimento de sua atividade e para exigir do Estado, recursos e condições ideais para essas atividades. (MATOS e GONÇALVES, 2008, p. 09).
Tal aporte jurídico se coloca como um instrumento progressista e fundamental para o reconhecimento democrático do Estado brasileiro. Não é possível desconsiderálo uma vez que se tenha em mente a defesa de uma sociedade democrática. O ECA combate diversas visões conservadoras, construídas ao longo da história, direcionadas a explicação do problema da relação entre criminalidade e juventude. Ele, incorporando os princípios da Constituição Federal de 1988 e das Declarações dos Direitos Humanos, busca garantir e defender todo e qualquer direito, ressaltando a importância de um desenvolvimento material e cultural digno para as crianças e os adolescentes. Ao mesmo tempo condena e pune todo e qualquer ato que promova a intolerância, a violência seja emocional ou física, sobre estes. Obviamente que o poder do Estatuto não é capaz de resolver todos os problemas encontrados nas diversas instituições de ensino. O seu papel de mudança é extremamente limitado diante de um cenário social tão complexo. De qualquer forma, ele é ainda uma referência legal que pode auxiliar o trabalho dos profissionais da Educação. O seu surgimento é fruto de uma luta histórico-social que não pode ser esquecida e desprezada.
13 Não se pode desprezá-lo pelo fato dele não ser suficiente para resolver tais questões.
Sem
o
seu
auxílio,
os
problemas
envolvendo
criança/jovens/violência/profissionais da Educação, certamente estariam sendo tratado única e exclusivamente de um ponto de vista da criminalização e da naturalização das questões sociais. Daí a sua importância em termos democráticos. Considerações finais Diante da importância do ECA, para a sociedade brasileira, pode-se dizer que ele de alguma forma busca concretizar um certo projeto de infância esquecido pelas sociedades ocidentais. Nunca na história ocidental, as crianças e os adolescentes foram de fato tratados como indivíduos que merecem uma atenção própria. Ainda que o reconhecimento a essa particularidade seja freqüentemente debatido, o dia-a-dia de milhões de crianças em várias partes do mundo mostra um cenário no qual estes são vistos como “adultos pequenos”. Tal problema também interfere nos assuntos próprios da Educação, isto é, como lidar com um aluno “violento” sem transformá-lo num ser naturalmente perverso? Como lidar com uma criança “desobediente”, sem se utilizar de práticas estritamente punitivas e repressivas? O fato é que o ECA, isoladamente, não resolverá os profundos problemas educacionais. Entretanto, ele certamente é parte fundamental das soluções. Em síntese, as análises e reflexões brevemente desenvolvidas neste capítulo mostram-nos os inúmeros avanços no sentido de compreender como se deu o processo de reconhecimento da criança e sua infância na sociedade ocidental, todavia, observouse também as contradições, limites e insuficiências apresentadas do decorrer desse processo.
Referências Bibliográficas: ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora, 1981. BASÍLIO, L. C., KRAMER, S. Infância, Educação e Direitos Humanos. Ed. Cortez, São Paulo, 2008.
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