Dossie Entre Pesquisar Militar

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Dossiê *** E EN NT TR RE EP PE ESSQ QU UIISSA AR RE EM MIIL LIIT TA AR R:: C BU UIIÇ ÇÕ ÕE ESS E EL LIIM MIIT TE ESS D DO OSS T TR RÂ ÂN NSSIIT CO ON TO NT OSS TR RIIB E NT TA TR ASS RE EP PE ESSQ QU UIISSA AE EM MIIL LIIT TÂ ÂN NC CIIA AF FE EM MIIN NIISST EN *** Alinne Bonetti e Soraya Fleischer Organização

Sumário Apresentação

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Alinne Bonetti e Soraya Fleischer Teoria e práxis em gênero e sexualidade: Trânsitos, avanços, dramas e

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pontos cegos Sonia Corrêa e Adriana Vianna Antropologia feminista: O que é esta antropologia adjetivada?

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Alinne Bonetti 35

Antropologia, feminismo e masculinidades ou O que os papudinhos de Camaragibe têm a ver com o debate sobre os homens no feminismo Pedro Nascimento O caso de uma feminista que apanhou

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Elizabeth Gómez Etayo Os usos militantes das ciências sociais na conformação dos “problemas

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das mulheres” na Igreja Católica e na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil Gabriele dos Anjos Etnografando ONGs feministas: Algumas lições da Guatemala e do Brasil

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Soraya Fleischer

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Apresentação Alinne Bonetti e Soraya Fleischer Brasília, 10 de dezembro de 2007 No Brasil, os estudos sobre gênero já contam com um sólido e respeitado lastro nas mais diversas áreas do conhecimento e tal solidez tem inegável relação com o desenvolvimento e a consolidação do feminismo. Mesmo com essa origem tão intimamente ligada, a relação entre a produção de conhecimento e a militância parece-nos ser desde sempre tensa e vista com desconfiança. Cada vez mais testemunhamos muitos/as pesquisadores/as dessa área “engajados/as”, de uma forma ou de outra e em um momento ou outro, nas questões políticas e comunitárias dos sujeitos pesquisados. Ao propormos o simpósio temático “Entre pesquisar e militar: contribuições e limites dos trânsitos entre pesquisa e militância feministas”, no âmbito do já tradicional reduto de intensa reflexão feminista, o Seminário Internacional Fazendo Gênero, em 2006, interessou-nos discutir como essa velha relação tem sido enfrentada atualmente pelos/as mais diversas/os pesquisadores/as do tema. O simpósio reuniu artigos, das mais variadas áreas disciplinares, que reflitaram e discutaram casos e situações de trânsitos entre pesquisa acadêmica e militância em diferentes sentidos: pesquisadoras/es que partiram para a militância (em meio ou após a sua pesquisa) e também militantes que buscaram a universidade levadas/os pela sua militância. Buscamos debater fundamentalmente as ambivalências vivenciadas nesses duplos movimentos, bem como sobre as limitações e contribuições que essas diferentes posições propiciam tanto para a produção do conhecimento quanto para a prática política. Em linhas gerais, pretendíamos que a discussão proposta abordasse questões tais como: os principais dilemas vivenciados pelos/as pesquisadores/as em termos éticos, teóricos, metodológicos, práticos, e os

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desdobramentos inesperados da pesquisa, tais como o desencantamento com a militância; o estabelecimento das relações entre pesquisador/a e pesquisados/as e as negociações que permearam essa relação (expectativas do grupo estudado, exigência de engajamento nas suas causas, devolução dos resultados da pesquisa e seus desdobramentos, etc) e, finalmente, os espaços institucionais abertos para a reflexão sobre as implicações desses múltiplos trânsitos entre militância e pesquisa. Acreditávamos que, sob os auspícios do tema-mote da 7ª edição do Seminário Internacional Fazendo Gênero - “Gênero e Preconceitos”-, um debate sobre a articulação entre produção de conhecimento e militância seria muito bemvindo. E não estávamos erradas! O simpósio reuniu um grupo bastante constante e interessado de pesquisadoras e pesquisadores, que ao longo dos três dias do seminário, trouxeram as suas experiências, compartilharam as suas reflexões e trocaram idéias sobre a relação pouco tranqüila entre pesquisa e militância. Gostamos tanto dos resultados das discussões que achamos que elas deveriam ser compartilhadas com o maior número de pessoas possível. Foi assim que surgiu a idéia de publicar esse dossiê, que ora apresentamos. Cremos que a qualidade reflexiva, bem como a variedade temática aqui reunida certamente virá a contribuir para que essa discussão se aprofunde. Desejamos que a leitura seja inspiradora!

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Teoria e práxis em gênero e sexualidade: Trânsitos, avanços, dramas e pontos cegos Sonia Corrêa1 Adriana Vianna2 Ao ler a chamada para o simpósio tive duas reações. A primeira foi reconhecer que ao longo da minha “profissão feminista” o tema em questão – trânsitos entre teoria, pesquisa e prática – tem sido uma constante. Em seguida, pensei que se há alguma vantagem em ter ultrapassado a barreira dos cinqüenta é a possibilidade de examinar desafios dos tempos presentes à luz dos ciclos mais longos que já estão gravados na experiência de cada uma. Um pouco mais tarde compartilhei as primeiras idéias que havia conseguido alinhavar sobre o assunto com Adriana Vianna. As reflexões que se seguem são produto dessa conversa quase acidental e agradeço a minha parceira pelo diálogo e pela confiança de deixar em minhas mãos a finalização do texto. Este artigo está estruturado em três blocos. No primeiro, situa-se o ponto de partida para refletir sobre os dilemas (e encantos) que vivemos, no passado e hoje, em relação à teoria e práxis feminista. A partir dessas idéias iniciais desdobra-se uma conversação entre nós duas sobre os desafios que identificamos nos deslocamentos entre teoria e ação política em gênero e sexualidade no contexto brasileiro dos anos 2000. A seção final identifica, brevemente, aspectos não abordados pela conversação que, entretanto, não deveriam ser esquecidos num debate desta natureza. As idéias aqui apresentadas não pretendem esgotar as muitas

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Sonia Corrêa é arquiteta com especialização em antropologia, pesquisadora associada da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), co-coordenadora do Grupo Internacional para Sexualidade e Política Social e coordenadora do Programa de Direitos Sexuais e Reprodutivos da Rede DAWN, isto é, Development Alternatives with Women for a New Era. Contato: [email protected] 2 Adriana Vianna é Doutora em Antropologia Social, professora do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Consultora do Centro Latino Americano para Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM). Contato: [email protected] 5

angulações e dilemas que a chamada do simpósio implica. Nossa proposta é refazer alguns percursos que nos parecem críticos e levantar interrogações que serão mais bem respondidas a partir de debates plurais. 1

Trajetos A tensão entre teoria, pesquisa e ação não apenas é um tema perene da

filosofia política, mas sempre esteve ali, à espreita, nos percursos feministas contemporâneos. Se a teoria constantemente sublinha que não há respostas fáceis para problemas difíceis, a ação política nos arrasta, inevitavelmente, em direção às fórmulas mais simples e à repetição. Entretanto, essa tensão não se manifesta sempre da mesma maneira, quer seja no que diz respeito à relação entre feminismo e teoria, quer seja no tocante ao próprio significado da política. Vale dizer que nos anos setenta, a teoria, nas suas distintas vertentes, suscitava entre as feministas grande suspeita – quando não repúdio aberto – já que as tradições disponíveis não respondiam nossas interrogações, ou quando muito as respondiam muito parcialmente. O sentimento predominante daqueles tempos “heróicos” era que devíamos e podíamos fazer tabula rasa da tradição teórica e ousar “inventar” novos marcos conceituais. A despeito de tal rebeldia e da ousadia, não duvidávamos de uma premissa clássica da filosofia política moderna: a teoria crítica leva, necessariamente, à superação da alienação e à ação positiva (ao progresso ou “à revolução”). Tecíamos críticas severas ao racionalismo das pedagogias marxistas, contestávamos as grandes narrativas que nos tornavam invisíveis (ou “secundárias”) assim como as formas clássicas da representação política. Mas não interrogávamos, sistematicamente, como fazem os autores e autoras pós-modernos, as pedagogias políticas do sujeito na sua totalidade. Nem tampouco, tínhamos a sensibilidade aguda em relação à legitimidade de quem fala – pelo menos, quando se tratava do pensar e fazer em relação às próprias mulheres – que hoje caracteriza a atmosfera

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do fazer político. Não parece excessivo afirmar que estávamos, de algum modo, imersas na “grande narrativa” que nós mesmas tecíamos. Finalmente, mas não menos importante, embora alimentássemos suspeita e repulsa em relação ao Estado, pensávamos e vivíamos a política como atividade nobre, como possibilidade de superação. Esse ethos foi, durante bastante tempo, re-alimentado pela euforia e dinâmica da re-democratização. As quase duas décadas que se seguem seriam marcadas por duas inflexões cruciais. A primeira foi a disseminação e absorção das concepções contemporâneas de gênero e sexualidade que estavam disponíveis desde os anos 1970, mas que passariam a circular com mais intensidade entre as ativistas feministas brasileiras e outros atores, aos final dos anos 1980.3 Passávamos a dispor um instrumental conceitual e analítico que nos permitia explicar o que era inexplicável a partir das tradições teóricas disponíveis anteriormente. E, não parece excessivo afirmar que esses foram tempos de “alumbramento teórico”. Em paralelo, no campo da ação política, inicia-se e intensifica-se nosso engajamento político com as instituições do Estado em termos de reformas legais e políticas públicas. Esse caminho, como sabemos, gradativamente se ampliaria na direção do plano internacional – ou se quisermos do complexo de governança global – , que nos anos 1990 foi marcado por uma seqüência de conferências organizadas pelas Nações Unidas nas quais o feminismo, inclusive as feministas brasileiras, teve uma incidência crucial. Os momentos mais importantes do ciclo foram a ECO 1992 (Rio), a Conferência Internacional de Direitos Humanos (Viena, 1993), a Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (Cairo, 1994), a IV Conferência Mundial da Mulher (Pequim, 1995) e a Conferência contra o Racismo, 3

Nos anos 1970, as duas grandes referências são The traffic in women: Notes on a political economy of sex de Gayle Rubin de 1975 e a História da sexualidade de Michel Foucault, publicada na França em 1978, mas cujas idéias principais haviam sido elaboradas ao longo do ano de 1976, nos seminários conduzidos pelo filósofo e que hoje estão publicados e traduzidos no livro Em defesa da sociedade (1999). Ao longo dos anos 1980, o feminismo brasileiro leria Foucault, mais especialmente, a História da sexualidade, e também Joan Scott que desde então se tornou uma referência constante dos debates sobre gênero no país. No início dos anos 1990, uma outra referência fundamental seriam os dois textos de Bourdieu sobre a dominação masculina. 7

Discriminação Racial, Xenofobia e outras formas de discriminação (Durban, 2001), (Vianna, 2005). Considerando-se a temática tratada nesse artigo, os ganhos mais significativos dessas negociações foram: o reconhecimento da violência sexual como um crime contra os direitos humanos (Viena, 1993); o uso do termo gênero em documentos intergovernamentais que foi inaugurado no Cairo (1994); adoção de uma definição dos direitos humanos das mulheres no terreno da sexualidade (parágrafo 96 da Plataforma de Ação de Pequim) que ficaria conhecido como a legitimação dos direitos sexuais; e, em Durban, a articulação entre desigualdades racial, de gênero e derivada da identidade sexual, que foi traduzida como “intersecionalidade”. Esse duplo deslocamento implicou, contudo, um paradoxo. As teorias contemporâneas de gênero e sexualidade são muito eficazes para desconstruir grandes narrativas e examinar criticamente os sistemas disciplinares que produzem as figuras de sexo e gênero. Elas fornecem idéias e imagens poderosas para desentranhar sexualidade e gênero (da família, da religião, da própria política) e ativar politicamente expressões identitárias que estiveram e estão à margem. Os desafios e tensões que experimentamos hoje – em relação ao pensar e fazer político do campo gênero e sexualidade – derivam, fundamentalmente, do desdobramento político bem sucedido das “novas teorias” em termos da legitimação da multiplicidade de sujeitos sexuais plurais e de novas narrativas. Mas, não podemos esquecer que essas vertentes teóricas são bastante (quando não radicalmente) céticas quanto à positividade e alcance do agenciamento dos sujeitos e da transformação política e social. Seus autores e autoras levantam interrogações severas acerca do sentido da história, do consenso, da lei e da própria noção de sujeito. Esses argumentos são complexos e bastante heterogêneos e não há espaço aqui para examiná-los em profundidade. Muitos desses autores e autoras sublinham as distorções totalitárias derivadas da proposição iluminista de progresso baseado na razão de que a história política do século 20 é a ilustração mais contundente.

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Esse é um leitmotiv de Foucault: os sistemas disciplinares modernos fazem com que o totalitarismo esteja sempre à espreita nas democracias. Também analisam como em qualquer consenso político liberal há, desde as revoluções do século 18, um “excesso” que fica de fora: os escravos, as mulheres, os trabalhadores. Muito embora a trajetória moderna seja uma história de conflitos seguidos de inclusão jurídica e política dos originalmente excluídos, essas vozes lembram que essa dinâmica não se esgota, pois novas exclusões operam a cada nova inclusão. Um exemplo disso é o próprio significante Mulher, que esteve fixado, desde o século 19, no discurso e imaginário feminista ocidental e que a partir dos anos 1980 seria sistematicamente contestado, a partir do olhar e experiência específicas de mulheres “situadas” fora dessa representação: as lésbicas, as do Sul, as negras, as indígenas, as africanas, as asiáticas, as latinas (e mais uma multiplicidade de outras posições subjetivas no interior de cada uma dessas categorias). Essas críticas e suspeitas não devem ser vistas como triviais quando reconhecemos que as atrizes e atores políticos, que passariam a lançar mão das concepções que esses marcos teóricos projetam, ao mesmo tempo se viam cada vez mais engajados com a “política real”. Ou seja, deixam as margens (o lugar da “exclusão” dos consensos políticos e jurídicos existentes) para se engajar cada vez mais na política formal: os Estados, os partidos políticos prévios, a barganha de interesses.4 Tampouco é trivial, em termos de ação política, a desestabilização das categorias clássicas da representação política que decorre dessa nova maneira de pensar sexualidade e gênero e as novas dinâmicas que se desdobram a partir da multiplicação de sujeitos sexuais. 2

Pensando juntas a cena de nossos tempos

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Não sem razão um sem número de autoras e autores tem se dedicado, desde os anos 1980, a criticar esse ceticismo e buscar novos caminhos para reconstruir positivamente as vinculações entre a política sexual e a Política. Este é o caso de Françoise Collin, Nancy Fraser, Sheila Benhabib, Richard Rorty, Marta Lamas, Chantal Moufffe, Jeffrey Weeks e das mesmas Joan Scott e Judith Butler, para citar apenas alguns nomes. 9

Sonia Corrêa: A luz deste percurso, como você situa os desafios que nos cabem quando se trata de pensar as vinculações e disjunções entre teoria e prática no contexto da “política sexual” brasileira? Adriana Vianna: Quero começar examinando o saldo das discussões de gênero no que se refere à construção do tema, ou se quisermos, do personagem político: a mulher. Desde os anos 1970, os marcos teóricos se tornaram cada vez mais abertos e ficaram cada vez mais claros os limites da colagem simples entre gênero e “feminino”. Mas, na minha percepção, no plano de militância, essa colagem ainda perdura. Neste sentido, continua mais que válida a provocação da Butler (1990) no começo do livro Problemas de gênero. Na dinâmica da militância feminista ainda existe grande resistência no que se refere a abrir mão deste “patrimônio”, ou seja, do capital político construído ao redor da categoria “a mulher”, associada diretamente ao seu potencial de representação. Sem dúvida, há sinais de que essa resistência vai se diluindo como pode ser ilustrado por um interessante confronto a que assisti no diálogo estratégico envolvendo feministas, gays, lésbicas e o mundo “trans” em João Pessoa em 2005. Fernanda – que é uma transgênero da Paraíba – provocou o grupo dizendo: “Eu sou mulher, eu sou parteira e a favor do aborto e portanto posso ser uma militante do movimento de mulheres”. Ao que Gilberta Soares do Cunhã5 respondeu: “Meu problema não é saber se você ê mulher ou não, mas sim saber se você é feminista”. A resposta de Gilberta é uma chave que nos ajuda sair da cilada essencialista. Mas, de maneira geral, na prática corrente dos movimentos esta clareza ainda não está dada. Predomina o apelo essencialista associado a uma certa leitura da dominação que tenho chamado de vitória “do quem ama não mata” sobre o “nosso corpo nos pertence”, entendida como uma vitória da vitimização e do sofrimento frente às estratégias argumentativas mais claramente centradas na autonomia e no direito ao prazer. 5

ONG feminista de João Pessoa que atua no campo dos direitos sexuais e reprodutivos. 10

Há tensões inevitáveis quando as feministas interagem com outros atores e atrizes, pois outras faces da dominação despontam de maneira mais evidente. Tais faces não se prendem à lógica binária e naturalizante do masculino–feminino, envolvendo as relações cor/raça/etnia, classe, opção sexual e hierarquias estéticas. Os inúmeros constrangimentos a que concretamente os sujeitos estão atados e a partir do qual organizam suas experiências e visões de mundo remodelam inclusive a forma como tais sujeitos podem pensar as relações de gênero e suas chances de “insubordinação”. A questão estética, por exemplo, é constantemente relegada a um plano de silêncio, quando em verdade desempenha papel vital no modo como a subjetividade é modelada e como o prazer pode ser experimentado, tanto no plano individual, quanto na dimensão coletiva. Se voltarmos ao slogan “o nosso corpo nos pertence”, deveríamos identificar aí o potencial de subversão também das obrigações estéticas, tão pesadamente vividas por todos, mas com especial peso para as mulheres. Ou, para recorrer a um exemplo menos usual, podemos tomar as manobras estéticas como peça chave de trânsito social para travestis e transgêneros, na medida em que permitem – ou não – a melhor manipulação dos jogos de identificação do gênero. Nos encontros sobre direitos sexuais que tenho acompanhado, porém, percebo que constantemente esse potencial mais subversivo, dado pela própria reunião de militâncias com trajetórias e preocupações distintas, acaba sendo “domesticado” pela elaboração tanto de um conjunto relativamente fixo de personagens, quanto de certos scripts que marcam a irrupção em cena dessas personagens. Estabelece-se uma gramática para as performances que devem se desenrolar: quem fala primeiro, quem responde, quem se cala. Freqüentemente tenho a sensação de que a substância dos diálogos acaba sendo limitada e paralisada pela marcação de posições. Arriscando-me a colaborar na construção de uma certa caricatura das cenas, o que vejo é um jogo de desafios entre personagens, em que a fala, por exemplo, de um militante gay é desafiada pela fala de uma militante lésbica e daí por uma transgênero e assim sucessivamente.

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Na minha opinião, porém, há uma dimensão muito produtiva na proliferação contemporânea de sujeitos políticos que não deveria se examinada e valorizada apenas pela sua multiplicação. Nesse aspecto, a Butler (1990) tem um insight fundamental, para além da crítica da heteronormatividade, quando diz que nosso foco não deveria se restringir aos direitos civis, mas se ampliar na direção dos direitos sociais. Quando ficamos restritas aos direitos civis há sempre risco de aprisionamento na mera disputa dos personagens, na política de reconhecimento que opera exclusivamente no marco das especificidades: casamento gay, não discriminação para cada uma das “categorias sexuais”. Talvez se conseguíssemos re-imaginar tudo isso a partir da lente dos direitos sociais, seria possível construir um projeto menos dependente dos personagens. O desafio parece ser o de retomar o tema da desigualdade numa chave que pensa novos arranjos sociais envolvendo previdência social, saúde, trabalho, demandas mais amplas. Ou seja: uma pauta política que não se limite a reivindicar direitos para esse ou para aquele “personagem”. Eu tenho pensado que mesmo em relação aos direitos sexuais é preciso pensar o caminho de volta. Feito o desentranhamento da sexualidade, cabe retornar ao regime dos direitos humanos na sua amplitude. Sonia Corrêa: Sua análise com a qual concordo me leva a uma outra pergunta: Como articular esse trânsito teórico e a “política real”? A proliferação de sujeitos sexuais, à revelia de nossas boas intenções, tem sido facilmente capturada, sem que haja uma reflexão crítica acerca dos efeitos não antecipados de nossas proposições e ação política. Há duas ilustrações recentes. A primeira é o vagão reservado para mulheres no metrô e trens do Rio de Janeiro e a segunda é a delegacia específica para gays proposta recentemente por uma deputada estadual também do Rio de Janeiro.6 No caso dos vagões, a lei foi promulgada sem que tivesse ocorrido nenhum debate no campo feminista sobre seus significados problemáticos. O vagão reservado fixa ainda mais no imaginário social a percepção 6

Deputada Alice Tamborindeguy do PSDB. 12

das mulheres como vítimas que devem ser protegidas de homens que não controlam sua sexualidade. Traz subjacente uma concepção de sexualidade e violência heteronormativa, pois é como se não houvesse abuso e assédio entre os homens ou mesmo entre mulheres. Abandona o horizonte de políticas necessárias para o conjunto da sociedade – vagões espaçosos e boa educação. Implica promoção pelo Estado de espaços públicos segregados. No caso da “delegacia gay” o argumento principal da deputada é de que se há delegacias para mulheres, por que não deveria haver também para os gays. Setores relevantes do movimento gay se manifestaram contra a proposta, mas outros segmentos aderiram.7 Não houve nenhum engajamento das feministas com esse debate muito embora nossa demanda dos anos 1980 é o que inspira a proposição. Minimamente, o episódio poderia suscitar entre as feministas a seguinte interrogação: uma agenda de política pública concebida nos anos 1980 continua a fazer sentido em 2006?8 Não que seja sempre possível antecipar esses efeitos. Mas na medida em que esse tipo de acidente ocorre no percurso do engajamento com o Estado, a auto-reflexão, mesmo quando feita a posteriori, pode contribuir para que não haja aderência automática a medidas de políticas, apenas por que elas respondem a demandas de sujeitos específicos. Ou seja, no plano da micro-política experimentamos a disputa de personagens que você tão bem analisou. No âmbito da política com P maiúsculo assistimos desdobramentos ainda mais problemáticos. Em que medida esses desdobramentos inquietantes se vinculam ou não à teoria? Algumas vozes dirão que essas medidas de política são efeitos inevitáveis da teoria construtivista, do pensamento pós-moderno. Será isso mesmo, ou o que estamos assistindo é outra coisa? 7

O Grupo Gay da Bahia e o Grupo Arco Íris têm posição francamente contraria à proposta. A primeira está sediada em Salvador, BA, e a segunda, no Rio de Janeiro, RJ. 8 Vale lembrar que desde o final dos anos 1990 algumas vozes têm, corretamente, preconizado o enfoque de uma política de segurança que contemple adequadamente os diferencias de gênero. Bárbara Soares (1999) é a referência mais importante neste campo. 13

Adriana Vianna: Estão aí em jogo injunções que pertencem, claramente, à esfera da ação, da prática política. Mas há também um substrato teórico. No campo da prática há muita resistência por parte das atrizes e atores da política identitária quanto a abrir mão daquilo que deu lucro, do capital político que deu certo na relação com o Estado. Na outra face está a própria re-formatação do Estado, a qual tem dimensões positivas, mas também implicações muito perversas. Não deveríamos desvalorizar inteiramente a inflexão dos anos 1980 e 1990 no que diz respeito ao reconhecimento de que o paradigma de classe e as políticas universais supostamente neutras não dão conta das diferenças. Na face perversa, está a reengenharia do Estado, os constrangimentos dos recursos públicos que criam e acirram uma competição intensa entre as personagens de que falávamos antes. Sonia Corrêa: Além disso, nas circunstâncias que você descreve, o Estado e os atores políticos estatais muitas vezes respondem às nossas demandas específicas sem a gravidade e seriedade necessárias. Não poucas vezes trata-se de manifestações mediáticas, típicas da política do espetáculo. Mais grave ainda, a motivação é freqüentemente eleitoreira para não dizer demagógica. Adriana Vianna: E, mais ainda, essas são medidas que implicam custos baixos. Essas duas políticas que estamos examinando, os vagões de trem exclusivamente para mulheres e a “delegacia gay”, por exemplo, são mais fáceis de anunciar e eventualmente implementar do que, por exemplo, buscar soluções sustentáveis para os problemas de saúde, transporte e segurança pública no Rio de Janeiro. Daí por que a ênfase de Judith Butler nos direitos sociais é tão importante. O desafio está em não perder o fio da diferença nem abandonar por completo um horizonte de universalidade.

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Sonia Corrêa: Isso sugere a necessidade de re-visitar a noção “universalidade situada”, pensada por Ken Plummer (2001), e a perspectiva de Nancy Fraser (1997) que articula reconhecimento e re-distribuição.9 Mas eu quero insistir um pouco mais no que está por trás deste trânsito cada vez mais complicado entre teoria e práxis. Trata-se de que na passagem para ação política os marcos teóricos foram corrompidos? Ou, de fato, há uma distância instransponível entre o horizonte de justiça complexo – que nos foi legado pelas teorias contemporâneas de gênero e sexualidade – e o jogo brutal, comezinho e rasteiro que determina a lógica da política real? Ou ainda, essas distorções são incontornáveis, na medida em que deixamos para trás as visões calcadas em totalidades, em promessa de universalidade, em crença na nossa “humanidade comum”? Adriana Vianna: Um primeiro comentário se faz necessário. Até aqui estivemos tratando os referencias teóricas “pós” em bloco quando, de fato, há diferenças importantes entre as suas várias vertentes. Há, por exemplo, diferenciais significativos entre Foucault e Butler10 para mencionar apenas uma distinção. Mas o aspecto mais importante talvez seja de que como toda “teoria crítica geral”, mesmo nesse caso, os pensadores e pensadoras deixam para nós o “trabalho sujo” de tradução de suas idéias em instrumentos de transformação. Além disso, ao abandonar as teorias totalizantes e historicistas do passado, também deixamos para

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Plummer enfatiza que as transformações das ordens de sexo e gênero estão em curso em muitos “mundos” diferentes – a política, as muitas culturas, a mídia, a arte – em sociedades que são cada vez mais híbridas e desiguais. O pensamento universal clássico não dá conta de tal multiplicidade e das contradições que ela comporta. Ou seja, é preciso que valores e princípios universais sejam situados e re-traduzidos nos diferentes contextos da política sexual. Fraser também enfatiza a idéia de situacionalidade (situatedness). Mas, sobretudo, sugere que as teorias feministas e queer enfatizaram durante muito tempo a demanda por reconhecimento das diferenças. Essa pauta não pode ser abandonada, mas, num mundo crescentemente desigual precisa ser re-articulada com as agendas de re-distribuição de recursos, seja eles materiais ou simbólicos. 10 Para uma referência elementar desse diálogo, tome-se as formulações de Foucault (1988) na sua “história da sexualidade” (em especial o volume 1) e os desdobramentos propostos por Butler (2003a). 15

trás, como você disse, o vínculo quase automático entre teoria e ação. Essa passagem pode ser vista como um de nossos “dramas”. Sonia Corrêa: Sem dúvida, hoje estamos inevitavelmente expostas ao pessimismo teórico: o fim do sujeito, a impossibilidade do consenso, a violência inerente à lei... Adriana Vianna: Junto com isso vivemos a enorme dificuldade de encontrar lugares legítimos de onde se possa falar. Embora as autoras e autores desse campo eram e são ativistas – Foucault era um militante político das questões limites como loucura e prisões – é cada vez mais difícil falar a partir de uma outra referência que não seja o “específico”. Na paisagem pós-colonial já não é possível falar por, falar sobre. Não há porta-vozes, tradutores, decifradores. Eu tenho dito que esse é um problema “existencial”, pois esse termo descreve melhor a dificuldade que experimentamos quanto a produzir narratividades legítimas. Isto tem muitas implicações para o surgimento e dinâmica dos sujeitos políticos e a questão do projeto. Um autor que me ajudou a pensar essa questão foi Charles Tilly (1998) quando diz deveríamos, mais do que tudo, nos perguntar: “Por que a desigualdade persiste?”. Ele reconhece que não há para essa questão uma resposta simples, pois a persistência da desigualdade resulta de uma combinação complexa de fatores de dominação e posicionamento. Seja como for, nessa transição, eu gostaria de sugerir que estamos desafiadas a deixar para trás as perguntas acerca de Quem fala? Quem pode? Quem sofre? Quem tem direitos? para interrogar-nos quanto a O que queremos? Sobre o que falamos? Não se trata do retorno ao universalismo do Homem genérico, mas sim à possibilidade de afirmar uma gramática plural de direitos que não esteja de imediato presa à naturalização dos sujeitos. Colocando isso de modo algo simplista: tomando como ponto de partida rubricas como “direitos das mulheres” ou “direito das minorias sexuais e de gênero”, trata-se de colocar mais ênfase na reflexão sobre que direitos queremos do que na definição de

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quais de nós “merecem” tais direitos, seja por sermos “mulheres” ou minorias de qualquer tipo. 3

Post-Scriptum Para além da economia política interna ao campo, que estivemos

examinando mais de perto, há pelo menos dois aspectos que caracterizam o contexto onde se desenrolam as políticas sexuais que precisam ser mencionados, mesmo quando não seja possível analisá-las com a profundidade necessária. Um contraste flagrante entre o ethos de nossos dias e o começo desse percurso nos anos 1970 diz respeito à percepção mesma quanto ao significado da “Política”. Hoje estamos frente aos procedimentos, ao racionalismo, aos jogos de barganha das democracias de massa que – como analisou argutamente Gadamer (1998) ao final de sua longa vida – não mais satisfazem sonhos e ilusões, pois: O ideal da democracia com sua aceitação da dependência, risco e instabilidade econômica, e seu modesto sistema de adaptação não é tão facilmente aceito nas modernas sociedades de massa. O realismo subjacente a um sistema de compromissos permanentes pode ser também incapaz de satisfazer os sonhos e ilusões de uma sociedade acostumada à obediência. Esse realismo é talvez mais difícil de ser aprendido do que continuar obstinadamente acreditando na promessa da salvação mesmo quando anunciada por uma ditadura que continua prometendo o sonho de uma revolução mundial. (1998: 201-202, tradução da autora Sonia Corrêa). Também nos movemos num cenário marcado pelo clima de desconfiança na democracia e de repúdio do fazer político como expressão exclusiva de interesses espúrios. O PNUD publicou em 2004 um relatório cujo título é “Democracia na América Latina”. Um de seus conteúdos é o resultado de um survey conduzido em 18 países da região cujo resultado informa que 54% das pessoas entrevistadas prefeririam um regime autoritário que solucionasse a pobreza e a incerteza. O

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mesmo relatório também identifica elevado grau de descrédito nos políticos e nos procedimentos da política. Manuel Castells, em Poder da identidade, desenvolve todo um capítulo sobre o que ele denomina a “política do escândalo” que caracteriza as democracias de massa no capitalismo tardio. Sua análise é uma das referências possíveis para analisar esses dados latino-americanos. Segundo Castells, em primeiro lugar, corrupção na política decorre de que: “num mundo em que os Estados Nação estão em declínio e os compromissos ideológicos são incertos, as recompensas do poder não são mais distintas das oferecidas pela sociedade, em última análise, dinheiro, como meio principal de realização de projetos pessoais…” (1999: 396). Entretanto Castells vai mais longe e examina como, na era informacional, se desenrola uma imbricação complexa e também perversa entre a mídia – como veículo principal das campanhas políticas –, os custos dessas campanhas e seus mecanismos (obscuros) de financiamento. Finalmente, porém não menos importante. Hoje, como bem sabemos, nosso acionar político se desenrola em contextos marcados pelo crescimento dos fundamentalismos, ou pela hegemonia dos chamados neoconservadores nos EUA que estão no centro do poder político global e os quais, sob pressão do extremismo cristão, transformaram sexo e gênero em questões geopolíticas. Esse é um outro tema, cuja complexidade exigiria muito mais elaboração do que é possível desenvolver aqui. Entretanto, pelo menos três aspectos merecem ser brevemente sublinhados. O surgimento e expansão dessas forças não devem ser visto como um fenômeno estritamente religioso, mas também como fato político. Isso por que elas estão organizadas política e eleitoralmente e estão representadas nas instituições centrais da democracia: parlamentos, executivo e judiciário. Seu impacto crescente sobre a lei e as políticas públicas implica novos e enormes desafios para aqueles e aquelas que pensam e vivem as políticas sexuais. Entre outros aspectos, nos obrigam a revisitar, criticamente, os princípios e práticas do secularismo tal como

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conhecemos no passado e no presente. Também nos inspira a reconhecer que as políticas do gênero e da sexualidade se movem em sociedades nas quais também estão em curso movimentos individuais e coletivos de busca religiosa e espiritual. Esses movimentos não são “fundamentalistas”, mas podem ser capturados pelo extremismo religioso. Esse é um aspecto a que não demos a devida atenção em outros tempos e em relação ao qual é preciso dizer que, de maneira geral, os autores e autoras que nos inspiram têm pouco a oferecer. Isso por que suas análises e insights estão, sobretudo centradas na configuração de poderes e disciplinas de sociedade crescente e “inexoravelmente” secularizadas. Trata-se de um déficit pouco debatido, mas que tampouco deveria se minimizado em nossas reflexões sobre teoria e ação. Os campos e questões que visitamos nessas breves páginas são vastos e paradoxais. Talvez a melhor maneira de encerrar essas reflexões é lembrar, uma vez mais, que não há respostas fáceis para respostas difíceis. Mas há roteiros que podem ser percorridos. Pensar as conexões entre teoria, pesquisa e ação política, no campo de gênero e sexualidade, requer um olhar sobre a paisagem teórico conceitual para além das fronteiras do campo. Também exige um esforço constante de atenção crítica para dentro da própria política sexual – seus muitos personagens, scripts, temas e dilemas – que, entretanto, nos não implique descuido em relação aos muitos mundos nos quais essas pautas foram constituídas. Mundos que estavam à margem, mas que são cada vez mais rapidamente arrastados para os núcleos, se concentram e se tornam palpáveis revelando os interesses e poderes de nossos tempos difíceis. Referências bibliográficas BUTLER, Judith. Gender trouble: Feminism and the subversion of identity. Nova York: Routledge, 1990.

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Antropologia feminista: O que é esta antropologia adjetivada?11 Alinne Bonetti12 Refletindo sobre a minha própria prática acadêmica, como antropóloga, pesquisadora do campo dos estudos de gênero e feminista e também instigada pelo desejo de compreender a especificidade da contribuição antropológica para a Teoria Feminista deparei-me com a seguinte dúvida: afinal, o que define uma Antropologia Feminista? Seria aquela cuja teoria e método fundamentam-se em determinados pressupostos, tais como o reconhecimento de uma opressão específica que atingiria as mulheres? Supondo correta esta interrogação, como é possível conciliar o olhar parcial da abordagem feminista, que parte de um pressuposto universalizante, com a tradição antropológica de questionamento das categorias analíticas, de relativização e de valorização dos saberes locais, do ponto de vista do nativo e dos conceitos de experiência próxima (Geertz, 1998)? Não estariam ambas condenadas ao desaparecimento, a partir desta combinação? Como conciliar a emancipação feminista das mulheres com o questionamento tipicamente antropológico do próprio conceito de emancipação? Campo ainda instável na tradição antropológica brasileira, a ausência do adjetivo feminista – talvez subsumido pela locução de gênero – é notável frente a existência de muitas antropólogas que se identificam como feministas; o que talvez esteja relacionado com as particularidades da relação estabelecidas entre academia e 11

Registro o meu agradecimento à leitura atenta e às preciosas sugestões feitas ao texto por Soraya Fleischer, bem como aos comentários e ao rico debate realizado pelos participantes do Simpósio “Entre pesquisar e militar: Contribuições e limites dos trânsitos entre pesquisa e militância feministas”, que foram imprescindíveis para a revisão desse texto. 12 Antropóloga, doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinasn e mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atuou como assessora técnica da ONG feminista gaúcha Themis – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero e atualmente é Assessora da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. Contato: [email protected] 22

militância no Brasil, em especial no campo feminista. Heilborn (1992), num levantamento crítico sobre a Antropologia da Mulher no Brasil, identifica uma mudança no nome dos grupos de trabalho que passaram a ocorrer nas Reuniões da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) em 1980, de Antropologia da Mulher para “Representação e Gênero”, em 1988, e “Relações de Gênero”, em 1990. Segundo a autora, tal mudança, além de representar uma virada conceitual, deve-se a um “desejo de driblar uma classificação tida como um ‘objeto menor’ dentro do campo da Antropologia. Estamos [pesquisadoras/es da área] sem dúvida inseridas/os em um conjunto maior de relações de força e legitimidade que configuram um campo intelectual” (1992: 95). As relações de força e legitimidade a que se refere a antropóloga pode ser melhor compreendida na formulação de Gregori (1999), sobre a situação de liminaridade em que se viam as antropólogas feministas face a uma dupla resistência de que eram alvo. Por um lado, essa resistência vinha do próprio movimento feminista que via com desconfiança a produção acadêmica. Por outro, da própria academia “cujas concepções mais objetivistas do conhecimento sempre afirmaram o risco de que a identificação com o objeto nos transformasse em ‘pesquisadoras pela metade’, e que o papel do intelectual estaria reduzido a instrumentalizar transformações sociais e, quando muito, a organizar ou divulgar teorias nativas” (1999: 228). Na sua posição acerca da relação entre produção de conhecimento e militância, Heilborn (1992) não acredita que o engajamento ético-político comprometa a priori a tarefa intelectualacadêmica. Evidentemente isto está relacionado ao grau de relativização das próprias convicções ideológicas, segundo a coerência (e validade) teóricometodológica e, last but not least, à pertinência das questões que orientam a investigação científica. (1992: 97-98). Parece-me que, mesmo tentando encontrar uma saída para a Antropologia Brasileira feita sob a égide do feminismo, a autora continua recaindo em critérios de validação do conhecimento ditados por uma comunidade acadêmica que

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transforma pesquisadoras/es engajados, em pesquisadoras/es pela metade, conforme explicitou Gregori (idem) acima.13 Identifica-se aqui a “pouca disposição das acadêmicas feministas em assumir uma posição de confronto ou de isolamento na academia” (Heilborn e Sorj, 1999), não incorporando a contribuição da radicalidade crítica da teoria feminista para o enfrentamento do campo intelectual, como aconteceu nos Estados Unidos. Dessa forma, a instabilidade não se verifica na tradição antropólogica anglosaxã, vide o contraste entre, por exemplo, a Associação Americana de Antropologia (AAA), que tem uma seção de Antropologia Feminista (a Associação de Antropologia Feminista - AFA), e a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), na qual não há nenhuma menção à Antropologia Feminista.14 A efervescência autoreflexiva da Antropologia Feminista anglo-saxã e a presença velada do feminismo na Antropologia brasileira são inspiradores para a minha análise aqui e explica, em grande medida, a orientação dos textos que a embasam. Assim, através de um passeio pela literatura antropológica feminista, majoritamente anglo-saxã, neste texto reflito sobre a relação entre Antropologia e Feminismo. Busco compreender o que especifica essa produção de conhecimento, quais as suas características teórico-metodológicas e, sobretudo, quais as implicações, contribuições e limites do seu caráter engajado. Enfim, reunir elementos que possam servir de subsídios para incentivar o debate brasileiro.

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É curioso de notar que essa equação pesquisadores/as engajados = pesquisadores/as pela metade não se aplica no caso da Etnologia indígena brasileira. O engajamento de antropólogos nas causas indígenas é histórico e notório, além de parte constituinte da Antropologia brasileira. Por que há, então, dois pesos e duas medidas? Seria mais legítimo engajar-se numa causa em que o Outro é um diferente como é o caso na etnologia, do que um Outro que é, por vezes, o mesmo? São perguntas sem respostas fáceis, mas convidativas à reflexão. 14 Parece-me sintomático que na coleção “O que ler na Ciência Social Brasileira (1975-1995)” editada pela Associação Nacional de Pós-Gradução e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), o capítulo sobre Estudos de Gênero (Heilborn e Sorj, 1999) escrito por uma antropóloga e uma socióloga, bem como o seu Comentário Crítico (Gregori, 1999), escrito por uma antropóloga, esteja no volume referente à Sociologia e não no relativo à Antropologia e chame-se “de gênero” e não feminista. Para uma comparação entre as Associações de Antropologia estadunidense e e brasileira, ver os seguintes sítios : http://sscl.berkeley.edu/~afaweb.html http://www.abant.org.br/ 24

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Da antropologia das mulheres à antropologia feminista: Os desafios

feministas Um dos mais importantes desafios à Antropologia, colocados pela crítica feminista, está no questionamento acerca do conhecimento que produz. O surgimento da Antropologia Feminista está marcado pela combinação entre a crítica epistemológica e a crítica sobre a forma pela qual as mulheres eram representadas nas etnografias. A primeira fase da Antropologia Feminista, surgida na década de 70, ficou conhecida como a Antropologia das Mulheres, dado o seu enfoque na busca pela visibilidade das mulheres nas produções etnográficas.15 Voltada para a reflexão sobre a variabilidade de sentidos culturais da categoria mulher, esta primeira Antropologia Feminista questionou a universalidade e unidade da categoria sociológica mulher. Tal produção é marcada pela constituição de um aparato teórico que buscava explicar, dentre a variabilidade do que é ser mulher, o caráter secundário que elas supostamente ocupam nas mais diferentes culturas. Se há uma inovação de um lado, de outro há a permanência de um pressuposto universalista, o da subordinação feminina trans-cultural. A ênfase na biologização do gênero, neste contexto entendido como a “elaboração cultural do sentido e significado dos fatos naturais das diferenças biológicas entre homens e mulheres” (Moore, 2000: 151) e na universalidade da subordinação denunciam o persistente viés ocidental nas análises realizadas pela Antropologia das Mulheres, as quais, equivocadamente interpretavam diferença e assimetria como se fossem desigualdade e hierarquia. Segundo Moore, “quando os pesquisadores percebem as relações assimétricas entre homens e mulheres em outras culturas, eles supõem tais assimetrias como sendo análogas à sua própria 15

As duas antologias pioneiras, que foram responsáveis pelo estabelecimento da Antropologia Feminista, são Woman, culture and society organizada por Michelle Rosaldo e Louisie Lamphere e Toward na anthropology of women, organizada por Rayna Rapp (cf. Behar, 1993). Deve-se destacar que talvez a primeira goze de maior popularidade na antropologia brasileira por contar com uma tradução para o português. 25

experiência cultural das relações de gênero, na sociedade ocidental, de natureza desigual e hierárquica (1988: 2)”. Não tardam as reformulações e a Antropologia Feminista passa, aos poucos, a ter uma nova cara.16 As posições anteriores, acerca dos universais da opressão/subordinação feminina e o imperativo biológico do gênero, foram revistas. Rosaldo (1995) num texto bastante crítico (e, sobretudo autocrítico), ao que considera os abusos da Antropologia, põe em questão os universais de opressão feminina que afirmara anteriormente. Afirma que a procura obstinada pelas origens e pela confirmação da opressão trans-cultural tornou os pesquisadores cegos às formas pelas quais as relações de gênero se constituem: “(...) tendemos repetidamente a contrastar e insistir em diferenças presumivelmente dadas entre homens e mulheres ao invés de perguntar como essas diferenças são elas mesmas criadas por relações de gênero” (1995: 23). E, acrescentaria, se e de que maneira, tais diferenças constituem-se em desigualdades. Para ela, “gênero, em todos os grupos humanos, deve ser entendido em termos políticos e sociais com referência não a limitações biológicas, mas sim às formas locais e específicas de relações sociais e particularmente de desigualdade social (ibid: 22)”. A questão em jogo muda de uma busca pelas vítimas oprimidas de cada sociedade, e pelas formas através das quais esta opressão se manifesta, para uma investigação sobre como cada sociedade organiza os seus sistemas de valores de gênero e como tais sistemas implicam ou não em estruturas de desigualdade. Buscase a chamar a atenção para o fato de que há uma organização das estruturas de gênero, constituídas por relações de poder, que podem transformar diferenças em desigualdades, dependendo do contexto e das combinações que nele assumem. É, portanto, na etnografia que a Antropologia feita sob a influência do feminismo parece estabelecer a sua especificidade no campo da Teoria Feminista. A universalidade da opressão passa a ser questionada a partir da ênfase nos processos 16

Atkinson (1982) situa aqui, dentre outros, os livros de Michelle Rosaldo (Knowledge and passion: Ilongot notions of self and social life de 1980), Sherry Ortner e Harriet Whitehead (Sexual meanings: The cultural construction of gender and sexuality, de 1981) e o de Carol MacCormack e Marilyn Strathern (Nature, culture and gender, de 1980). 26

sociais que a etnografia revela, associado a um crescente interesse na interação entre situação, contexto e sentido (Atkinson, 1982). Ou seja, a ênfase na etnografia permite revelar as complexidades das experiências culturais relativas ao gênero, as variações de sentidos atribuídos ao gênero, os contrastes entre convenções constitutivas de repertórios e as variadas formas como eles são vivenciados e resignificados. Enfim, as intricadas relações entre convenções e prática. Assim, as pesquisas etnográficas voltam-se para a exploração dos domínios de sentido de gênero, os contextos a que estão associados e os usos situados. O grande potencial relativizador da pesquisa empírica antropológica, com os seus dados trans-culturais, e o seu potencial comparativo advindos daí para a desessencialização e desontologização de identidades de gênero pode ser ressaltada como a grande contribuição desta segunda leva da Antropologia Feminista estadunidense e inglesa (Moore, 1994). Outro aspecto importante para a Antropologia Feminista, relativo a essa virada etnográfica, é a problematização das relações de poder inerentes à situação etnográfica. O ponto central desta mudança parece estar na atenção ao posicionamento dos(as) pesquisadores(as) em campo e nas relações de poder envolvidas seja na definição da relação de pesquisa, na troca desigual que se estabelece entre pesquisador(a)-pesquisado(a) e na potencial exploração do(a) pesquisado(a) (Wolf, 1996 apud Panagakos, 2004). Tais preocupações partem da concepção de que na relação de pesquisa há uma distribuição diferencial dos recursos de poder entre pesquisador(a)pesquisados(as), que emergem da combinação entre distintos eixos produtores de diferenças e de desigualdades, tais como idade, gênero, raça, classe, nacionalidade, que se interseccionam. Reflete-se, portanto, sobre como estas combinações produzem mais diferenças, que por sua vez produzem desigualdades, e de que forma tais mecanismos devem aparecer na representação produzida sobre o Outro(a) na escrita. Em vista disto, põem-se como implicações destas transformações metodológicas na Antropologia Feminista a busca pela manutenção

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de uma postura crítica sobre o trabalho de campo, o questionamento dos cânones, a transformação das noções convencionais sobre pesquisa qualitativa através da imaginação e a luta por projetos e coalizões politicamente significativas (cf. Panagakos, 2004). Assim, o método etnográfico, revela-se como a marca distintiva da Antropologia Feminista dentro do campo da teoria feminista. A preocupação com as relações de poder e com as estruturas de desigualdade que marcam a Antropologia Feminista estão presentes também na postura crítica com que a etnografia é encarada.17 2

Antropologia Feminista e o seu objeto A partir desse revisionismo crítico podemos nos aproximar do que seria o

objeto da Antropologia Feminista; elemento crucial para a delimitação das fronteiras do campo. Ono (2003), num artigo provocativo, afirma que o desafio contemporâneo para a Antropologia Feminista é a possibilidade de se constituir prescindindo das mulheres como o seu objeto. Mas qual seria? Tal objeto pareceme ser constituído por alguns elementos: uma noção de diferença complexificada, relações de poder e a preocupação com a produção de desigualdades. A Antropologia Feminista, ao criticar a noção de diferença cultural característica da Antropologia, introduz uma certa noção de diferença que passa a ser complexificada. Há um comprometimento com complexos feixes de diferenças que se interseccionam e cujas combinatórias são variáveis de acordo com os contextos e situações investigados. Muito embora o gênero tenha um lugar de 17

Cabe ressaltar que as preocupações acerca das relações de poder em campo, assim como sobre o potencial imperialismo teórico da antropologia, o não reconhecimento de outras tradições antropológicas que não as euro-americanas e a autoridade do antropólogo enquanto aquele que escreve sobre outras culturas foram questões centrais da auto-crítica chamada pós-moderna por que passou a disciplina ao longo da década de 80 (ver Clifford e Marcus, 1986; Moore 1996; Marcus e Fischer, 1986, entre outros). No entanto, a crítica feminista a essa produção aponta para o silêncio em relação às mulheres e ao seu lugar secundário nas etnografias (Bell et al, 1993). Assim, parece haver um interessante avanço da crítica feminista em relação à crítica pós moderna direcionada à Antropologia. 28

destaque, ele não é o único produtor de diferença. Deve-se, portanto, ser tomado no cruzamento com outros elementos produtores de diferença, tais como raça, etnia, nacionalidade e geração, classe. Como se pode perceber o gênero parece ser a pedra de toque para a Antropologia Feminista. No entanto, a mera aparição da palavra gênero não implica, necessariamente, no adjetivo feminista. Mas há que se fazer uma ressalva, a fim de se explicitar o sentido que assume nesta produção. Muito embora a Antropologia Feminista implique na utilização da categoria gênero ao invés da categoria mulher, nem todo estudo sobre gênero na Antropologia é feminista (Moore, 1988, e Ono, 2003). Gênero complexifica-se; tal como passa a ser tomado pela Antropologia Feminista, ele é entendido como “um princípio pervasivo da organização social” (Strathern, 1987: 278). No seu estado atual, a Antropologia Feminista vai além do estudo da construção social da identidade de gênero e dos papéis de gênero, feito pela Antropologia do Gênero, segundo a caracterização de Moore (1988). Neste sentido parece-me rentável para a Antropologia Feminista acolher o conceito de gênero tal como pensado por Strathern (1990), que propõe pensá-lo como uma “categoria de diferenciação” (Strathern, 1990: ix) que tem como referência a imagística sexual. Nas suas formulações, esta categoria de diferenciação cria categorizações, cujas relações entre si revelam possibilidades inventivas sobre relações de gênero e sobre relações sociais. Assim, tal categoria de diferenciação perpassa e marca as mais diversas ações sociais. Esta concepção de gênero, portanto, não se restringe à relação corpo biológico-sexo-gênero; antes abarca e dota de sentido a organização da vida social.18 Tendo-se esta noção de gênero como guia na consideração de alteridades complexas leva, também, à busca pela compreensão das relações de poder nelas embutidas e dos processos de constituição de sistemas de desigualdades. 18

Algumas vertentes de estudos sobre a violência contra as mulheres no Brasil utilizam-se de uma noção de gênero que associa corpo biológico-sexo-gênero. Ver, por exemplo, a compilação de Teles e Melo (2002) sobre o tema e Almeida (1998). Ver também o levantamento crítico realizado por Heilborn (1992). 29

Com isto, chegamos inevitavelmente às considerações sobre a natureza política desta Antropologia, outro elemento fundamental para a delimitação do campo. O seu caráter político, presente na aparição recorrente da proposta de luta por projetos e coalizões politicamente significativas nos textos consultados – como a proposta de se ter um conhecimento produtivo politicamente levantada por Gordon (1993) e Ono (2003) –, recoloca no seu horizonte teórico a noção de engajamento como uma característica que lhe é inerente. A noção de político aqui presente parece-me estar associada a um questionamento e a uma busca pela compreensão de como se configuram as relações de poder e em como a idéia de diferença, tão cara à Antropologia em geral e à Antropologia Feminista em especial, se complexifica e aparece na constituição de desigualdades. O intuito parece ser o de, de posse deste mapa cultural das relações de poder, contribuir para a sua reconfiguração. É nesse sentido que Gordon (1993) entende a Antropologia Feminista e o seu caráter engajado. Inspirada pela reflexão de Peggy Sanday sobre a fraternidades, estupro e masculinidade entre homens brancos universitários estadunidenses19, Gordon reflete sobre a idéia de que a produção antropológica feminista possa ser uma forma de ação social. Cabe ressaltar que Gordon reflete sobre esse tema num contexto marcado por uma então recente antropologia feminista voltada a pesquisar a sua própria sociedade e preocupada em compreender questões sócio-político-culturais que atingem particularmente as mulheres. Assim, esse caráter engajado e, de certa forma, útil da pesquisa antropológica feminista demarca o seu cunho político. O adjetivo feminista modificador do substantivo Antropologia, implica na “reestruturação ou subversão das estruturas de poder em algum nível” (Ono, 2003: 4). Subversão aqui que se associa à idéia de um desafio crítico às formas de produção de conhecimento estabelecidas, de uma possibilidade de redefinição dos caminhos a serem seguidos e da expansão dos temas a serem estudados (Ono, 19

Segundo Gordon, Sanday foi levada a estudar esse tema em função de aluna sua, estuprada por um grupo de estudantes universitários. A realização da pesquisa fez com que a antropóloga pudesse conhecer essa realidade e contribuir na criação de mecanismos para combater essa violação nos campi estadunidenses. 30

2003). Através da sua imaginação criativa e da sua crítica, a Antropologia Feminista tem um grande potencial inovador, de extrema relevância para a expansão da disciplina. 3

Por uma Antropologia Feminista Brasileira Soa particularmente estranho numa época de rompimento de fronteiras

disciplinares querer delimitar as fronteiras de uma disciplina num campo essencialmente interdisciplinar. Nesta intensa proliferação de referenciais e de combinações disciplinares, encontrei o estímulo para pensar qual seria a particularidade do olhar antropológico. A busca por uma maior clareza na definição, nas implicações, nas possibilidades e nos limites desta Antropologia adjetivada fundamenta-se numa avaliação de que me parece ser este um passo importante para consolidação de um olhar, de um lugar de fala e de uma tradição. Junto disto há, ainda, a tentativa de transpor uma certa resistência semelhante àquela que talvez esteja nas origens da ausência de uma Antropologia Feminista no rol de possibilidades de atuação e interesse previstos pela Associação Brasileira de Antropologia. Em se transpondo tal resistência, desvela-se o feminismo fortemente presente na Antropologia brasileira, como se pode perceber na larga tradição de estudos antropólogicos sobre o tema da violência contra a mulher (como os de Corrêa, 1983 ; Grossi, 1988 e Gregori, 1993, entre outros.) Em vista disto, e num registro mais político, tendo a concordar com a distinção proposta por Moore (1988) entre Antropologia Feminista e Antropologia do Gênero. Sabemos que gênero e feminismo não são termos independentes, mas também que não têm uma relação necessária. Creio que a necessidade de afirmar o ‘feminista’ da antropologia é uma atitude, em si política, de positivar o engajamento político na produção de conhecimento e emprestar um caráter especificamente crítico à prática antropológica.

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Em muitos contextos, os usos da locução ‘de gênero’ no lugar do adjetivo ‘feminista’, revela-se uma importante estratégia a fim de tornar este último mais palatável. No entanto, acredito que apostar numa postura mais frontalmente política e re-afirmar o adjetivo ‘feminista’ da Antropologia que fazemos confere-lhe um comprometimento crítico “em desafiar e re-desafiar as suposições sobre os próprios lugares das pessoas no mundo (...) com seus complexos conflitos intergênero, inter-racial, inter-cultural e internacional num modo ética e politicamente sensível” (Mascia-Lees e Black, 2000: 106, apud Ono, 2003: 4). Mas não joguemos o bêbe fora junto com a água do banho. Por um lado, conferimos ao gênero a sua crucialidade dentro do campo. Gênero é uma categoria fundamental para a Antropologia Feminista tal como a entendemos aqui e eixo importante da noção de diferença com que trabalha, lado a lado do escrutínio das relações de poder inerentemente incrustadas na constituição do social e dos sistemas de desigualdades. Por outro lado, este comprometimento político não nos pode cegar para as especificidades locais, para os processos contextuais de negociação de sentidos; daí a importância da vigilância epistemológica em relação ao uso do método etnográfico para o questionamento e escrutínio dos conceitos tão caros à Antropologia. Feitas as devidas ponderações, assumamos, a partir de então, este adjetivo e este lugar dentro do campo da Antropologia e da Teoria Feminista, para que, parafraseando Gregori (1999: 235), a Antropologia mereça também ser chamada de Feminista sem reservas. Referências bibliográficas ALMEIDA, Suely Souza de. Femicídio: Algemas (in)visíveis do público-privado. 1. ed. Rio de Janeiro: Revinter, 1998. ATKINSON, Jane Monning. “Anthropology – review essay”. Signs: Journal of women in culture and society, 8 (2), 1982, pp. 236-258.

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Antropologia, feminismo e masculinidades ou O que os papudinhos de Camaragibe têm a ver com o debate sobre os

homens no feminismo Pedro Nascimento20 A minha inserção no campo de estudos sobre gênero, bem como minha relação com o feminismo, a partir de meados dos anos 90, se constrói num contexto onde um forte debate acontecia sobre a “participação masculina” e a relação dos homens com o feminismo. Obviamente esse debate não surge na segunda metade dos anos 90, mas é impossível entender algumas das questões que trago aqui, sem considerar o contexto pós-conferência do Cairo21 em 1994 e todas as implicações da chamada ao “participação” e “responsabilidade” masculinas22. Do meu lugar de neófito, a sensação era de efervescência e a abertura para apoio a projetos nesse campo reforçava essa sensação.

20

Antropólogo pela Universidade Federal de Pernambuco, membro do FAGES (Núcleo Família, Gênero e Sexualidade - UFPE) e sócio-fundador do Instituto Papai/PE. Atualmente é doutorando no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da UFRGS; Pesquisador do NACI – Núcleo de Pesquisas Antropologia e Cidadania – UFRGS; Bolsista do International Fellowships Program – IFP – da Fundação Ford. Contato: [email protected] 21 A Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, convocada pela ONU, foi realizada no Cairo, Egito, de 5 a 13 de setembro de 1994. Em seu Programa de Ação a saúde reprodutiva e sexual e os direitos da mulher figuram como elemento central de um acordo internacional sobre população e desenvolvimento e destaca-se de forma explícita o tema da participação masculina: “Esforços especiais devem ser feitos no sentido de enfatizar e promover o efetivo envolvimento dos homens com relação à paternidade responsável e o comportamento sexual e reprodutivo, incluindo-se aí o uso da anticoncepção em especial quando se trata da prevenção de gestações não desejadas ou de alto risco [...]” (ICPD, 1996). 22 Noções extremamente ambíguas e problemáticas por sua filiação mais a uma noção de patriarcado e menos de gênero no sentido em que será abordado nesse artigo. Uma análise crítica dessa perspectiva vem sendo feita desde então, por exemplo, por Margareth Arilha (2005) e foi particularmente problematizada por Sonia Correa no momento da apresentação deste trabalho, por cujos comentários agradeço. 35

Ao mesmo tempo em que estão inseridas nesse contexto geral, minhas reflexões aqui têm uma marcante dimensão pessoal23. Trata-se de um exercício de reflexão sobre uma história muito recente por um lado e, por outro, ainda atual. Recente porque não estou vivenciando diretamente o cotidiano de uma organização não governamental com o calor da militância e os embates constantes como o fiz até o início de 2005. É também uma experiência atual porque, mesmo não estando na “linha de frente”, acompanho os debates, interesso-me por eles e os vivencio de forma diferenciada, mas também permanente no meu contexto de aluno de pós-graduação atualmente. Ao aceitar a provocação das coordenadoras desse simpósio, estou pensando não em oposições, mas como os caminhos da política e da construção do conhecimento se encontram orientando olhares, perguntas e ênfases, particularmente do ponto de vista da minha formação de antropólogo. A

antropologia

se

constituiu

enquanto

uma

problematização

da

unilateralidade do conhecimento científico ocidental, chamando a atenção para o perigo de um discurso totalizador sobre outros povos, outras culturas. Seja na noção de relativismo difundida por diferentes tradições acadêmicas em diferentes momentos, na busca das lógicas internas aos grupos; seja mais tarde na mesma crítica a estas visões do outro como totalidades integradas, sempre esteve presente uma busca pela valorização de distintos pontos de vista em jogo e o questionamento de uma única forma de compreender a “realidade”. Contudo, apesar desta crítica sempre presente no desenvolvimento da antropologia, isto não quer dizer que tenha sido feita uma crítica correspondente ao modelo de ciência empregado e à forma como as afirmações da antropologia estavam sendo construídas (cf. Nader, 1996). Compartilhando argumentos, por exemplo, de Bruno Latour (1999) e Donna Haraway (1995) considero que há uma questão a mais em jogo, para além de um mero relativismo. Não se trata apenas de dizer que a ciência é uma forma de 23

Assim, esta é a minha versão a partir de como leio agora e a responsabilidade pelos posicionamentos aqui assumidos é, portanto, minha. 36

conhecimento parcial e que existem diversas outras formas de conhecimento, por exemplo. A própria forma de elaborar conhecimento e de perceber a ciência precisa ser problematizada, particularmente a oposição (hierarquização) entre o olho que observa e a realidade (exterior). Para Latour, conhecer algo do ponto de vista epistemológico é pensá-lo como inseparável da moral e da política. Se a necessidade de conhecer é a necessidade de controlar a natureza “anárquica”, para romper a cadeia de dominação que o conhecimento gera, é preciso perder o medo de “não dominar a realidade”. No entanto, apenas aqueles que acreditaram ou acreditam que a realidade é algo separado do “olho que vê” podem percebê-la como sendo algo a ser “dominado”. Nessa direção, Donna Haraway afirma que eu não ‘descubro’ ou ‘crio’ o objeto, eu ‘converso’ com ele: “O relativismo e a totalização são, ambos, ‘truques de deus’, prometendo, igualmente e inteiramente, visão de toda parte e de lugar nenhum, mitos comuns na retórica em torno da Ciência” (Haraway, 1995: 24). Apostando nessa inseparabilidade de política e ciência, assumo aqui, parodiando Donna Haraway, o meu split self. Na primeira parte deste texto contarei uma história de como desenvolvi pesquisas sobre gênero e masculinidades, quais as questões postas e os objetivos para sua realização. Ao mesmo tempo refletirei como isso aconteceu enquanto me inseria no dia-a-dia da ONG Papai de cuja fundação participei e também coordenei. Num segundo momento do texto, apresentarei algumas questões a respeito de como essas questões de pesquisa eram negociadas no dia a dia da ação política, quais os principais desafios, buscando inseri-los num cenário maior de reflexão sobre as possibilidades de articulação entre antropologia e feminismo. 1

Uma história recente: Aprendendo antropologia e feminismo O ano era 1997. Eu era assistente da pesquisa de doutoramento da

antropóloga dinamarquesa Anne Line Dalsgaard que estava fazendo trabalho de

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campo na comunidade Alberto Maia em Camaragibe, Pernambuco. Sendo uma pesquisa sobre esterilização feminina, o Professor Parry Scott, meu orientador no mestrado em Antropologia da UFPE, havia me indicado para fazer entrevistas com os companheiros das mulheres pesquisadas. Havia chegado aos estudos sobre gênero e o interesse sobre os homens enquanto universo empírico pelo contato com o contexto de sociabilidade masculina nos bares (Nascimento, 1995) mais que através da literatura específica até então. No mestrado, inspirado pelos “Senhores de si” do antropólogo português Miguel Vale de Almeida (1995), começava a manejar um tipo de discussão fortemente marcado pela colaboração de autores como Connel24 (1995) e Kimmel (1992), e as idéias de “gênero como categoria relacional”, masculinidade hegemônica etc. constituíram-se numa referência. A idéia parecia clara e simples: uma vez que repetidamente falas como “os homens são assim” se faziam ouvir, e havia referências à escassez de estudos sobre os homens, bem como pesquisas feitas por pesquisadores do sexo masculino, eu queria ir até uma comunidade específica e conviver no dia a dia daqueles homens para ver como aquelas idéias partilhadas acerca do que é “ser um homem” se apresentavam. Assim, fui, literalmente, de mala e cuia morar naquela comunidade onde tinha sido assistente na pesquisa referida, uma comunidade muito pobre, próxima a uma invasão25 em Camaragibe, um município vizinho a Recife, viver meu anthropological blues (Da Matta, 1978) como eu achava que deveria ser. Pouco antes de concluir meu mestrado, a Fundação Carlos Chagas, abria a terceira edição do Prodir26, onde dei continuidade àqueles questionamentos. Tendo 24

Principalmente Robert Connel, sociólogo australiano, tornou-se uma referência importante para os estudos sobre masculinidade no Brasil. Sua proposição de masculinidades enquanto “configurações de prática”, abertas à transformação, em lugar de papéis masculinos, constitui-se num dos elementos para esta referência. 25 A invasão corresponde a uma área ocupada nas últimas duas décadas e formada, como grande parte da população do bairro, por famílias oriundas do interior do estado, de antigas zonas canavieiras e de demais partes da Região Metropolitana do Recife.Trata-se da área menos valorizada do bairro, com condições precárias de abastecimento de água e saneamento, a maior parte das ruas sem calçamento, cujas casas foram construídas de modo irregular em terrenos da prefeitura que foram ocupados pela população, daí o nome invasão. 26 O Programa de Treinamento em Pesquisa sobre Direitos Sexuais para América Latina e Caribe, o Prodir III, dessa vez nominado, Homens, Masculinidades era apoiado pela Fundação MacArthur. O ano 38

feito um primeiro apanhado em minha dissertação sobre “a diversidade de experiências e as estratégias de atualização do modelo hegemônico da masculinidade”, eu queria naquele momento aprofundar a reflexão sobre as relações entre homens e mulheres quando os homens não trabalhavam nem participavam do sustento financeiro da casa que era de responsabilidade das mulheres. Em que essa relação implicava de potenciais mudanças para as relações de poder? Uma espécie de diálogo com a pergunta que Parry Scott tinha feito uma década antes sobre como era possível ao homem que não domina o espaço público, dominar o espaço doméstico (Scott, 1990). Mesmo focando numa configuração específica das relações de gênero, naquela pesquisa mantinha-se o interesse de dar visibilidade àquela “diversidade de experiências” masculinas. Particularmente me seduzia pensar os casos em que se evidenciava a distância entre aquilo que era apregoado como o que era ou deveria ser um “homem de verdade” e as várias experiências do dia-a-dia. A despeito de toda a diversidade desses homens, era marcante para sua grande maioria, a presença da bebida alcoólica. Aqueles que, aparentemente bebiam mais e eram percebidos pela comunidade como próximos de um quadro de dependência química eram chamados de papudinhos, um equivalente local para cachaceiro, bebum, pé de cana, pinguço em diferentes regiões do Brasil. Nem todos os homens que investiguei cumpriam esse perfil, mas tornou-se hábito num conjunto mais íntimo de colegas, referir-se a essas pesquisas como sendo “sobre”/“com” os papudinhos. Nesse caso, quase como um sinônimo de homens pobres, desempregados, “sem poder”. Em outros momentos de debate acadêmico e político, essa designação acabou virando quase uma acusação ou uma forma de sugerir que aqueles não eram “representativos” do “homem real”, o homem com dinheiro e poder que domina as mulheres. Um tipo marginal de masculinidade que, estava associado ao próprio modelo de análise com que eu estava operando, numa espécie de mistura entre modelos de análise e sujeitos específicos. era 1999 e meu projeto se chamou “Homens pobres, masculinidades à margem: A construção social da masculinidade em Camaragibe, PE”. 39

O que estou querendo fazer não é jogar fora todo o exercício de observação de homens concretos, nem negar sua importância e necessidade. Quero pensar, jogando pedras no meu próprio telhado, como pode apresentar armadilhas essa consideração a partir dos modelos e suas variações. Mesmo que vários autores tenham insistido que a “masculinidade hegemônica” é um “modelo ideal” que não é nunca atingido completamente na prática por homens concretos (Vale de Almeida, 1995) muitas vezes essa noção era manuseada como categoria estanque. Isto poderia trazer duas conseqüências diretas. A primeira seria a possibilidade de perdemos de vista que é no fluxo da ação que essas relações se definem. A segunda dificuldade tem a ver com as manipulações possíveis a essas interpretações prestando-se facilmente a um certo tipo de deslegitimação: “ah, são os papudinhos...”.27 Vamos retomar, então, aquela história que vinha contando. Quando me integro à equipe da ONG Papai, e por muito tempo depois, ouviria comentários de meus colegas sobre a especificidade da minha colaboração de antropólogo e uma certa expectativa de que eu pudesse valorizar ainda mais um certo “ponto de vista do nativo” para as questões trabalhadas. O Papai se constituiu inicialmente enquanto um programa vinculado à universidade e estava muito claro para nós que queríamos aliar pesquisa, ensino e ação política. A essa altura, tendo finalizado o mestrado e a pesquisa do Prodir, participado do processo de institucionalização do Papai e sendo membro de sua coordenação, continuava indo a Camaragibe com uma equipe de estagiários onde iniciávamos um trabalho de “sensibilização” dos homens para a prevenção às DST e aids que se constituiria num dos programas do Instituto Papai.28 Todas aquelas questões que havia experimentado em campo

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Um longo debate foi gerado daí para se pensar as sutilezas da identidade de “papudinho” e como ela não é fixa, tampouco pode ser vista apenas como uma marca de uma doença e aqueles homens como doentes, portanto diferentes, quase não homens. Para essa discussão, ver Nascimento, 2005. 28 Trata-se do projeto “O sexo do homens. Proposta de sensibilização masculina para a prevenção de DST/AIDS” apoiado pelo Fundo de Capacitação e Desenvolvimento de Projetos (FCDP), da Fundação MacArthur. 40

relacionavam-se diretamente ao tipo de questões que queríamos, enquanto instituição, problematizar. A percepção era de que ao se tratar dos homens no campo das ações e políticas públicas, particularmente de saúde, sexualidade e reprodução, notava-se uma tendência a uma consideração a um homem genérico, marcado por aquelas características universalizantes. Entendíamos que aquela referência obscurecia um conjunto de experiências que fugiam àquele padrão e era importante trazê-las à tona, pois tratar os homens todos como algozes trazia implícita a consideração das mulheres todas como vítimas, entre outras questões. Partilhando o argumento com vários autores (e.g. Leal & Boff, 1996), entendíamos que os estudos de gênero se constituíam muitas vezes apenas num substitutivo para mulheres e era importante considerar os homens não apenas como objetos da reflexão, mas também pesquisadores. Assim se constituía o que definimos naquele momento como sendo o objetivo central do Papai enquanto instituição: “Trazer para o primeiro plano de discussão a importância da participação jovem e masculina em questões relacionadas à saúde, sexualidade e reprodução”.29 Esse debate, construído a partir de uma “perspectiva feminista e de gênero”, não deveria desconsiderar os interesses dos próprios homens e os benefícios que essa reorientação traria para a vida de homens e mulheres. Entendendo que nos diferenciávamos de uma perspectiva de vitimização dos homens; afastando-nos de um discurso sobre a “crise da masculinidade” e compreendendo que aquela proposição partilhava os ideais feministas, como era entendido desde o início, estava aí em jogo não apenas o desenvolvimento de um conjunto de ações, mas de negociações de lugares, identidades e agendas. Desde essa formulação inicial (Medrado et alli, 2000) até os dias atuais, esse debate vem sendo amadurecido e travado em diferentes momentos e espaços, bem como com diferentes ânimos. Está em questão definições tão longe de consenso como, por exemplo, o que significaria uma perspectiva pró-feminista ou feminista e 29

Maiores detalhes sobre esse histórico e outras informações estão disponíveis no site www.papai.org.br 41

quais as possibilidades e implicações de homens identificarem-se como feministas. Um dos momentos de aprofundamento desse debate foi o seminário “Homens, feminismo e políticas públicas em saúde”, organizado em Recife pela ONG Papai e o Núcleo Família, Gênero e Sexualidade (FAGES) da UFPE que aconteceu em março de 2006. Neste evento no qual participei na condição de debatedor na mesa redonda “Gênero, masculinidades, mulheres, feminismo... Revisitando tensões e impasses entre movimentos sociais e produção acadêmica” foi possível avançar no debate, explicitando posicionamentos e tensões que nem sempre estiveram tão claras em outros momentos. 2

Afinal, os “papudinhos” de Camaragibe têm alguma coisa a ver com isso? Negociando identidades e agendas Ano 2000. Estávamos num auditório da UFPE em uma mesa de lançamento

de uma pesquisa internacional sobre masculinidades em parceria com importantes ONGs feministas do Brasil e vários outros países.30 Seria feita uma exposição inicial a respeito de questões gerais que seriam tratadas na pesquisa e duas pessoas debateriam depois. Eu era uma dessas pessoas e quando falo da necessidade de um olhar que valorize a diversidade das experiências masculinas para refletir sobre a própria prática política, uma das debatedoras inicia sua fala dizendo: “Lá vem Pedro de novo com a história dos coitados dos homens...”. Seguido do argumento de que não importaria aquela referência, uma vez que, no plano geral, a subordinação das mulheres se mantinha... No momento, além do desconforto e de me questionar sobre a validade daquelas pesquisas, não entendia as razões daquele questionamento. O que ficaria claro na prática cotidiana ao longo do tempo, seria a diferença entre falar de gênero e de feminismo, ou falar de participação masculina nas questões relacionadas a saúde e reprodução, por exemplo, e falar sobre os homens no feminismo. 30

“Homens: Sexualidade, Direitos e a Construção da Pessoa”, Fase 2 da pesquisa desenvolvida pelo IRRRAG - International Reproductive Rights Research Action Group. 42

A partir dessas situações, gostaria de, primeiro, exercitar uma possível relação entre a forma como muitas vezes feministas, homens ou mulheres consideraram este tipo de informação sobre os vários homens; segundo, pensar a nossa proposição no Instituto Papai de “trazer para a discussão” a participação masculina nos campos citados, e, terceiro pensar, de forma muito breve, como em diferentes momentos a antropologia lidou com essas questões em seu diálogo com o feminismo. Quando a minha colega dizia “lá vem Pedro de novo com os papudinhos”, ela estava, além de marcando um posicionamento, de uma outra forma me provocando a refletir: Mas de que adiantam esses casos para o que estamos pensando e propondo? Será preciso agora fazer um apanhado de toda a variedade de masculinidades para supor que quando se diz “os homens dominam as mulheres” é uma afirmação de uma outra natureza e feita de um outro lugar, com outros objetivos? Ou ainda, os casos isolados flexibilizavam, naquele contexto, a noção do homem universal? Em caso afirmativo, haveria ainda a questão de considerar se era àqueles homens que o feminismo acionado naquele contexto estava se referindo. Parece-me que, com quase trinta anos de separação estavam sendo atualizadas ali questões muito próximas daquelas que o feminismo e, particularmente, as antropólogas feministas, tinham debatido ao longo dos anos 70. Os pressupostos de universalidade estavam presentes, num sentido próximo ao que Michele Rosaldo, em sua autocrítica, chamou de fazer as perguntas erradas. A autora chama atenção para que o pressuposto da subordinação universal das mulheres (e da dominação masculina), embora sedutor do ponto de vista político, não se presta enquanto questão a ser investigada na medida em que inviabiliza a problematização de como as assimetrias são transformadas em desigualdades em cada contexto. Para Rosaldo (1995), o que estaria em jogo seriam os contextos de desigualdade a serem entendidos em suas especificidades e não exemplos a confirmarem a tese dada por certa. Estes dilemas antigos apresentavam-se também

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no momento em que criticávamos a forma como os homens eram percebidos e propúnhamos trazer os homens para os espaços que, em última instância, eram os que basearam os modelos de explicação na oposição do público e do privado31. Nessa direção, Margareth Arilha (2005), a partir do argumento de Sonia Corrêa de que “transformar os homens vai exigir muito mais tempo e energia intelectual que simplesmente envolvê-los em programas de saúde reprodutiva ou de planejamento familiar” demonstra que está em jogo a necessidade de superação da percepção do gênero e dos problemas enfrentados pelas mulheres como definidos pela oposição homem/mulher e privado/público apenas. Sonia Corrêa relembrando que a mudança individual de homens não levará às mudanças esperadas afirma que essas mudanças demandariam “uma agenda de pesquisa e reflexão, mas, sobretudo uma agenda de coordenação política deveria ser ocupada internacionalmente e vinculada a um pensamento teórico e conceitual sobre gênero, em associação com as grandes questões econômicas” (Corrêa apud Arilha, 2005: 163-164). Não se trata de abrir mão de tudo que foi proposto e do que está sendo feito no campo da ação política. Tampouco estou negando os vários estudos que foram feitos sobre como um certo jeito de ser homem está relacionado a problemas de saúde, violência e guerra. E não é meu objetivo dizer que não há o que ser mudado na forma como muitos homens têm conduzido e (muitas vezes arruinado) suas vidas e das mulheres com quem convivem. O que parece é que algumas vezes continuamos operando com o mesmo conjunto de categorias e oposições que insistentemente vêm sendo denunciados como problemáticos. Como a antropologia tem se posicionado nesse debate? Se não nos ajuda muito dizer que entre os Ilongot as coisas são diferentes, o que pode a antropologia dizer sobre as possibilidades de entender a relação que propus para esse texto? 31

Não estávamos propondo uma simples reversão dos lugares. Refiro-me, por um lado, à crítica ao uso de sociedades distintas e sua imensa diversidade como elementos para entender nossas sociedades, ao mesmo tempo em que a discussão travada nos anos 70 e superada, ao menos teoricamente, sobre a oposição entre público e privado, continua, muitas vezes, a orientar nossas ações e debates (cf. Rosaldo, 1979, 1995). 44

Além da referência a que não foi o feminismo quem descobriu as mulheres na antropologia (cf. Moore, 1988; Strathern, 1988) e o alerta para a diferença entre presença empírica e analítica da mulher nos textos etnográficos, da mesma forma que Kimmel (1992) vai se referir ao tratar da diferença entre a presença dos homens como sinônimo de universal e objeto de estudo, há uma outra questão que me parece importante ser destacada. Trata-se da noção de que gênero não é o único eixo de diferenciação social, devendo-se levar em conta as diferenças entre as mulheres e entre os homens devido a classe, raça, religião ou etnicidade. O que coloca a questão de nem todas as mulheres são subordinadas a todos os homens (Moore, 1997). Ao afirmar que para problematizar a categoria mulher ou mulheres é preciso dar conta dos vários outros níveis de assimetria envolvidos, está implicada a tão propalada necessidade de superação da oposição homens e mulheres como esgotando os sentidos do gênero. Como isso se dá na prática cotidiana? Isto embaralha a compreensão da constituição do sujeito do feminismo? Se é necessário um certo essencialismo para definir agendas e ações – os propósitos de modo estratégico, como fugir aos seus efeitos uma vez que “as estratégias sempre têm significados que extrapolam os propósitos a que se destinam”? (Butler, 2003: 22). É nesse sentido que, embora continue a acreditar na validade e importância de estudos sobre homens e mulheres em contextos específicos, problematizei aqui os diferentes usos que eles podem ter. Além disso, a insistência em análises que partam desses universos empíricos como oposições, poderão nos manter presos a enormes limitações. Por fim, aliado a esses dois pontos, a importância de considerar que essas questões são percebidas, hierarquizadas e postas em ação num cotidiano marcado por poder, interesses e definição de sujeitos. Estas questões não estavam ausentes no momento em que inicio o trajeto que relatei aqui, certamente. O que quis ressaltar é que elas foram se colocando e sendo esclarecidas no fluxo do cotidiano e da ação política. Fazer essas reflexões não implica em apostar numa crença de que uma razão exterior eliminaria todos esses conflitos. Também não

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implica num desânimo em relação ao diálogo. Mais que isso, implica em considerar que a relação entre academia e militância é constituinte mesmo do processo de conhecimento. Não é possível falar em “quando” política e saber se encontram, eles simplesmente não se separam. Referências bibliográficas ARILHA, Margareth. O masculino em conferências e programas das Nações Unidas: Para uma crítica do discurso de gênero. Tese de Doutorado – Faculdade de Saúde Pública. São Paulo: USP, 2005. BUTLER, Judith. Problemas de gênero – Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. CONNELL, Robert. “Políticas da Masculinidade”. Educação e Realidade, 20 (2), jul/dez, 1995, pp. 185-206. DA MATTA, Roberto. "O ofício do etnólogo ou Como ter 'Anthropological Blues'. In: NUNES, Edson (org.). A aventura sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. HARAWAY, Donna. “Saberes localizados: A questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. Cadernos Pagu. Campinas, 1995. ICPD – International Conference on Population and Development, Cairo, 1994. Programme of Action. New York: UNFPA, 1996. KIMMEL, Michael. "La producción teórica sobre la masculinidad: Nuevos aportes". RODRIGUES, Regina (ed.) Fin de siglo. Genero y cambio civilizatorio. Santiago: Isis International, Ediciones de las mujeres, nº 17, 1992, pp. 12938. LATOUR. Bruno. “Você acredita na realidade?” In A esperança de Pandora. Bauru: Edusc, 1999, pp. 13-37. LEAL, Ondina e BOFF, Adriane . “Insultos, queixas, sedução e sexualidade: Fragmentos de identidade masculina em uma perspectiva relacional”. In

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VALE DE ALMEIDA, Miguel. Senhores de si – Uma interpretação antropológica da masculinidade. Lisboa: Fim de Século, 1995.

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O caso de uma feminista que apanhou

Elizabeth Gómez Etayo32

1

Apresentação Na minha pesquisa de Mestrado em Sociologia sobre violência física contra

mulheres no âmbito familiar, trabalhei com a história de vida de quatro mulheres que foram agredidas por seus maridos, por suas mães ou por seus padrastos. Neste texto analisarei o caso de uma feminista que apanhou de seu marido. Licenciada em Ciências Sociais, tinha 50 anos, morava num bairro de classe média e teve dois filhos num casamento que durou doze anos, no momento da entrevista fazia oito anos que tinha se separado. Ela ofereceu seu depoimento porque se interessou na pesquisa e quis compartilhá-lo, aceitei pela possibilidade de estabelecer contrastes com os casos das outras mulheres de baixa renda que não tinham a formação acadêmica que ela teve. Note-se meu próprio preconceito surgido no momento da pesquisa. Pensava que só as mulheres pobres ou com pouca educação têm mais risco de apanhar do que outras mulheres, ainda mais por se tratar de uma feminista. Deparar-me com o caso de uma feminista que apanhou e que, além disso, era amiga pessoal e de militância feminista na Colômbia, ofereceu a oportunidade de repensar as análises da violência contra as mulheres. Desenvolvo esta reflexão por conta das críticas e questões que minhas outras amigas feministas militantes levantaram, pois se uma feminista apanha de seu marido, segundo algumas delas, realmente não se é uma

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Tenho graduação e mestrado em Sociologia pela Universidade Del Valle, Colômbia (1997 e 2005) e atualmente faço Doutorado nas Ciências Sociais na Universidade Estadual de Campinas, na área de estudos de gênero. Fiz parte da Rede Nacional das Mulheres da Colômbia. Trabalhei, entre outras, numa ONG chamada “Marcando Huellas de Paz” de mulheres deslocadas pelo conflito armado, com mulheres negras no Litoral Pacífico Colombiano e como professora na Universidade Del Valle e na Universidade Javeriana de Cali. Contato: [email protected] 49

verdadeira feminista. Também quero revisar a conceituação da violência contra mulheres e melhor compreender as mulheres em meio de relações de violência. Deste modo olharia as relações e não somente os indivíduos, tal como propõe Maria Filomena Gregori no seu texto “Relações de violência e erotismo”. Este texto foi debatido no VII Fazendo Gênero, Simpósio Temático 52, “Entre pesquisar e militar: Contribuições e limites dos trânsitos entre pesquisa e militância feminista”. As discussões feitas no grupo, a respeito da violência contra mulheres, da teoria feminista para analisar o fenômeno e dos desafios tanto da militância feminista quanto das feministas na academia contribuíram na edição desde artigo. 2

Elementos conceituais Para desenvolver a idéia proposta é preciso repensar o que se entende por

violência contra mulheres, quer dizer, as relações de violência nas quais algumas mulheres participam. Na minha defesa de mestrado eu digo que: “Existem muitas definições e classificações de violência, mas essencialmente entendemos como destruição de si mesmo, do outro ou dos outros. Não somente destruição física, mas também emocional, psicológica e cultural. A violência é o conjunto de ações que aproveitam o poder, a dominação e/ou a força para destruir e/ou marginalizar” (Gómez, 2005). Assim, a violência contra mulheres teria uma conotação particular no sentido que elas podem ser vítimas de violência pela relação com seu sexo. De fato as agressões contra mulheres têm uma implicação diferente se comparadas com a violência contra homens. Para estas definições me baseei em autoras colombianas que analisam a violência doméstica como Nhora Segura33 e Maria Cristina Maldonado34. No caso analisado levei em consideração a 33

“O sexo e a idade constituem duas das diferenças mais importantes na possibilidade para ser agressor ou agredido, ser autor ou objeto da violência física, psicológica, sexual ou simbólica, ou ter capacidade de defesa ou ser impotente frente à agressão” (Segura, 1991:31) 34 “Tanto a violência quanto o conflito existem na vida social, mas não precisasse dela como sim do conflito. Enquanto que este é inevitável, a violência é evitável, porque é um meio que coexiste com 50

violência física contra mulheres, manifestada com golpes, facadas, hematomas, olhos roxos, fraturas e espancamentos em geral. Não obstante, julgo pertinente usar uma definição de violência muito mais desenvolvida nas discussões do feminismo para compreender as relações de violência onde as mulheres têm participação, além de analisar o que acontece quando é uma feminista quem apanha. Para isso retomo as definições de Teresa de Lauretis e Henrieta Moore, onde elas tomam a violência como engendered. Uma proposta conceitual que vai além das já conhecidas discussões sobre a construção cultural e social do gênero como atributo dos homens e das mulheres (Lauretis, 1997; Moore, 1994) e que propõe repensar a violência no marco de relações de poder além de pensar que os homens e as mulheres incorporam práticas e costumes não somente segundo gênero, mas também culturas, contextos e discursos em estruturas hierarquizadas. No texto “The violence of rhetoric”, Lauretis propõe que a chamada ‘retórica’ sobre a violência leva o risco de reconciliar o irreconciliável e de tornar-se invisível às agressões e aos agressores no sentido de desenvolver uma estrutura conceitual muito elaborada da gênesis da violência, porém vaga sobre os atores e suas responsabilidades. Nesse aspecto, seu diálogo é explicitamente com Foucault, já que, ainda que ela reconheça o desenvolvimento do conceito foucaultiano de poder e sua contribuição às ciências sociais contemporâneas para repensar o poder fora das instituições e analisá-lo no mundo mais íntimo, ela pensa que poderia se chegar a uma violência da retórica, quando os argumentos tentam levar a ‘reconciliar o irreconciliável’. Com a proposta de violência como engendered, Lauretis tem um olhar mais amplo sobre as conceições tradicionais de violência doméstica ou familiar que davam conta somente de mulheres agredidas e crianças abusadas para propor que a violência entre entes íntimos deve ser vista no contexto mais amplo de relações sociais do poder, sendo o gênero central na família, onde os homens e as mulheres outros para manejar o conflito. (…) A violência não é inata ao ser humano, também não é própria de uma cultura…” (Maldonado, 1995:64) 51

amadurecem e também aprendem formas de espancar e apanhar, que são socialmente ensinadas. Para isso, Lauretis define o poder como uma força produtiva que afeta tanto os corpos sociais quanto às redes de discursos e ao mesmo tempo gera formas de conhecimento e formas de subjetividade (Lauretis, 1997: 267). Desta forma, compreende-se que o poder tece redes e não se focaliza num só ponto, estrutura discursos e promove os sujeitos sociais. Além disso, assim como existem formas de poder, ele não é absoluto nem unívoco, existem também formas de resistência. Aqueles que são geralmente espancados em espaços íntimos também têm participação no jogo de poder e podem desenvolver formas de resistência, que não precisamente confrontam o poder com as mesmas ferramentas, mas que também não ficam passivos. Não obstante, ela reconhece que as posições das mulheres e dos homens são antagônicas e esse é outro dos argumentos pelos quais ela se refere à violência como engendered. Em suma, Lauretis argumenta que a violência é engendered porque o gênero mesmo é construído em meio a técnicas e estratégias narrativas do poder as quais contêm relações assimétricas entre o masculino e o feminino que vão além da linguagem e da representação. Tanto o sujeito quanto o objeto do ato violento têm um perfil ou identidade de gênero e sua configuração não fica fora dessa representação (Lauretis, 1997: 272). Por sua vez Henrietta Moore (1994) também desenvolve uma proposta para abranger a violência de gênero levando em conta as características que têm sido atribuídas ao feminino e ao masculino, começando por questionar que justamente a arbitrariedade desses atributos é ou pode ser um certo suporte da violência de gênero. Para Moore existem dois grandes problemas nas ciências sociais no que diz respeito à abordagem da violência. Por um lado, mesmo que existam muitos escritos, pesquisas e inclusive especulações, os estudos ainda são insuficientes e mantêm o conceito da violência sob uma certa teorização e, por outro lado, certos discursos sobre gênero e sexualidade têm contribuído a manter os homens ao lado

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dos ativos, poderosos e agressores e as mulheres no lado passivo, submisso e receptivo. Desta maneira os estudos terminam por reproduzir ou aceitar que nas diferenças da socialização masculina e feminina, o peso recai mais sobre biologia de que sobre a cultura (Moore, 1994: 139). A autora ainda propõe falar de homens e de mulheres como se tratassem de distintos tipos de pessoas. Proposta envolvida no que foi chamado por Lauretis de engendered. A proposta de engendered coloca-se dentro dos estudos pós-estruturalistas que olham para um sujeito não fixo, multifacetado, heterogêneo e eclético onde até a variável de gênero depende dos contextos culturais, de sua região, das histórias dos povos e assim mesmo a violência de gênero dependeria do sistema de gênero que cada cultura tenha criado. Desta forma não existiria uma violência de gênero em si mesma, mas violências de gênero segundo práticas, costumes e sistemas onde o mesmo engendered mudaria. Moore diz que existe uma relação entre discurso e dominação que tem a ver com as ordenações hierarquizadas do mundo. Os discursos ordenam o mundo, estabelecem prioridades, podem excluir ou incluir e as falas dos homens e das mulheres não escapam a essa matriz hierarquizada ou dominante. 3

Análise de caso Os lares têm sido idealizados como espaços de convivência, harmonia e, em

geral, de proteção para as famílias. Mas eles poderiam converter-se numa das nossas instituições mais perigosas, tanto para as crianças quanto para as mulheres. O lar, não é mais aquele doce lar do dito popular quando a violência se faz presente. O âmbito: o privado; o lugar: a casa; os atores: dois seres que se amam, ou dizem se amar. No seguinte depoimento a mulher feminista, sobre a qual este artigo pretende se centrar, nunca imaginou que seu marido algum dia a agrediria conforme o descrito:

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(…) Na primeira vez que ele me bateu foi depois de uma festa de despedida de uma amiga antropóloga. Ele tinha dançado numa festa com os trabalhadores da fazenda. Ele disse: volto já! Acho que ele fumou maconha ou alguma outra coisa. Quando chegou, eu estava dando descarga no vaso sanitário e começou a me bater. Essa foi a primeira vez que me bateu, me fraturou o cóccix e me machucou na boca. Eu fiquei surpresa porque nunca tinha apanhado de ninguém. Nunca! De ninguém! Dele também não, aliás, nunca imaginei que ele fosse capaz disso. Na expressão: “fiquei surpresa”, manifesta-se uma das características mais comuns da violência intrafamiliar ou da violência em meio das relações onde existe afeto; e que nunca se esperaria agressão da pessoa amada. Por isso uma das primeiras reações da vítima é a de estranheza, a qual não permite que ela aja prontamente em sua defesa. Neste caso a mulher narra que não tinha antecedentes de violência física, embora revisando os seus relatos, encontra-se que seu marido até então não havia lhe batido, mas já havia lhe dirigido outros tipos de agressões, que ela qualificava como sexuais e psicológicas, e que também foram físicas. Numa oportunidade, ele jogou uma xícara de café quente em seu rosto, porque ela não compartilhava um ponto de vista dele, mas neste momento ela não acreditava que isto fosse violência. O namoro deste casal deu-se no meio da militância política de esquerda das décadas de 70 e 80. Eles eram companheiros políticos, estavam unidos pelas lutas comuns. Ele era um homem formado no socialismo e de alguma maneira esta formação política eximia-lhe de um julgamento por parte dela. É importante levar em conta este pano de fundo para compreender por que as cenas de violência puderam ser perdoadas ou não denunciadas por ela. Por outro lado, é possível que quando ela reconstituiu os detalhes da ação violenta, acreditava que seu agressor tenha acumulado a raiva até que culminou, por alguma razão, no ato violento, como se ele tivesse premeditado tudo. Dentro das distintas razões que ela considerou como pretexto para sua raiva, a fundamental foi o ciúme infundado, quase doentio, que o fazia vislumbrar amantes dela por todos os lados. No fundo, um permanente sentimento de

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inferioridade frente a sua esposa, levando em conta que se tratava de uma mulher muito atraente, inteligente e autônoma, além de ter seu próprio círculo de amizade. Em suma, ela mantinha um mundo independente da vida de casal; situação que possivelmente gerava muita incerteza nele. No mundo público era um casal de esquerda, onde se suporia a igualdade, no mundo privado ela mantinha o lar e ele dependia de suas provisões. Deduzia ela que uma das circunstâncias para que a violência surgisse nesse momento (e não antes) tenha sido a melhoria das condições econômicas do casal, gerando a independência econômica do esposo, pois como dissemos, antes de montar a microempresa que proporcionou-lhes o título de melhores empresários do ano, era ela quem sustentava o lar. Descreveu ainda outra parte da cena: Os meus filhos estavam dormindo. Eu só queria que eles não dessem conta da cena. Eu acharia horrível que meus filhos olhassem aquela cena. Ele começou a me espancar com seu pé, logo ficou na porta do banheiro me ameaçando para que eu saísse. Obviamente eu não queria sair. Até que chegou a hora que eu consegui sair por um outro lado. Aí me deu um pontapé que me fraturou o cóccix, eu tentava dar um jeito, eu falava, falava, falava num tom de voz baixo, nunca gritei. Queimou minha bolsa dentro de casa, queimou meu violão, queimou os meus documentos, ele queria me queimar o rosto. Na violência dentro da família, o agressor poucas vezes reconhece que é uma pessoa violenta porque geralmente não assume a autoria das ações cometidas nem se julga responsável pelas conseqüências geradas, muito menos as calcula. Neste caso a intenção do agressor não era fraturar o cóccix da esposa, embora fosse o que ele conseguiu com o pontapé que causou sua queda contra o vaso sanitário. Nunca gritei. Esta expressão pode ser comum entre algumas mulheres espancadas. O silêncio é uma das “opções obrigadas” antes de ser objeto de juízo social e/ou familiar. Neste caso, a imagem perante os filhos e o dano psicológico que poderia causar a eles foram as razões porque ela não gritou. Por outro lado, o fato de que ele não só lhe agrediu, mas também destroçou seus pertences e não a

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deixou sair, expressa não só um desafogar de ira, mas uma intenção de diminuí-la como pessoa, já que os golpes vão acompanhados de insultos como se mostra na continuação. Ele disse que eu era uma cachorra, uma puta, que eu era uma sem vergonha, que eu me deitava com todos os homens. Isso que os homens acusam as mulheres. Que eu abria as pernas para tudo mundo, e que… “Você é uma vaca! De onde vem! De um encontro com seu macho!” Bem, toda essa fala horrível. Continuava gritando a mesma coisa, é como um vinil riscado e que… “Vou te queimar! Vou te matar!”. Ameaçava-me. A violência física não vem só, era acompanhada de violência psicológica, tenta gerar culpa na vítima e torná-la merecedora da agressão por suas supostas ações indevidas segundo o olhar do agressor. Ofensa e golpe juntos, como um juízo e um castigo ao mesmo tempo. Com os insultos, que são violência psicológica, o agressor quer justificar suas ações e fazer a vítima consentir que ele tenha uma boa razão para atuar assim. No outro dia aconteceu o seguinte: Começou a amanhecer. Então ele passou ao outro lado, aquele do culpado, aquele de pedir perdão. Eu não conseguia me mexer. Dizia-me que lhe perdoasse, que ele não faria isso nunca mais, que ele me amava, que eu era a mãe de seus filhos, que eu era um ser muito especial para ele, ele jurava-me que não faria isso mais. Eu lhe dizia que estava cansada de seus ciúmes, ele me dizia que ia mudar, que ia mudar e jurava, chorava e ajoelhava-se. Falava de todos os seus discursos, tirava toda sua filosofia, então me convenceu que não aconteceria de novo. Continuamos num relacionamento igualmente ruim, não batia em mim… freqüentemente, mas seus ciúmes não diminuíram, ou seja, era um relacionamento atormentado. Finalmente a mulher liberta-se daquela cena, mas não da violência, já que depois aconteceram outras cenas de menor intensidade que inclusive ela não qualificava como violentas. O relacionamento tinha se fragmentado, mas não tão intensamente para o rompimento definitivo. No meio do conflito aparecem alguns fatores que impedem a separação como, por exemplo, a relação com os filhos, o receio da reação no convívio social, a esperança de que o relacionamento de casal 56

mudasse, entre outras coisas, e por tratar-se de um casal não só de esposos, mas de companheiros políticos. A mulher soube que tinha o cóccix fraturado no momento da consulta com um médico amigo, que realizava terapias alternativas à medicina alopática, o doutor insistiu que ela denunciasse o caso alertando que aquilo era bastante grave, não só para sua saúde física, mas também mental. Ela não considerou pertinente denunciálo pelas implicações sociais e familiares já assinaladas e guardou silêncio convencida de que ela mesma poderia manejar a situação em seu ambiente familiar. A respeito, Bourdieu diz em seu livro “A dominação masculina” que “as mesmas mulheres aplicam a qualquer realidade e, em especial, às relações de poder que estão envolvidas, uns esquemas mentais que são produto da assimilação fundadora da ordem simbólica” (Bourdieu, 2000: 49). Aparecem como um véu todas as justificativas que a cultura tanto nele como nela tem ensinado. O homem arremete, domina e maltrata; a mulher agüenta, compreende e espera. 4

Tentando concluir... Destaca-se uma vez mais que o caso analisado é de uma mulher feminista.

Como muitas de nós que debatemos e que geralmente estamos acostumadas a ouvir e interpretar os relatos das outras mulheres que procuram o apoio das ONGs, mas que raras vezes imaginamos que isto pode nos ocorrer e que de fato está ocorrendo entre nós, mulheres feministas. Nós, como ela, temos um acervo de formação na academia, percorremos na universidade até os patamares mais altos, temos participado de debates sobre os direitos das mulheres e advogamos pelos direitos de todas, que mesmo não sendo feministas podem se sentir acolhidas por nossos projetos e propostas. Quero insistir nesta idéia para chamar a atenção de que a formação acadêmica e política se dá também no marco de uma certa história social e familiar particular, que não é superada nem ultrapassada, e que de alguma maneira ou compete ou complementa-se com ela.

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Mesmo ele sendo socialista e ela feminista, participaram de uma violenta relação de casal. Assinalo essas características porque, no caso de socialismo na América Latina, se desenvolveu sob a idéia guevarista do homem novo, idéia que não chegou a ser nem incorporada por alguns homens nem desenvolvida em alguns lares chamados de socialistas. No caso dele, ao final das contas, simplesmente fez parte do conjunto de homens que ainda acreditam que por serem varões, lhes é reservado um poder social historicamente adquirido embora seja possível que esse poder seja tênue e têm que reafirmarem-se, sendo a agressão contras as mulheres uma dessas formas de reafirmação. A respeito, Michael Kaufman disse que os “homens que têm espancado suas mulheres mostram não só desapreço por elas, mas freqüentemente ódio e desapreço muito mais profundo por si mesmos” (Kaufman, 1997: 32). Quiçá pelo peso de uma sociedade que impõe certa forma de ser homem; um varão forte, agressivo e que sustenta economicamente seu lar. No caso da mulher, pode se dizer que o feminismo não age como uma proteção infranqueável quando existe uma forte história familiar e pessoal de submissão, como é o caso dela, que sendo formada nas ciências sociais e no feminismo em particular, tem um histórico de abuso familiar descrito em outras partes da pesquisa e que parece ser mais forte em sua psique no momento de agir por seus interesses e por sua defesa. Como ela mesma falou, quando eles não tiveram dinheiro, no casal havia (aparentemente) maior equidade, mas quando se incrementou o orçamento, ele se tornou um ciumento compulsivo e queria vigiá-la constantemente. Quando só ela trabalhava e era o alicerce econômico da família, ele não se sentia no direito de exigir explicações de sua vida. Com dinheiro a mais, além de vigiá-la, queria puni-la pelos atos que considerava imorais. Assim, recorrentemente questionava sua maneira de agir, suas relações sociais, seus amigos e amigas, protagonizando a cena de violência física além da continuidade das reclamações e dos controles. Quando a mulher se nega a denunciá-lo, quer evitar que esta situação tornese de conhecimento público e de alguma maneira tenta protegê-lo, já que se tratava

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de um militante da esquerda e tanto ele quanto o projeto político poderiam ser questionados. Por outro lado não queria que seus filhos tivessem uma imagem de um pai violento. Ela considerava que apesar de ter sido um homem violento, tinha sido um bom pai e que nada justificaria as causas de danos emocionais aos seus filhos, tal como ocorreria se soubessem destas situações de violência. Também é possível que temesse uma nova agressão por parte de seu esposo, o medo pode converter-se em paralisante, uma vez incorporado pode inibir a necessidade da defesa, finalmente temia a vergonha social e o juízo moral dentro de seu círculo de amigas feministas. Esta história mostra, entre outras coisas, como algumas mulheres, inclusive feministas, deixam seus interesses por terceiros, sejam os filhos, esposo ou amigas. Neste caso ser feminista representou mais uma carga do que uma vantagem. Mas, como transformar esta realidade? Como reconhecer e refletir sobre os paradoxos e os limites do feminismo sem que isso retire a validade do projeto e do processo feminista permitindo reconhecer que ser feminista não representa uma imunidade para as agressões, para a violência, para a vulnerabilidade e que, justamente o reconhecimento dos limites pode se traduzir na construção de novas formas de solidariedade entre nós, tanto mulheres em geral quanto feministas em particular? Finalmente, esta proposta quer refletir sobre o ser feminista, sobre as solidariedades entre nós feministas e sobre os estereótipos sociais que temos ajudado a construir como verdades, às vezes solidificadas, mas no fundo, ainda nubladas entre nós, mulheres feministas. Referências Bibliográficas BOURDIEU Pierre. La Dominación Masculina. Barcelona: Editorial Anagrama, Colección Argumentos, 2000. GREGORI, Maria Filomena. “Relações de violência e erotismo” Em: Cadernos Pagu (20) 2004 pp. 87-120.

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GOMEZ ETAYO, Elizabeth. Entre amores y moretones. Violencia física contra mujeres en el ámbito intra familiar. Tesis de Maestría en Sociología, Universidad del Valle, mayo de 2005. KAUFMAN, Michael. “Las experiencias contradictorias de poder entre los hombres”. En: Revista Masculinidades, Poder y Crisis. Santiago de Chile: Ediciones de los magos No. 24. Isis Internacional, 1997. LAURETIS, Teresa de. “The Violence of Rethoric. On Representation and Gender” Em: The Gender/ Sexuality Reader. Culture, History, Political Economy. Edited by Roger N. Lancaster and Micaela di Leonardo, Routledge, New York and London, 1997. MOORE, Henrietta Moore. “The problem of explaining violence in the social sciences”. Em: Sex and violence. Issues in representation and experience. Edited by Penelope Harvey and peter Gow. Routledge, London and New York, 1994.

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Os usos militantes das ciências sociais na conformação dos “problemas das mulheres” na Igreja Católica e na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil

Gabriele dos Anjos35 Embora a definição de ciências sociais implique na exigência de autonomia em relação a forças e grupos sociais externos à “comunidade científica”, ou seja, de que somente esta determine os procedimentos de constituição e análise de objetos, métodos de pesquisa, formas de apresentação de resultados e de controle de vigência destes36, constata-se seu uso em diferentes contextos políticos e universos sociais. Assim, alguns cientistas sociais são levados a tratar o problema das demandas de utilidade social, como se vê nas tentativas de delimitação da atuação do cientista social (Siméant, 2002: 47-53) ou de produção legítima (Lahire, 2002: 45-48). Ao mesmo tempo, apresentam-se aos pesquisadores as possibilidades de análise das diferentes configurações de usos das mesmas: as funções “propositivas” assumidas pelos cientistas sociais a partir da autoridade social conferida pela titulação; a constituição de seus saberes em “técnicas” (Piriou, 1999: 57-61) ou a concepção de ciências sociais como “desveladoras do real” (Pécaut, 1990; Lahire, 2002: 54-55). Este texto apresenta uma destas configurações, a partir do estudo de um caso, de mulheres muito escolarizadas, com diferentes tipos de engajamento e 35

Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisadora da Fundação de Economia e Estatística. As preocupações que deram origem a este texto não são oriundas de engajamentos em espaços de militância, mas da pesquisa em temas como movimentos sociais e militantismos. Agradeço as observações e críticas ao texto feitas pelos participantes do Simpósio “Entre pesquisar e militar: Contribuições e limites dos trânsitos entre pesquisa e militância feministas”, bem como as sugestões de Alinne Bonetti e Soraya Fleischer ao mesmo. Contato: [email protected] 36 Para citar apenas um “clássico” desta definição de ciências sociais: Bourdieu, Chamboredon, Passeron, 1968. 61

militância em nome de causas femininas. Neste sentido, vincula-se aos estudos de “gênero” – e no caso estudado, esta é uma espécie de noção chave, sendo parte do vocabulário das mulheres estudadas. As contradições entre utilidade social e distanciamento do pesquisador se colocam de forma bastante particular aos estudos “sobre mulheres”, ou “de gênero”, já que o engajamento das próprias pesquisadoras nas “lutas feministas” foi constitutivo da temática em diferentes espaços acadêmicos. Além disso, se é possível identificar uma clivagem entre uma pesquisa mais “acadêmica” e outra mais “engajada” em determinados contextos de pesquisa (Lagrave, 1990), em outros, como indicam estudos no Brasil, estas temáticas de estudos são consideradas como parte do compromisso com as “lutas femininas” (ver Costa e Bruschini, 1992). Esta valorização pode ser derivada da concepção de ciências sociais corrente no Brasil como ligada ao espaço político (Pécaut, 1990), e torna mais premente a discussão da implicação do(a) pesquisador(a) com o objeto, e a reconstituição dos compromissos tácitos nas relações com os pesquisados, e seus efeitos no trabalho de pesquisa (Siméant, 2002: 51). Este texto apresenta a análise de situações de uso “militante” das ciências sociais e alguns de seus efeitos na prática de pesquisa de campo. As reflexões aqui presentes são parte de um esforço para compreender as condições de possibilidade da pesquisa de militâncias, em especial aquelas que têm como recurso a alta escolarização, e que podem trazer “exigências de retorno” próprias à pesquisa, como a busca de sistematização e legitimação de ideologias. A análise das práticas que tornaram possível a obtenção do material para análise e a apresentação de seus resultados mostra como o acesso ao universo pesquisado se deu de acordo com as concepções de ciências sociais vigentes neste. Além disto, esta experiência de pesquisa pode constituir um ponto de partida para o estudo de outras esferas de ação e sua utilização de esquemas oriundos das ciências sociais. 1

O trabalho de campo: Uma pesquisa entre iguais

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Recupero aqui as situações de campo e as análises de parte do universo de pesquisa de minha tese de doutorado. Esta tinha como objeto as condições de produção, difusão e adesão a ideologias sobre condição feminina na Igreja Católica e a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).37 Minhas reflexões dizem respeito às “leigas de classe média” com alta escolarização, algumas delas formadas em sociologia, voltadas ao trabalho de intervenção social da Igreja Católica junto à “mulheres pobres”; às religiosas com alta escolarização (em sociologia, disciplinas religiosas, letras e “humanidades”) atuando como especialistas sobre a “situação da mulher na Igreja”, e as mulheres formadas em teologia, ou outras disciplinas das ciências humanas, que buscam inserção profissional nas igrejas como produtoras ou difusoras de teorias e saberes sobre a condição feminina, em especial as “teólogas feministas”.38 Durante o trabalho de campo, apareceram os problemas relativos ao distanciamento de um universo quase familiar (em especial com relação às teólogas feministas doutorandas em teologia, com as quais eu partilhava a situação de doutoranda e um trajeto social ascendente devido à escolarização). A observação do uso de noções das ciências sociais e humanas por elas foi se tornando inquietante: elas pareciam usá-las de forma “inadequada”, e eu por vezes incorri na tentativa de corrigi-las (ou afirmar meu entendimento sobre) em discussões de autores e temas das ciências sociais (e 37

O universo da pesquisa foi circunscrito a mulheres engajadas em alguns grupos e organizações de mulheres destas igrejas que, a partir de diferentes recursos e concepções de condição feminina, estavam voltadas a problemas e questões “de mulheres”: nas Pastorais da Criança e da Mulher Pobre, no Grupo de Reflexão da Mulher Consagrada da Conferência dos Religiosos do Brasil, na Ordem Auxiliadora das Senhoras Evangélicas da IECLB e mulheres que se identificam como “feministas” na IECLB. A pesquisa orientou-se para aquelas igrejas que, por diferentes processos, estão voltadas a oferecer re-elaborações sobre a condição feminina, e procurou abranger organizações e formas de engajamento feminino nas igrejas que correspondessem à variedade de identidades femininas oferecidas a partir daquelas re-elaborações. Assim, a pesquisa cobriu um espectro de formas de atuação bastante amplo, que entre as agentes pesquisadas têm diferentes formas de definição (‘militância”, “serviço”, “lutas”, atividade profissional, “participação”), e diferentes possibilidades de concretização (liderança “comunitária”, atividades paroquiais, filantropia, proselitismo religioso e político, grupos de estudo, trabalho em organizações não governamentais, “formação de lideranças”, etc.). Ver Anjos, 2005. 38 Deixo de lado, portanto, as situações de pesquisa em que se colocaram como preponderantes a distância social, de origem, cultural e/ou escolar em relação às pesquisadas. 63

mesmo quase o empreendi no texto da tese!). Tais situações mostram, além da dificuldade de adotar uma postura de observação em meio ao jogo escolar de discussão de idéias e autores muito similar àquele com o que estou familiarizada, como as apropriações das ciências sociais desafiavam minha vontade de uso exclusivo aos iniciados destas noções, autores e saberes. Ou seja, elas pareciam estar tomando para si um trabalho que seria meu. Muito mais do que a demanda de utilidade, o papel de mediador – entre as “teorias”, “descobertas” e/ou técnicas das disciplinas e as diferentes atuações militantes em torno dos problemas da condição feminina –, que elas também desempenhavam e que viam como comum a todo o “intelectual”, era o que dificultava minhas iniciativas de distanciamento. Se é possível separar concepções políticas – e politicamente não questiono a legitimidade dos investimentos e das “causas” assumidas por estas mulheres – e pesquisa, no meu caso, havia um pressuposto – jamais posto em questão abertamente por mim – de troca de informações entre iguais, não exatamente em termos de militância pelas causas femininas, mas principalmente pelo engajamento no espaço escolar que eu partilhava com estas mulheres.39 Meu texto seria o resultado de um esforço de pesquisa junto a mulheres, evidentemente favorável às “boas causas” femininas (“emancipação”, “acesso a postos”, etc.), esforço partilhado pelas pesquisadas, também participantes de diferentes instâncias escolares, grupos de pesquisa, congressos. O acesso a este meio de doutorandas, formadas em teologia, e professoras de centros de ensino das igrejas constituía uma imagem comum, a de intelectual mediador, entre eu e aquelas cujo investimento no espaço escolar religioso era mais intenso. É em função desta identidade que fui convidada a tomar parte em diferentes eventos e iniciativas destas mulheres, como elaboração de projetos de intervenção, mas também cursos, seminários e grupos de estudo. Assim, participei 39

E que também se mostrava no contato com as mulheres mais velhas, já professoras, e que tinham, na maior parte das vezes, o caráter de “orientações”, indicações e fornecimento de bibliografias e “contatos” à “aluna”. 64

como doutoranda em sociologia que trabalhava “com gênero”, de reuniões de um núcleo de pesquisas de gênero de um centro de ensino de teologia – cuja atividade envolvia a discussão de textos e em nada diferia das atividades universitárias que eu conhecia; participei também de um grupo de estudos que se reunia em uma organização não governamental “progressistas” das igrejas em pauta. Neste grupo participavam doutorandas em teologia que trabalhavam com a “questão de gênero”, professoras universitárias, além dos profissionais da entidade, dedicados a diferentes ações junto a mulheres e outros grupos sociais “desfavorecidos”. Estes encontros foram particularmente elucidativos de como se constituem as redes que tornam os espaços escolares e militantes tão entrelaçados: ao apresentarem suas atividades como pesquisadoras, as integrantes do grupo renovavam ou iniciavam seus “contatos” com o espaço militante e ofereciam seus conhecimentos a este, buscando ali objetos de pesquisa. Foi também como pesquisadora da instituição onde trabalho que fui convidada a participar de um curso de “teologia popular” e neste apresentar um painel sobre “mulher e trabalho”. Este foi o momento em que pude exercer o papel de mediadora de forma mais ativa, ao mesmo tempo em que me tornava “mais uma” a circular pelos centros de ensino e demais instituições ligadas às igrejas. Esta possibilidade de inserção sem que se perceba a diferença do cientista social no meio pesquisado exigiria uma pesquisa sobre as condições institucionais de trabalho com ciências sociais, e principalmente das formas de sua legitimação social. No caso, tanto este papel de mediadora quanto as apropriações das ciências sociais empreendidas por estas mulheres podem ser entendidas se for levado em conta as possibilidades que este espaço escolar oferece a elas. Tratava-se de mulheres que tinham possibilidades de investir seu capital escolar simultaneamente no espaço escolar das igrejas (seus centros de ensino superior) e em espaços de militância ligados a estas, como organizações não governamentais e comunidades eclesiais de base. Fortemente ligadas à escola, seja por uma formação para o magistério (do nível primário até o professorado de nível superior), seja por uma longa formação escolar (em nível de graduação e pós-

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graduação), estavam habilitadas ao investimento na produção e difusão de esquemas de interpretação como atividade profissional. Desta forma, atuação profissional e militante podem se confundir, e não haveria nenhuma restrição ao uso das ciências sociais como fornecedoras de “ferramentas de análise” que possibilitam uma atuação “na realidade”. É bastante possível que aos cientistas sociais estas possibilidades de atuação em “jogo duplo”, como profissional e como “militante” também estejam abertas. Se é assim, haveria uma naturalidade de minha presença no meio pesquisado. 2

Modalidades de uso das ciências sociais Uma das funções mais óbvias do uso de noções e técnicas oriundas das

ciências sociais seria o apoio ao trabalho pastoral e teológico: assim, para uma doutoranda em teologia da IECLB a Igreja, além de cantar e fazer oração, trabalha com a realidade das pessoas, o que leva a estar interagindo com outras áreas, para provar cientificamente o que se diz.40 As ciências sociais e outras disciplinas das ciências humanas, como psicologia, ou história, também fundamentam racionalmente as tomadas de posição (Siméant, 2002: 24), no caso, no espaço teológico. A partir de problemas práticos (e também da prática escolar) estas mulheres fazem muita pesquisa em diferentes áreas para provarem suas afirmações. Especialmente no caso das teólogas luteranas que são doutorandas, trata-se da importação de técnicas, noções, discussões das ciências sociais e humanas na produção de textos teológicos. Elas fazem observações participantes, entrevistas nas comunidades onde trabalham para posteriormente utilizá-las em um capítulo da tese, ou ainda se assessoram de autores e autoras de áreas como história, sociologia, antropologia; em intercâmbios de estudos fazem umas cadeiras de sociologia, só por curiosidade. É esta interdisciplinaridade que as faz artífices de uma renovação teológica e pastoral que enriquece a teologia, e instaura um domínio mais amplo, que vai além da teologia. Esta apropriação de teorias, noções e 40

Os termos grifados em itálico são nativos, e encontram-se em depoimentos e textos produzidos no âmbito do universo estudado. 66

técnicas, o diálogo crítico com áreas aliadas, é uma coisa bem tranqüila, pois está presente no universo dos possíveis deste espaço escolar também voltado às classificações e instituições oficiais do sistema de ensino superior41. No entanto, na medida em que estas mulheres estão inseridas em espaços de difusão de ideologias sobre a condição feminina, os trabalhos como teses e dissertações também servem para “validar o conhecimento militante” (Siméant, 2002: 27). Aí as noções das ciências sociais ganham uma ênfase ativista. É interessante considerar aqui a valorização da entrada do movimento feminista para a Academia, contribui[ndo] para a (re)formulação dos paradigmas correntes, universais e universalizantes (em Gierus, 2005: 515). Defende-se a ruptura epistemológica como negação de discursos e saberes normativos, para exercer uma postura de transformação epistemológica (Ströher, 2004: 135). Autores como Foucault, cujos desenvolvimentos sobre poder (ver, por exemplo, Ströher, 2004), ou a dominação masculina trabalhada por Bourdieu (Deifelt, 2002), a critica da racionalidade cartesiana (Deifelt, 2002 e Neuenfeldt, 2004: 47) são usados para a desconstrução das teologias tradicionais em textos que terminam por proposições de reconstrução de valores (Deifelt, 2002), de identidades (Neuenfeldt, 2004: 97), de um discurso afirmativo que nos empodere (Ströher, 2004: 136). Há uma apropriação normativa destes autores para desconstruir saberes e construir outros como parte da sistematização da heterodoxia teológica proposta: a teologia feminista. No domínio de pesquisa “sobre mulheres”, a identificação com determinados rótulos da pesquisa (“feminista”, “mulheres”, “relações sociais de sexo”, “gênero”), remetem às inserções profissionais e militantes das pesquisadoras e a suas estratégias para afirmar sua definição do trabalho na área (Lagrave, 1990: 34). A própria noção de gênero tem diferentes conotações ou usos.42 No caso, a

41

É preciso considerar que a teologia é uma disciplina das ciências humanas, segundo as classificações oficiais do ensino superior no Brasil. Sobre as redefinições da teologia a partir de sua incorporação ao sistema de ensino universitário, ver Coradini, 2005. 42 O texto de Joan Scott sobre a categoria “gênero” pode ser lido como um diagnóstico destes usos (“descritivos”, “políticos”) e uma tentativa de definição “analítica” ou “explicativa” que contemple – ou que está inspirada em – preocupações políticas. Ver particularmente Scott, 1995: 93. 67

noção de gênero é uma “categoria útil” na definição dos “problemas das mulheres” no espaço religioso. Gênero é uma construção histórica (Gierus, 2002: 517), ou indica (...) os papéis culturalmente atribuídos a homens e mulheres (Brunelli, 2001: 9), é um instrumento analítico para compreender melhor as relações humanas (Gebara, 2001: 84). Ele também expressa uma contradição, as assimetrias nas relações entre as pessoas e grupos, que deve, juntamente com as questões de classe social, raça/etnia, ser trabalhada (...) numa luta comum (Brunelli, 2001: 11). Urge criar relações de igualdade (...) superando as velhas e dolorosas exclusões de gênero, ou ainda desconstruir padrões de gênero (Lopes, 2001: 17). Desta forma, a categoria gênero vem questionar a raiz das desigualdades e injustiças sócioreligiosas (...) (Sierra, 1999: 56). Além destas “importações puras” a partir de investimentos a um só tempo escolares e militantes, é possível identificar a mediação de cientistas sociais da temática “mulheres e gênero” em fóruns do espaço religioso, ou mesmo fóruns híbridos, o que mostra a existência de proximidades sociais e redes de sociabilidade de que fazem parte teólogas e cientistas sociais.43 No entanto, o sentido da mediação pode ser invertido, como no caso daquelas agentes religiosas que trazem para as ciências sociais (enquanto formandas, mestrandas ou pesquisadoras) o trabalho de elaboração da experiência de atuação com mulheres no espaço religioso44, ou expressam em seus textos de ciências sociais tomadas de posição quanto aos “problemas das mulheres” na Igreja.45 3

Espaço teológico e uso das ciências humanas É possível entender o uso das ciências humanas nos espaços de atuação de

teólogas “feministas”, religiosas e leigas com alta escolarização, ao se considerar as mudanças ocorridas no espaço teológico configurado pela Igreja Católica e igrejas 43

Ver, por exemplo, nominata do Seminário Teologia e Direitos Reprodutivos, em Oliveira, 1995; ver também o I Congresso Latino-americano de Gênero e Religião, que contou com a presença de duas cientistas sociais com publicações sobre a temática “mulher e religião”. 44 Ver, por exemplo, Alfonsín, 2001. 45 Ver, por exemplo, Venturin, 2001. 68

protestantes representadas no Conselho Mundial de Igrejas (CMI) a partir da segunda metade do século XX. A progressiva legitimidade das temáticas dos oprimidos em geral e sobre a condição feminina em particular está em estrita relação com a contraposição e concorrência a outras ideologias seculares a respeito de “problemas sociais” (no caso, o feminismo). Em diferentes níveis e instâncias das igrejas cristãs a elaboração de ideologias ou teologias sobre os “oprimidos” implica na sistematização das teodicéias tradicionais, mas também na adaptação, inovação e apropriação de “teorias” e “conceitos” no trabalho teológico. Em diferentes fóruns (grupos ecumênicos patrocinados pelo Vaticano, encontros do CMI, de associações e redes de teólogos), apresenta-se uma oferta de trabalho teológico por parte de representantes dos “dominados” no espaço teológico. No caso das teologias sobre a condição feminina, a possibilidade desta representação diz respeito ao crescimento do contingente de mulheres nos cursos de teologia, sem que isso se traduza no pleno acesso a postos profissionais equivalentes aos ocupados pelos homens nas igrejas46, ao mesmo tempo em que instâncias ecumênicas – como o CMI – fomentam a problematização deste descompasso.47 Esta oferta de novos esquemas implica em inovação das ideologias religiosas de forma geral, já que se trata de teologias que se formulam através da prática, da experiência, teologias que dão voz aos dominados, em uma lógica de tornar positivo o que era considerado “inferior” e contrário à elaboração teológica tradicional, erudita, cerebral, abstrata, e mais próxima da Filosofia (Vuola, 2000: 66). Esta inovação é fruto da passagem por experiências “pastorais” ou de trânsito por outros espaços de ação (movimentos sociais, organizações não-governamentais, vinculação a partidos políticos) de seus formuladores, e mesmo pela participação

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Ver Chang, 1997; Willaime, 1996: 36. A partir da segunda metade do século XX, cresce o número de igrejas do terceiro mundo na composição do CMI, o que é correlativo a uma guinada desta instância para o tratamento de temas relativos à dominação social (Anjos, 2005). Sobre o papel do CMI na formação teológica de mulheres e na constituição de fóruns de teólogas, ver Vuola, 2000: 114; Parmentier, 1998; Herzel, 1981.

47

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em redes “ecumênicas” e/ou de publicação e discussão sobre problemas na fronteira entre o religioso e o científico.48 As ciências sociais são concebidas e apropriadas como “ferramentas de análise” de uma “realidade” existente independentemente de construções teóricas, na qual os agentes religiosos procuram atuar, tendo como fundamento a adesão a priori a uma “verdade revelada” que está além do conhecimento científico.49 A partir destes processos se definem dois eixos temáticos de elaboração sobre a condição feminina. Um deles é a associação da condição feminina a problemas sociais: as problemáticas relativas às “mulheres pobres”.50 O segundo eixo de elaboração é conformado pelas versões dos problemas da “situação da mulher na Igreja”, a partir da “denúncia” de sua situação inferior51 ou do registro e valorização de suas “lutas” por “espaços” nas igrejas. Estas temáticas permitem o investimento na elaboração ideológica/teológica por parte de mulheres com titulação superior, e sua inserção nos espaços escolares das igrejas, bem como nas redes teológicas nacionais e internacionais.52 Este texto procurou contribuir com a reflexão sobre os possíveis trânsitos entre ciências sociais e militância, suas condições e efeitos à atividade de pesquisa e produção em ciências sociais. Tomar como objeto de análise alguns dos usos das ciências sociais fornece pistas para uma investigação sobre os espaços onde elas são 48

Sobre a vinculação de cientistas sociais com o espaço religioso e seus efeitos de tomada de problemas religiosos como problemas “sociológicos”, ver Pierucci, 1999. 49 Exemplos desta concepção podem ser encontrados em Vuola (2000: 67-68); para uma interpretação dos fundamentos desta ver Coradini, 2005. 50 Um texto que apresenta o trabalho de definição da identidade da “mulher pobre” que recupera a ação pastoral nas CEBs e clubes de mães pode ser vista em Pastoral da Mulher Pobre, 1988. 51 Os diagnósticos sobre a presença de mulheres em instâncias das igrejas, ou os estudos de caráter histórico-teológico fundamentam tomadas de posição sobre a “cidadania teológica” das mulheres. Ver Deifelt, 1996; Ströher, 2004. 52 Documentos de encontros de teólogas mostram o quanto a “mulher pobre” foi importante para a constituição de espaços de discussão teológica para mulheres. Ver, por exemplo, publicação relativa ao “Primer Encuentro Latino Americano de Pastoras” (1989), promovido pelo Conselho LatinoAmericano de Igrejas (CLAI), no qual, ao mesmo tempo em que se identifica o “bloqueio de espaços” para as pastoras nas igrejas, se considera “muito apropriado (...) que a tarefa pastoral tenha como marco de referência as características de mulheres do setor pobre [e] se enfatiza a necessidade de identificação com estas mulheres para acompanhá-las em seus processos de mudanças” (1989: 5). Sobre o papel desempenhado pela “mulher pobre” na produção de mulheres em teologia, ver também Nunes, 1992. 70

produzidas e como se difundem enquanto interpretações legítimas do mundo social. Neste sentido, é possível questionar até que ponto o sucesso na difusão e apropriação de categorias como “gênero” não se deve à capacidade destas de se conectarem a racionalidades políticas e sociais que estão além do espaço científico (Siméant, 2002: 45). O estudo deste espaço híbrido entre a produção erudita ou científica e a difusão de saberes como parte de ideologias sobre a condição feminina mostra que o trânsito entre ciência e militância configura um “jogo duplo”: a atuação simultânea como “erudito”, “cientista social” ou “acadêmico” e como “militante”. É neste jogo que a representação do cientista, ou do “intelectual” como mediador livre de condicionamentos sociais e a concepção das ciências sociais como “ferramentas de análise da realidade” ganham sentido.

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Etnografando ONGs feministas: Algumas lições da Guatemala e do Brasil Soraya Fleischer53 “O antropólogo é igual a um tatu. Ele chega, cava, cava, cava. Vai a fundo nas coisas e depois some. Ninguém mais vê ele”. (Comentário feito por um homem Xavante)

A primeira vez que ouvi falar de parteiras foi em 2000. Eu trabalhava em uma ONG ambientalista em Brasília e, dentre várias incumbências, eu tinha que estar constantemente atenta aos eventos, encontros, cursos relacionados com a conservação do Cerrado, bioma que circunda a capital federal e se espraia por outros 13 estados brasileiros. Foi então que fiquei sabendo que, em Goiânia, aconteceria o I Encontro de Parteiras, Benzedeiras e Raizeiras do Cerrado. Desde então, parteiras de todo Centro-Oeste, em parceria com algumas ONGs e governos locais, têm repetido estas reuniões que contam com palestras, discussões, oficinas, festas, cantoria etc. Ao contrário de muitas pessoas que hoje estão ligadas às parteiras, seja de forma acadêmica ou militante, eu não as encontrei por meio do movimento de humanização do parto e do nascimento. Eu as encontrei no movimento ambientalista, exigindo que suas florestas não fossem extintas, que as plantas medicinais (matéria-prima de seu trabalho curativo) não desaparecessem, que sua terra (fonte de sustento e identidade) não lhes fosse tomada. Só depois, já no doutorado, quando retomei a vontade de conhecer melhor esse mundo do parto domiciliar, que passa tão ao largo da hegemonia hospitalar, foi que notei que havia outro grupo de pessoas envolvido com as parteiras. As ações vinham não mais do Ministério do Meio Ambiente ou do Ministério do 53

Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Na Universidade de Brasília, fez mestrado na mesma área. Em Brasília, foi assessora técnica da ONG socioambiental Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) e da ONG Grupo de Apoio à Prevenção de AIDS (GAPA/DF). Atualmente, é assessora técnica da ONG Centro Feminista de Assessoria e Estudos. Contato: [email protected] 75

Desenvolvimento Agrário, mas do Ministério da Saúde e do Ministério da Justiça. Não eram mais as ONGs formadas por biólogos, agrônomos, zootecnistas com os quais eu estava acostumada a dialogar, mas ONGs formadas em sua maioria por mulheres feministas de formação variada, mas geralmente enfermeiras, médicas, assistentes sociais, psicólogas, terapeutas, esotéricas. Não era mais uma luta ambiental, mas outra, em prol da ecologia do parto. A questão da saúde deixava sua dimensão mais ampla, centrada no bem-star da natureza, para uma dimensão mais localizada, no bem-estar de mulheres grávidas e de suas atendentes. No início, eu tinha a intenção de pesquisar os treinamentos de parteiras tanto como um lócus privilegiado do encontro do Estado, das ONGs e das parteiras quanto como um ritual de “democratização” do feminismo entre as camadas populares. Por isso, acreditava que começar pelas ONGs seria ideal porque eu acreditava já ser familiarizada com esse modus operandi e precisava conhecer onde, por quem e como os treinamentos eram desenhados e oferecidos. Há muitas décadas, os treinamentos são uma iniciativa comum no mundo todo para, principalmente, diminuir os índices de mortalidade materna e neonatal “enquanto” a infra-estrutura hospitalar não se universaliza.54 Além disso, pretendia comparar treinamentos em dois países: comecei por uma ONG estadunidense na Guatemala e uma ONG brasileira, ambas reconhecidas nesse mesmo métier. Por questões de privacidade, elas serão aqui denominadas de ONG A e ONG B, respectivamente.

54

Agências internacionais como a ONU, a OMS e a UNICEF têm recomendado os treinamentos de parteiras há várias décadas (Rozario, 1998) e, mais expressivamente a partir dos anos 1950, têm produzido documentos para “orientar” as autoridades sanitárias terceiro-mundistas sobre como aproveitar essa mão-de-obra “culturalmente apropriada”, “barata” e “participativa” (Velimirovic e Velimirovic, 1981; Greenberg, 1982; Pigg, 1997; Tornquist e Lino, 2005). Em geral, os cursos são uma dentre várias estratégias para diminuir a mortalidade materna e neonatal e não visam estimular diretamente o parto domiciliar, mas capacitar as parteiras para práticas “mais limpas” e “menos perigosas” e convencê-las de encaminhar casos complicados. Há uma idéia geral de que as parteiras têm utilidade provisória enquanto a hospitalização não for universalmente democratizada (Parra, 1993: 1322). Para as diretrizes no Brasil, ver Ministério da Saúde, 1991, 1994, 2000. 76

Este artigo tem como objetivo principal comentar e comparar minha inserção e trânsitos pelas duas ONGs, enquanto eu lhes etnografava.55 1

Avaliando os treinamentos No caso da Guatemala, começar pela ONG tinha ainda uma outra vantagem

porque A dava aulas e contava com uma clínica de partos, onde circulavam comadronas (parteiras de origem maia), midwives (enfermeiras obstétricas tidas localmente como gringas, isto é, estadunidenses, alemãs, inglesas) e parturientes com suas famílias. Também supus que, vinda do mundo urbano, acadêmico e de classe média, eu seria mais palatável para uma ONG do que para as comadronas. Ambas vantagens constituíam o que denomino de um “atalho metodológico”. Para ser aceita, lancei mão de um ethos que eu supunha ser comum às ONGs e que estava definido no site de A sob o link Ways you can help us: eu me ofereci como voluntária. Esse papel foi prontamente aceito já que J., a presidente e midwife da entidade, sugeriu que eu realizasse uma avaliação dos treinamentos de comadronas que a ONG vinha desenvolvendo desde 2000. Para isso, ela me dava acesso à equipe, aulas (que na época estavam acontecendo com três turmas no interior do país), alunascomadronas, biblioteca, arquivos e clínica. Eu acreditava que, de minha pesquisa etnográfica – principalmente, de minha circulação por vários cenários e do contato com variados atores – eu poderia destilar um relatório de avaliação sobre os treinamentos. Acreditava que um mesmo esforço alimentaria ambas tarefas. Mas, no momento em que me antecipei e me classifiquei como voluntária de A, eu assenti ao desafio de “vestir dois chapéus”, 55

Este curto artigo tem como base a pesquisa que empreendi para meu Doutorado em Antropologia Social. Entre 2004 e 2005, participei de cursos, reuniões e encontros de parteiras na Guatemala e no Brasil. Aproveito para agradecer a generosidade com que parteiras, gestantes, ongueiras feministas e funcionários públicos deram acesso aos seus cotidianos, opiniões e arquivos institucionais. Agradeço também aos comentários provocativos e inspiradores Claudia Fonseca e de Paula Viana, Pedro Nascimento, Sonia Côrrea, Susi Tornquist, Jurema Brites e, de forma especial, Alinne Bonetti, todos participantes do Simpósio Temático 52 “Entre pesquisar e militar: Contribuições e limites dos trânsitos entre pesquisa e militância feministas”, ocorrido no VII Seminário Internacional “Fazendo Gênero” em agosto de 2006, em Florianópolis. 77

isto é, de pesquisadora e de militante. Se, naquela época, essa condição era gramaticável para mim, tanto pela minha experiência pregressa em Brasília, quanto pela minha afinação ideológica com a luta feminista, hoje, percebo como essa condição “anfíbia” é bastante complexa. Alguns exemplos ajudam a entender esse ponto. Logo nas primeiras aulas, ministradas em conjunto por J. e C., midwives estadunidense e alemã respectivamente, U., enfermeira maia e L., educadora ladina56, percebi dois focos de tensão que mereciam atenção, a meu ver, para elaborar a avaliação. Primeiro, havia um conflito entre as técnicas obstétricas ensinadas no curso e aquelas colocadas em uso pelas comadronas. Quer dizer, quando visitei as comadronas em suas casas e vilas, pude notar como adotavam muito pouco do que era ensinado de forma teórica e escolar nas aulas. Além disso, as aulas se baseavam em material didático escrito para um público que era pouco alfabetizado. Segundo, percebi como a relação entre as instrutoras refletia os intensos e históricos conflitos de classe, raça e gênero do país, mas eram estrategicamente silenciados por J. e C., superiores na hierarquia do trabalho.57 Para entender melhor como os cursos eram impactados por esses dois aspectos, passei a dirigir várias perguntas sobre o treinamento e os relacionamentos da ONG à C., U. e L., com quem eu passava mais tempo. Além disso, a diretora da clínica à época da pesquisa, I., midwife estadunidense, e N., midwife alemã, vinham tecendo duras críticas à gerência de J. e, à certa altura, começaram a idealizar uma clínica alternativa. Essa dissidência me informava sobre outros tantos pontos de tensão que existiam dentro da ONG e que influenciavam a forma como as comadronas eram definidas, instruídas e tratadas ali dentro.

56

“O termo ‘ladino’ se refere tanto aos descendentes de espanhóis anteriormente ali instalados ou àqueles com uma ancestralidade mista espanhola-indígena e às pessoas que adotam a cultura espanhola e ocidental, em contraste com aqueles orientados à cultura indígena” (Cosminsky, 1982: 234, tradução minha). Na Guatemala, os ladinos geralmente contam com a tez mais clara, mais escolaridade, mais ascendência social. 57 Para uma melhor discussão sobre essas clivagens sociais na Guatemala ver, Fleischer s/d. 78

Creio que J. me via muito mais como voluntária do que como pesquisadora e, apesar de esperar que eu avaliasse o programa de treinamento, não supunha que eu o criticasse de fato. É bastante difícil um/a antropólogo/a assumir esse papel de avaliador, sobretudo em campo, já que implica em julgar o outro, atitude que somos, durante toda nossa formação, treinados para evitar. Eu, como voluntária de A, deveria emitir julgamentos e, como antropóloga, deveria justamente tentar explicar ou, ao menos, começar a compreendê-los. As duas identidades, em muitos momentos, ficavam contraditórias. E, o fato de conviver e conversar também com parcelas não hegemônicas dentro da ONG – método que considero fundamental para mapear os atores, posições e forças no campo – foram interpretadas por J. como traição. A partir desta sua interpretação sobre o meu trabalho, todas as portas do campo me foram fechadas. Fica claro como meu vínculo como voluntária era priorizado. Valeu a pena entrar no campo via uma ONG porque me transferiu confiança suficiente para acessar as comadronas, mas quando J. exigiu fidelidade, me tornei, de certa forma, refém dela. O que, no início parecia um alargamento, no final, se transformava em um desconfortável estreitamento de oportunidades. Esse quadro me informou como eu e J. tínhamos concepções diferentes do meu papel como antropóloga. E, mais do que tudo, tendo a pensar que subestimei a importância de considerar minha caracterização em campo como fruto das relações aí estabelecidas. Julgo que começar pela ONG, embora frutífera em muitos sentidos, foi uma opção permeada de inocência e um “atalho” conveniente demais e problematizado de menos em relação às suas implicações políticas e afetivas sobre a pesquisa. 2

Respaldando os treinamentos Depois que retornei da América Central, segui para a ONG B, localizada no

Nordeste brasileiro. Contudo, ao contrário da etapa anterior, eu evitei me auto-

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definir de antemão e deixei que a própria B me caracterizasse. Uma amiga, antropóloga e feminista de Brasília, compartilhava projetos com B e referendou minha formação e experiência como etnógrafa e também ex-ongueira. Ainda assim, não estava muito claro para P., N. e S., enfermeira, socióloga e massoterapeuta que coordenam a entidade, o que eu faria ali dentro. Se, por um lado, isto me deixava um pouco ansiosa por desconhecer como minha pesquisa se desenrolaria, por outro, acredito que a negociação sobre meu papel foi realizada, entre avanços e retrocessos, de ambos os lados, garantindo a construção paulatina de uma confiança mútua. Também na ONG B, tive uma “conversa ritual”, logo na minha primeira visita. Era o momento de socializar intenções. N. me apresentou aos arquivos da entidade já que, segundo ela, “Se você quer conhecer como é esse lance de treinamentos, então tem que entender a história da gente”. Assim, passei dois meses lendo todo tipo de documento que a ONG havia acumulado desde sua fundação em 1989. Nesta fase, meu objetivo era duplo: conhecer como B concebia os treinamentos de parteiras e, aos poucos, naturalizar minha presença naquele espaço. Creio que minha curiosidade sobre a ONG me elevou a um outro nível nesse relacionamento. Eu acumulava muitas informações ao ler o material que me fora disponibilizado e, ao final do dia, sanava minhas dúvidas com as técnicas ou com E., gerente da ONG. Notaram que eu tinha uma leitura detalhada e vontade de conhecer. Daí partiu uma primeira proposta: organizar as pastas sobre mortalidade materna e escrever um relatório que subsidiasse a participação da ONG B no Comitê Estadual de Estudos da Mortalidade Materna. Parece que gostaram do relatório e ele foi usado em uma reunião ampliada do Comitê com o Secretário Estadual da Saúde para exigir medidas que diminuíssem estes tristes índices no Estado. Assim, eu passei a fazer pequenas tarefas para a ONG B, principalmente a produção de documentos escritos e a participação em eventos e a subseqüente relatoria dos mesmos. Apesar de chegar à B com um papel indeterminado, a mesma “lógica de contrapartida” que encontrei na Guatemala foi

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acionada, já que parece que N., P., S. e E. sugeriram minha contribuição em troca dos dados que colhia diariamente ali. Nesse mesmo período de campo, participei na Bahia, de um grande encontro nacional de parteiras, organizado por outra ONG que, no Brasil, também trabalha com parteiras, que chamarei aqui de C. B e C têm conflitos históricos e, desde o começo, eu sabia que se escolhesse centrar foco em uma, teria, de forma quase automática, as portas fechadas pela outra. Visitei e entrevistei pessoas de C, mas sempre tinha que deixar claro, para ambas as ONGs, meus itinerários e intenções. Na Guatemala, as questões de fidelidade se davam dentro da própria ONG enquanto que, no caso brasileiro, estava mais visível entre ONGs. Acredito que a experiência com A me deixou menos naïve com B. Tensões políticas são inerentes e constitutivas das identidades das ONGs e por isso não só decidi me “filiar” à B como ficar sempre alerta para as conseqüências de incursões plurais em campo. Além das tarefas práticas, eu passei a ser uma referência sobre o “mundo acadêmico” e a Antropologia. E, ao final de minha estada, P., da ONG B, propôs: Hoje à tarde, eu pensei em você, Soraya. Eu estou revisando um projeto pro British Council. (...) A idéia é fazer, em um ano, cinco treinamentos no Pará. A gente iria, a cada dois meses, e passaria 15 a 20 dias lá. Eu queria te incluir nesse projeto para gente etnografar tudinho. Você iria conosco para ouvir, entrevistar, anotar, registrar esses encontros. Aí, a gente teria um registro disso tudo. Eu queria te incluir, o que você acha? (Diário de campo, 10.09.04). Creio que ONG B não sondou minha participação em projetos como esse só porque apreciaram meu trabalho de observação, escrita, crítica etc. Como antropóloga, eu também servia para respaldar o trabalho de B, como lembrou N. ao orientar a jornalista da entidade: “Olha, escreva aí sobre o curso de parteiras em Minas Gerais. E a Soraya vai também. Ah, vamos colocar a Soraya na roda. Ela está fazendo doutorado sobre a Guatemala e o Brasil. Coloca aí, é importante pra B” (Diário de campo, 15.09.04).

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É bom lembrar que, para uma ONG internacional e estadunidense como a ONG A, as fontes de recursos e o capital social humanitário são provavelmente mais conhecidos e estão mais acessíveis. Por isso talvez J. tenha priorizado meu vínculo como voluntária e avaliadora porque não necessitava política e financeiramente do capital simbólico trazido por uma antropóloga brasileira. Já uma ONG de terceiro mundo e dependente de recursos estrangeiros, como a ONG B, poderia se beneficiar de minha filiação acadêmica, títulos, línguas estrangeiras, contatos com ONGs em outras cidades e países. Neste contexto, ser uma antropóloga foi, portanto, positivado numa esfera marcada pela competição por recursos, legitimidade teórico-metodológica e mão-de-obra especializada. Minha inserção em cada campo precisa ser contextualizada e também nuançada por esse cenário geopolítico das ONGs, dos financiamentos, das alianças etc.58 Na ONG B, ao contrário da ONG A, minha identidade como antropóloga foi priorizada à qualquer outra (como voluntária, participante de eventos, produtora de relatórios etc.). Mesmo assim, era a idéia de uma antropóloga militante.59 Penso que, também esses dois papéis, foram vividos de forma contraditória porque, por um lado, eu vinha imbuída do ranço discriminatório que a academia desenvolveu em relação aos antropólogos que trabalham “extra-muros” e, por outro lado, eu sentia que assumia esse papel de militante com uma facilidade desconcertante. Quer dizer, eu reconhecia uma familiaridade “excessiva” com a ONG que me soava como um impeditivo para relativizar aquele contexto e seus personagens ao lançar-lhes o olhar crítico que baliza nossa disciplina. Eu assemelhava as ONGs A e B à minha experiência na ONG em Brasília e temia que, nesse caminho, eu seria incapaz de 58

Devo esse insight, sobre as diferenças geopolíticas entre ambas as ONGs, à Alinne Bonetti. Este termo, que tomo de forma provisória e refratária a novas elaborações, me parece próximo ao que Schwade encontrou em sua pesquisa com o MST catarinense: “Ficou evidente, no decorrer da pesquisa, que foi minha simpatia pela causa defendida pelo MST o elemento que abriu caminho para o diálogo e a aceitabilidade, uma vez que o critério de aceitabilidade no grupo passava pelo reconhecimento, na pesquisadora, de uma militante” (s/d: 6). Ainda, sugiro que este termo, antropóloga militante, sirva para explicitar a marca política de toda escolha por tema, campo e interpretação numa pesquisa sem, com isso, deixar-se de atuar eminentemente com base nos pilares teóricos, éticos e metodológicos da Antropologia. Esta argumentação nada mais é do que uma provocação e um pleito por mais debate sobre nossa posição inevitavelmente situada como profissionais em campo. 59

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notar diferenças e particularidades, de espantar as imagens que eu tinha cristalizado, e de, enfim, observá-las criticamente. 3

Comentários finais Hoje, reconheço que havia, por trás de minha relação tanto com a ONG A

quanto com a ONG B, uma firme crença de que é preciso haver uma “troca” para que pesquisador e pesquisados se sintam minimamente eqüitativos. Por conta desta idéia, derivam outras que me pareciam bastante naturalizadas no “repertório epistemológico” sobre o qual eu me orientava à época da pesquisa: a relação entre pesquisador e pesquisador é, a priori, desigual e precisa ser reequilibrada; a antropologia só acontece quando há igualdade; a eqüidade é um valor importante universalmente; o trabalho do antropólogo é e deve ser necessariamente útil de alguma forma ao grupo local; é preciso que haja, entre pesquisador/a e pesquisados/as, uma “partilha de fé”, uma identificação com a missão do grupo, da ONG, do movimento social, no caso da pesquisa com militantes, para que a confiança se estabeleça (Schwade, s/d); confiança e empatia são fundamentais na relação entre os dois lados etc. Hoje, observo como todas estas idéias podem e precisam ser revistas. Também compreendo que o dissenso com A não foi sobre a troca em si, geralmente presente em qualquer relação em campo, mas a forma como eu resolvi colocar essa troca em prática. Ao transitar entre vários espaços e atores envolvidos com os treinamentos, eu colocava a serviço da ONG um dos instrumentos fundamentais que uma antropóloga pode oferecer: o relativismo. Só depois percebi que é um grande desafio manter esse fundamento relativista num contexto que acredita deter um tipo de “authoritative knowledge” (Jordan, 1993). Este conceito foi desenvolvido por esta antropóloga estadunidense justamente a partir de sua etnografia sobre o parto e as parteiras mexicanas. Para ela, a obstetrícia cosmopolita e biomédica é apresentada nos cursos para parteiras como um “authoritative

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knowledge”, quer dizer, “o conhecimento que, em um contexto particular, é visto como importante, relevante e conseqüente para a tomada de decisões” (1989: 925). Quer dizer, J. e suas midwives acreditavam na razoabilidade de sua visão de mundo e, pelos treinamentos, acreditavam que melhorariam a saúde materno-infantil da Guatemala se conseguissem convencer as comadronas dessa mesma visão de mundo. É dessa firme crença em sua própria perspectiva que surge, a meu ver, a exigência de afinidade e fidelidade por parte da pesquisadora. Noto, contudo, que eu também agi de forma semelhante ao acreditar que o relativismo seria a melhor ferramenta para compor a avaliação encomendada pela ONG. E, ao explicitar as alteridades em campo, coloquei em xeque a visão de mundo da ONG e das midwives, principalmente. Eram duas fontes de “authoritative knowledge” – a das midwives da ONG A e aquela na qual eu pautava minha pesquisa e minha inserção no campo – que disputavam a predominância de sua razoabilidade. Com a ONG B, tentei outra estratégia: ao invés de questionar a forma como B agia, eu passei a trazer o ponto de vista das parteiras e as próprias ongueiras passaram a se questionar. Quer dizer, eu promovia de alguma forma uma reflexão só que partia delas mesmas, desonerando-me de um papel que poderia ser tido como acusatório. Creio que esta etapa do trabalho de campo correu melhor porque me posicionei de outra forma: procurei ampliar as “possibilidades de diálogo entre visões de mundo” (Leal e dos Anjos, 165) “intra e inter culturais” (ibid: 166). Mas isso só se deu quando a ONG B tinha me aceitado no grupo, tinha me convidado para etnografar o projeto do British Council, para lhes representar nos eventos pela cidade, para observar um curso em Minas Gerais: “São nossos muitos vínculos e nossa inserção em campo que nos permitem o estar lá. Só podemos estar lá se nos acolherem de fato, se quiserem falar sobre si, se quiserem ouvir, se for possível estabelecer alguma reciprocidade” (ibid: 154). Eu cheguei de forma menos impositiva a respeito de meu papel, deixei que o tempo e a convivência entre nós lhes permitissem interpretar como eu trabalhava e o que poderia oferecer. Só então a reciprocidade passou a existir de fato, a meu ver. Mais importante ainda é o

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antropólogo perceber em que sentido a troca é concebida e colocada em prática em cada cenário para, só então, experimentar oferecer uma “dádiva” gramaticável. Minhas experiências etnográficas na ONG A e na ONG B foram fundamentais para perceber como é preciso distanciar-me de meus próprios pressupostos acerca do que significa uma troca e, claro, a passagem pela ONG A foi fundamental para conseguir, a meu ver, desenvolver um espaço mais amplo e complexo na ONG B. Há, portanto, uma continuidade e um acúmulo de aprendizado que não podem ser negados. Quer dizer, só quando há disponibilidade para trocar, podemos transitar com mais desenvoltura como antropóloga, colocando questões, confrontando opiniões e histórias, refletindo sobre cenários hipotéticos, problematizando e esmiuçando conflitos. E Bonetti me ajuda a precisar a contribuição dos antropólogos (etnografando ou não) nas ONGs. Segundo esta autora, isto poderia se dar na forma de “interrogações”: [Introduzimos] uma interrogação que é bem vinda (...) porque é produtiva, porque põe para pensar. (...) Uma interrogação específica que se ancora, sobretudo, na acuidade da escuta e do olhar que a antropologia confere, através dos seus “instrumentos de trabalho”. Mas há que se estar sempre atento para o risco deste olhar e desta escuta ficarem turvos e cheio de ruídos. Um risco que advém da intensa proximidade e da imersão no cotidiano do trabalho. Assim que me parece salutar transpor o mesmo princípio da dúvida para a nossa auto-reflexão acerca do lugar que ocupamos e, somado a esta vigilância, investir constantemente na formação. (Bonetti, s/d: 15) Acredito que, com a ONG B, um “canal de comunicação” com a antropóloga também foi aberto e elas reconheceram em mim uma interlocutora comprometida (sem deixar de ser crítica) com as parteiras, as ONGs, o feminismo. E quando elas aceitaram se relativizar e se repensar, deixando o conforto das certezas, é que a troca de fato aconteceu e muito mais momentos de avaliação (mútua, inclusive) aconteceram, mesmo que informais e não encomendados como em A. Além disso, creio também que a primeira experiência na ONG A foi decisiva para fazer incidir 85

sobre a minha prática uma mais incisiva e vigilante “auto-reflexão acerca do lugar que ocupamos”, como nos alerta Bonetti, sobretudo na fase da ONG B. Aqui cabe um comentário tentativo e provisório. Ampliando o conceito de “authoritative knowledge” para além das ongueiras da Guatemala, sugiro que os conhecimentos tidos como preponderantes respaldam a lógica do universo militante de uma forma geral. A produção de conhecimento, antropológico no caso deste artigo, se orienta pelo princípio da dúvida; enquanto que a militância, por vários motivos intangíveis neste curto espaço, precisa se ater a um conjunto de certezas. Há uma tensão entre a dúvida constante e incentivada e a fé, como chamou Schwade, igualmente constante e incentivada. E o fato de, na ONG B, eu ter partido de outra estratégia, sugerido outro “tom” para pautar nossa relação indica uma certa disponibilidade em rever meus pressupostos, em colocar a prova a razoabilidade da Antropologia, que eu tomei como certa na Guatemala. Quando a produção de conhecimento e a militância baixam um pouco a guarda e deixam que um referencial dicotômico lhes caracterize, acredito que há mais possibilidades de encontro. Na Guatemala, o encontro parece ter deixado de existir à medida que o tempo, a convivência e o campo avançaram e, no Brasil, noto que o rumo foi inverso, a possibilidade de encontro foi proporcional ao trajeto transcorrido. A ONG B, mais madura politicamente, constrói sua identidade e fronteiras de trabalho com base em embates diários dentro e fora de suas paredes. Por isso tudo, creio que B via com menos surpresa (mas não menos preocupação) o fato de eu circular por outras visões sobre as parteiras e os treinamentos (como a ONG C, por exemplo). A ONG A era bastante auto-centrada, tecia pouca articulação com outras ONGs e com o governo guatemaltecos. Só aceitavam algum espelhamento dos conselheiros da entidade, todos estadunidenses com quase nenhuma experiência sobre a Guatemala. (A ONG A parecia muito com o “feminismo colonialista”, descrito por Nelson, 2001). Os desafios que enfrentei para entrar e conviver em ambas as ONGs me iluminam sobre o tipo de feminismo que estão fazendo. Ambas acreditavam oferecer o melhor às parteiras treinadas, mas a

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diferença é que a ONG B estava compromissada em rever constantemente esse ideal – e essa opção ética e metodológica existia muito antes da antropóloga ali aportar. Por isso, as interpretações que eu tecia foram ali melhor recebidas, mesmo que para chegar até elas eu tivesse que circular e colher depoimentos variados. E, por fim, registro que não desejo aqui cristalizar a impressão de que havia uma ONG “do bem” e outra “do mal”. As dificuldades enfrentadas em uma muito me instrumentalizaram para começar o trabalho de campo em outra. Os laços e percursos em cada cenário muito me informaram sobre as variadas formas de se fazer feminismo no mundo e, claro, de se fazer Antropologia também. Mais do que dicotomias ou maniqueísmos, creio que desentranhar conflitos, contatos e compassos de campo nos revelam dados etnográficos e, sobretudo, nos estimulam à reflexão epistemológica. Referências bibliográficas BONETTI, Alinne de Lima. A ONG e a antropóloga: da experiência etnográfica à experiência profissional. Humanas (Porto Alegre), v.26/27, p.159-178, 2004. COSMINSKY, Sheila. “Knowledge and body concepts of Guatemalan midwives. Anthropology of Human Birth. Artschwager, Kay. Philadelphia: Davis Company, 1982, pp. 233-252. FLEISCHER, Soraya. “Passando por comadrona, midwife e médico: O itinerário terapêutico de uma grávida na Guatemala”. Revista Anthropologica, Lima, no prelo, s/d. GREENBERG, Linda. “Midwife training programs in Highland Guatemala”. Social Science and Medicine, 16, 1982, pp. 1599-1609. JORDAN, Brigitte. “Cosmopolitical obstetrics: Some insights from the training of traditional midwives”. Social Science and Medicine 28, 1989, pp. 925-944.

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