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ANDRÉ AGUIAR NOGUEIRA

“FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E CULTURA POPULAR NO BAIRRO SERVILUZ EM FORTALEZA (1960-2006)”

MESTRADO – HISTÓRIA SOCIAL

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

SÃO PAULO 2006

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ANDRÉ AGUIAR NOGUEIRA

“FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E CULTURA POPULAR NO BAIRRO SERVILUZ EM FORTALEZA (1960-2006)”

Dissertação apresentada a Banca Examinadora da pontifícia Universidade católica de São Paulo, como exiegência parcial para a obtenção do título de Mestre em História Social sob a orientação do Prof. Dr. Maurício Broinizi.

PUC/SP 2006

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BANCA EXAMINADORA

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Dedidado especialmente à minha mãe Francisca, ao meu pai Batista e aos meus irmãos: Adriana, Andréia e Alex.

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Agradecimentos Uma pesquisa é sempre uma elaboração realizada em conjunto. Gostaria de agradecer inicialmente a todos aqueles, que por qualquer motivo, sentiram seus nomes ausentes nesta lista. Agradeço muito especialmente ao meu parceiro e orientador Maurício Broinizi Pereira. Agradeço igualmente ao corpo docente da PUC-SP, principalmente as professoras: Yvone Avelino, Denise Bernusi Sant’Ana, Olga Brites, Vera Lúcia e Antonieta Antonacci. Agradeço de todo o coração a querida Márcia Barros Valdívia, pessoa maravilhosa e que muito contribuiu para a execução do presente trabalho. Ao professor Eduardo Bonzato e ao amigo Antônio Luiz Macêdo pela disponibilidade e inteligência na leitura desse texto. Agradeço ao professor Janes Jandes e novamente a professora Yvone Avelino pelas preciosas sugestões oferecidas na banca de qualificação. Obrigado a Ana Karine, Alan, Beth, Emília, Mayara, Fernanda, Alice e a todos os companheiros da minha turma de mestrado com os quais compartilhei as primeiras alegrias e as tensões na confecção dessa dissertação. Agradeço a ternura, o respeito e o acolhimento de Marcelo Farias, pessoa que muito estimo e que me ensinou também os caminhos noturnos de Sampa. Muito obrigado a Leandro Paschoarelli, companheiro e amigo, sua forte personalidade certamente ajudou a tonar a vida mais bela e cadenciada em meio às loucuras da paulicéia. Agradeço a Antônio Gilberto e a Wellington Júnior, amigos de Fortaleza, São Paulo e sempre. Agradeço ao Josberto e a Clarissa. Obrigado Kiko, Fábio e Rafael Caxilé. Aos amigos Abel e Armando e Eliomar, dispersos, mas sempre queridos. Tudo começou no PET História da UFC e lá se vão alguns anos. Agradeço aos companheiros do Programa, e hoje amigos, Edson, Gustavo, Juliana, Viviane, Felipe, Eudes e Silviana. Agradeço a “turma dos sete”: Idalina, Henrique, Lucília, Marla, Márcio e Zé da Rocha, com os quais partilhei as primeiras angústias da pesquisa histórica. Obrigado ainda ao Raimundo, Guilherme, Hermano e Eduardo. Agradeço a todos os professores do curso de História da UFC, especialmente aqueles com os quais, de algum modo, compartilhei essa pesquisa: Frederico de Castro Neves,

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orientador e incentivador durante a graduação, Kênia Rios, Edilene Toledo, Verônica Secreto, Adelaide Gonçalves, Eurípedes Funes, Régis Lopes, Frank Ribard e Ivone Cordeiro. Um agradecimento especial à professora Simone Simões, antropóloga e amiga querida. Obrigado a professora Helena do Imparh pela competente e sugestiva revisão desse texto. A toda a galera do curso de História da UFC: Thiago, Daniel, Kerson, P. A, Carol, Renata, Anna Carmem, Laninha, Liana, Edgar, Yassuo, Neto, Pedro, Henrique, Naná, Alê, João Paulo, Josi, Engels, Gesner, Adalberto, Pereira, Rquel, Vitão. A todos os colegas do primeiro semestre do ano 2000, especialmente a Túlio Muniz e Camila Pagliuca. A rapaziada do bosque: Capacete, Calixto, Carlos Jorge, Manoel Carlos, Tyrone, Paulinho, Chicão, Gerardo e aos colegas do curso de Comunicação Social. Agradeço sinceramente a inesquecível Lorena Lyse Lima Rodrigues. À querida Nicinha e família. A Karla, pela felicidade nesses dias preocupantes. Esse trabalho não seria possível sem a participação dos moradores da comunidade do Serviluz. Agradeço a todos aqueles que em algum momento me ajudaram, dando dicas preciosas ou simplemente emprestando-me um pedaço de papel e uma caneta. Agradeço especialmente a todos os que gentilmente concederam-me entrevista. Agradeço aos amigos Clécio, Cleilson, Gleison, Jorge, Cláudio, Fábio, Gleisinho, Hélio, Ilamar e a toda a galera do Titanzinho. Aos meninos do Paz e do Peleja. Ao David, vizinho, historiador e amigo. A todos os meus familiares. Aos funcionários dos arquivos em que passei e que gentilmente atenderam-me. Agradeço a CAPES pelo auxílio financeiro. Agradeço de modo muito especial à população do Serviluz, pelas lutas, conquistas, ensinamentos e pela feitura de uma história, sem dúvidas, dignas de ser narrada. Espero sinceramente que este trabalho esteja à altura da grandeza de vocês.

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RESUMO Essa dissertação tem por objetivo central compreender o processo histórico de formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada entre o oceano Atlântico, o Porto do Mucuripe e um complexo industrial especializado no ramo de gás e combustível, esse estreito pedaço de praia no extremo leste de Fortaleza foi ocupado por um contingente bastante heterogêneo de trabalhadores. Pescadores, meretrizes, surfistas, portuários, trabalhadores da indústria, pequenos comerciantes e, sobretudo, trabalhadores informais misturam-se, configurando aspectos particulares de uma comunidade culturalmente multifacetada e marcada por distintas experiências migratórias. Procura-se perceber ainda como a comunidade convive com uma paisagem natural modificada pelo progresso e de que modo às pessoas vivenciam suas sociabilidades. Palavras-chaves: bairro, comunidade, natureza e cultura popular.

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ABSTRACT This dissertation has for central objective to understand the historical process of formation and urbanization of the Serviluz district, in Fortaleza. Community located between the Atlantic Ocean, the Port of the Mucuripe and an industrial complex specialized in the production of gas and fuel, this narrow beach piece was occupied by a sufficiently heterogeneous contingent of workers. Fishers, prostitutes, surfers, dock workers, industry workers, small traders and, over all diligent informal, are together, configuring particular aspects of a community culturally multifaceted and marked by distinct migratory experiences. It is looked to perceive how the community coexists with a natural landscape modified by the progress and which way the people had lived its sociabilities. Key-words: district, community, nature, popular culture.

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Sumário Introdução.................................................................................................................…...6 Capítulo I 1 O Mucuripe e o Serviluz - da aldeia de pescadores à moderna selva de pedra...............................................................................................................................20 1.1 Os verdes mares bravios.........................................................................................20 1.2 Homens do mar, pés no chão..................................................................................30 1.3 A “tragédia” portuária............................................................................................41 1.4 A indústria de fogo..................................................................................................47 1.5 A Fortaleza do turismo e da especulação imobiliária..........................................52 Capítulo II 2 Migração, trabalho e a transformação do Serviluz em uma comunidade multifacetada................................................................................................................57 2.1 Farol, os “de dentro” e os “de fora”.....................................................................58 2.2 A Praia Mansa........................................................................................................69 2.4 A crise na pesca e o surgimento de novos trabalhadores...................................75 2.3 A seca e a cidade.....................................................................................................80 2.5 A marginalidade e a imagem do medo.................................................................88 2.6 A comunidade .......................................................................................................95 Capítulo III 3

O

homem

e

a

natureza:

os

elementos

para

transformações.........................................................................................................109 3.1 As areias que voam.............................................................................................109 3.2 Da taipa ao tijolo.................................................................................................120 3.3 Surfe: o surgimento de uma escola local...........................................................131 Conclusão...................................................................................................................144 Relação de Siglas ......................................................................................................145 Relação de imagens anexas.......................................................................................146 Arquivos e Fontes......................................................................................................147 Bibliografia................................................................................................................150 Anexos .......................................................................................................................155

as

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Introdução O desejo de estudar a história do bairro Serviluz, litoral leste de Fortaleza, apesar de um sonho antigo, somente começou a se concretizar quando ingressei na Universidade Federal do Ceará, em 2001. Acredito que somente nesse momento foi possível conciliar os instrumentos teóricos e metodológicos, gerados, sobretudo, a partir das reflexões da História Social. Começava então a tomar corpo a idéia de produzir um trabalho historiográfico que fundia a pesquisa acadêmica na minha vivência diária. A presente pesquisa tem por objetivo central analisar o modo de vida dos sujeitos e as relações sociais que estes estabeleceram na região industrial em torno do Cais do Porto do Mucuripe, em Fortaleza. mais especificamente, esse estudo procura compreender o processo histórico de formação e urbanização de uma faixa de praia que se convencionou chamar popularmente de Bairro Serviluz. Ocupação urbana recente, a formação desse núcleo habitacional está relacionada a uma série de transformações ocorridas nos espaços da cidade no período contemporâneo, sobretudo a partir da segunda metade do século XX. Minhas indagações visam principalmente compreender quais foram as condições de trabalho e moradia dos migrantes que experimentaram a vida nessa parte da cidade que se tornava metrópole. A análise das condições de vida e das sociabilidades geradas entre as pessoas que se estabeleceram nessa região só foi possível a partir da reconstrução de parte do processo de ocupação, formação e consolidação dos primeiros núcleos habitacionais dessa parte de Fortaleza. O cotidiano dos homens e mulheres que vivem no bairro Serviluz está diretamente relacionado ao modo de viver dos pobres na periferia urbana, principalmente os das áreas litorâneas, e inscrito nas mediações e contradições estabelecidas com as políticas públicas e com a iniciativa privada da cidade. A percepção das múltiplas dimensões da vida social dos trabalhadores que ocuparam esse lugar necessitou de um entendimento da cultura como sendo algo pessoal e subjetivo e ao mesmo tempo um processo de convívio coletivo. Resultado de ações concretas, os aspectos culturais das classes trabalhadoras comportam a simplicidade do viver em família como também refinados mecanismos de estratégias políticas, dentro dos quais se vivem tanto as relações pessoais mais íntimas quanto as coletivas. Situado entre o oceano Atlântico, o novo porto é um complexo industrial especializado no ramo de gás e combustível, esse estreito pedaço de praia no extremo leste de Fortaleza foi

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ocupado por um contingente bastante heterogêneo de trabalhadores. Ali, ainda hoje, pescadores,

meretrizes,

surfistas,

portuários, trabalhadores da indústria, pequenos

comerciantes e, sobretudo, trabalhadores do mercado informal, os ditos “biscateiros”, misturam-se, configurando aspectos particulares de uma comunidade culturalmente multifacetada e marcada por distintas experiências migratórias. No Serviluz, milhares de famílias vivem em casas muito apertadas. Amontoadas, as pequenas habitações formam ruas estreitas e labirínticas constantemente ameaçadas pela invasão da areia, soprada pelos fortes ventos dessa parte do litoral. Geograficamente, o espaço já foi apenas uma praia afastada, constituída por dunas de areias móveis e assolada pela ação corrosiva da maresia. Quando as primeiras construções foram edificadas, o local, inóspito, era praticamente inabitável. No lugar, não são raros os relatos de pessoas que tiveram suas casas repetidas vezes derrubadas pelo vento ou pela água da chuva. O avanço das marés, as cortinas de areia, a feroz ventania, e, posteriormente, o fogo da indústria petroquímica foram elementos que se integraram à composição da paisagem social. Essa mistura fazia sugerir a existência de uma relação orgânica, intensa e imediata entre homem e natureza, entre natureza e cultura. SERVILUZ era o nome do antigo Serviço de Luz e Força de Fortaleza, empresa geradora de energia elétrica extinta no início dos anos 1960. Após a desativação da usina, esse se tornou também o nome popular da favela que a circundava, sendo nessa denominação que seus moradores passaram a se reconhecer. “Aqui é o Serviluz: de dia falta água e de noite falta luz”, essa antiga anedota local parece indicar um dos primeiros elos de unidade entre os moradores do bairro: a inexistência de energia elétrica, por longo tempo, nos domicílios que se localizavam ao lado da usina. Os números demográficos e a delimitação urbanística do bairro são bastante imprecisos, mas segundo pesquisas populares, atualmente a população do bairro conta com cerca de vinte mil habitantes1. Na distribuição administrativa municipal, o bairro e uma série de outros núcleos populacionais aparecem sob a designação de Bairro Vicente Pinzón2. O fato é que o bairro simplesmente não existe na configuração urbana oficial da cidade. 1

Pesquisa realizada por membros locais do Partido dos Trabalhadores (PT). O Vicente Pinzón integra-se administrativamente a Secretaria Executiva Regional II (SER II) da Prefeitura Municipal de Fortaleza e engloba basicamente os bairros Serviluz, Castelo Encantado, Conjunto Santa Teresinha, Lagoa do Coração, Morro das Placas, parte da Praia do Futuro, entre outros. A dimensão geográfica, confusa, certamente não corresponde à totalidade da população que ali habita. Nas estatísticas oficiais, por exemplo, a região possui uma população de apenas 39.551 habitantes. Por sua vez, o Bairro Cais do Porto, comumente confundido também com o Serviluz, apresenta um quadro demográfico de 21.529 habitantes (Censo IBGE-2000). Para se ter uma idéia desse desacordo, enquanto o Mucuripe tem 11.990 moradores, o Grande Mucuripe, uma nomenclatura vaga, registra 203.220 habitantes (Censo IBGE-2000). 2

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As primeiras ocupações do Serviluz e de boa da área leste da cidade foram efetivadas a partir da construção do novo porto de Fortaleza e da transferência e instalação de um novo ponto de meretrício na cidade em 1961, a zona do Farol do Mucuripe. No fim dos anos 1970, com a intensificação do processo migratório para a capital cearense em período de forte estiagem (1978-1982), e com o remanejamento para o local (ver mapa) de uma comunidade de pescadores, antes fixada nas margens do cais portuário, a beira de praia sobre a qual se ergueu o bairro já estava completamente tomada por tipos variados de trabalhadores. O crescimento demográfico e a diversidade de ocupantes refletiu-se nas subdivisões internas que o bairro passou a comportar após o processo de ocupação3 (ver mapa). Além do recorte espacial, uma dificuldade inicial da presente pesquisa foi ainda o estabelecimento de um recorte temporal que abarcasse a ocupação inicial do bairro, nos anos 1960, e as transformações desencadeadas no período atual. A chegada de grande leva de prostitutas, trabalhadores do cais, pescadores e outras famílias fugidas das secas, sobretudo nos anos 1970/80, consolidaram uma população hoje com aspectos muticulturais. Na tentativa de reconstituição desses eventos, a coleta, a sistematização e os questionamentos lançados sobre as fontes, e principalmente a produção de entrevistas com moradores do bairro, fizeram-me acreditar que seria imprescindível partir do momento atual, do tempo da fala. Além disso, algumas vezes foi preciso recuar no tempo, mesclando uma gama de temas diferentes que se mostravam essenciais ao entendimento do Serviluz como resultado de um processo histórico complexo e ainda em andamento. Desse modo, procura-se articular os diferentes momentos de ocupação do lugar, a produção de lutas pela organização comunitária, as interações e as sociabilidades em constituição. A escrita de uma história do tempo presente evidencia, entre outras especificidades, a singularidade de estabelecer uma proximidade mais imediata com o objeto de estudo, o que inevitavelmente acaba agregando pontos de vista, experiência pessoal, e ensejando posicionamento e compromisso social do historiador. Como pesquisador, foi de suma importância reconhecer o meu profundo envolvimento com esse objeto de estudo com o qual mantenho estreitas relações de afinidade pessoal. No trabalho, além do que foi encontrado nas fontes escritas e registrado nas fitas cassetes, considerei igualmente importantes as incontáveis conversas informais, as frases de domínio 3

As divisões internas foram se estabelecendo no decurso do tempo e, geralmente, em função das migrações de grupos de trabalhadores para o local. A Estiva, o Farol, a Fronteira, a Favela, o Titanzinho, o Rastro, o Final da Linha, a Pracinha, e o Chespierre são partes localizadas, mas integrantes do mesmo bairro.

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geral (citadas entre aspas), as observações de campo, as anotações das pequenas impressões e a experiência de alguém que também migrou para aquela praia e nela reside há mais de quinze anos. Sobretudo, deve-se creditar qualquer possível rigor científico deste estudo ao modo transparente com o qual os documentos foram trabalhados. No que concerne mais diretamente à metodologia com História Oral, Portelli4 observou que a relação social e pessoal entre os dois interloucutores também tem um papel importante na produção das fontes de pesquisa. Trata-se de uma troca pessoal que se torna uma declaração pública, uma performance que vira texto. A forma da entrevista depende também do grau de familiaridade do entrevistador em relação à realidade sob investigação: “os narradores pressuporiam que um historiador ‘nativo’ já conhece os fatos e fornecem em substituição explicaçõoes, teorias e julgamentos”5. Richard Hoggart foi taxativo ao enfatizar que um escritor tem obrigação de resolver estes problemas como lhe for possível e durante o próprio processo de escrever, enquanto luta por descobrir o que tem verdadeiramente para dizer: “Não me eparece possível que ele consiga alguma vez atingir uma objetividade absoluta”6. Sabendo de antemão dos perigos e das armadilhas decorrentes da proximidade com as entrevistas, que exigiram um necessário “afastamento” metodológico, a singularidade de conhecer mais de perto a realidade diária dessas pessoas me forneceu muitos elementos de análise, capazes talvez, de apreender com maior riqueza de detalhes as dimensões mais íntimas do cotidiano, da cultura e das identidades locais. A praia do Mucuripe foi um conhecido reduto de jangadeiros e prostitutas que recebiam, esporadicamente, visitantes de outras regiões encantados com aquela bela paisagem. Com a construção do cais e o advento da indústria, alguns estivadores e indivíduos de outras categorias somaram-se timidamente a esse contingente. Durante a estiagem de quatro anos, no fim de 1970, novas favelas se espraiaram sobre as dunas dessa parte da cidade. Fortaleza é uma cidade cuja história é profundamente marcada pelo êxodo rural; ilhas de prosperidade e bairros elegantes se constituíram em meio a periferias. De modo geral, os núcleos habitacionais, ou favelas, que circundaram o complexo portuário, foram sendo ocupados sobre as areias da praia de jangadeiros do Mucuripe desde a década de 1940, época 4

PORTELLI, Alessandro. História Oral como gênero. In: Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nº.

22. São Paulo: EDUC, junho de 2001.

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Op. Cit. PORTELLI, p. 21.

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do término da construção da primeira etapa do porto e do início da montagem do parque industrial na região. É a partir do novo porto - elemento central no processo de expansão e reordenação espacial da tradicional enseada de pescadores do Mucuripe - que a região vai experimentar uma série de mudanças: nas suas reservas geográficas, no tipo de ocupação territorial e uso do solo, na funcionalidade econômica, na expansão demográfica e na vivência social do seu espaço. Em Fortaleza, o projeto de industrialização correu, em determinado momento, em paralelo à invenção de uma cidade turística diferenciada. No Mucuripe, as remoções iniciais da população pobre, realizadas para o porto, foram continuadas com a construção da primeira etapa da luxuosa Avenida Beira-Mar (1963), tornando esse espaço alvo privilegiado da especulação imobiliária. A cidade das areias foi sendo cortada por asfalto. Em todas as direções, bairros longínquos se integraram num curto espaço de tempo. Essa é uma época caracterizada historicamente por grandes transformações, tanto na paisagem quanto nos usos sociais dos espaços litorâneos brasileiros. Na Região Nordeste, a velha imagem do semi-árido sofrido foi se intercalando com a idéia de um paraíso tropical, belo e atrativo. Devido à “limpeza” urbana, algumas cidades nordestinas, como Fortaleza, ganharam condições de disputar a atração de turistas nacionais e estrangeiros com os outros lugares de visitação do país. O turismo tornou-se uma febre. Assim, as modificações e intervenções do homem na natureza não alteraram apenas a paisagem natural, mas também o convívio e a cultura. No Serviluz, após a ampliação de mais um espigão de pedras e o aterramento de parte da orla, para que os pescadores da Praia Mansa (ver mapa) fossem remanejados da área portuária, possibilitou-se a prática do surfe pela garotada local. Inicialmente realizado sobre tábuas, o surfe na praia do Titanzinho (ver mapa) emergiu como um tipo de trabalho e uma forma de promoção social. Os meninos da comunidade logo ganhariam títulos e notoriedade, colocando a comunidade na mídia esportiva nacional. Nesta pesquisa procuro argumentar que, na pequena praia do Serviluz, um espaço configurado historicamente por múltiplos territórios e personagens, em meio às adversidades, proporcionadas tanto pela complicada relação estabelecida com a natureza quanto pelas mediações mantidas com as políticas públicas excludentes da cidade, homens e mulheres

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HOGGART, Richard. As utilizações da cultura. Aspectos da vida da classe trabalhadora, com especiais referências a publicações e divertimentos. Lisboa: Editora Presença, 1973. (Coleção Questões). P. 22.

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aprenderam a compartilhar projetos e angústias, a redefinir valores, tornando-se agentes mais ativos na construção de suas histórias de vida. De modo geral, são escassos as pesquisas e os documentos sobre as regiões portuárias cearenses. Apesar do rico patrimônio cultural dos habitantes das áreas praianas, também não são muitos os trabalhos sobre a história dos moradores de seus bairros, principalmente os formados em decorrência das migrações recentes para a capital. Em Fortaleza, algumas regiões mais antigas incorporadas à malha urbana da cidade ainda na primeira metade do XX, como Messejana e Parangaba, ou bairros mais antigos como Centro e Pirambu, foram temas estudados e sobre esses lugares há uma documentação já catalogada. Sobre o histórico vilarejo do Mucuripe, um dos berços habitacionais da cidade, existe numerosa e variada documentação. Passagens sobre a história do lugar são encontradas em antigos livros de História do Ceará, na literatura, em vários jornais e em reminiscências de memorialistas. A praia foi ainda inspiração de músicas e poemas e recentemente passou a contar com um acervo do bairro7. No caso do Serviluz, encontrado muitas vezes nas fontes de pesquisa como sendo apenas mais uma ramificação marginal do velho Mucuripe, minha primeira preocupação foi realizar um levantamento de fontes sobre sua história. Aos poucos, reunindo informações dispersas e cruzando diferentes tipos de documentos, acreditei se tratar de um processo histórico instigante, em que um emaranhado de conflitos e resistências, intrigas e partilhas podiam ser reconstruídos. Na documentação do Estado, cujo principal arquivo consultado foi o Acervo Virgílio Távora8, obtive numerosas informações sobre a seca e os municípios com ameaça de invasão de trabalhadores no interior; o problema habitacional e a política social na periferia da capital; os projetos de eletrificação e o processo de industrialização; a racionalização da agropecuária no campo e o problema da falta de empregos na cidade. Mesmo sendo uma documentação de cunho oficial, esse material foi imprescindível, pois nele foi preciso reconhecer como os trabalhadores, citados sob a forma de estatísticas, participavam de ações políticas e da disputa pelo poder local.

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Arquivo criado na década de 1990. Reúne uma variada documentação, escrita e iconográfica, sobre a história do bairo. O acervo foi criado e é coordenado por uma antiga moradora do Mucuripe Vera Lúcia Miranda, a Verinha. 8 O acervo do ex-governador Virgílio Távora, organizado em 2003, está disponível no Arquivo Intermediário do Arquivo Público do Estado do Ceará. O acervo reúne documentos particulares e administrativos, mapas, fotografias, comendas, troféus, diplomas e objetos pessoais do político cearense. Cf. CEARÁ, Inventário do Acervo Virgílio Távora. Ceará. Secretaria da Cultura. Arquivo Público. Fortaleza: SECULT, 2005.

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Nas páginas dos jornais da época, os destaques primeiros foram dados para o tímido crescimento do mercado imobiliário, a emergência elegante dos bairros ilustres e dos clubes de veraneio, o debate sobre as obras no porto, a abertura de novas estradas, as empresas que resolveram migrar do Sul para o Nordeste e as disputas pela terra no sertão. Noutro momento, a partir de meados dos anos 1970, as notícias davam conta do inchaço desordenado da cidade, do saneamento urbano nas novas áreas de risco, das sucessivas crises econômicas e do tímido anúncio da globalização. Num médio prazo, realizando uma leitura mais panorâmica dos jornais, parece que o país foi do sonho eufórico da modernização operada nos anos 1950 ao tenebroso pesadelo das sucessivas crises econômicas desencadeadas a partir da década de 1970. Mas, nos cadernos dos diversos periódicos, não era difícil observar que a praticidade e as benesses da vida moderna sempre se intercalavam ao cotidiano violento, criminoso e desajustado das favelas que não paravam de crescer. Tratava-se de notícia dispersa que, analisada em conjunto, indicava e atribuía formas e definições, emitindo juízos sobre determinados assuntos. Interessante observar como grande parte dos registros sobre a vida na periferia estava escrita nas páginas policiais. De modo geral, essas fontes veiculam informações e produzem representações que não correspondem à realidade vivida nesses espaços. Nas reportagens divulgam-se, sobretudo, os dramas, as catástrofes e a política assistencialista do Estado, cada vez mais disfarçada sob o lema da ampliação da cidadania. A imprensa do Ceará no período contava com os seguintes jornais: O Povo, Correio do Ceará, Unitário, Tribuna do Ceará e O Estado, além do jornal Diário do Nordeste, criado em 1982, e do jornal alternativo Mutirão (1977-1982). Na imprensa, guardadas as devidas especificidades, a pesquisa sobre determinados espaços da cidade, como o Serviluz, foi revelando que as informações vinham sistematicamente acompanhadas de adjetivos como “perigoso” e “assustador”, e as coisas que dali provinham tinham quase sempre uma “origem duvidosa”. Por isso, ao utilizar esse material como fonte historiográfica, foi necessário considerar o caráter do processo de produção da informação e a imprensa como constituinte de um certo tipo de memória, que atende prioritariamente ao interesse de grupos sociais específicos. Apesar da relevância das fontes de imprensa para os investigadores do período contemporâneo, sabe-se que a grande maioria da população do bairro não tem acesso a esse tipo de leitura.

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Foi então preciso estabelecer uma metodologia de pesquisa na qual os critérios de escolha e análise das fontes documentais possibilitassem a percepção da comunidade sob o ponto de vista de seus moradores e não somente sob o epíteto de favelados. A meu ver, analisá-los simplesmente, sob o prisma econômico, seria injusto e limitado em demasia. Nesse contexto, foi importante considerar não apenas o que era dito sobre a comunidade, mas principalmente o que fora produzido dentro da comunidade. Dessa produção, os registros das associações de moradores mereceram reconhecido destaque. Nos arquivos encontrei indícios mais concretos de experiências associativas e do aprendizado político ali desenvolvido. Nos arquivos das associações do bairro, porém, encontra-se uma documentação quase sempre incompleta, cheia de lacunas e às vezes faltam elementos básicos como a data ou o local da realização do encontro. As atas, por exemplo, são do tipo falada, algumas palavras são anotadas com erros gramaticais, escritas às pressas em letras garrafais. O texto era escrito, mas carregado de características da oralidade. Esse discurso, embora elaborado numa linguagem própria e eivada de sentidos, obviamente não corresponde à prática. E, por mais pormenorizada que seja uma ata, através dela não seria possível identificar, por exemplo, o clima tenso ou alegre de uma reunião. Outra consideração importante sobre tais registros é que, apesar de essa ser uma produção realizada pelos próprios moradores da comunidade, muitas vezes somente os membros da diretoria, os “sócios”, tinham direitos a voz e voto. Apesar de a finalidade social dessa fonte estar relacionada basicamente à prestação interna de contas entre os associados, possuindo efeito simplesmente comprobatório das ações do movimento, a documentação é sempre permeada por relações de poder e se fundamenta em grande parte na hierarquia que rege a instituição. No Serviluz, assim como nos modelos organizacionais dos bairros adjacentes, é muito relevante a opinião das lideranças comunitárias como formadoras de uma certa versão da memória local. Se, por um lado, foi preciso reconhecer a importância dessas lideranças para o desenvolvimento político da comunidade, por outro, não se podia esquecer que a altivez dessas vozes ocultava a fala dos participantes anônimos do mesmo processo. Disso resultou que, além das fontes escritas, a contribuição oferecida pela oralidade se mostrou riquíssima, sobretudo porque muitos dos participantes ativos dessa trama ainda estão vivos. Ademais, ainda teima em prevalecer ali a tradição viva da fala, da experiência verbal e dos ensinamentos proverbiais dos mais velhos, gente que quase sempre consegue sobreviver dispensando o mundo da escrita. Por isso, o diálogo com esses sujeitos é fruto não apenas da

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necessidade de “dar voz” a essas pessoas, mas também porque esse é um universo em que a oralidade sobrepõe-se à escrita nas construções e reconstruções da memória. O trabalho com História Oral foi uma experiência rica e bastante singular. Um longo e sinuoso trajeto foi percorrido das primeiras histórias de vida - timidamente colhidas diante do gravador, objeto muitas vezes assustador - à convicção de que em cada depoimento havia uma mensagem a ser transmitida e uma “verdade” a ser considerada; o contínuo retorno à infância e a constante ressignificação das experiências passadas em função do tempo presente. Basicamente, o processo de produção das entrevistas pode ser dividido, do ponto de vista metodológico, em dois momentos distintos. No primeiro, os depoimentos orais foram obtidos através de um prévio roteiro de perguntas e respostas mais diretas e que funcionaram em essência como fonte de informação para a elaboração de subitens temáticos. Essa foi uma fase relativamente simples, pois os próprios moradores da comunidade indicaram as pessoas mais “sabidas” sobre a história do bairro. Com facilidade, estabeleci uma relação a meu ver coerente. Elaborei assim uma espécie de rede de entrevistas, estabelecendo, como critério primordial de escolha dos depoentes, a tentativa de dialogar com diferentes membros da comunidade. Líderes comunitários, pescadores, estivadores, trabalhadores da indústria, exprostitutas, surfistas, donas de casa e trabalhadores informais foram ouvidos, perfazendo um total de 11 (onze) entrevistas com durações de tempo variado. Logo aflorou a deficiente formação profissional e a inexperiência acadêmica para realização dessa atividade. A fragilidade metodológica inicial incluía desde o manejo com o equipamento técnico até a falta de uma certa sensibilidade para lidar com a sutileza de situações simples ocorridas no decurso do diálogo. Já na primeira entrevista, depois de uns quinze minutos de conversa, o entrevistado, bruscamente, interrompeu a gravação, desligando ele próprio o aparelho e pedindo-me para que pulasse aquela pergunta. Eu o havia interrogado sobre uma possível participação sua nas associações comunitárias do bairro. Ao fim da conversa, o entrevistado me contou que não falara sobre aquele assunto porque “comunidade dava muita encrenca”. Paradoxalmente, o gravador parecia ajudar tanto quanto atrapalhar. Eu mesmo não gostava daquele objeto estranho entre duas pessoas no ato da entrevista. Aquele aparelhinho tinha a incrível capacidade de inibir as pessoas que, ao saberem que tudo seria registrado, tinham demasiada cautela no ato da fala. Por outro lado, muitos o aproveitavam e o utilizavam como meio de soltar a falar e denunciar.

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Optei então pelo uso de um rádiogravador portátil. Um pouco maior e com microfone embutido no próprio aparelho, permitia captar o som numa distância mais longa, o que possibilitou a eliminação física imediata do gravador. Além disso, para eliminar a tensão dos primeiros instantes, comecei a ter também o hábito de ligar o rádio e ouvir música enquanto preparava a gravação, o som poderia facilitar um possível relaxamento do depoente. Num segundo momento da confecção das entrevistas, a dinâmica e a maleabilidade da fonte oral exigiram uma redefinição dos critérios de escolha das pessoas e das questões a serem feitas. Foi preciso, por exemplo, redimensionar a filtragem em função da profissão exercida e a separação dos indivíduos em grupos, na medida em que essa divisão não satisfazia a certos problemas e indagações da pesquisa em fase mais avançada. Permanecia ainda a tentativa de dialogar com os múltiplos sujeitos do bairro, figuras “representativas” de seus grupos e espaços, possibilitando assim a abertura de canais de interação entre a diversidade ali existente. Segundo Ecléa Bosi “a memória oral é fecunda quando exerce a função de intermediária cultural entre gerações”9. Numa nova triagem, bem como no possível retorno a entrevistas anteriores, procurei levar em conta não apenas o grau de conhecimento, a participação e o envolvimento político do depoente, mas principalmente a forma e a capacidade de relembrar suas memórias. A idéia não era mais saber apenas sobre a história do bairro em si, mas perceber como, no desenrolar de cada narrativa individual, as pessoas reelaboravam suas experiências de coletividade. Não interessava simplesmente constatar as participações mais efetivas, mas entender o sentido que cada participação ou ausência teve na vida das pessoas. Ao se trabalhar com História Oral, foi preciso aprender que o silêncio pode dizer muito. Ao mesmo tempo, o fato de se saber da existência de certos constrangimentos sobre determinados assuntos revelou a necessidade de se ter grande delicadeza para tratar certas questões, ainda mais quando se mora na comunidade pesquisada. Nos registros das associações do bairro, já apareciam denúncias de brigas e corrupção entre os membros das entidades. O fato é que supostas fraudes, apropriações indébitas dos equipamentos comunitários e os casos de brigas e ameaças passaram também a fazer parte da luta por melhorias. Indicavam tanto os perigos decorrentes do exercício e manipulação do poder no local, como a existência de uma tênue diferença entre o que é o espaço público e aquilo que se torna particular. Existe um fluxo permanente e intenso de informações entre a rua e o lar, a partir do qual ambos são constantemente modificados. 9

BOSI, Ecléa. Memória da Cidade: lembranças paulistanas. In: O Direito a Memória: Patrimônio Histórico e Cidadania. São Paulo: DPH, 1991. p. 146.

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Se foi preciso respeitar a individualidade de cada entrevistado, foi possível observar que no Serviluz muitos dramas e tragédias particulares se tornaram histórias de domínio público. Há na verdade uma continuidade, entre as gerações, da transmissão dos casos mais célebres que permeiam o imaginário e a memória social do bairro. Numa perspectiva diferenciada das dos jornais, essas narrativas trazem geralmente situações dramáticas ao extremo, crimes, mortes ou histórias de vidas que findaram tragicamente. A desgraça alheia, nesse caso, vem sempre acompanhada de uma mensagem moralizante e exemplar. Foi preciso ter em conta ainda que, apesar de o tema lidar com eventos históricos contemporâneos, havia algumas distinções que se referiam à historicidade e à cultura dos diversos grupos sociais, as quais precisavam ser consideradas. No meretrício, por exemplo, era bastante difícil encontrar os personagens que viveram nesse ambiente à época da inauguração dos prostíbulos do Farol, em 196110. No bairro, nessa profissão o tempo de vida das mulheres é geralmente bem curto, quase todas faleceram ou mudaram de endereço com a crise da “zona” nos anos 90. Muitas mulheres assumiram a nova condição de dona de casa ao se casarem com pescadores ou estivadores mais prósperos que as tiraram dos bordéis. Nesses casos, mesmo quando a mulher assumia desinibida o seu passado, além da questão ética11 que perpassa todo o tema, restava ainda uma forte questão de gênero, pois ela estava sendo entrevistada e falaria da sua vida íntima para um homem. Já entre os surfistas, uma peculiaridade importante a ser considerada foi a pouca idade dos praticantes desse esporte. Na localidade, mesmo os adeptos da primeira geração dificilmente ultrapassam os 40 anos de idade. Nesse caso, não dialogava com os mais velhos, fundamento básico no trato com história oral, mas com pessoas essencialmente jovens e que, além disso, se expressam numa linguagem própria. Outro fator relevante é que, apesar da pouca idade, esses adolescentes vão adquirindo, ao longo de campeonatos, o hábito de aparecer na mídia esportiva promovendo seus patrocinadores. Esse fato acaba propiciando a cristalização de certas falas e jargões entre os competidores. Por outro lado, não foram raros os surfistas que preferiam não gravar o depoimento, mas se mostrav Por isso foram utilizados alguns trechos das entrevistas

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Cf.: ANJOS JUNIOR, Carlos Silveira Versiani dos. A serpente domada: um estudo sobre a prostituição de baixo meretrício. Fortaleza: Edições UFC, 1983. Foram utilizados alguns trechos das entrevistas realizadas por este autor. 11 Cf.: PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre ética na História Oral. In: Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nº. 15. São Paulo: EDUC, abril 1997.

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realizadas por am totalmente disponíveis a cair n’água e pousar para lentes fotográficas. São jovens que falam através do corpo e da gestualidade, expressam-se em movimentos acrobáticos captados pelos holofotes da mídia. Fonte construída através de um processo dialógico, recíproco e dinâmico, esse material ajudou a desvelar a percepção do sentimento de pertencimento ao grupo, a identificação das redes internas de solidariedade, a ajuda mútua, as discórdias, o reconhecimento dos valores afetivos e a melhor compreensão dos mecanismos internos de regulação da comunidade. Através dos depoimentos orais, fui descobrindo que, além das associações de moradores, que compuseram um quadro geral de organização popular nos bairros da cidade, outros grupos também tiveram efetiva participação no coletivo local. Segundo o entrevistado José Osmir Monteiro da Souza, filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT), uma pesquisa do seu partido no bairro identificou que o Serviluz “atualmente conta com aproximadamente trinta tipos diferentes de associações populares”12. Foi importante considerar que, durante grande parte do período de abrangência dessa pesquisa, o país estava mergulhado numa ditadura militar. Apesar disso, os movimentos sociais ganharam destacada notoriedade. Já havia algum tempo, comunidades e bairros se organizavam. As manifestações artísticas e culturais que clamavam por liberdade de expressão se intensificaram e, de modo geral, as camadas populares passaram a exercer maior pressão sobre o Estado. Os indícios apontam que os tipos de ação política praticada no bairro não estão diretamente associados a instâncias tradicionais de luta do trabalhador, ainda que existam conexões, mas espalhadas nos diversos núcleos de sociabilidades e culturas que se constituíram. Afinal o bairro havia deixado de ser apenas o lugar onde as pessoas moravam, para ser o lugar onde elas também viviam, encontravam-se, desenvolviam relações de união e solidariedade, e onde acumulavam experiências de vivência comunitária e de resistência coletiva. Após os anos 1990, os movimentos associativos se multiplicaram no bairro. Ligas esportivas mobilizavam centenas de jogadores de futebol em competições realizadas nos fins de semana. Surfistas promoviam campeonatos e realizavam projetos sociais voltados à preservação ecológica. Manifestações e festas católicas, como as tradicionais caminhadas em procissões, eram realizadas pelas ruas escuras e violentas do bairro, as atividades nas pastorais

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Entrevista concedida por José Osmir Monteiro de Sousa ao autor em 28/01/2003.

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do pescador e da mulher eram igualmente freqüentes. Na Igreja Presbiteriana, missionários ensinavam a ler e a escrever, enquanto na Pentecostal pastores socializavam jovens contra a perdição das drogas. Nos muitos terreiros de macumba, mandingas e festas animadas eram feitas para saudar a Rainha do Mar, Iemanjá. Nos cultos religiosos, emerge a diversidade e a constituição de distintas memórias. Trata-se de uma comunidade marcada por uma enorme efervescência política e cultural que faz surgir lampejos de autonomia entre seus moradores . No primeiro capítulo desta pesquisa, procuro observar as transformações operadas na tradicional enseada de jangadeiros do Mucuripe, percebendo como esse antigo reduto de pescadores foi radicalmente modificado a partir da construção de um porto e das instalações industriais. Paradoxalmente, o espaço foi se constituindo numa área de moradia e lazer das elites e ao mesmo tempo se tornou um aglutinador de trabalhadores que chegaram à capital. No segundo capítulo, abordo os vários deslocamentos que possibilitaram essas mudanças e a ocupação do Serviluz por diferentes grupos populares em períodos distintos. Analiso o bairro como sendo um espaço de múltiplos territórios: prostitutas, madames, marinheiros; pescadores e empresários da pesca; surfistas, capoeiristas e jogadores de futebol suburbano; estivadores e trabalhadores do gás; homens e mulheres convivendo numa ambiência específica onde o trabalho tende a perder a forte interação que mantinha com o meio. No terceiro capítulo, descrevo um pouco da arquitetura do lugar, ruas de areia, becos estreitos e pequenos quintais, um cenário onde se opera uma estranha lógica em que as casas mais próximas da praia são as mais pobres e as mais ameaçadas pelas condições naturais. Realizo uma breve discussão sobre a relação entre natureza e cultura, percebendo como estes aspectos se cruzam no cotidiano da população e como nesse cruzamento os homens também se transformam.

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Capítulo I 1 O Mucuripe e o Serviluz: da aldeia de pescadores à moderna selva de pedra

“As velas do Mucuripe vão sair para pescar vou levar as minhas mágoas pras águas fundas do mar”

(Fagner e Belchior) “O pescador que antes pisava descalço o chão de sua intimidade, já passeia sobre chinelos de plástico. Não mais olha e vê as horas que são, pela posição das estrelas, mas pelos sinais digitais do relógio japonês de pulso (...) a cabaça de ontem é a marmita de alumínio de hoje”

(Eduardo Campos) “A gente mora numa bomba!”.

(Boi, morador do Serviluz) 1.1 Os “verdes mares bravios” Os homens já não mais acordam ao cantar do galo, mas o hábito de cedo levantar ainda permanece. Diferentemente do horário de trabalho na indústria, no qual os operários devem estar à porta da fábrica ao toque da estridente sirene, os trabalhadores do mar não batem o cartão de ponto. Na pequena pesca, o momento do trabalho depende quase sempre da sazonalidade da maré. Se o mar “tá pra peixe”, o mestre reúne os pescadores. A força de trabalho quase sempre se compõe no momento exato de iniciar a pescaria, mas muitos homens se engajam no decurso do processo de captura. Entre oito e dez homens, no mínimo, são necessários para a realização da pesca com a rede de “três malhos” 13. Esse é um tipo de equipamento de pesca destinado basicamente a pesca de sardinhas.

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“O tresmalho, de origem portuguesa, era uma rede de emalhar composta pela superposição de três malhas de tamanhos diferentes. A rede de tresmalho era fabricada com fios de algodão pelos próprios pescadores, que passavam boa parte do tempo em contínuo conserto”. Cf.: DIEGUES, Antonio Carlos Sant’Ana. Pescadores, camponeses e trabalhadores do mar. São Paulo, Ática, 1983. P. 37.

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O barco, ancorado na beira da praia, é arrastado pelos pescadores para a beira d’água, sendo carregado sobre um eixo de ferro e sustentado por duas rodas de automóvel. Alguns poucos barcos ainda fazem porto e ficam abrigados sob deterioradas cabanas na praia do Serviluz. Ali, ainda é possível visualizar desgastados rolos de madeira enterrados na areia. Dependendo do tipo de pesca a ser empreendido, no entanto, o barco, geralmente do tipo bote, não parte da areia, mas precisa estar na água, à espera, já no escuro da madrugada. Na tradicional pesca com a rede de “três malhos”, a pequena embarcação compõe-se de uma superfície de madeira que mede geralmente quatro metros de comprimento por dois de largura, essas dimensões, entretanto, são bastante variáveis. Sobre o barco, preparado desde a pescaria anterior, é possível o equipamento básico a ser utilizado: uma rede14, dois montes de corda, dois remos e uma longa vara de madeira. Quando a embarcação e todo o equipamento já estão na superfície da água, a equipe impulsiona, “faz força”, e o casco do barco desliza contra as ondas. Nesse instante, três ou quatro homens sobem no barco enquanto os outros sustentam a corda em terra. A força de trabalho se forma e se divide de acordo com as habilidades e a experiência profissional de cada pescador15. A maré nem sempre facilita o ingresso dos homens mar adentro, e vencer a arrebentação das ondas, em algumas épocas do ano, consiste na etapa mais difícil e penosa de todo o processo de captura. O risco da embarcação virar é imenso. Além disso, essa operação pode levar horas ou pode simplesmente ser abortada devido à fúria indomável das águas. Quando os chamados “homens de terra” já não conseguem mais avançar no mar, recuam com a ponta da corda e começam a puxá-la lentamente; começa uma verdadeira batalha contra as ondas. Na “voga”, o pescador mais experiente vai à frente do barco utilizando os dois remos de que dispõe simultaneamente. As ondas quebram às suas costas e, como é ininterrupto o balanço da maré, seu corpo é constantemente jogado para o centro do bote. À medida que o 14

A rede também apresenta uma grande variação de tamanho, em média, são confeccionados entre 80 e 120 metros de rede para cada embarcação. Basicamente, a rede compõe-se do “saco”, parte onde a malha é maior, e do “copo”, a parte mais estreita, o fundo da rede. Extremamente pesada, uma boa rede é tecida com uma média de: 80 quiilos de náilon, alguns pescadores utilizam linha de seda para baratear os custos; 500 quilos de chumbo, responsáveis pelo afundamento do material; 70 peças de isopor ou “abóias”, necessárias à flutuação da parte que fica sobre a superfície. O náilon, o chumbo e o isopor são distribuídos ao longo de uma imensa corda; esta, além da parte “entranhada” na rede, apresenta ainda mais uns 200 metros de corda solta, que delimita a distância que o barco se distanciará para lançar a rede. 15 Esse é um tipo de pesca que emprega pescadores “de terra” e “de mar”. O “vogador”, o “vareiro” e os “cordeiros” são os profissionais mais especializados, são eles que partem no barco para o lançamento da rede. Costumeiramente, o dono da embarcação não pesca, mas é possível que um arrendatário participe de modo direto de todo processo de trabalho.

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barco se inclina, os homens tentam controlá-lo. Na “vara”, o pescador, em pé, impulsiona a longa tira de madeira contra o chão, arremessando a embarcação para dentro d’água. Os “cordeiros” vão aos poucos soltando a corda. Vale ressaltar que todas as tarefas são realizadas em conjunto e calorosos gritos de orientação são pronunciados a todo instante. A fala é um componente importante do processo de trabalho. Vencida a arrebentação, o barco faz uma espécie de círculo, distribuindo a rede cuidadosamente, realizando um tipo de cerco. No momento da distribuição da rede, aumentam as precauções; “o mais perigoso é a rede cair em cima da gente”, afirmam muitos pescadores. Por ser a rede grande e pesada, em caso de naufrágio, dificilmente o homem debaixo do equipamento poderá subir de novo à superfície, já que estará com centenas de quilos sobre seu corpo. Quando o bote retorna à areia trazendo a outra ponta da corda, recomeça o trabalho pesado em terra. Na areia, a embarcação é colocada em um lugar estratégico a fim de ser imediatamente arrumada para uma nova pescaria. É chegada a hora de puxar as duas pontas da corda de maneira coordenada e essa é quase sempre a etapa mais demorada do trabalho (um lance completo demora em média duas horas). A eficácia dessa empreitada depende da quantidade de homens disponíveis na ocasião. A corda é tão pesada que dificilmente poucos homens conseguem arrastá-la; por esse motivo, é comum que alguns curiosos sejam aceitos como complemento circunstancial da mão-de-obra. Assim, a composição da força de trabalho, apesar de previamente definida, aumenta de acordo com o fluxo de pessoas na praia. Alguns jovens, por exemplo, alternam a atividade de pesca com as partidas de futebol que acontecem ao lado da pescaria. Os primeiros metros da corda são arrastados para a terra e um pescador desata o nó, destacando-a do resto da rede. O bote está numa posição privilegiada e todo o material vai sendo gradativamente recolhido e disposto de modo a facilitar a organização da próxima viagem. Puxados mais alguns metros de corda, dos dois lados da rede aparecem estacas de madeiras, com cerca de dois metros cada, que demarcam o início da rede de náilon propriamente dita. Trata-se de uma técnica de pesca de arrasto, por isso a madeira ou “calão” precisa ser arrastada na posição vertical, a fim de facilitar a abertura e impedir a fuga do peixe por baixo ou por cima da rede. Os homens aceleram, empregam mais força, intensificam-se os gritos. Em meio à gritaria, o esforço consiste em aproximar a rede o máximo possível das pedras do espigão, onde a fertilidade natural e as pedras despejadas por tratores fazem concentrar um maior volume de peixes.

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No instante em que a rede se aproxima, uma pequena aglomeração de pessoas faz-se nos arredores. Enquanto alguns se integram no arrasto da corda, outros, pequenos atravessadores, comerciantes ou simples curiosos, esperam a certa distância o resultado da pescaria. À medida que a rede se estreita, dois pescadores, certamente os mais habilidosos, encarregam-se do desembaraço e coordenação da aproximação de cordas. A atenção e a falação são redobradas. Quando a “abóia” sinaliza na rede a ponta do saco, já é considerável a quantidade de pessoas em torno do pescado. No momento da chegada da rede à areia, uma porção razoável de pequenos peixes salta da armadilha, sendo imediatamente agarrados por mulheres e crianças. À medida que as sardinhas menores escapam, pessoas de todas as idades vão agarrando-as e guardando-as em sacolas plásticas ou mesmo nos bolsos da roupa. A quantidade de aproveitadores dessa sobra de pesca oscila de acordo com o horário e o dia em que se dá a realização da pescaria; boa parte dos moradores conhece os períodos de maior abundância, sabe-se que na fartura dificilmente se nega uma sardinha a um vizinho. A ida à praia depende, em boa medida, dos imperativos do tempo, das águas, dos ventos, das condições apresentadas pela natureza. Dessa forma, algumas interações entre as pessoas do lugar, os pescadores há tempos já não constituem a maioria da população, condiciona-se, de certo modo, a forma como o meio ambiente se apresenta circunstancialmente. O fato é que, na atividade pesqueira, o passar do tempo não apagou antigas formas de relação com um mundo natural, alguns modos de organização social e laços de solidariedade e afeição que têm atravessado gerações. Outro fato é que, apesar do cerco que os curiosos fazem nos “três malhos”, dificilmente as pessoas que não participaram de forma direta da coleta do peixe ousam atacar o saco com o pescado; os pescadores estão suados, ofegantes e inquietos. A aproximação tem limites. Entre os observadores, comerciantes locais ou possíveis atravessadores negociam a produção que vai sendo rapidamente resgatada da rede. Realizada a transação, o produto é transportado em bicicletas, em carrinhos-de-mão ou mesmo nos ombros, sendo de imediato escoado para pequenas peixarias locais ou vendido de porta em porta nas ruas do bairro e de regiões adjacentes. Como a produção e a comercialização são realizadas na beira da praia, logo os comerciantes desaparecem, correm imediatamente para a revenda, pois o peixe fresco tem

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mais aceitação no mercado. O pescador permanece na praia, o próximo lance precisa ser organizado. O aglomerado humano se desfaz. A divisão do lucro desse tipo de pescaria obedece a parâmetros mais ou menos regulares. O dono dos meios de produção abocanha geralmente 40% do resultado total, o restante é dividido “meio a meio” entre a tripulação. Apesar do cálculo relativamente fácil, o sistema de partilha nesse tipo de pesca é por vezes irregular e envolve fatores subjetivos externos à ação de captura16. A imprecisão na distribuição do pescado se dá pelo caráter de familiaridade e vizinhança com que se desenvolve o processo produtivo. Não sendo essa uma modalidade formal de trabalho, a mão-de-obra é por vezes dispersa, atividade é encarada como uma espécie de “bico”17. Muitos homens se engajam nesse labor ocasionalmente, para garantir a refeição do dia dos filhos, ganhando uma pequena parte da produção e não uma remuneração em dinheiro. O resultado da produção, apesar do esforço organizado e coletivo empregado na captura, é também distribuído por outros critérios de solidariedade ou como forma de pagamento de pequenos favores prestados entre os moradores no cotidiano do bairro. Na rede de pesca atual, muitos dos novos trabalhadores do mar não procuram mais os grandes peixes. Os pescadores da pequena pesca no bairro preferem percorrer o náilon com os olhos à procura de relógios, óculos, jóias, dinheiro, perfumes e outros objetos que passaram a ser arrastados no fundo das redes. Artefatos da cultura material urbana, vestígios do turismo, das oferendas a Iemanjá e dos excrementos residenciais, são artigos que passaram a compor o cenário litorâneo contemporâneo da cidade. “Aqui no Serviluz, meu filho, era tudo mar!”, comoveu-se dona Maria Zuleide, 56 anos, uma antiga moradora do bairro Serviluz18. Dona Zuleide relembrava emocionada, durante a primeira entrevista, a enorme dificuldade que os moradores tiveram para levantar as primeiras habitações naquele canto de praia vazio e assombrado, e seus olhos brilhavam como se tivesse acontecido há poucos instantes. “Casas não, casebres no meio dos morros!”19. No antigo cenário, hoje renovado pelas inúmeras habitações feitas de tijolo, as paredes durante muito tempo foram edificadas à base de varas, entrelaçadas e enchidas a mão com barro, eram as conhecidas casas de taipa, herança que remonta ao período colonial. Ali se 16

Entre a tripulação, é consenso que os pescadores “de mar”, pela especialização advinda da experiência, percebam uma remuneração maior que a dos pescadores “de terra”, que utilizam simplesmente a força braçal. Já o dono do equipamento, habitualmente, dispensa sua parte na produção quando essa é insuficiente, inclusive para ser repartida entre os trabalhadores. 17 Biscate, trabalho informal ou temporário. 18 Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003. 19 Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003.

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morava em barracos improvisados; muitos deles eram erguidos com estruturas de lona plástica, madeira e até mesmo papelão. Tempos difíceis eram aqueles em que o vento e a areia, quando não derrubavam as casas, entravam nos olhos e nas panelas dos moradores abrigados em casebres ainda esparsos. A pobreza das habitações, no entanto, contrastava com a abundância encontrada nas panelas suspensas sobre o fogo a lenha, quase sempre abarrotadas de peixe, alimento básico na mesa das famílias praianas. Apesar das intensas transformações ocorridas na praia e na economia pesqueira nas últimas décadas, boa parte da população que habitava o local ainda conseguia sobreviver exclusivamente da atividade de pesca. “A gente chegava a comer peixe até seis vezes por semana”20, afirmou, nostálgico, seu Francisco Herton, nascido no início dos anos 1960, na praia do Serviluz. Para ele, o alimento era fácil porque, além de ser reduzida a população que residia na praia à época, o acúmulo de substâncias alimentícias atraía vários cardumes para as colunas de concreto e ferro, construídas como base de sustentação para a edificação do porto. Nos depoimentos orais, é fácil perceber como as crianças nascidas naquela época cresciam na beira da praia e brincavam em torno do porto recém construído. Pulando sobre as pedras dos espigões, nadando entre os barcos ancorados ou correndo na areia frouxa, a garotada passava o dia todo se divertindo na orla. A lamparina ainda não havia sido substituída pela lâmpada e, devido à ausência de uma vida noturna para os mais jovens, cedo se dormia. A praia era praticamente o único espaço de moradia, trabalho e lazer daquela gente e os jovens costumavam aprender, na beira da praia mesmo, algum tipo de ofício, as habilidades surgiam quase sempre em meio à execução de pequenas tarefas necessárias às viagens rumo ao mar; trabalho e lazer facilmente se confundiam. A pescaria farta e as humildes choupanas dos pescadores, porém, deixaram de ser características essenciais da conhecida praia de jangadeiros do Mucuripe. Da segunda metade do século XX em diante, a praia estendeu-se por outros domínios e modalidades distintas de trabalho e habitação passaram a coexistir no local. Um breve olhar sobre a história da ocupação da praia do Mucuripe revela que esse foi um lugar onde se desencadearam muitos fatos importantes para a História do Ceará. Durante muito tempo, a memória desse antigo vilarejo de pescadores, núcleo populacional antigo, se constituiu um lugar de natureza exótica, berço dos povos nativos cearenses que viviam rusticamente. 20

Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002.

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Resgatando uma polêmica histórica, Raimundo Girão afirmou categórico que foi no Ceará, e mais especificamente na enseada do velho “Mocoripe”, onde “(...) o homem europeu sentiu, a primeira vez, a terra e o céu brasileiros” 21. Ali, segundo Girão, fora o “Rostro Hermoso”, ponta de mar em que as caravelas do navegador espanhol Vicente Pinzón supostamente aportaram, antes mesmo do desembarque de Cabral em Porto Seguro, na Bahia22. Foi também nas praias do Mucuripe que ocorreram os primeiros contatos entre os aborígines locais e o homem branco europeu. Na literatura cearense, na obra indianista Iracema, o romancista José de Alencar descreveu fragmentos daqueles “verdes mares bravios”, espécie de lugar mitológico onde o “bom selvagem” e o branco “civilizado” viveram suas aventuras. O Mocoripe era um alto e belo morro de areia que tinha a alvura da espuma do mar ou simplesmente o “morro da alegria”23, praia privilegiada para o descanso de marujos aventureiros. Navegantes antigos, quando no Ceará aportavam, ancoravam nessa parte da orla em busca de comida e água fresca, à sombra do arvoredo que outrora margeava o riacho Maceió, agora soterrado. A beleza e a exuberância da natureza selvagem naquelas terras, cantada em verso e prosa, resistiram durante centenas de anos no Ceará, mas, desde meados do século XIX, intensifica-se a idéia do “progresso” urbano. Nessa trajetória, a praia e os imensos areais da virgem Iracema foram sendo gradativamente sufocados pelas pedras imponentes da modernização. A primeira edificação de maior envergadura nessa área foi a construção de um pequeno forte onde se instalou um farol, por volta de 1840, quando a ponta de mar do Mucuripe tratava-se ainda de um ponto estratégico de proteção da cidade24.

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GIRÃO, Raimundo. Geografia Estética de Fortaleza. Imprensa Universitária do Ceará. Fortaleza, 1959. p. 19-27. 22 Segundo o Historiador Raimundo Girão, amparado nos estudos de Francisco Adolfo Varnhagen, o navegador espanhol Vicente Yañez Pinzón desembarcou na ponta do Mucuripe em janeiro ou fevereiro de 1500, antes, portanto, de Cabral ter chegado a Porto Seguro. In: GIRÃO, Raimundo Geografia Estética de Fortaleza. Também recentemente em Fortaleza, o jornalista Rodolfo Espíndola publicou o livro “Vicente Pinzón e a descoberta do Brasil”, onde chega a afirmar que “não se tem mais dúvida que o primeiro ponto do Brasil avistado e aportado por Pinzón foi a aponta do Mucuripe”, defendendo a construção de um monumento histórico no local. Cf.: Jornal O Povo 02/02/2004, p. 03. 23 No romance Iracema, de 1865, José de Alencar explica que o nome Mocoripe vem de corib (alegrar) e mo (partícula ou abreviatura do verbo fazer). In: ALENCAR, José de. Iracema: Lenda do Ceará, 26ª ed. São Paulo: Ática, 1992. p. 56. Raimundo Girão, entretanto, sugere que essa explicação seja por demais romantizada. 24 O farol era um antigo fortim construído para evitar as invasões estrangeiras. “O plano para a construção do farol do Mucuripe foi apresentado a D. Pedro I pelo presidente da província do Ceará, no dia 17 de agosto de 1826”. A construção só terminou em 1846, sendo reformada em julho de 1872, em comemoração do aniversário da Princesa Isabel. Cf.: Jornal O Povo, 12/07/1982, p. 29. O farol foi desativado nos anos 1950 e mais recentemente transformado em Museu do Jangadeiro. No museu, no entanto, não há qualquer referência aos

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Em tempos mais recentes, moradores do Serviluz lembram-se das balas de canhão encontradas nas areias da praia. “Na época eu menino com idade de doze anos eu carreteava (escorregava) de taubinha naquele morro, aqui acolá a gente fazendo escavação achava aquelas balas de canhão, bola assim com peso de um quilo dois quilo, coisa antiga mesmo! Se fosse o caso de a gente vender hoje em dia, vendia como relíquia. A gente menino lá se lembrava disso...” 25.

A memória do Mucuripe como lugar de duelos e batalhas não se reduz aos vestígios materiais e aos objetos esporadicamente encontrados na praia, há uma lembrança herdada e compartilhada através das gerações, a vivência desse espaço é por vezes concebida como sendo esse um lugar das partidas e das dispersões. Ali foram embarcados retirantes famintos em diversas estiagens, foi lançada a sorte dos chamados “soldados da borracha”26 rumo aos seringais da Amazônia e aconteceu o desembarque dos pracinhas cearenses que lutaram na Segunda Guerra Mundial. Como o Mucuripe foi um dos primeiros ancoradouros da Capitania, embarques e desembarques de toda ordem se sucediam, havia tempos que lá desciam numerosas embarcações abastecidas de mercadorias, alvo constante da pilhagem dos flibusteiros. Nessa parte da província, funcionava um porto bem arcaico e diariamente circulavam gêneros comerciais destinados à Capitania do Siará Grande, ainda subordinada administrativamente à de Pernambuco. Com o Ceará independente, em 179927, a vila de Fortaleza assumiu a hegemonia política e econômica da capitania, e suas riquezas, sobretudo a partir do rico comércio do algodão, em detrimento da criação de gado, começaram a descer pelo litoral e não mais pelos rios. Nesse momento, principalmente em decorrência da distância de cerca de cinco quilômetros que separava esse povoado da então sede do município, não foi no ancoradouro do Mucuripe, mas na área da atual Praia de Iracema, que se iniciaram as obras do porto. Rodolfo Teófilo, durante uma das maiores estiagens da história do Ceará, 1877, afirmou:

jangadeiros, grande parte do antigo prédio é ocupada com informações do projeto de energia eólica, de tecnologia alemã, instalado na Praia Mansa, em1996. 25 Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002. 26 Sobre a migração dos “Soldados da Borracha” para a Amazônia cf., entre outros, BARBOSA, Edson Holanda Lima. Ida ao inferno verde: Experiências dos trabalhadores cearenses imigrados para a Amazônia (1942/1945). Dissertação de Mestrado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005. 27

Fortaleza somente ganharia ascensão administrativa de vila à cidade em 1823.

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O presidente, acreditando ser devida à aglomeração de retirantes a alteração do estado sanitário da capital, resolve crear mais dous abarracamentos: um em Mocuripe e outro em Pajussara, a fim distribuir melhor a população adventícia. Os indigentes do Mocuripe se empregariam em quebrar pedras e os da Pajussara no fabrico de tijolos, destinados às obras que se estavam fazendo28.

Nas obras do governo, entre as quais a do porto de Fortaleza, os retirantes famintos e cansados que chegavam à velha pedreira do “Mocuripe” trocavam o penoso trabalho de carregar pedras de aproximadamente 15 (quinze) quilos às costas, sobre terrenos arenosos, por um punhado de farinha e carne seca, ração distribuída pelos socorros públicos em épocas de calamidade. Rodolfo Teófilo, escritor e farmacêutico famoso por empreender campanhas de vacinação contra epidemias entre a população mais pobre da capital, geralmente os moradores dos areais, se opunha diretamente ao então governo provincial. Através de suas obras, não foi possível perceber referências mais diretas sobre a possível fixação dos retirantes no local, o que muito provavelmente aconteceu já que, à época da estiagem, era possível que “dois terços do eleitorado da província estivessem deslocados, tivessem emigrado e carregassem pedras da pedreira do Mucuripe”29. Em sua literatura naturalista, porém, o pacato vilarejo do Mucuripe já começava a receber novos contingentes de trabalhadores e a ser palco de outros conflitos: “A soldadesca açulada pela certeza da impunidade dos crimes, na mais infernal algazarra, na mais estúpida zombaria, corria a galope em direção ao Mucuripe, enquanto mais de cem infelizes gemiam deitados na areia da praia”30. Desde o final do século XIX, configurou-se uma prática de isolamento em relação ao trânsito dos flagelados, criaturas indesejáveis ao progresso que se fazia, pelas alamedas de Fortaleza: Os comboios despejavam os flagelados na parte da cidade que ficava mais próxima do mar, onde se localizavam as últimas estações férreas de Fortaleza. Muitos retirantes erguiam seus casebres na proximidades da praia. Esse aspecto ajuda a entender o processo de constituição das primeiras favelas de Fortaleza 31.

A população sertaneja que chegava a cidade representava também um numeroso contingente de mão–de-obra gratuita utilizada na construção de obras públicas e no melhoramento urbano, empreendimentos essenciais ao desenvolvimento comercial e

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TEÓFILO, Rodolfo Historia da seca no Ceará (1878-1880). Rio de Janeiro: Imprensa Inglesa, 1922. p. 194. Op. Cit. p. 84. 30 Op. Cit. TEÓFILO, p. 181. 31 Cf.: RIOS, Kênia Sousa. Campos de Concentração no Ceará: Isolamento e poder na seca de 1932. Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará, 2001. p. 18. 29

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industrial do Ceará. “O grande flagelo de 1932 possuía, assim, um claro objetivo: mostrar a urgência de um novo porto em Fortaleza” 32. O antigo porto de Fortaleza foi construído ainda no final do período imperial, momento em que a cidade já tinha assumido a hegemonia econômica e administrativa da província do Ceará. Com o advento da República e a emergência de novas forças sociais, a capital centralizou ainda mais as decisões políticas do Estado; e as elites locais, além da construção de equipamentos modernizadores como o Porto, a Estrada de Ferro e o Passeio Público, também empreenderam um verdadeiro processo de remodelação, saneamento e controle do espaço urbano33. No Porto do Mucuripe, no entanto, as primeiras pedras só começaram a ser assentadas por volta de 1940. Obra demasiadamente demorada, levou cerca de 25 anos para ser concluída, período em que seus arredores foram sendo rapidamente ocupados por levas de retirantes e por imponentes clubes de veraneio que se erguiam na cidade. Após o porto, a bela praia do Mucuripe nunca mais seria a mesma. O memorialista Blanchard Girão observou que nessa época: O romântico e íntimo esconderijo de velhos homens do mar, fez-se caótica albergaria de gente doutras origens e de outros costumes. Em meio a essa desordem urbanística, implantou-se ali também a prostituição. Não se distinguia casa séria de casa ‘suspeita’. A pobreza e a promiscuidade nivelavam todos34.

Antiga aldeia indígena, a praia do Mucuripe se transformou num pequeno povoado de pescadores e mulheres fazedoras de renda. Atualmente, com o avanço da especulação imobiliária e do turismo, as alvas dunas da virgem Iracema constituem um dos metros quadrados mais caros da cidade, lazer de estrangeiros e habitação preferida dos ricos da terra. Antes do porto, os primeiros ocupantes dessa parte da cidade foram em boa parte pescadores, migrantes de outras regiões praianas da longa costa cearense que, em distintas épocas de calamidade, fugiram para a capital. Na cidade, optaram pela vida numa tradicional região de pesca, dirigindo-se para as areias do Mucuripe e erguendo ali suas choupanas. Até a primeira metade do século XX, aquela era ainda uma população cuja organização era talvez mais tribal que urbana, com as jangadas, as choupanas e os botequins barulhentos. Uma imensa floresta de cajueiros deu lugar a uma paisagem mais moderna e 32

Op. Cit. p. 26. PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza Belle Époque: Reformas urbanas e controle social (1860-1930). 3° ed. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2001. 34 GIRÃO, Blanchard Mucuripe: De Pinzón ao Padre Nilson. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1998. p. 32-33. 33

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cosmopolita quando começou o tempo da indústria, da agitação imobiliária e dos arranhacéus. “O Mucuripe tornou-se uma espécie de Copacabanazinha onde um palmo de terra, que nada valia no tempo da aldeia de pescadores, custa agora um dinheirão”35.

2.2 Homens do mar, pés no chão

“A pouco e pouco, o tempo apaga hábitos e costumes, mas não os extingue completamente. Visíveis as choupanas de palha de coqueiro, onde a indigência geme. Na frente, a sala da visita. Entre esta e a cozinha, de fogão improvisado, a camarinha de amor discreto. E nos quatro cantos, na intimidade pouco ambiciosa, a rede e os sonhos dos filhos que não param de nascer” (Eduardo Campos)

Migrantes de praias distantes, os primeiros moradores do Bairro Serviluz viveram durante muito tempo da atividade pesqueira. São tributários de costumes e modos de vida com características seculares. Trata-se de uma cultura em que o sustento das famílias não depende simplesmente da venda da força de trabalho, mas da interação direta entre o homem e o seu meio natural. Diferentemente do tempo de trabalho industrial que se instalou posteriormente, no mar o relógio é a lua, são os ventos, as tempestades e o tamanho das marés. Vida singela, desapego material, vestuário modesto caracterizam o modo de vida dos pescadores, tidos costumeiramente como um povo simples, portadores de um estilo de vida reproduzido à semelhança das antigas culturas indígenas. Algumas das comunidades de pescadores fixadas na costa cearense ainda hoje apresentam hábitos e costumes desprovidos do sentido acumulativo, característico da lógica capitalista dos centros urbanos. Nessas comunidades, grande parte da população pesca exclusivamente para alimentar a numerosa prole. A simplicidade e a solidariedade entre esses trabalhadores, entretanto, se tornaram hábitos que alimentaram a falaciosa idéia de ser esta uma gente preguiçosa, apolítica e culturalmente atrasada. A idealização exacerbada dos pescadores produziu uma imagem 35

Op. cit., p. 127.

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bastante distorcida, que enxerga grupos de trabalhadores estáticos no tempo e vê os homens como uma espécie de prolongamento da paisagem natural. Na célebre obra Os Trabalhadores do Mar, escrita por Victor Hugo em 1886, o escritor francês já nos apresentava um quadro bem preciso das condições gerais dos homens que ganhavam a vida na beira da praia: Em todas as cidades, especialmente nos portos de mar, há abaixo da população, um resíduo (...) os vencidos do duelo social. Ali é bestial a inteligência humana. É o montão de imundícies das almas. Ajunta-se tudo aquilo a um canto, onde passa de quando em quando a vassoura policial36.

De modo geral, acredita-se que esses homens enraizam-se na miséria porque vivem sempre para o dia de hoje, preocupando-se somente com as oscilações da maré do momento. Raramente olham para o dia de amanhã; consomem logo o que pescam. Do resultado da pescaria, separam um bocado do apurado para casa e o resto se esvai em farras e bebedeiras. E nesse vaivém, não é de se admirar que a pobreza seja uma situação constante ao longo de suas vidas, já que a própria existência de uma certa cultura do esbanjamento não lhes permite fazer reservas nem mesmo em tempos de fartura no mar. De fato, é fácil argumentar que essa sempre foi uma categoria profissional de homens essencialmente pobres e desprovidos. A maioria não goza os benefícios da legislação trabalhista; esses trabalhadores vivem essencialmente da pequena pesca e não possuem carteira de trabalho assinada. Na cidade, os pescadores urbanos geralmente moram em habitações consideradas precárias e insalubres, os mais velhos são precocemente acometidos por várias doenças. O esforço da lida diária nessa profissão produz corpos esculpidos, vigorosos e bronzeados e que são, ao mesmo tempo, profundamente marcados pelo desgaste imperioso do tempo. Pode-se afirmar também que, além de fatigante, a pesca é uma atividade extremamente perigosa. Tanto na chamada pesca embarcada como na pesca de caráter artesanal, os perigos são consideráveis, ir ao mar é rumar para o desconhecido. Em sua composição, o mar carrega energias incomensuráveis que tornam possíveis todo tipo de cataclismo. “A gente casou e com cinco dias ele foi pro mar, aí com cinco dias que ele tava no mar (...) ele tinha sumido, o barco tinha virado. A família dos outros pescadores tava tudo aí na beira da praia pedindo, 36

HUGO, Victor. Os Trabalhadores do Mar. Rio de Janeiro, Ediouro. p. 94.

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esperando só o corpo né? Que a notícia tava aí (...). Aí com onze dias eles chegaram, a lancha que eles tavam tinha naufragado, perderam tudo. E ele foi um dos tais que chegou bastante doente, sem falar que ele não falava, todo ruído das baratas brancas que tem né? Todo ruído, eu tive que ir em casa pegar um lençol (...)”37.

Episódios semelhantes a este não são raros. As embarcações que saem pela manhã para voltar à tarde, ou que vão num dia para voltar no outro, podem não retornar nunca mais. Esse é um universo permeado de numerosas histórias de desaparecimentos e naufrágios misteriosos, casos verdadeiros que se misturam às populares e desacreditadas histórias de pescador. A pesca torna órfãos vários filhos do bairro. Por outro lado, concebendo o mar como uma dádiva, esses trabalhadores contemplam a natureza de modo singular, suas riquezas, detalhes e grandiosidade, o oceano parece confirmar a magnitude do cosmo e a relativa impotência humana diante do universo. A pesca apresenta assim uma certa aura mística, trata-se de uma atividade econômica marcada pela influência decisiva do fator sorte. Cada partida faz-se repleta de superstições. O bom pescador há de saber que o “mar não tem pé nem cabelo” e que numa tempestade, muitas vezes, “só apega aos milagres de Deus”. Esse imaginário, que se alimenta continuamente de desastres e narrativas épicas das façanhas dos povos do mar, nutre igualmente um arraigado sentimento de religiosidade. As populações marítimas não desacreditam do diabo, tomam suas precauções contra suas artes; faz-se preciso conhecer a dualidade que ronda as águas oceânicas. De modo geral, a idéia de uma vida religiosa, pacata e sem ambição pode por vezes simplificar e tornar folclórica a existência de um modo de vida culturalmente rico e carregado de especificidades que lhes confere identidade própria. Convém, então, não reforçar os estereótipos que apresentam os pescadores e suas famílias como sendo um povo ignorante e sem atuação política. Tampouco cabe ratificar a doce e ilusória sensação de que a vida dos jangadeiros virou canção romantizada. Mesmo com tendência generalizada de expulsão dos pescadores para longe da praia, a jangada no Ceará não é apenas uma atração turística. Na propaganda turística, aliás, as versões exóticas encobrem a dura realidade dos trabalhadores do mar e sua penosa luta pela sobrevivência. Nos dias atuais, enquanto a agradável imagem do pescador figura na mídia como elemento símbolo do estado do Ceará, marca registrada da cultura e do povo cearense, na vida real o náilon continua a cortar suas mãos, o sal permanece a queimar suas costas, o vento ainda lhe fustiga o rosto e o sol teima em cegar seus olhos.

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Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.

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As versões românticas negligenciam o aprendizado político de gerações, a busca por melhores condições de trabalho e inserção social, a obtenção de conquistas trabalhistas importantes e a produção de significativas experiências associativas num ramo de atividade que sofria intensas transformações. A pesca é uma atividade tão antiga quanto o homem. Já durante a Idade Média, a atividade pesqueira foi amplamente incentivada, o peixe era um alimento especial para os cristãos, havendo um singelo aperfeiçoamento dos anzóis, das redes e dos equipamentos rudimentares inventados na antiguidade. À medida que a pesca se intensificou, foi preciso alcançar mares mais distantes e implementar inovações da engenharia naval, o que gerou a necessidade de investimentos de maiores volumes de capital. Da pesca rudimentar, passou-se ao barco a vapor. O mar e o vento formam um composto de forças. O navio é um composto de máquinas. As forças são máquinas infinitas, as máquinas são forças limitadas. Entre os dois organismos, um inesgotável, outro inteligente, trava-se o combate que se chama navegação (...) Enquanto não se descobre a lei, prossegue a luta, e nessa luta a navegação a vapor é uma espécie de vitória perpétua que o gênio humano vai ganhando a todas as horas do dia em todos os pontos do mar. A navegação a vapor é admirável porque disciplina o navio. Diminui a obediência ao vento e aumenta a obediência ao homem38.

Mas a embarcação a vapor apresentava ainda a inconveniente necessidade de retornar a terra para repor os estoques de carvão. Foi somente com o barco de motor a combustão que se resolveu o grave problema dos longos deslocamentos e o homem se lançou aos desafios dos grandes oceanos. Redes mais pulsantes, gelo para conservação e toda uma parafernália técnica (máquinas, radiotransmissores e até ecossondas para detecção dos cardumes) passaram a oferecer mais segurança e conforto a bordo das embarcações que podiam realizar longas viagens e abrigar grandes tripulações. Em extensa pesquisa, Diegues39 ressaltou que a introdução do barco motorizado na Inglaterra aconteceu em meados do século XIX, dando início à fase inicial da Revolução Industrial na pesca. Naquele país, a crescente divisão do trabalho nas embarcações e o aumento da produção de caráter mercantil se deram com relativo atraso em relação aos outros setores da produção, como a indústria têxtil. A exploração da força de trabalho dos pescadores ingleses em pouco tempo não se diferenciava da dos trabalhadores das fábricas e os pescadores tinham se transformado em verdadeiros proletários de convés.

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Op. Cit. HUGO, Victor. Os Trabalhadores do Mar, p. 116. DIEGUES, Antonio Carlos Sant’Ana Pescadores, camponeses e trabalhadores do mar. São Paulo: Ática, 1983. 39

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A mecanização na pesca atingiu não somente o barco, mas também as tarefas nele executadas. Incitou o surgimento de novos profissionais a bordo, maquinistas, foguistas, cozinheiros e operadores de rádio. A crescente especialização alterou inclusive a tradicional hierarquia que existia no barco, na medida em que introduz, por exemplo, o assalariamento e sistema de remunerações diferenciadas entre os tripulantes40. As alterações no mundo do trabalho, além disso, fizeram desaparecer muitas vilas de pescadores pelo mundo, colocando a mão de obra à mercê das grandes unidades de produção. Em muitos países, o declínio da pesca local ocasionou tanto a mudança no modo de vida quanto o próprio deslocamento das famílias pesqueiras para os grandes centros urbanos, onde passam a se engajar em atividades alternativas. No Brasil o avanço da pesca em larga escala se fez concomitantemente à permanência da pequena pesca41. Em certos ambientes, os pescadores locais possuem imensa capacidade de adaptação à situação ecológica específica. Explorando nichos próximos à costa, onde não é possível lançar grandes redes, desenvolvem técnicas precisas de recolhimento das redes dependendo do fundo, ora rochoso, ora arenoso. Nesse caso a força de trabalho empregada é eminentemente familiar e o pescador define seu ritmo de trabalho em função da safra da época. Isso é o que acontece, por exemplo, no Nordeste, onde os cardumes de peixe de alto valor no mercado, pargos e cavalas, apesar da abundância, são de difícil captura, dados os fundos rochosos que dificultam a técnica do arrasto. Os jangadeiros localizam e guardam na memória o bom ponto de pesca, sendo esse um dos principais segredos da profissão. Usam um sistema de marcação através de uma triangulação visual em objetos fixos na praia, operando uma espécie de divisão imaginária do mar. Muitos criam seus próprios bancos de pesca, carregando para dentro d’água grandes objetos, como carcaças de automóveis, que passam a servir de abrigo aos peixes.

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Segundo Diegues, essas transformações alteram a condição natural do mestre: “É preciso se levar em consideração que a maestria é uma capacidade pessoal, um conhecimento raro que exige o conhecimento do mar e dos cardumes, padrões de migração dos peixes e localização dos melhores locais de pesca, além de certa capacidade em tratar com a tripulação em condições quase sempre difíceis e extenuantes. Além disso, a maestria só se consegue através de anos de experiência e é dificilmente adquirível através de cursos formais”. Op. cit. DIEGUES, p. 37. 41 “Daí serem a propriedade dos meios de produção, o controle do processo de trabalho, a dispersão dos meios de produção, a reduzida divisão do trabalho levando a um fraco desenvolvimento das forças produtivas, as principais características da pequena produção mercantil. Esta pode ser mais bem analisada se comparada com a produção capitalista. Nesta existe uma separação completa entre os trabalhadores e os meios de produção, que se instalaria com a presença de um não-trabalhador que impõe as condições de produção e reprodução pela extração da mais valia (...) Os mecanismos de extração da mais valia permitem ao não-trabalhador acumular novos capitais e se reproduzir enquanto classe dominante, e, ao mesmo tempo, levam a classe operária a vender sua força de trabalho e a se reproduzir como classe dominada”. Op. Cit. DIEGUES, p. 206.

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Essa é uma situação diferente das encontradas nas regiões Sul e Sudeste, onde a retirada de grandes cardumes, sardinhas, pescadas e camarões, foi favorecida pelo ambiente físico, o que possibilitou a concentração das grandes empresas de pesca nessa região42. A concentração das grandes empresas de pesca43 no litoral do Sul e do Sudeste foi amplamente reforçada pelo Decreto-Lei 221, da Superintendência do Desenvolvimento da Pesca, a Sudepe, criado em 1967. Com esse decreto, o governo brasileiro criou um programa de incentivos fiscais que visava ampliar os investimentos privados e romper o ciclo de baixa produtividade que ainda caracterizava o setor. Como ressaltou Diegues, a iniciativa do Estado praticamente abandonava à própria sorte a pequena pesca. Enquanto os empresários construíam barcos e fábricas com o fácil dinheiro do governo, os trabalhadores eram pressionados pelo capital. A pesca tornava ainda mais precárias as condições do homem; as intermináveis jornadas de trabalho e a permanência por meses no mar quase sempre se traduziam em perdas de vidas humanas. Curiosamente, apesar da centralização dos investimentos, cerca de 97% dos recursos foram captados pelas regiões Sul e Sudeste; os próprios dados da Sudepe indicam que os pescadores nordestinos aumentaram efetivamente sua participação na produção nacional entre 1950 e 1970. Recebendo algo em torno de 0,3% dos incentivos, o Nordeste elevou sua produção para 24% da produção total brasileira. Assim, como se disse, pelas peculiaridades físicas do litoral nordestino, fazia-se necessária a aplicação de um tipo de pesca particular. Esse foi um dos fatores de as empresas recém-criadas na região terem sido instaladas próximo às áreas de maior fertilidade, como o litoral do Rio Grande do Norte e do Ceará, onde eram abundantes produtos valiosos como a lagosta, antes pescada em pequenos botes a remo e em jangadas. Assim podiam também comprar a baixo preço a produção dos pequenos pescadores. No Ceará, nesse período, talvez pela condição de miséria oferecida em terra, foi consideravelmente crescente o número de homens que se lançaram ao mar. Em 1940 havia 4.801 pescadores registrados pela federação. Em 1970 já eram 14.215 os que pescavam de forma legalizada. O estado praticamente dobrou sua participação no mercado brasileiro. Esses números evidenciam como a descoberta da lagosta no Ceará atraiu vários empresários para o estado; em 1961, pelo menos dez empresas do Sul do país solicitavam à 42

Até meados dos anos 80, cerca de 80% das indústrias pesqueiras estavam localizadas nessas regiões, mesmo as empresas criadas no Norte e Nordeste pertenciam a esses grupos econômicos. Nas regiões Sul e Sudeste, 68% da mão de obra era embarcada enquanto no Nordeste a pesca artesanal arregimentava cerca de 76% dos trabalhadores do setor. Cf.: DIEGUES, p. 111-134. 43 Esse é um tipo de indústria caracterizado pela completa integração do setor. O lucro dessas empresas é garantido não somente pela exploração da força de trabalho, mas também pelo beneficiamento e comercialização do produto.

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Divisão de Caça e Pesca do Ceará permissão para instalação de suas usinas em Fortaleza44. A “economia natural” da pesca artesanal começava a sofrer severos danos. A introdução da pesca comercial inseria os pescadores num novo mercado e numa nova atividade, eminentemente capitalista. Na pesca da lagosta, o “ouro do mar”, o período pós-1950 foi caracterizado por um considerável ingresso de enormes embarcações motorizadas, pela melhoria das técnicas de captura e por um elevado investimento em empresas de pesca. Havia tempos, a tradicional jangada de piúba, amarração de troncos feita da típica e resistente árvore do Pará, vinda de navio, tinha sido substituída pelas embarcações de madeira, menores, mais frágeis e transportadas por carretas. Pouco a pouco, o pescado ficou escasso e crescia assustadoramente o número de atravessadores. A corrida desenfreada por esses produtos de alto valor no mercado de exportação parecia conter em si o germe de sua própria destruição. A atração de empresas e trabalhadores acabou resvalando na dinâmica ocupacional da cidade de Fortaleza e na própria forma de organização das famílias pesqueiras. Como ressaltou dona Maria da Conceição, “eram mais de duzentas mulheres, todas trabalhando de carteira assinada”45. Como oferecem uma atividade verticalmente integrada, as “empresas ricas” do setor pesqueiro passaram a empregar também numerosa quantidade de mão-de-obra feminina no processo produtivo, na limpeza, na embalagem e no armazenamento do produto destinado ao mercado externo. Os homens, ao se afastarem por tempo mais longo, acabaram modificando a rotina familiar, transformando o papel desempenhado pela mulher no espaço doméstico. Esse fator refletiu-se não apenas na mudança de comportamento e nas atribuições que os membros da família passaram a ter, mas caracterizou o próprio padrão migratório familiar dos que partiam de outras localidades rumo à capital. Por outro lado, o pescador embarcado mantém pouquíssimo contato com seus familiares; no mar, sua sobrevivência é garantida pela empresa que o contratou; sua família, porém, dependerá do resultado da produção: “Eles levavam de cinco, seis sacos de farinha, cinco, seis sacos de arroz, eles levavam muito, muito, então tinha uma dificuldade muito grande pra quem fica né! (...) Eu tenho certeza que se eu num corro eu tinha sido uma vítima dessas que ele foi, encontrou outra e num voltou mais sabe? (...)” 46.

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Jornal Unitário, 24/09/1961, p. 07. Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003. 46 Idibem. 45

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Como o pagamento pode ser mensal ou quinzenal, as mulheres em terra, encarregadas da organização do novo orçamento familiar, são obrigadas a comprar os gêneros alimentícios a prazo, fiado, endividando-se gradativamente no comércio local. Além disso, estão sujeitas a humilhações e constrangimentos por parte das empresas. “(...) é uma coisa difícil sabe (...) quando eles vão pro mar fica aquela situação, se é pela empresa você fica recebendo aquele dinheiro né? E tem que aceitar aquela humilhação ‘Ah! Seu marido num tá produzindo, o seu dinheiro vai atrasar e num sei o que’ sabe como é que é (...)”47.

As conseqüências da instalação da indústria pesqueira foram sentidas também na mudança do cotidiano familiar. Introduziu-se um sistema de regulação da remuneração, em função da produção, que podia incomodar sobremaneira os membros de um domicílio e que facilitava ainda o abandono do lar por parte dos homens que passaram a pescar em portos distantes. Notadamente, em meio a essa desestruturação que sofreu a secular atividade pesqueira, o pescador tornou-se também uma categoria muito ativa e não faltam na história desse povo momentos de reconhecida participação política48. Em 1941 a saga da jangada São Pedro virou notícia na imprensa nacional. Guiada por quatro pescadores cearenses, a pequena embarcação de madeira demorou 61 dias para ir de Fortaleza à cidade do Rio de Janeiro, então sede política da República. Ao falar pessoalmente com o presidente Getúlio Vargas, os jangadeiros lutavam pela inclusão da categoria nos direitos sociais da nova legislação trabalhista, protestando também contra a exploração dos atravessadores que dominavam o mercado de peixe no Ceará. Apesar de esse ter sido o episódio mais famoso, o Raid (denominação que a imprensa da época passou a atribuir às tradicionais “corridas” das jangadas) de 1941, não foi a primeira e nem tampouco a derradeira travessia marítima dos jangadeiros cearenses. Os pescadores tinham como referência simbólica a figura de Francisco José do Nascimento, o Dragão do Mar, jangadeiro cearense que simbolizou a primazia da abolição dos escravos cearenses. Em 1881, durante um movimento grevista, o Dragão do Mar pronunciou a célebre frase “no porto do Ceará, não se embarcam mais escravos”, da qual surgiu a imagem do Ceará como sendo a Terra da Luz. 47

Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003. As entidades associativas dos pescadores são bem antigas. Em 1922, o próprio Estado já havia criado as Colônias de Pesca, instituições obrigatórias às quais deviam pertencer, muitas vezes de modo compulsório, todos os pescadores formais. Entretanto, em sua trajetória, essas organizações se atrelaram aos industriais e passaram a exercer um certo controle sobre os pescadores. Na prática, não defendiam os interesses dos trabalhadores, mas funcionavam como distribuidores de pequenos benefícios sociais.

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A prática de raids transformou-se numa forma recorrente de protesto e, com certa freqüência, grupos de pescadores do Ceará, inclusive os da praia do Mucuripe em 1972, se aventuraram nos mares turbulentos, em busca de melhores condições de vida e trabalho para suas famílias. A prática dessas viagens consolidou-se como forma de tornar públicos as necessidades e interesses dessa categoria. Em 1942, o Raid se tornou filme do cineasta norteamericano Orson Welles, durante sua passagem pelo Brasil, suscitando grande debate na imprensa local49. No caso das filmagens de Welles, a questão central que pairava era o motivo de o filme ter sido realizado no Mucuripe e não na Praia de Iracema, já que apenas um dos quatros tripulantes da São Pedro, o mestre Jerônimo, era da colônia de pescadores (Z-2) do Mucuripe. Ao que tudo indica, não era do interesse de Orson Welles focalizar outros equipamentos da cidade, pois, para cumprir as intenções do filme em mostrar uma cidade natural e arcaica, Fortaleza se resumia naquele momento à pacata comunidade do Mucuripe. Era uma imagem de natureza apartada da realidade social e da cultura. A idéia foi privilegiar o cenário natural do Mucuripe em contraposição à ostentação da Praia de Iracema, então reduto da elite local. Em nome da Política da Boa Vizinhança, o filme focalizou o mar, as dunas e o trabalho dos pescadores numa relação idealizada entre homem e natureza, fundamentada numa relação harmônica e solidária que visava desconstruir a imagem negativa do “nativo perigoso”50. Eram cenas que ocultavam os conflitos e contradições que permeavam essa trama e que contrastavam, inclusive, com o sentido que os jangadeiros atribuíram ao Raid como instrumento de luta contra a desigualdade e exploração no ambiente da pesca. A tendência à destruição da pesca costeira, no entanto, não foi fruto apenas da pesca empresarial. Em Fortaleza, houve uma conjugação de outros fatores como o aparecimento de serviços alternativos, por exemplo, a indústria e o turismo. Apesar de ser uma tradicional região de pesca, a praia do Mucuripe foi sendo, na mesma esteira desenvolvimentista que projetou o ambicioso projeto portuário e industrial, descaracterizada como lugar de trabalhadores pobres. Os pescadores remanescentes nessa região foram sendo cada vez mais encurralados para fora da praia, até serem desalojados 49

Sobre a viagem dos pescadores cearenses em 1941 e sobre as repercussões do filme de Orson Welles, cf. respectivamente: NEVES, Berenice Abreu de Castro. Do mar ao museu: A saga da jangada São Pedro. Fortaleza: Museu do Ceará, 2001; e SANTOS, Márcia Juliana. It’s all true e a construção das imagens do Brasil (1942-93). Dissertação de Mestrado em História Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2004. 30 Op. cit. SANTOS, p. 113.

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quase definitivamente das areias do Mucuripe, transferindo-se para bairros longínquos ou se espraiando por morros mais afastados. Em âmbito histórico, os pescadores retirados compulsoriamente do Mucuripe realizaram os primeiros deslocamentos humanos para a região, bastante erma, onde se formou depois o Bairro Serviluz. Aos poucos, aos primeiros casebres, somar-se-iam numerosos outros barracos. Iniciadas as operações no porto, começou uma corrente de sucessivas migrações que marcou sobremaneira a história dos povos dessa região e que caracterizou esse espaço por sua diversidade humana.

3 - A “tragédia” portuária

“Aqui, a natureza recuou ante o trabalho do homem, que modelou a pedra e redesenhou os limites impostos por Deus ao oceano (...) o porto se apresenta como um lugar ambíguo, inquietante e reconfortante. Espaço aberto para as riquezas e as ameaças do mundo evoca ao mesmo tempo o abrigo, o refúgio e a fragilidade; combina as imagens da invasão e da evasão”.

(Alain Corbin) “Porque o ‘progresso’ é um conceito sem significado ou pior, quando imputado como um atributo ao passado”.

(E.P. Thompson)

O Cais do Porto do Mucuripe, somente depois de muito tempo, teve sua construção efetivada no início da década de 1940, sendo sua primeira etapa concluída em 1946. Construído gradativamente, o novo cais substituía o velho porto de Fortaleza, localizado na Praia de Iracema. Mesmo não sendo estático, o ritmo de vida dessa parte da cidade se alterou profundamente após a vinda do complexo portuário. É possível afirmar que a região do Mucuripe ainda não havia passado por transformações tão intensas e tão radicais quanto as efetivadas a partir da execução dessa obra.

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No Ceará, a intensificação do fluxo de pessoas, idéias e mercadorias, transportadas por um número cada vez maior de embarcações, já há algum tempo exigia reformas capazes de atender à crescente demanda comercial do estado. O novo porto, aliás, surgiu como uma conjugação de esforços para solucionar o antigo problema portuário de Fortaleza, que, mesmo já sendo havia tempos, o centro econômico do estado, não dispunha de um sistema portuário de grande porte. Um longo debate sobre uma solução para o problema do porto de Fortaleza ganhou força ao longo dos anos 1930. Onde construí-lo? Distante do centro urbano da cidade, o pequeno arrabalde do Mucuripe ficava a quilômetros do então centro comercial de Fortaleza e eram bastante precárias as condições de transporte, a construção exigia a aplicação de recursos financeiros bem mais elevados. Apesar do custo, a “solução Mucuripe” , como foi divulgada na imprensa local, surgiu como alternativa definitiva, contrapondo-se, assim, ao simples melhoramento das instalações do antigo porto de Fortaleza. Finalmente em 1938, os jornais da capital noticiavam, num certo tom de empolgação, a assinatura do contrato para o início das obras. Nas palavras do então interventor Francisco Menezes Pimentel, não restava dúvida de que naquela hora estava “(...) se levantando um clamor, no seio da população, em favor da construção em Mucuripe”51. Afinal vencia a concorrência o projeto portuário do engenheiro Augusto Hor Meyill, “um técnico abalizado”, cujo moderno projeto “tinha a vantagem de aproveitar um trabalho já realizado pela natureza”. Após o início do porto, o projeto econômico industrial se expandiu a passos mais largos, era o prelúdio de um processo que resultou na remodelação da paisagem de toda a região. Ataques cada vez mais sistemáticos e danosos foram sendo empreendidos contra o ecossistema e a natureza local. Praticamente desfigurada após o início das obras portuárias, a bela enseada, onde um recôncavo natural tornara o mar aprofundado, sofreu profundo impacto ambiental. Na orla de Fortaleza, pela magnitude dos espigões de pedra ali erguidos, mudaria boa parte da paisagem litorânea. As transformações urbanísticas não afetaram somente a população pobre da cidade que se deslocava constantemente em função das obras. A vistosa Praia de Iracema, por exemplo, antigo cartão-postal da cidade, onde a beleza natural atraía

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Jornal O Povo, em 28/05/1938, p. 08.

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banhistas e curiosos, foi praticamente destruída com o avanço do mar, em virtude das obras do Porto do Mucuripe52. Apesar do inflamado desejo da elite local que começava a se firmar no ramo industrial, a história do Porto do Mucuripe, assim como a própria história portuária da cidade de Fortaleza, parece apresentar episódios repletos de inconstâncias e contradições. Não por acaso, Raimundo Girão referiu-se ironicamente ao episódio da construção do porto de Fortaleza no Mucuripe como sendo uma “tragédia portuária”. Apesar das críticas, parecia notório o que o novo porto representava: Não estaria mais a Capital cearense a revelar aquele bisonho retrato de Koster (viajante inglês) e ater à sua frente as humilhantes e dolorosas perspectivas de portos tentados e fracassados diante da fúria dos verdes mares tão decantados, mas por outro lado tão destruidores 53.

As contradições do porto, obviamente, não se reservam apenas à disseminação de problemas ambientais. Afetou bastante as condições socioeconômicas de todo o lugar que o circunda. O cais e a indústria estão diretamente relacionado não apenas à geração de novas formas e oportunidades de trabalho, mas à própria ocupação dessa parte da cidade pelas classes trabalhadoras. Assim, o porto e todo o complexo industrial passaram a estabelecer uma relação de intensa ambigüidade aos olhos da população, que passou a se estabelecer nos seus arredores. Na comunidade do Serviluz, boa parte das pessoas enxerga essa obra como fundamental para o crescimento do bairro. “O cais do porto, ele ter sido construído ali, nossa comunidade só teve a ganhar. Toda mão de obra, todo serviço prestado ali dentro (...) na faixa de 60% de toda mão de obra ali dentro é daqui do bairro. É do Bairro Serviluz e de áreas circunvizinhas”54.

Na memória dos trabalhadores locais, o porto representa muitas vezes não somente emprego direto dentro das docas, mas sobretudo a possibilidade de obtenção de pequenos afazeres entre os homens que para lá rumam diariamente.

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JUCÁ, Gisafran Nazareno Mota. Fortaleza: Cultura e Lazer (1945 – 1960). In: Uma nova história do Ceará. SOUZA, Simone de (org.). Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2000. p.193. 53 GIRÃO, Raimundo. Geografia Estética de Fortaleza. Imprensa Universitária do Ceará. Fortaleza, 1959. p. 29. 54 Entrevista concedida por José Carlos da Silva ao autor em 08/03/2005.

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Com os investimentos realizados na construção e ampliação do porto, a região do Mucuripe se configurou como locus privilegiado de oportunidades e como possibilidade concreta de inserção no mundo urbano do trabalho. Esse processo de atração se acentuou a partir de 1965, com o encerramento das obras do porto e a chegada da energia elétrica proveniente da Hidrelétrica de Paulo Afonso. Nesse instante, intensificava-se ainda mais a montagem das indústrias que constituiriam o pólo industrial do Mucuripe, forte impulsionador da mão-de-obra para o local. De modo geral, a criação de órgãos como Dnocs, Sudene, Banco do Nordeste e da Universidade Federal do Ceará acabou gerando um investimento mais sistemático no desenvolvimento industrial da região nordestina55. Para Roncayolo “dos lâmpiões a óleo às tochas, das candeias e das velas à pirotecnia, a cidade sempre procurou dominar a luz, sinal de originalidade técnica do mundo urbano, primeiro elemento, talvez, de sua ‘artificialidade’”56. As transfigurações noturnas em Fortaleza ganham fôlego quando uma lei municipal de 1954 criou a autarquia municipal Serviço de Luz e Força de Fortaleza, o Serviluz, cuja finalidade era produzir, transformar e distribuir energia elétrica no município de Fortaleza que se expandia57. A adoção da eletricidade no espaço público da capital pontificava mais um fundamental empreendimento com vistas à obtenção da modernização urbana. Ofilamento elétrico começava a prjetar uma luz esfuziante sobre o ar embaciado da noite (...) Nem a lua cheia nem a luz mortiça dos lampiões acompanhariam o esplendor da cidade moderna58.

No decurso do tempo, a inovação técnica permitiu, entre outras coisas, a substituição dos velhos lampiões a gás, instalados no último quartel do século XIX e removidos em meados da década de 1930, pela eletricidade, “ato inaugural de uma epopéia vertiginosa, que paulatinamente daria ao homem urbano uma sensação de segurança e refúgio na luz artificial”59.

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Segundo Celso Furtado, não há dúvidas de que os anos 1950 foram a fase decisiva da industrialização brasileira. Cf.: FURTADO Celso. O Brasil pós-milagre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, Coleção Estudos Brasileiros, v.54, 1983. p. 31. 56 RONCAYOLO, Marcel. Transfigurações noturnas da cidade: o império das luzes artificiais. In: Op. cit. Projeto História, nº. 18. p.97. 57 Sobre a eletrificação no Ceará Cf.: LEITE, Ary Bezerra História da Energia Elétrica no Ceará. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1996. p. 170. 58 SILVA FILHO, Antonio Luiz Macêdo e. Paisagens do consumo: Fortaleza no tempo da Segunda grande Guerra. Fortaleza: Museu do ceará; Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará, 2002. 59 Op. cit. p. 39.

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A usina termelétrica do Mucuripe, além de suprir a demanda das indústrias da região, também se apresentou como uma solução, ainda que paliativa, para o grave problema de abastecimento de energia, que, durante muito tempo, assolou a capital cearense60. Na perspectiva do Governo do Estado, depois de grande demora, o problema da energia elétrica na capital caminhava para uma solução completa, que abriria as portas de Fortaleza para uma industrialização até então impossível de ser realizada61. Apesar disso, o problema de energia elétrica em Fortaleza não ficou resolvido apenas com a instalação da usina. A exemplo da tragédia portuária, a história da eletricidade em Fortaleza apresenta capítulos que denotam ambigüidades e a relativa incapacidade do sonhado progresso. O projeto do Mucuripe fora desenhado para utilizar a água do mar (...), mas quando ocorria a maré baixa, entravam nos referidos tubos areia, peixinhos, crustáceos, águas marinhas (...) ocasionando sua obstrução, prejudicando o resfriamento do condensador e o funcionamento normal da turbina, o que acarretava freqüentes interrupções do fornecimento de energia elétrica. O SERVILUZ teve que manter equipes de mergulhadores, que cumpriam o penoso serviço de limpeza e deslocamento das bombas de dragagem62.

Os problemas técnicos que freqüentemente paralisavam as turbinas e os altos preços das tarifas foram alvos constantes de denúncias por parte da imprensa: “SERVILUZ ilumina meia cidade e deve dinheiro a meio mundo”63. O artefato tecnológico carecia de uma certa garantia na regularidade do serviço e, mesmo do ponto de vista econômico, a usina causava prejuízos consideráveis ao comércio e à indústria. Durante muito tempo, apesar dos rotineiros apagões, a energia elétrica ali produzida iluminava quase toda a cidade, alimentava as indústrias, clareava a zona de meretrício ao lado, mas não brilhava na comunidade do Serviluz. De modo geral, as luzes da modernidade e do progresso clareavam apenas espaços pontuais da cidade. Desde os anos 1950, haviam sido efetivados os primeiros esforços de consolidação de uma política industrial de base e geração de energia no Mucuripe. No ramo de gás, um dos

60

Caberia, contudo, somente à Companhia Nordeste de Eletrificação de Fortaleza (CONEFOR) a recepção da energia elétrica da CHESF, instalada apenas em 1965. Em 1971 foi inaugurada a Companhia de Eletricidade do Ceará (COELCE). 61 IOC. A Eletrificação no Ceará: Pequeno histórico da vinda da energia de Paulo Afonso a Fortaleza. IOC Imprensa Oficial do Ceará, 1965. P. 88. 62 Op. cit. LEITE. Ary Bezerra História da Energia Elétrica no Ceará. p. 172. 63 Jornal O Povo, em 07/01/1960, p. 06.

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segmentos mais fortes, a empresa Gás Butano instalou sua fábrica na região em 1951 e logo iniciou suas operações. Depois vieram as multinacionais64. Curiosamente, as grandes empresas eram as que ameaçavam de forma mais direta a natureza e as que menos empregavam os homens da região. Priorizam pessoas alfabetizadas e requerem um quadro de funcionários altamente especializados. “Essas empresas davam prioridade mais às pessoas que tinha alto grau de estudo. Porque as pessoas daqui a maior parte era pipoqueiro, pescadores. Área pobre mesmo! Acostumado ir pra Beira Mar vender sua bebidazinha no seu carrinho, pipoquinha, etc. Se essas indústrias dessem valor às pessoas que morassem aqui na favela, na área aqui seria muito bom”65.

Na fala dos moradores, percebe-se o abismo que por vezes parece existir entre o bairro e a indústria ao lado. Os trabalhadores recrutados nas imediações desempenhavam serviços essencialmente braçais, eram o pessoal do “baixo escalão”, enquanto a mão-de-obra mais especializada provinha toda de fora da região. É lógico que, numa região portuária, havia trabalhadores especializados como operadores de guindastes e do maquinário moderno. E mais, pouco a pouco, disseminou-se a cultura da especialização profissional e a do letramento escolar. A necessidade de escolarização, sobretudo, advinha do premente desejo de uma capacitação técnica da mão-deobra. Nesse sentido, configurou-se tanto um quadro social de organização comunitária em função do mercado de trabalho, até então restrito, quanto se operou intenso processo de treinamento profissional dos jovens fora do bairro. Prevalecia, porém, a admissão nos serviços de capatazia, de carregadores, empilhadores e conferentes, bem como nas tarefas de vigilância, portaria, limpeza e manutenção. Havia inclusive aqueles que eram empregados na venda e distribuição de botijões de gás e latas de querosene nas poucas habitações onde o morador dispunha de fogão ou podia comprar querosene em quantidade maior. Nesse caso, a mercadoria tinha de ser transportada às costas, já que não era possível o tráfego de veículos sobre as areias ainda não pavimentadas. Além disso, as oportunidades traziam consigo os riscos inerentes à própria atividade industrial. Isso significava na prática a ocorrência de inúmeros acidentes com o manuseio de 64

Segundo o Informativo da Companhia Docas do Ceará, as seguintes empresas são atendidas pelo Plano de Emergência no Mucuripe: Esso Brasileira de Petróleo, Petrobras (Lubnor), Petrobras (BR Distribuidora S.A.), Companhia Brasileira de Petróleo Ipiranga, Shell Brasil S.A., Texaco Brasil S.A., Companhia Ferroviária Nordeste (CFN), Agip Liquigás, Nacional Gás Butano, Locaequipe Serviços e Transportes (aeronaves), Grande Moinho Cearense, Moinho Fortaleza J. Macedo Alimentos S.A., além de outras empresas, como as de pesca, menores. 65 Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003.

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produtos e equipamentos de trabalho não habituais. Ali se instalara uma indústria moderna, movimentada por uma tecnologia considerada de ponta e, no entanto, os acidentes se tornaram rotina entre a classe trabalhadora, não acostumada ao maqunário moderno. “Trabalho na plataforma, eu trabalho no grau máximo de ‘risco quatro’ né, eles chamam de ‘risco quatro’, quer dizer, que é uma área totalmente perigosa, inflamável e sem condições de expectativa de vida, a qualquer momento pode estar envolvido num acidente”66.

Também é perceptível a alteração na rotina diária de trabalho. José Osmir trabalha como pintor industrial numa plataforma de petróleo. Ingressou num emprego em que era necessária a realização de uma gama de cursos para obtenção de uma especialização formal: “É preciso muita coragem, muita técnica, muita força e acima de tudo ser profissional!”67. O entrevistado trabalha em um tempo específico; para receber um mês de salário, precisa passar quinze dias no mar, podendo permanecer o restante do tempo em casa, e precisa estabelecer um ritmo de trabalho diferenciado. Além das indispensáveis preocupações, há a exigência de uma adaptação física singular, que possibilite a organização de uma vida à base de feituras mecânicas sobre uma plataforma no meio do oceano.. Pelo ramo de atividade industrial do Mucuripe, altamente inflamável, os perigos se acumulam no trabalho e no lar, o potencial de risco do bairro é certamente dos mais elevados da cidade. “Morreram três indivíduos (...) os caras foram tirar gasolina, olha como era fácil um acidente, uma tragédia. Porque o nosso bairro é cheio de gasoduto, sabe, nosso bairro é uma bomba mesmo (...) pra azar deles faltou energia na hora (...) os três rapazes morreram porque faltou energia na hora, e foi na hora que o navio mandou a carga de gasolina pelo gasoduto”68.

Nas narrativas, fica evidente que o imaginário do bairro está carregado de episódios trágicos; em várias circunstâncias, vidas foram ceifadas, os incrementos do progresso e a riqueza econômica se fizeram, muitas vezes, banhados no sangue dos trabalhadores locais. “(...) o guincho, o guindaste, aquilo ali ele tava desativado há muito tempo, estava enferrujado então resolveram explodi-lo pra num ter risco de perigo, mas acabou tendo perigo porque no dia da explosão morreram quatro pessoas. Num sei se foi negligência ou sei lá, só sei que botaram dinamite lá e explodiram, foi pedaço de ferro pra todo lado. Nesse mesmo dia morreram quatro trabalhador”69.

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Entrevista concedida por José Osmir Monteiro de Souza ao autor em 28/01/2003. Ibidem. 68 Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003. 69 Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2003. 67

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A indústria passa a sangrar os trabalhadores, a mutilar seus corpos. Muitos jovens apresentam deformações físicas visíveis provocadas pela má utilização dos equipamentos industriais; outros, após pouco tempo de serviço, são precocemente aposentados por invalidez. O progresso tem na morte uma espécie de cara-metade70. As mortes no mar, os naufrágios, os afogamentos somam-se às mortes em terra. A morte no mundo do trabalho, aliás, é uma realidade que se somou ainda às mortes à bala, nitidamente sentidas nas estatísticas da violência local. Nesse lugar pairava agora a idéia de que não se pode vacilar. “(...) pescador que morreu afogado, teve pescador que morreu afogado. Aqui na construção do Titanzinho teve motorista que morreu também (...) que a caçamba ia jogar as pedras e vacilou, num saiu de dentro do carro e caiu com pedra e tudo. Eu num tô lembrado bem dos outros tipos de acidentes, mas tem. Morte de violência também existe, à bala. Eu já vi muita gente morrer também aqui, bala, faca e assim vai”71.

Com o advento de uma rede de eletricidade mais estável, novas empresas se instalaram. Três grandes moinhos de beneficiamento de trigo passaram a funcionar a todo vapor e novos armazéns para estocagem da farinha de trigo foram construídos no local. Também na década de 60, durante o período áureo de captura da lagosta destinada à exportação, foram construídas várias empresas de pesca de grande porte. No desenrolar de toda a segunda metade do século XX, grupos de trabalhadores se instalaram na região concomitantemente às empresas. Na comunidade do Serviluz, os moradores mais antigos viram a tecnologia industrial se instalar no quintal de casa, com máquinas e motores, tubulações e tanques. Os trens, os navios e os caminhões continuamente carregados indicavam uma alteração importante no ritmo de vida local. Ainda que esses elementos, característicos do progresso que se fazia concreto, apareçam nas narrativas vinculados apenas à geração de emprego e renda na região, eles certamente assinalam novas formas de vivência do tempo e novas modalidades de organização das culturas.

2.4 A indústria de fogo

No que concerne ainda ao processo de industrialização, é impossível esquecer que a comunidade do Serviluz nasceu espremida entre as marés do litoral leste da cidade e um 70

“(...) é legítimo inferir que o desenvolvimento técnico tem no acidente mais que um simples desvio ou exceção à regra; este é parte constitutiva do próprio aparato técnico”. Cf.: SILVA FILHO, Op. cit. p. 22.

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amontoado de empresas que lidam com materiais altamente inflamáveis. Os primeiros casebres, de pobreza e fragilidade gritantes, foram erguidos sobre os morros de areia frouxa e sobre as tubulações de gás, o que faz sugerir o perigo constante em que essas pessoas viveram, e ainda hoje vivem. As terras do velho Mucuripe em pouco tempo se tornaram tão belas quanto assustadoras. A interação permanente com a natureza não constituía a única especificidade do lugar. Algumas pessoas do bairro têm a clara convicção de que os principais motivos de a especulação imobiliária não terem se apossado da praia são: o constante deslocamento da areia, capaz de soterrar construções; e as empresas de gás e combustível, cujo fogo se tornou uma ameaça. O homem moderno já tinha posto ali suas indústrias. O barulho das ondas do mar se intercalava agora com a sirene das usinas; a intensa maresia da praia se misturava ao forte cheiro de gás; bebia-se água com gosto de querosene. O fogo, a areia, o vento e a água constituem elementos que denotam a especificidade do bairro na cidade e apontam também para a construção de estratégias de sobrevivência e desenvolvimento de culturas intimamente relacionadas às condições da natureza. Mas, de modo geral, a natureza do litoral do Mucuripe não era mais apenas encanto e poesia. A praia fora praticamente tomada de seus primitivos habitantes. Seus arredores abrigavam os perigos dos terminais das distribuidoras de combustível e os riscos das tubulações aéreas e subterrâneas de uma área pontilhada de contrastes. Notadamente o Mucuripe se tornara belo e assustador. De forma curiosa, as classes trabalhadoras conseguiram significativas infiltrações urbanas no espaço almejado pela burguesia local. Pela quantidade de recursos aplicados, a área leste da cidade, diferentemente da concentração operária da zona oeste, estava destinada tanto à indústria petroquímica quanto à verticalização imobiliária. De modo geral, Fortaleza caracterizou-se pela ausência de planejamentos urbanos mais amplos por parte da municipalidade. Apresentando-se como uma cidade cujo crescimento econômico fez-se em meio à formação de numerosas áreas de risco, abrigos compulsórios da população de baixa renda, a cidade consolidou-se pontilhada de visíveis contradições sociais. Mas o que significa exatamente morar nos arredores de um terminal de gás? No primeiro grande incêndio, ocorrido em julho de 1980, as chamas chegaram a mais de 50 metros de altura, consumindo milhares de litros de combustíveis da empresa Shell. Todos os esforços possíveis e imagináveis foram empregados no combate ao incêndio, que irrompeu

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Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2003.

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em pelo menos sete tanques no terminal da Shell, localizado na Esplanada do Mucuripe, onde estavam acumulados mais 10 milhões de litros de gasolina72. Os jornais anunciavam com afinco o maior incêndio já ocorrido no Ceará. Uma maratona de guerra se passava na região. Recrutas foram chamados às pressas, técnicos e contingentes de apoio foram convocados do interior e de outros estados. Um avião Hércules da Força Área Brasileira foi deslocado de Recife para combater o fogo que ameaçou também as demais companhias petrolíferas. Durante os trabalhos, cinco soldados do Corpo de Bombeiros foram internados no hospital da corporação, vítimas de intoxicação e queimaduras causadas pelo enorme calor no local73. Na Assistência Municipal, deu entrada uma criança, vítima de atropelamento ocorrido quando o menor, em companhia da mãe, tentou atravessar uma rua nas imediações do desastre. Havia sido justamente no momento em que muita gente correu ao ouvir a explosão do segundo tanque de gasolina74. A polícia militar isolou a área e o tráfego de transportes foi desviado. Caminhõestanques não conseguiram abastecer e a falta de gasolina afetou gravemente diversos setores da cidade. Pelo noticiário, a cidade de longe acompanhou que o retorno das famílias afastadas não estava previsto, porque não se sabia quanto tempo se gastaria para debelar totalmente o fogo que tomou as imediações75. Nos casebres localizados na área mais próxima à indústria, a situação foi muito pior. Casas ficaram fechadas; algumas abandonadas às pressas e deixadas abertas, foram alvo da pilhagem de aproveitadores. A polícia de plantão registrou pelo menos cinco prisões76. “O caso foi tão sério que após o primeiro dia de fogo aí a polícia montou um esquema de segurança, ficou fazendo ronda no bairro e alguns moradores ficaram tomando conta de suas casas (...) porque a população abandonou o bairro, porque foi um incêndio que assustava, a gente sentia a temperatura do fogo, uma quintura (...) assustava mesmo (...) muita gente foi robada levaram televisão, levaram som porque os ladrões aproveitaram (...) foi um dia mesmo de terror (grifo nosso) para a população do Serviluz”77.

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Jornal O Povo, em 29/07/1980. p. 08. Jornal Tribuna do Ceará, em 29/07/1980, capa. 74 Jornal O Povo, em 29/07/1980, capa. 75 Durante a pesquisa, foi comum ouvir referências de moradores de outros bairros da cidade sobre esse incêndio. Muitos citadinos tiveram como divertimento a contemplação do “espetáculo” de cores das labaredas de fogo que podiam ser focadas de longe. 76 Jornal Tribuna do Ceará, em 29/071980, p. 04. 77 Entrevista concedida por José Carlos da Silva ao autor em 08/03/2005. 73

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Causador de pânico generalizado, o fogo aterrorizou milhares de moradores das zonas adjacentes, que, apavorados, evacuaram suas casas por vários dias. Pela localização do Bairro Serviluz, entre o fogo e o mar, tudo se tornou mais desesperador ainda. Experiência traumática, esse episódio indicava o quanto custava aportar nesse lugar de oportunidades que surgiu em Fortaleza. O bairro não era mais o mesmo. Os perigos concretizaram-se, tornaram-se uma realidade trágica. Em 1993, dessa vez na empresa Gás Butano, um segundo incêndio irrompeu. Os moradores afirmaram que se viam botijões de gás voarem e os estilhaços perderem-se de vista. As explosões provocavam barulhos ensurdecedores novamente, “você jurava que o Serviluz ia todo pelos ares”78. No segundo sinistro, no entanto, não apenas a força do fogo, mas também o susto dos moradores parecem ter sido menores. Dessa vez muita gente optou por ficar em casa e utilizar a estratégia de somente abandonar o domicílio caso o fogo passasse de uma empresa para outra. Treze anos após a primeira tragédia, os moradores possuíam tanto a experiência anterior de abandono quanto, aparentemente, um pouco mais de confiança no sistema de antifogo das empresas e do Corpo de Bombeiros. Mas era impossível esquecer o local em que estavam instalados. Constantemente, ainda hoje, ocorrem pequenos sustos, focos isolados, falsos alarmes que disparam e simulações que se repetem. Devido ao fogo, muitas pessoas do bairro foram embora, o incêndio na verdade aparece como ponto limite de uma contradição: aqueles que conseguissem com o fogo conviver teriam um sono relativamente tranqüilo, pelo menos em relação à ameaçadora especulação imobiliária. O fato é que o conjunto industrial atraiu imenso contingente de migrantes a toda essa região. Mesmo tendo a indústria uma demanda por mão-de-obra relativamente reduzida, a possibilidade de conseguir emprego de carteira assinada ou mesmo um mero biscate em uma grande empresa atraía muitas pessoas. Esses trabalhadores se instalavam de forma precária, quase sempre nos muros das indústrias ou na beira da ferrovia. Nessa atmosfera de projetos e relações sociais conflitantes, para certa elite política e econômica de Fortaleza, devido, principalmente, ao investimento maciço de capital e recursos externos, o espaço onde se operava a ação desses trabalhadores adquiriu grande importância. Isso nos possibilita indagar sobre a existência de uma possível relação de “reciprocidade”, ainda que bastante desigual, entre Estado, iniciativa privada e os imigrantes, na formação dos núcleos habitacionais nos arredores do Porto do Mucuripe. Caso contrário, parece bastante

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Entrevista concedida por José Carlos da Silva ao autor em 08/03/2005.

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óbvia a expulsão dos pobres das chamadas áreas de risco, como ocorreu em muitos dos grandes centros urbanos brasileiros. Na cidade de São Paulo, Raquel Rolnik sugeriu que diante da desigualdade social e da mutiplicidade cultural, urbana se constitui (...) um pacto territorial paralelo à propria legislação, que admite que existam coisas irregulares, ilegais, e até destina determinados espaços da cidade – normalmente os espaços mais desqualificados, distantes, desurbanizados, longíncuos – para essas coisas ilegais acontecerem. E que esse é um pacto que, ao mesmo tempo, permite que a maior parte das pessoas resolva seu problema da moradia por sua própria conta e, ao assim fazer, não tensiona todo o esquema político de denominação79.

Ora, desde a concepção, a existência de um conglomerado habitacional, numa região mais afastada daquelas áreas escolhidas pelas elites da capital e que, ao mesmo tempo, se situava próxima às novas fábricas, parece uma evidência clara de que os empreendimentos nesse espaço visavam tanto solucionar problemas urbanos decorrentes de nova espacialização que se pretendia para Fortaleza quanto disponibilizar mão-de-obra fácil e barata. O que o Estado e o capital privado não planejaram foi que, para essa parte da cidade, sem um equacionamento urbano definido e num ambiente ecologicamente condenável, convergissem pessoas com identidades e culturas tão diferenciadas. Por outro lado, devido ao inchaço gerneralizado da cidade, o Bairro Serviluz acabou aproximando-se das áreas nobres da cidade. Além disso, as zonas de praia de Fortaleza não mais eram vistas como espaços desqualificados, mas como pontos revigorados pelo turismo em ascensão. Envoltos nesse ambiente socialmente transformado, os moradores de beira de praia de Fortaleza desenvolveram também a noção da mutabilidade sistemática da paisagem. Se o homem remodela a seu bel-prazer a natureza, a certeza de que as coisas na cidade não são estáticas torna-se muitas vezes uma condição, fazendo aflorar um homem capaz de mudar e se transformar juntamente com a natureza.

2.5 A Fortaleza do turismo e da especulação imobiliária

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ROLNIK, Raquel. Lei e política: a construção dos territórios urbanos. In: Op. cit. Projeto História, nº. 18. p. 140.

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Durante um longo tempo, ignorou-se o encanto das praias e o prazer do banho de mar em Fortaleza e somente muito tardiamente, de modo mais preciso no despontar do século XX, a cidade abriu-se para o seu litoral. Segundo o historiador francês Alain Corbin80, um conjunto de imagens repulsivas associadas às águas oceânicas, construídas desde a gênese bíblica, impediu a emergência do desejo da beira-mar no mundo ocidental. Não faltam episódios na mitologia e na literatura clássica que reforçam a visão negativa do litoral como receptáculo dos excrementos do mar e esconderijo dos monstros. No entanto, é na própria teologia cristã que se inscreve uma nova noção apaziguadora do litoral como espaço que tranqüiliza o homem, lugar onde Deus, em sua infinita bondade, dispôs o oceano para o bem-estar das criaturas. Assim, a partir do século XVII, operou-se uma mudança que veio possibilitar um novo olhar sobre esse território, fazendo emergirem as figuras iniciais da admiração do mar que motivarão, entre outras coisas, a prática da viagem turística. Doravante as elites sociais buscam aí a ocasião de experimentar essa relação nova com a natureza; encontram aí o prazer até então desconhecido de usufruir um ambiente convertido em espetáculo (...) espera-se do mar que acalme as ansiedades da elite, que restabeleça a relação harmoniosa do corpo e da alma (...) que corrija os males da civilização urbana, os efeitos perversos do conforto, embora respeitando os imperativos da privacidade81.

Corbin observou com maestria como, desde o século XVIII, se operou uma espécie de “invenção” da praia, que despertou o interesse pelo mar como um verdadeiro fenômeno social. A partir desse momento, na Europa Ocidental, liberou-se uma paixão pelos panoramas marítimos e os turistas passaram a experimentar a emoção de ver o mar. Surgiu então uma íntima vinculação entre o estado de alma e a paisagem, a partir do qual o espectador passa a viver a emoção provocada pelo sublime espetáculo da natureza. Ocorre assim o alargamento dos modos de apreciação cenestésica do litoral que constitui um acontecimento fundamental na história da sensibilidade. O equipamento turístico multiplica e vulgariza uma experiência antes reservada às populações litorâneas, dando novas feições às tradições mantidas secularmente nesses lugares. No Ceará, o crescimento ganancioso do mercado da especulação imobiliária e o inchaço demográfico desordenado propiciaram nas últimas décadas o acirramento dos 80

CORBIN, Alain. O território do vazio: a praia e o imaginário ocidental. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 81 CORBIN, Alain. O território do vazio: a praia e o imaginário ocidental. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 74.

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enfrentamentos entre pobres e ricos pelas áreas litorâneas. Nesse sentido, as zonas de praia se tornaram espaços conflituosos, marcados por duas lógicas distintas: uma representada pelos usos tradicionais (o porto, a pesca e a habitação dos pobres); outra, pelas novas práticas marítimas, notadamente os tratamentos terapêuticos da brisa, os banhos de mar e o veraneio82. No mesmo período, a utilização do litoral para fins terapêuticos também induziu a ordenação do banho de mar, bem como a regulamentação dos usos da praia. Em Fortaleza as novas práticas marítimas, representativas dos hábitos europeus apropriados pelas elites locais, suscitam um tímido movimento de urbanização das zonas de praia83. Na Praia de Iracema, a partir dos anos 1920, ampliou-se a frequência de pessoas da elite que se deleitavam sob o sol escaldante e que edificaram ali suas casas de veraneio. Na cidade, por muito tempo, a praia foi um lugar desaconselhável para as pessoas de bem. O mar era o lugar do porto e do transporte de mercadorias, suas praias serviam basicamente de depósito de lixos e excrementos. O litoral, por isso, esperou longo tempo para que suas areias fossem em definitivo incorporadas à realidade da vida urbana. A partir dos anos 1970, com a intensificação do turismo, além das já referidas transformações no mundo do trabalho pesqueiro, a especulação imobiliária também avançou sobre o litoral de Fortaleza. Aquela primitiva aldeia de pescadores da enseada do Mucuripe logo se transformou numa espécie de “selva de pedra” luxuosa onde jangadeiro pobre já não podia mais morar. A segregação espacial e a maquiagem no espaço urbano tornaram Fortaleza uma cidade para inglês ver. À medida que foi chegando o turista, o pescador foi sendo obrigado a sair. O resultado desse processo é a concretização de uma cidade que construiu espaços de lazer e equipamentos de luxo para os turistas e as elites locais, mediante a destruição de valores e tradições culturais há tempos sedimentadas, aumentando ainda mais a desigualdade, a exclusão social e o avanço da degradação do meio ambiente já iniciado pela indústria. O turismo tornou-se a nova vedete econômica do estado e os investimentos no setor crescem ano após ano. Através do antigo Centro de Turismo, criado em 1975, e do atual Programa de Desenvolvimento do Turismo do Ceará (PRODETUR-CE), em parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e com o Banco do Nordeste do Brasil (BNB), o Governo do Estado tem gastado milhões em obras vultuosas e numa política de marketing que visa divulgar uma suposta vocação turística do Ceará. 82

DANTAS, Eustógio Wanderley Correia. Mar à Vista: estudo sobre a maritimidade de Fortaleza. Fortaleza: Museu do Ceará, 2002. p. 57. 83 Op. cit. p. 46.

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Dessa forma, a orla configura-se como locus privilegiado de visitações. O discurso oficial fala de um turismo diversificado, visando garantir o desenvolvimento integrado e sustentável da zona costeira cearense. A propaganda, no entanto, não consegue esconder a fragilidade em que se encontram os atores locais diante do avanço desenfreado do turismo de proporções globais, pois, ao invés de promover o crescimento econômico das localidades, resulta em degradação ambiental, favelização, desemprego, decadência da pesca artesanal e o desaparecimento das manifestações populares. Nesse novo contexto de Fortaleza, não é preciso muito esforço para perceber que as praias passaram a ter novas funções e novos freqüentadores. Na ponta do Serviluz, muitos dos personagens que não interessavam no novo cenário, criado para as elites, logo foram confinados aos casebres mais afastados da luxuosa Avenida Beira–Mar. Interessa aqui registrar as conexões entre turismo e prostituição no bairro. O investimento industrial, a energia elétrica de Paulo Afonso e a construção da nova Avenida Beira-Mar não foram as únicas obras de grande porte em Fortaleza; o período foi de grandes intervenções, tanto do Estado quanto da iniciativa privada, no processo de reordenação espacial de uma cidade que aspirava a ares de grande metrópole urbana moderna. A atividade turística ao que parece vem reforçar a idéia de uma cidade cosmopolita , ensejando mudanças na ordenação urbana que lhe permitisse a recepção do crescente fluxo de visitantes. A partir da incorporação da faixa litorânea à dinâmica urbana, por exemplo, salientou-se a transposição das funções hoteleiras do perímetro central da cidade rumo à Avenida Beira-Mar84. No decorrer dos anos 70, iniciou-se o processo de verticalização fora da região central de Fortaleza e pequenos edifícios de apartamentos foram construídos no Bairro Aldeota. O primeiro registro de ocupação em grande escala para o entorno do velho farol ocorreu no início dos anos 1960, quando aproximadamente 1300 mulheres85 que “ganhavam” a vida na antiga Rua da Frente, hoje Avenida Beira-Mar, foram remanejadas do seu local de moradia e trabalho para as proximidades do antigo Farol do Mucuripe. O conflito dessas mulheres na região era bem antigo:

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O primeiro grande estabelecimento destinado a fins de hospedagem, o Excelsior Hotel, um suntuoso prédio de sete andares, foi inaugurado em 31 de dezembro de 1931 e situava-se ao lado da Praça do Ferreira no centro da cidade. Já no princípio da década de 1970, o prefeito Evandro Aires de Moura baixou um decreto estabelecendo a distância de 20 metros entre um edifício e outro, a fim de amenizar os efeitos da corrida imobiliária na Avenida Beira-Mar e preservar a circulação dos ventos marinhos em direção à cidade. O decreto foi revogado na administração posterior. 85 Op. cit. GIRÃO, Blanchard. p. 206.

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Na zona portuária, no Mucuripe, começava a surgir a prostituição, e, por isso, em 1952, 600 mulheres foram ameaçadas de despejo pela Secretaria de Polícia, pois algumas famílias exigiram a transferência dos prostíbulos para outros lugares86.

A idéia era encurralar a prostituição de vários pontos da cidade, concentrada principalmente na área central e nas proximidades do porto antigo, para as imediações do farol abandonado “(...) onde não residiam famílias de classe média que pudessem ser perturbadas com a vida noturna dos cabarés”87. As prostitutas, grupo socialmente marginalizado, que faziam da orla o espaço para a garantia da sobrevivência, naquele momento representavam, aos olhares obcecados pelo progresso e pela moralidade, atraso e promiscuidade. A Avenida Beira-Mar (a primeira etapa foi construída em 1963) tornou-se o novo cartão-postal da cidade, que construía espaços de lazer e sociabilidade para as elites e se consolidava como pólo do turismo e da especulação imobiliária por excelência. Já na década de 1930, os prostíbulos davam um tom boêmio e violento às noites da cidade, constituindo múltiplos conflitos entre seus personagens. Os prostíbulos faziam parte de um cenário urbano específico, marcado por um tom boêmio, festivo e transgressor88. De certa forma, a vinda de personagens que animam a vida numa zona de meretrício para o Mucuripe passou a estigmatizar essa parte da cidade. Dentre esses personagens, foi sobre as “raparigas do Farol” que recaíram os mais pesados fardos da vigilância moral e dos abusos da violência policial. Na dinâmica do espaço urbano, as prostitutas foram obrigadas a criar diversas estratégias de sobrevivência. Na transferência para o Farol, apesar das pequenas indenizações, as mulheres não receberam recursos suficientes que lhes permitissem melhorar suas precárias condições de vida. O novo local era certamente bastante desprivilegiado. As condições encontradas pelas “madames” no deslocamento inicial, em 1961, não foram as melhores: (...) tal remoção não foi fácil, pois as ‘madames’ alegavam não ter um local disponível e adequado para seu tipo de negócio, sendo o Farol um local quase desértico e em péssimas condições. Não havia luz elétrica, água potável e calçamento, tornando bastante difícil o acesso ao local (...) A energia elétrica foi o único serviço prontamente instalado 89.

Mas foi com o meretrício que aconteceram os primeiros melhoramentos urbanos na área. Água, luz e telefone chegaram a uma região até então praticamente inabitada. Surgiu ali, 86

Op. cit. JUCÁ, p. 205. Op. cit. p. 206. 88 GUEDES, Mardônio. Pelas ruas e pensões: o meretrício em Fortaleza (1930-1940). In: Fortaleza: História e Cotidiano – Gênero. SOUZA, Simone e NEVES, Frederico de Castro (orgs.). Fortaleza: Ed. Demócrito Rocha, 2002. p. 53. 87

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ampliando os limites do velho Mucuripe, a zona do Farol, o primeiro conglomerado humano do Serviluz. Esse núcleo permaneceu aparentemente isolado por muito tempo, cerca de 300 metros formados de um lado e outro apenas por cabarés. Praticamente ilhado das áreas nobres da cidade, o Farol, quando não havia clientes, era somente observado pelos parcos casebres de pescadores. Aos poucos, seguindo a expansão da cidade para suas áreas periféricas, as pessoas foram se estabelecendo em direção ao antigo Farol do Mucuripe. Antes do porto, o farol era a única edificação localizada no extremo leste da cidade. Foi exatamente nas proximidades do farol que se formou o Bairro Serviluz.

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Op. cit. ANJOS JÚNIOR, p. 25.

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Capítulo II 2 Migração, trabalho e a transformação do Serviluz em uma comunidade multifacetada

Bem antes do fim da construção do porto, Fortaleza já se caracterizava pela intensificação do crescimento urbano acelerado, concretizado sobretudo pelo processo de inchaço e favelização. Na área leste, mais especificamente na região de dunas compreendida entre o atual Bairro Mucuripe e a Praia do Futuro, iniciou-se uma acentuada aglomeração de pessoas oriundas de outros pontos da cidade e, principalmente, do interior do Ceará. Após a ocupação de parte do litoral pelo porto e pelas fábricas, uma quantidade maciça de trabalhadores começou a chegar. Empregando dinâmicas sociais múltiplas, pessoas com distintas experiências de vida desenraizam-se, encontram-se, constroem projetos e requalificam seus espaços. Naquilo que foi possível, tentou-se seguir os caminhos que esses sujeitos trilharam para chegar ao local, bem como analisar as condições encontradas para a construção da sociabilidade nesse espaço. A partir da origem e da trajetória de vida migrantes, será possível dar sentido às diversas estratégias políticas para fixação na cidade, percebendo como as pessoas foram construindo a luta pela sobrevivência e o modo como vivenciaram as contínuas transformações urbanas. No lugar onde se constituiu a comunidade do Serviluz, a natureza era um elemento forte da vida urbana e, até o início dos anos 1960, a paisagem era praticamente formada de morro e mar, quase não havia presença humana. Ao lado do cais recém-construído, era bem reduzido o número de famílias que se alojavam além desses limites. Nos areais ao redor da outrora Esplanada do Mucuripe, mesmo após o aterramento iniciado pelo porto, as dunas de areia e as altas marés que antes revelavam a natureza exótica tornavam ainda o local inadequado à moradia. De modo um tanto grosseiro, é possível afirmar que a corrida humana, em larga escala, para o Serviluz pode ser dividida em dois momentos distintos: o princípio da década de 1960 e o início dos anos 80. No início dos anos 60, uma pequena área da praia já havia sido tomada sorrateiramente por pescadores retirados da área do porto. Nessa época, iniciouse também o período áureo da pesca da lagosta, atividade econômica que arregimentou muitos trabalhadores que chegavam à cidade para a região do Mucuripe. Aos que estavam em busca

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de empregos na capital, o mar oferecia ganhos numa atividade tradicionalmente já exercida por muitos desses migrantes. Além disso, a ocupação dessa área era facilitada devido à interseção da Colônia de Pescadores junto à Capitania dos Portos, a fim de se conceder parte do terreno de marinha para habitação dos pescadores; esta, aliás, tornou-se uma estratégia eficaz de ocupação. Ainda nesse período, as atividades portuárias criaram a necessidade de moradia para os trabalhadores do cais. Na região do Serviluz, foi então disponibilizada uma pequena vila, localizada bem próxima ao porto e que cresceu em paralelo à linha férrea desativada, a Estiva. Apesar do volume de operários do cais residentes no bairro, a quantidade de trabalhadores do porto que habitavam essa área é bastante imprecisa. Tudo indica que, pela precariedade das habitações e pela ausência de serviços urbanos mínimos no período, os estivadores, com razoável padrão aquisitivo, preferiram residir em áreas mais urbanizadas da cidade; muitos continuaram morando nas proximidades do porto antigo. Diferentemente das migrações ocorridas para o bairro em fins de 1970 e princípios de 1980, quando houve uma variedade bem maior de trabalhadores dedicados a profissões urbanas, na década de 60, o Serviluz foi tomado sobretudo por pescadores e prostitutas. Essa característica fundante do bairro foi tanto uma conseqüência da segregação espacial imposta às camadas pobres da cidade quanto uma clara demonstração de que os pobres não foram totalmente expulsos da praia, quando essa passou a ser economicamente valorizada.

2.1 Farol, os “de dentro” e os “de fora”

“Farol, designação inadequada para abrigar quem vive sem uma luz a indicar-lhe o futuro”.

(Blanchar Girão) A tendência das elites urbanas de Fortaleza de escolherem determinadas áreas para se resguardar das massas urbanas criou cidades diferenciadas dentro da mesma cidade. Esse não era um processo novo. Desde os anos quarenta, novos bairros foram sendo criados com a finalidade de abrigar as classes mais abastadas. No processo de divisão espacial da cidade, foi significativo que a população de baixa renda também construiu seus abrigos em vários pontos. A zona de meretrício do Farol foi um deles.

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Diferente do Serviluz, o cenário do Mucuripe, apesar de abrigar um complexo portuário e industrial, foi um franco alvo da especulação imobiliária, que cresceu vertiginosamente à época. A praia não comportava mais somente as funções de carga e descarga e o fluxo marítimo. A natureza foi apropriada pela sociedade de consumo sob a forma de moradia de luxo. Naquela paisagem bucólica, a luz da Avenida Beira Mar indicava que por ali havia passado o progresso. Mais que isso, as luzes vinham dar visibilidade a novos tipos de sociabilidade que floresciam com a energia elétrica. As cenas arcaicas que o cineasta norte-americano Orson Welles captara na enseada do Mucuripe não tinham mais sentido. Nesse meio século de história, as jangadas e os homens do mar praticamente desapareceram da praia e os coqueirais foram substituídos por imensos arranha-céus. O cenário não comportava, sobretudo, a prostituição que, desde o início das obras portuárias, havia se alojado nos arredores. A transferência da zona de meretrício para os confins da esquina leste da cidade, escondida atrás do porto, indicava que nessa área estigmatizada, devia-se isolar a pobreza e a prostituição. A prostituição exercida em bordéis, nesse caso, configura-se como um tipo especifico de trabalho, diferente, por exemplo, do meretrício praticado na rua. São poucos os estudos que sistematizam a problemática do surgimento da prostituição em Fortaleza. As cores da noite quase sempre são cobertas pelas imagens sombrias da “podridão”, do mundo profano e da degradação moral dos “corpos sem lei”. A igreja, por exemplo, condena essa prática porque fere a tradição familiar cristã. O sexo, assim, é concebido exclusivamente como meio de reprodução humana, entre a esposa e o marido, e não como um modo de trabalho90. Espaços localizados, os bordéis foram, ao longo do tempo, alvos de campanhas públicas por parte da vizinhança que exigia, desde a época do Mucuripe, o distanciamento No pensamento moralizador ocidental, temas como a não virgindade, condição da prostituta, são condenados, fato que se reflete, inevitavelmente, no trabalho. “Nas leituras da Igreja Católica sobre a prostituição, o que se observa é a ênfase em um paradigma de prostituta como ‘tipo ideal’ para desenvolver o raciocínio baseado no pecado, na impureza, na devassidão, na podridão”. No entanto, “historicamente na nossa sociedade, o cabaré tinha como uma de suas principais funções a iniciação sexual do homem, preservando as ‘moças de família’, que deviam permanecer virgens até o casamento”. Cf.: SOUSA, Francisca Ilnar de. O Cliente: o outro lado da prostituição. São Paulo: Annablume; Fortaleza: Secretaria da Cultura e Desporto, 1998. p.114 e 41. 91 ANJOS JÚNIOR, Carlos Silveira Versiani dos. A Serpente domada: um estudo sobre a prostituição de baixo meretrício. Fortaleza: Ed. UFC, 1983, p. 24. Trata-se de um dos poucos trabalhos acadêmicos que enfocam o bairro. A pesquisa, no entanto, não é específica sobre a zona do Farol em Fortaleza, mas um estudo comparativo das características dessa com as zonas de baixo meretrício do “Posto Fiscal” em Brasília. O autor realizou a pesquisa de campo entre março e julho de 1980, privilegiando os dias de sexta a domingo devido à maior concentração de mulheres. Utilizou ainda a estratégia de entrevistar as prostitutas em outros dias da semana, sobretudo à tarde, nos quais, devido ao descontraimento das mulheres, era possível investigar melhor o cotidiano dos cabarés. 90

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entre as casas de prostituição e as “famílias de bem”. As preocupações com a regulação da conduta sexual e a discriminação social aumentam quando o trabalho prostituinte é desempenhado numa zona especifica, onde o estigma pode ser geograficamente exercido. A prostituição, contudo, nem sempre se opõe aos aspectos familiares vigentes; ao contrário, pode inclusive reforçar a estrutura familiar tipo nuclear. Trata-se de uma atividade que agrega, tanto quanto não dispersa, seus agentes. No bairro, as prostitutas eram mulheres que cumpriam muitas vezes um duplo papel, materno e paterno, indo ao cabaré para preservar (leia-se sustentar) boa parte da sua família. Nesse universo, acordos silenciosos podem ser estabelecidos; “há prostitutas e prostitutas”. Em pesquisa sobre a então nova zona de prostituição do Farol do Mucuripe, Versiani91 colheu 12 (doze) entrevistas, das aproximadamente 400 (quatrocentas) existentes à época, com mulheres do Farol. Segundo o autor, uma das dificuldades da pesquisa de campo era a predisposição negativa das mulheres em narrar suas histórias de vida, pois as prostitutas estavam geralmente saturadas de enquetes do Serviço Social e de entidades filantrópicas. Nesse sentido, além da cautela do pesquisador, o respeito para com as informantes mostrou-se essencial no processo de aproximação das depoentes. O conhecimento do mundo da prostituta, no entanto, dependia não apenas das informações extraídas diretamente das prostitutas, mas envolvia uma gama de informações pertinentes a outros “atores coadjuvantes no drama” que, apesar de pertencentes ao mundo “de fora”, partilhavam o espaço físico do Farol. Isso se deu porque a população do Farol constituiu um “caleidoscópio” de marginalidade urbana, mostrando profunda mistura entre casas de família e casas de prostituição. De acordo com Anjos Júnior, cerca de 90% das mulheres do Farol eram oriundas do interior do estado ou de estados nordestinos vizinhos. Pelo tipo de profissão que exerciam, muitas mulheres preferiam “ganhar a vida” fora do local de origem. Grande parte ingressava nessa atividade após a experiência da perda da virgindade, antes do casamento, em lugares onde essa prática é mais severamente condenada. A atração de jovens migrantes e a freqüente renovação do contigente de prostitutas ampliavam-se de acordo com o movimento na zona portuária. A permanência de “estrangeiros” no cais aumentava significativamente o volume de dinheiro na zona e o ganho das prostitutas. Comparando-se a outros serviços braçais, nos quais a remuneração é sempre

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irrisória, os ganhos no Farol eram incomparavelmente maiores, sobretudo quando ocorria a ancorada de navios no porto de Fortaleza. Na instalação dos cabarés do Farol, foi grande a importância das madames (proprietárias ou gerentes dos estabelecimentos) que negociaram diretamente com o prefeito a transferência dos prostíbulos, tornando-se, durante o histórico de fixação, proprietárias das casas. Mantendo importantes vínculos com a prostituta, em geral é a madame que viaja pelo interior recrutando as mulheres para os bordéis; preferem jovens interioranas, consideradas comportadas e fáceis de manipular pela pouca experiência. Além da mão-de-obra feminina, as madames tinham o hábito de empregar homens no bar onde serviam, eventualmente, como seguranças do estabelecimento92. À medida que a área foi ficando violenta, esses homens passaram cada vez a ser contratados na própria localidade. Em termos de equipamentos urbanos, o Farol era composto de cerca de 70 (setenta) cabarés, que geralmente abrigavam entre quatro e seis mulheres cada. Ali eram oferecidos serviços de bar, espaço dançante e aluguel de quartos93. Além das casas noturnas, nas adjacências, era possível encontrar botecos que vendiam produtos para o consumo interno. No entanto, era ainda mais comum a venda de produtos de casa em casa, onde eram oferecidos alimentos, perfumes, cosméticos e roupas. Como os marítimos pagavam os serviços em dólar, comerciantes e cambistas do local compravam o dinheiro estrangeiro e, aos poucos, o comércio local começou a florescer. O isolamento do Farol pretendido tanto pelas administrações municipais quanto pelos ricos locais, entretanto, contrastava com a efervecência e a quantidade de visitantes que freqüentavam regularmente o lugar. “Nessa época os cabarés eram freqüentados só por estrangeiros, americanos, franceses. Tinha boate que só freqüentava americano, brasileiro não tinha vez (...) o Farol era um local que as mulheres tinham status, as mulheres viviam bem, vestidas, bonitas (...) quer dizer, ganhavam dinheiro, muitas aproveitaram, algumas fizeram pé-de-meia, casaram, umas foram morar na Alemanha, algumas ficaram aqui, sabe. Mas o Serviluz os cabarés eram freqüentados exclusivamente por gringos”94.

As cenas descritas pelos moradores escapam aos desígnios almejados pela segregação espacial. Uma variedade de sons, cores e luzes nutria ali múltiplas relações. Tudo indica que as visitações ao Farol não se davam apenas pelo movimento dos cabarés e toda sua boemia, a 92

Anjos Júnior afirma que os “gigolôs” no Farol, podiam ser contados cerca de 50 (cinqüenta) na década de 80, serviam como “leões de chácara” ou como protetores e/ou exploradores das meretrizes. 93 Ainda segundo Anjos Júnior, os cabarés principais recebiam denominações como Moulin Rouge, Estrela do Mar, Morning Light, A Deusa do Mar, Rastro, Corujão, Sumaré, Brisa Mar, Mocambo da Fafá, Discotec, Boite da Eunice etc. Op. cit. p.26. 94 Entrevista concedida por José Carlos da Silva ao autor em 08/03/2005.

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praia pouco habitada apresentava ainda uma paisagem bastante convidativa. “A sociedade de Fortaleza se divertia aqui”, enfatizou um entrevistado. Recebiam-se muitos turistas, praticantes de esportes náuticos e pescadores de fim de semana, a praia foi um excelente espaço de lazer. No Serviluz, as lembranças do mundo da prostituição não se limita ao universo da pobreza e da promiscuidade; ao contrário, apresenta sinuosas relações sociais que agregam valores e criam territórios. A partir do Farol, no então reduzido povoado do Serviluz, deramse intensas negociações e disputas entre os de “dentro” e os de “fora” desse circuito. A zona de prostituição levava o nome do farol desativado que foi transformado em museu, e, mesmo sendo alvo de preconceito devido à sua localização, o Farol do Mucuripe foi durante certo tempo um importante ponto de visitação turística da cidade. Nos depoimentos, percebe-se que várias personalidades de Fortaleza e estrangeiros endinheirados se misturavam alegremente às mulheres e aos pescadores que residiam nos arredores. O “acolhimento” tornou-se uma prática econômica e cultural importante para a comunidade. Altos funcionários das multinacionais em estadia na cidade, muitos dos quais também estrangeiros, tinham nessa localidade a possibilidade de diversão e entretenimento ao lado da empresa em que trabalhavam. Com toda essa movimentação, não apenas as casas noturnas lucravam, o pequeno comércio local cresceu consideravelmente, “minha mãe comprava dólares”95, e as pequenas mercearias foram se transformando para atender um público exigente e diversificado. De modo curioso, são igualmente comuns as lembranças dos episódios em que os pescadores disputavam, em pé de igualdade, o direito de usufruir o comércio no Farol com pessoas de elevado poder aquisitivo. “Por incrível que pareça no passado o pescador tinha moral, porque ganhavam bem. A lagosta dava dinheiro. O pescador chegava no cabaré, a zona como nós falávamos na época, ele disputava pau a pau com os gringos, com o pessoal que vinha de fora que gastava em dólares, porque o dinheiro era fácil (...) o pescador, o pescador artesanal, também tinha muita aceitação porque naquela época o pescador ganhava muito dinheiro, a lagosta né? Tinha abundância”96.

Nesses depoimentos, ainda que essa tenha sido uma situação relativamente efêmera, a condição do pescador figura bem diferenciada daquela tradicional imagem de pobreza, quase indigência, a que já se referiu. A imagem do pescador podia, inclusive, emergir como a de um 95

Ibidem. Entrevista concedida por José Carlos da Silva ao autor em 08/03/2005. 97 Depoimento de Lúcia, do Brisa Mar. Cf.: ANJOS JÚNIOR, p. 88-89. 96

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“príncipe encantado”. Muitos homens do mar podiam proporcionar uma vida mais segura às mulheres da zona e essa era, via de regra, a condição mais palusível para a fuga do meretrício. “Se o cara é bom pra mim e me dá conforto e eu gosto dele, eu largo mão disto e vou ficá com ele. Mas eu prefiro se for pra casar, casá mesmo, de papel e juiz, porque aí a responsabilidade da coisa é bem maior. Aí eu posso cuidá dele, dos filhos, tudo que a mulher faz ... quando o homem gosta mesmo, ele casa” 97.

Nesse contexto, os pescadores ainda em boa situação financeira podiam usufruir os serviços sexuais prestados na zona. Os “lagosteiros”, por exemplo, eram capazes de pagar o alto preço das bebidas, das mulheres mais bonitas e dos quartos mais luxuosos, um conjunto inacessível para a maior parte dos moradores do bairro. Apesar disso, notavelmente as mulheres do Farol preferiam os marinheiros, considerados menos grosseiros e mais generosos no pagamento dos serviços oferecidos. Mas se o universo do bairro era, em certas circunstâncias, permeável ao cotidiano do meretrício, também era forte o desejo de se resguardar do convívio de sua agitação. “Daquela área pra lá depois das nove horas em diante não tinha mais possibilidade de pessoas de menor ir pra lá, entendeu? Não tinha. Oito horas, nove horas já não ia mais (...) e as mulheres casadas iam, mas o pessoal comentava muito. Eu nunca tive isso não, eu sempre ia porque onde meu marido tava, eu nunca tive medo de ir (...), mas era um negócio muito quente, muito quente, quente mesmo. Homens despidos, mulheres também, era uma... como é que se diz, uma... um lugar mesmo reservado, muito quente tá entendendo? (...) praticamente isolado (...), mas pra cá também eles num passavam, nem elas nem eles, eles num passavam né, era como assim um muro de Berlim (...)”98.

Há, de certo modo, nas entrevistas colhidas entre os moradores, uma tendência geral ao apagamento da memória da prostituição no bairro. Isso implica reconhecer o Farol como um espaço reiteradamente rejeitado e compreendido por alguns como uma espécie de mancha negra na história do lugar. Em termos práticos diários, durante o dia era até comum que os moradores andassem entre os cabarés, afinal foi em função do meretrício que energia elétrica, telefone, farmácia, chafariz e outros serviços foram prontamente instalados no local. À noite, no entanto, o espaço ganhava sons e agito, sendo quase sempre malvisto no seio da comunidade. Escolas, associações e outros núcleos comunitários que foram se formando no bairro aconselhavam os pais a não permitirem que os filhos freqüentassem a zona de prostituição. Os mais velhos lembram quando a Kombi do Juizado de Menores começou a vigiar de modo mais acintoso a entrada de crianças na zona de prostituição. A violência desencadeada no

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Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.

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Farol e a marginalidade crescente no seu entorno provocaram uma preocupação exacerbada dos pais no que se refere à criação dos filhos. Quando o bairro foi crescendo em termos populacionais, adolescentes começaram a quebrar a tradicional rotina familiar e a criar novas formas e espaços de sociabilidade; o poder da juventude aumenta ao mesmo tempo em que sobre ela recaem com mais força os discursos da Igreja e a ideologia do trabalho. A prostituição, nesse contexto, constituía um péssimo exemplo. O isolamento na zona de prostituição tornou-se também uma espécie de elemento de identidade. Instaurou-se no bairro a possibilidade de ser “confundido” com o outro, com o diferente, com o comportamento considerado imoral e por isso anormal. “Naquela época existia um tabu. Por exemplo, uma moça, uma senhora casada não podia andar naquela área, porque se andasse naquela área era confundida (grifo nosso) com prostituta. Existia essa divisão. Aí foi justamente por causa disso que dividiram o Farol do Serviluz. Mas só que o Farol está contido no Serviluz e o Serviluz contém o Farol (...) pensavam que todas mulheres eram iguais. As mulheres casadas, as moças num podiam andar naquela área, principalmente à noite”99.

. O forte isolamento mantido por alguns moradores locais e registrado na cidade como um todo em relação a esse espaço não consegue silenciar as permutas e os intercâmbios existentes. Havia um reconhecimento tácito de que, apesar das opções de vida das meretrizes, estas tinham procedências semelhantes à maioria da população local e o ganho com a prostituição, supostamente fácil, era uma condição necessária à sobrevivência. “A maioria delas eram garotas que vinham do interior, chegava aqui não tinha trabalho e entrava nesse ramo de vida. É como diz o ditado a vida é fácil né? Na época tinha mulher que fazia quatro, cinco programas. Amanhecia o dia com muito dinheiro, muito dinheiro mesmo. E quando pegava um gringo ou marinheiro ganhava até em dólar ganhava”100.

O reconhecimento dessa atividade como um meio de sobrevivência cruel e doloroso aparece como motivação central para uma eventual união entre mulheres dos bordéis e pescadores nativos. Diferentes das mulheres que viajaram para lugares distantes, as mulheres resgatadas por homens locais, ao serem levadas para o lar, acabam engendrando transformações comportamentais importantes na própria comunidade. Passando a morar muitas vezes na própria vizinhança, essas pessoas assumem quase sempre o papel de dona de casa; criar filhos e cuidar do domicílio eram suas novas atribuições. Essa mistura 99

Entrevista realizada concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002.

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Entrevista realizada concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002.

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contingencial tende a transformar inclusive a vigente concepção de família, já que é a mulher que passa a administrar a estabilidade do lar. Para os moradores, inevitavelmente, o encontro nesse universo estava diariamente colocado. Várias mulheres da noite, por exemplo, alugavam casas ou quartos no bairro para descansar durante o dia, acontecia que muitas farras saíam dos prostíbulos e terminavam nos botecos e até mesmo nas habitações locais. Esse intercâmbio possibilitou que turistas de várias nacionalidades se casassem ou simplesmente fizessem laços de amizade com os moradores. O desejo de conhecer o mundo claramente processou-se em função dessa interação. Nesse caso, as oportunidades criadas no meretrício, obviamente, não eram visadas somente pelas mulheres vistas na comunidade como mundanas. Não sendo esse um estudo mais específico sobre as relações sociais estabelecidas no meretrício, coube enfatizar a importância da constituição inicial de fronteiras invisíveis, condições limites, a demarcar onde e que tipo de pessoas podiam circular, indicando assim os usos sociais de determinados espaços. Existiam tanto barreiras quanto interações. Os termos “de dentro” e “de fora”, por isso, são muitas vezes incapazes de comportar as mesclas ocorridas no improviso cotidiano local. O esforço de definição do “de fora” tomou ainda mais impulso com o aumento demográfico e o surto de criminalidade no bairro. O tempo da caminhada tranqüila e do dinheiro correndo fácil expirou. Até princípios dos anos 1980, a violência não era deliberada e, apesar da generalizada discriminação, sobre esse lugar prevalecia ainda a fama da hospitalidade, do acolhimento, da diversão. Estrangeiros que desciam do porto aproximavamse e misturavam-se às mulheres sob as luzes dos bordéis, a “Las Vegas” do Ceará. O bairro cresceu, em parte, devido à renda proveniente dos freqüentadores. Mas aos poucos se esvaiu aquela atrativa imagem de paraíso. Além dos clientes e meretrizes, a entrada da polícia, antes somente acionada para solucionar pequenos conflitos e desentendimentos no local, passou a ser rotineira. A Secretaria de Segurança Pública do Estado expedia os alvarás de funcionamento dos prostíbulos, encarregando-se também da manutenção da ordem. Na zona do Farol, o destacamento policial age sobre as prostitutas de maneira indiscriminada, procurando em seus mínimos deslizes um motivo para espancá-las e confiná-las às grades (...) Não é raro que uma prostituta tenha que prestar, sob coação, serviços sexuais gratuitos para um policial a fim de obter determinados favores em situações criticas101.

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O bairro cresceu desordenadamente e aquele reduto de pescadores passou a ser visto como uma perigosa favela. As mudanças no perfil do bairro e o preconceito que este passou a inspirar na cidade envergonhavam sobremaneira os moradores. “(...) E pra lá a gente nem sabia quando acontecia uma morte, uma coisa, porque também era difícil, agora é muito mais fácil (...), mas brincavam por lá a vontade principalmente quando chegava navio, marinha né?, esses navios eram muito chegados aqui e... às vezes acontecia fato de matarem marinheiro, marinheiro desaparecia, isso pra gente aqui, a população ainda era pouca, isso pra gente era como se fosse uma coisa muito grande (...) teve uma época que mataram dois marinheiros, amanheceram mortos naquelas pedrinhas né? , dois corpos ali, vixe Maria! foi uma coisa quase que o bairro acaba, quase que aqui acaba, mas de violência não, de tristeza entendeu? (...)” 102.

O Farol passou a ter uma rotina de assaltos e mortes que o levaram ao declínio quando chegou à “época da marginalidade”. Sintomaticamente, a percepção dessa transformação repentina no ritmo de vida local é com freqüência atribuída à zona, fazendo emergir daí uma espécie de memória ressentida desse espaço. A decadência do Farol está ainda relacionada ao surgimento de novas e sofisticadas áreas de prostituição na cidade. À medida que os clientes preferenciais ausentaram-se, os donos dos bordéis passaram a investir cada vez menos na contratação de garotas jovens e formosas. Essas, por sua vez, procuraram novos lugares próprios à prostituição. O aparecimento avassalador do vírus da aids também contribuiu para a diminuição generalizada no mercado do sexo, pois a crescente preocupação com doenças e epidemias esvaziou gradativamente os bares e quartos de aluguel. Fatores externos à atividade da prostituição favoreceram o declínio do fluxo de visitantes, como o surgimento de novas atrações turísticas na cidade e a diminuição dos marinheiros descidos no porto. O sistema portuário moderno, de estivagem em contêineres, por exemplo, passou a permitir um trabalho de carga e descarga mais veloz, diminuindo o tempo de permanência do marítimo em terra. À medida que este trabalhador não mais precisava permanecer quinze enfadonhos dias na cidade, alterou-se também a rotina dos que lhes prestavam serviços, inclusive de prostituição. Por outro lado, se o volume de marítimos da marinha mercante diminuiu, os transatlânticos de luxo carregados de passageiros aumentaram, mas esses turistas não mais incluem o bairro como ponto a ser visitado. Ao contrário, ao passo que o bairro foi tornando-se perigoso, as próprias autoridades portuárias encarregaram-se de criar mecanismos a fim de evitar a ida dos turistas à praia do Serviluz. 101 102

Op. cit. ANJOS JÚNIOR. p. 35. Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.

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Em meio à crise, tornar-se uma madame ainda era uma expectativa para muitas mulheres, pois significava a diminuição do trabalho e o aumento do prestígio que extrapolava os domínios da zona. A pressão no cabaré se manifestava, por exemplo, na chegada de navios, quando os clientes eram esperados na entrada do cais, uma verdadeira batalha: “Aí, eu parti pra cima dela. Ela tava com uma gilete no dedo e tão aqui os cortes (mostrando o pescoço e o braço). A sorte dela é que ela já saiu daqui, senão eu tinha matado ela”103. Na prostituição, conhecer as regras de convivência do meio, como a não delação, por exemplo, é código fundamental para conseguir viver sem afrontas com as companheiras. Também é comum que no ato do trabalho as mulheres utilizem “nomes de guerra” ou que não se metam na briga entre duas pessoas do local, ao mesmo tempo; numa possível richa entre um “de dentro” e um “de fora”, rapidamente se toma partido. A concorrência deixa marcas no corpo, as agressões físicas com navalhas, giletes ou garrafas quebradas visam principalmente partes do corpo como face ou seio, deixando cicatrizes que marcam profundamente uma mulher, depreciando-a no trabalho devido à dilaceração física visível. Numa atividade cujo ganho advém do aluguel do corpo, os ganhos podem aumentar de modo substancial segundo os jogos sexuais, propostos, quase sempre, pelo próprio cliente. A prostituta precisa desenvolver a consciência de que o bom estado físico é fundamental, um “cartão de visita” para fechar bom negócio; seu ganho diminui substancialmente à medida que envelhece ou que aparenta desgaste físico. De modo geral, o tempo hábil para o trabalho é bem curto. Nem sempre é possível aplicar os necessários cuidados corporais e as preocupações com a saúde e com a estética são comprometidos pelos desgastes contínuos e acelerados dos corpos. A alimentação deficiente, a ingestão contínua de álcool e as noites em claro deixam marcas, claramente perceptíveis à luz do dia. Apesar das ambigüidades emanadas da prostituição, para alguns moradores foi uma pena que o bairro não tenha tido estrutura suficiente para firmar-se como destino turístico, nem mesmo no ramo de prostituição. Lamentam não ter aproveitado a grande movimentação, o rico passado histórico, a bela natureza e a vocação hospitaleira do povo, não ter se antecipado ao futuro que apontava para o turismo como grande projeto de Estado. Apesar da desigualdade em que se encontravam socialmente o nativo e o visitante, boa parte da população de baixa renda entende essa mistura com o pessoal “de fora” como um fator

103

Depoimento de Cleonice. Cf.: Op. cit. ANJOS JÚNIOR, p. 68.

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positivo. Nos depoimentos, é significativo que os estrangeiros, bem mais que os ricos da terra, eram vistos como alavancas, capazes de ajudar a superar as necessidades primárias do bairro. Os turistas podiam ser vistos como promovedores de apadrinhamentos, amizades e outros laços afetivos, práticas que parecem se perder quanto o tradicional hábito de visitação tornouse uma mercadoria.

2.2 A Praia Mansa

Como foi dito anteriormente, até os anos 60 e 70, o Serviluz era um pequeno conglomerado de pescadores e prostitutas. Existia ainda uma pequena vila, a Estiva, sendo esse espaço geograficamente integrado. Na primeira rua do bairro, a Zezé Diogo, onde haviam sido instalados os cabarés, ficava também o Campo do Paulista, espaço de futebol e lazer freqüentemente assolado por inundações. Como bem lembrou um morador, “o Serviluz parecia uma cidadezinha” onde os morros de areias e uma fina grama verde, a salsa, completavam o espaço. Pouca gente, pouca luz e pouco lixo. Nas imediações do porto, a construção de novos espigões de pedra e o aterramento de parte da orla, necessários à ampliação do complexo portuário, fizeram recuar o mar e acalmaram o avanço das marés. Tornou-se habitável uma pequena faixa de praia, a chamada Praia Mansa (ver mapa), que passou a abrigar casebres de pescadores e biscateiros remanescentes da pesca. A partir da segunda metade da década de 1970, essa região foi sendo lentamente tomada por várias famílias, muitas das quais já estabelecidas na capital e que viam na praia a possibilidade de trabalho e ocupação de um terreno da Marinha. Na ilha, criada artificialmente, as casas eram de madeira e cobertas de palha de coqueiro, pois a Companhia Docas não permitia a edificação de alvenaria. Localizada ao lado da antiga usina do Serviluz, a Praia Mansa pouco apresentava vestígios de ocupação, o local era bastante preservado, pouco aparentando que, ao lado dos barracos, vultuosos investimentos industriais tinham transformado a paisagem. Não havia água encanada e tampouco energia elétrica. Sitiadas, as pessoas mais antigas lembram-se de uma única televisão, alimentada por bateria, uma novidade do mundo urbano, ainda bem estranho àquela realidade. A televisão, em preto e branco, fora uma aquisição de um morador da praia, um mecânico de lanchas, e passou a servir de entretenimento à população. Nas casas, cheias e

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apertadas, os novos espectadores eram obrigados a assistir à programação em pé, na frente da janela. No Serviluz, já existiam alguns poucos aparelhos de televisão, mas ao sair da Praia Mansa, os moradores enfrentavam o incômodo percurso de ida e volta para casa, sobretudo à noite, no escuro, tendo que atravessar o paredão de pedra que cercava o lugar. Nessa jornada, o mar se jogava sobre as pedras e a maré banhava os transeuntes; em alguns horários, o banho de mar era certo e o indivíduo corria o risco de ser arrastado pelas águas na escuridão. Na praia funcionava um porto de barcos de pesca onde, segundo depoimentos, chegavam a ancorar até 200 pequenas embarcações. Os moradores da praia, entretanto, já não eram os proprietários das embarcações, mas mesmo os que não eram pescadores formais eram constantemente recrutados para a realização de pequenos reparos. Empregava-se ali uma mãode-obra genuinamente familiar, “todos se conheciam”, “praticamente a mesma família”, pois a maioria dos habitantes foi trazida pelos pescadores mais velhos em tempos de boa pescaria. Mantinha-se ainda na Praia Mansa, quando tudo indicava o fim da atividade de pesca na região, a tradição comunitária pesqueira. De modo bastante claro, configurou-se naquele espaço a convivência de uma mutiplicidade de temporalidades históricas. Vale novamente resssaltar que a idéia da fartura no mar, entre essa gente, contrastava com a lembrança da calamidade sofrida em terra. O abrigo naquela praia foi para muitos uma questão de sobrevivência, “a maioria dos que vieram do interior, vieram pra cá porque tavam passando necessidade devido a uma seca que teve há uns tempos atrás”104. Calamidade e prosperidade, entretanto, comumente intercalam-se: “Saíram de lá à procura de algo melhor aqui e encontraram um canto tranqüilo lá na ilha”105. A tranqüilidade da Praia Mansa, contudo, não era exatamente absoluta. Os moradores estavam vivendo sobre uma natureza modificada e que por vezes se revoltava. Quando a maré crescia muito, transbordava até as pedras de proteção e inundava os casebres, sem segurança; as casinhas ficavam sempre na iminência de desabar, inclusive com a água da chuva. Em 1977, mais um deslocamento maciço começou a ser executado nessa região. Dessa vez, a comunidade de pescadores e pessoas incorporadas às atividades pesqueiras da Praia Mansa foi retirada compulsoriamente dos seus casebres. As pessoas desocuparam aquele canto de praia e foram, ao lado das prostitutas expulsas da antiga Rua da Frente, reinstaladas no entorno do Farol abandonado.

104 105

Entrevista concedida por Mauro Sérgio Domingues ao autor em 18/05/2005. Ibidem.

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A comunidade da Praia Mansa, ou Titan, estava localizada praticamente dentro do Porto do Mucuripe, em uma área de segurança da Companhia Docas do Ceará. Os casebres, apesar de instalados ali havia já alguns anos, foram desalojados. Tudo indica que a transferência foi devida a um suposto aumento das instalações portuárias. A Capitania dos Portos, que já vinha há cerca de três anos ameaçando a derrubada das habitações, sem nenhum tipo de indenização, concretizou as ameaças. Esse foi um primeiro momento de intensa mobilização dessa comunidade. Através de alguns vereadores, os moradores apresentaram seguidos requerimentos para que fossem feitos apelos ao Governador do Estado, Adauto Bezerra, a fim de que este conseguisse, além de uma ajuda financeira, um local onde aquelas pessoas pudessem fixar suas novas residências. É importante salientar como, nas famílias desse nível social, era possível que cerca de três mil pessoas conseguissem residir em aproximadamente 300 barracos, uma média de dez indivíduos vivendo sob cada teto. É bem difícil precisar essa população em números, como no caso das mulheres do Farol, porque as estatísticas quase sempre deixam escapar a realidade fugidia de quem migra. O surto populacional foi um fenômeno que se repetiria no Serviluz quando, mesmo com a área toda ocupada, a população não parava de crescer. “Agora se desenvolveu por quê? Porque esses familiares a maioria são do Acaraú (município criado em 1849 e distante 238 km de Fortaleza), então começaram a construir suas casas, depois das casas construídas, aí vem um sobrinho, vem primo, vem irmão, vem cunhado e assim a população foi aumentando (...)”106.

O “resgate” silencioso dos familiares tornou-se uma prática recorrente. Na Praia Mansa, na casa de alguns pescadores, habitavam até três famílias. Em alguns casos, era maior que quinze o número de moradores em um mesmo domicílio, tudo isso se dava numa pequena localização onde não existia nenhuma escola e nem energia elétrica. No limiar de 1980, esta era uma população que ainda vivia a luz do candeeiro brabo. Na transferência para o Serviluz, a Companhia Docas cedeu pequenas indenizações: “A Docas planeou o terreno, loteou para cada família 12 (doze) metros de comprimento por 6 (seis) de frente. Esses 6 (seis) metros de frente nós fazia as casas de 5 (cinco) metros de casa e ficava meio metro de cada casa, pra num ficarem conjugadas (...) eles doaram vara, que não era de tijolo, barro, as madeiras e as telhas para cada morador”107.

106 107

Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002. Entrevista concedida por Maria Ferreira Dias ao autor em 30/06/2006.

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Os moradores construíram a mão suas próprias residências. Prevaleceram, portanto, as habitações com o padrão de construção de taipa, um modelo arquitetônico usualmente conhecido pelos sertanejos desde o período colonial, mas bastante rudimentar. Com o terreno plano e limpo, enfiavam-se as varas no chão, entrelaçando-as e enrolando-as com náilon ou arame até atingir a altura desejada, em geral as casas são baixas. Montado o esqueleto, as paredes são cheias com o barro molhado, arremessado e modelado com as mãos. Prontas as paredes, algumas casas recebem telhas; noutras o teto será de palha e o chão feito de terra batida. Tiveram que matar as dunas para construir as casas e os moradores perceberam de imediato que a apropriação dessa área, cujas condições ambientais específicas eram inadequadas, colocava-os em risco constante de morte. O perigo dos ventos, da areia, do mar e do fogo tornou-se uma realidade ameaçadora. Nesse ambiente, uma simples queda de chuva causava perigo porque levava o barro das paredes; os reparos nessas construções demoravam somente até o próximo temporal. Nessas circunstâncias, aconteceu que muitos moradores da praia foram morar em bairros mais afastados do grande Mucuripe. A migração de caráter familiar da Praia Mansa refletiu-se diretamente no tipo de sociabilidade que se instaurou no bairro. Nesse lugar portuário, aparentemente marcado pela idéia da dispersão, o apego ao espaço e o convívio diário com a vizinhança se tornaram um grande valor social. “Pra ser sincero eu num troco esse bairro aqui por nenhum outro bairro da nossa capital não (...) essa rua que eu moro é só praticamente o pessoal que veio da Praia Mansa, praticamente a mesma família (grifo nosso)”108.

Nesse processo de ocupação, mantiveram-se solidariedades que conformaram uma base identitária da comunidade sustentada pela noção de familiaridade. Tradições renovadas e adaptadas aos novos sentidos que os aspectos de trabalho, domicílio e família passaram a significar. O episódio da transferência da Praia Mansa apresenta uma lacuna importante, mais precisamente o porquê de a Capitania dos Portos naquele instante ter se comprometido a proteger somente a categoria dos pescadores cadastrados e suas famílias. Isso indica tanto que muitos moradores viviam praticamente de outros subempregos quanto a idéia da identificação com a pesca como uma opção circunstancial. Esse detalhe da transferência suscita uma

108

Entrevista concedida por Mauro Sérgio Domingues ao autor em 18/05/2003.

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questão, talvez reveladora, quando se pensa a utilização da falsa identidade de pescador como meio de inserção nas áreas praianas de Fortaleza. Afinal, como foi que cerca de três mil pessoas, pobres e subempregadas, dentre as quais nem todas eram trabalhadores da pesca, conseguiram se infiltrar numa área tão restrita? Transferida da ilha para o Serviluz, a comunidade continuou a viver num lugar cuja localização geográfica provocava um grande e estranho incômodo. Ali os elementos da natureza pareciam confluir, fazendo operar uma lógica de moradia, às avessas; quanto mais próximo da água do mar se habitava, mais se estava sujeito à ameaça das areias e dos ventos; na beira da praia, percebia-se mais nitidamente como as intempéries naturais podiam impor sérias dificuldades à existência do homem. No Serviluz, principalmente nos meses de vento forte, era na beira do mar que mais se sofria “com a chuva de areia que invade nossas casas e tempera nossa comida”109. No decorrer do processo histórico de ocupação do Serviluz, a praia do Titanzinho correspondeu exatamente à faixa de praia que recebeu os pescadores oriundos da “barra mansa”, ou Praia Mansa. Ocupou-se a borda de terra que margeia o mar, a esquina leste de Fortaleza, onde as fileiras de casas foram estendidas sobre uma área de dunas aplainadas, a praia do Titanzinho110, terreno conseguido junto à Marinha por ocasião da retirada daquela população. Os pescadores, em condições de trabalho e moradia agora bastante diferenciadas daquelas em que viviam nos tempos áureos da lagosta, permaneceram na orla, mas tiveram de conviver mais diretamente com outras categorias de trabalhadores. Nessa região, instalou-se assim uma variedade de modos de vida que possibilitava a hibridez de múltiplas culturas. A migração em torno da pesca não se procedeu somente relacionada a laços familiares. Inúmeras experiências individuais marcaram também a experiência retirante de homens e mulheres fugidos para a cidade. Os deslocamentos a partir de estratégias familiares não devem ocultar a vivência migratória solitária dos jovens que cedo partem rumo à capital e em busca dos benefícios que esta supostamente oferece. Deve-se ressaltar que para alguns a mudança para a metrópole significou exatamente o rompimento, o desligamento familiar. Nesse meio, a quantidade desenfreada de filhos do casal restringe sobremaneira as oportunidades de melhoria social, e mesmo a garantia da sobrevivência no local de origem. Os mais moços, ao tentarem a sorte na cidade, acabam 109

Documento disponível no arquivo da Associação de Moradores do Titanzinho O nome Titanzinho é uma alusão a um grande guindaste de fabricação alemão usado na construção do primeiro espigão, o Titan. A máquina descarregava as pedras, transportadas por maria-fumaça, e as alinhava no paredão. Conta-se que, após a desativação, o Titan foi destruído e que, durante sua explosão, quatro trabalhadores morreram vitimados pelos estilhaços. 110

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dando início a um processo dispersivo que pode consolidar exatamente o esfacelamento da família tipo nuclear. Dona Conceição conta que chegou à cidade de Fortaleza em 1967, com quatorze anos de idade. “Então quando eu cheguei aqui eu encontrei uma dificuldade muito grande, porque ninguém dava apoio a gente ‘de menor’, crianças menores né? (...) não tinha condições, ninguém dava condições a ninguém, não tinha esse negócio. Hoje em dia tem! Você tem quatorze anos tem... um grupo tem uma coisa, você ganha uma coisa, ganha outra, hoje tem, mas nessa época não tinha” 111.

A certeza é a de que os tempos realmente mudaram. Como muitos jovens do bairro, dona Conceição praticamente “descobriu a vida” na cidade. Dos dezoito filhos que sua mãe teve, apenas dois permanecem vivos; foi criada pela avó e não se relaciona muito bem com a única irmã. Na experiência migratória, a aquisição da maioridade foi um momento especial. Há, sobretudo na fala dos mais velhos, o entendimento da redefinição das condições de uma criança em relação ao modo de vida deles. A criação diferenciada na contemporaneidade, nesse caso, é via de regra percebida com lamentação: “Infelizmente hoje, não podemos criar nossos filhos desse jeito, nem na educação, nem na fartura, nem no respeito dentro da casa da gente”112. Nos lugares onde reina a miséria, a memória da infância, como o instante do brincar e da diversão, alterna-se

à do sofrimento; eram vivências precoces da rotina adulta,

experiências da migração e do trabalho como situações antagônicas e depreciativas do homem.

2.3 A crise da pesca e o surgimento de novos trabalhadores

“Todo pescador tinha uma casa boa, tinha luxo, tinha carro, hoje não é mais assim. Pescador passa fome, passa necessidade (...) como a pesca praticamente acabou, ou seja, a pesca da lagosta, só tem o peixe. E hoje em dia se você for ver os pescadores do bairro sofrem. Hoje o que não saiu do ramo, hoje 111

Entrevista realizada concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003. Depoimento de Maria Ferreira Dias, dona Mariazinha, líder comunitário do Serviluz. Cf.: CEARAH, Periferia. Vivências, lutas e memórias: História de vida de lideranças comunitárias em Fortaleza. Fortaleza: Ed. Demócrito Rocha, 2002. p. 98.

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passa uma necessidade enorme teve que mudar de profissão (...) porque a pesca em si hoje no nosso bairro não é mais... é um meio de sobrevivência para aqueles que não conseguiram nada” 113.

Em meio ao surgimento de uma miríade de ocupações, atividade pesqueira permaneceu um dos principais meios de sobrevivência da população do Serviluz. A produção reduzida, no entanto, impossibilita que atualmente os trabalhadores tenham um padrão de vida compatível com o período anterior em que predominava a abundância na captura da lagosta. Um indício da queda dos rendimentos na pesca pode ser observado no fato de somente os mestres de barco, hoje, conseguirem patamares salariais equivalentes ao de outros trabalhadores de terra, como os estivadores e os operários da indústria. Apesar dos ganhos reduzidos, a pesca continuou tendo adesão entre os homens locais, principalmente porque a execução dessa atividade depende da prestação de numerosos serviços auxiliares. Emprega muitas pessoas, inclusive entre os que não possuem as habilidades de um exímio pescador. Tomando como exemplo a já referida pesca da lagosta, pode-se perceber que nesta empreitada se pode empregar praticamente toda a família. Enquanto o pescador vai para o mar, sua esposa pode trabalhar na empresa de beneficiamento do crustáceo. Os filhos em casa tecem o manzuá114. Com um ímã, o caçula recolhe as pontas de arame que são arremessadas ao chão ao corte do alicate. Com certa quantidade apanhada, busca-se vendê-las a peso na sucata que pagar o melhor preço. O filho mais velho pode ainda trabalhar no corte e na amarra da madeira a ser envolvida pelo arame tecido. Todas essas tarefas podem ser realizadas em casa, vigora um tipo de trabalho familiar coletivo. O dono da lancha passa semanalmente entregando rodas de arame, recolhendo o trabalho realizado e pagando pelo resultado da produção. Muitas vezes a soma da família gerada no lar é superior à do homem no mar. Esse é, no entanto, geralmente um tipo de trabalho que gera baixíssimos pagamentos. Além disso, a produção das telas de manzuá exige um esforço físico considerado pesado, as mãos e os dedos calejam-se do vaivém do arame deslizando sobre uma superfície de pregos fincados em uma lâmina de zinco, o alicate e as pontas de arame constantemente machucam as mãos. Diante de um pequeno cavalete, pouco acima da cintura, trabalha-se em pé, permanecendo horas nessa labuta. Uma das principais conseqüências desse tipo de serviço para o trabalhador é o desgaste violento. 113

Entrevista concedida por José Carlos da Silva ao autor em 08/03/2005. O manzuá, geralmente construído nas comunidades de pesca, é uma espécie de gaiola feita de madeira e arame. Essas armadilhas são lançadas pelas embarcações no ato da captura.

114

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A pesca intensiva, como se viu, foi responsável pela depredação marinha em escala planetária, levando à prática extinção de algumas espécies, como a lagosta115. O “mar não é mina”, o mar não é um bem inesgotável. A captura em larga escala fez com que, durante todo o século XX, vários países adotassem tratados de proteção e preservação dos cardumes, limitando a pesca de certas espécies em determinadas épocas do ano. É sabido ainda que o sistema de assalariamento por produção desenvolveu o espírito competitivo entre os pescadores; cada vez mais ávidos por ganhos maiores, embarcam em viagens que duram vários dias. No Serviluz o ecossistema possibilitou uma certa continuidade da pesca local. Mas apresentou como resultado do declínio econômico desse ramo o surgimento dos chamados pescadores-biscateiros116. Não conseguindo sobreviver apenas da renda proveniente do mar, esses homens foram sendo obrigados a complementar o ganho familiar com trabalhos auxiliares. Pescadores de praia e não de alto-mar utilizam linhas e pequenas redes, costumam reunir parentes, vizinhos e amigos da própria comunidade. A produção nem sempre é destinada ao mercado, servindo basicamente de alimentação aos familiares dos que pescam. A partilha, como foi dito, nem sempre é exata e obedece a laços de solidariedade externos à ação de captura. Trata-se de homens que se tornam “pescadores quando tem peixe”, porque, na maior parte das vezes, o sustento vem da feitura de pequenas tarefas, já que a pesca tornou-se um tipo de “bico”. A conciliação entre pesca e atividades secundárias, como a agricultura, consiste numa prática comum em muitas pequenas localidades pesqueiras do Ceará. De certa forma, essa foi uma tradição que se manteve entre os pescadores que migraram para a cidade, sobretudo nos lugares onde a pequena lavoura e o criatório de animais para consumo puderam ser mantidas117. Se a pesca continua arregimentando certa força de trabalho local, principalmente entre aqueles que não se escolarizaram, sua prática foi aos poucos reduzida. A crescente pesca

115

De acordo com a Lei 9.605-98, o Instituto do Meio Ambiente (IBAMA) considera crime a pesca da lagosta com tamanho inferior a 13 centímetros, o tipo vermelho, e 11 centímetros para as espécies verdes. Além disso, no “período de defeso”, durante os meses de janeiro a abril, a pesca do crustáceo é proibida. 116 Pescadores ocasionais que conciliam a pesca à execução de outras atividades. 117 No Serviluz, apesar da reduzida fertilidade do solo arenoso, os quintais foram amplamente aproveitados com essas práticas. Nas residências, no fundo dos pequenos terrenos, frontais ao mar, porcos, galinhas e outros animais destinados ao consumo doméstico dividiam espaço com o plantio de algumas fruteiras e hortaliças. 118 Arquivo do Sindicato dos Portuários do Mucuripe. 119 Criada em 1965, com o fim da construção do porto, a Companhia Docas do Ceará foi a primeira sociedade de economia mista a administrar um porto no país.

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industrial impunha novas exigências de mercado nesse ramo de trabalho; aos olhos dos jovens do bairro, parecia não fazer sentido estudar para continuar pescando quando havia inúmeras outras possibilidades profissionais nos arredores. Acrescenta-se ainda que os meninos da comunidade, inseridos nos programas assistenciais criados pelo governo, ingressavam automaticamente em novas áreas de trabalho, compatíveis com uma demanda por mão-deobra em setores da economia moderna, como a indústria, o comércio e o turismo. No caso do operariado do porto e da indústria, a constatação inicial da ausência de uma certa tradição sindical atuante no bairro não ocultava que a estiva e as fábricas empregavam muitas pessoas. Esses sindicatos em Fortaleza dificilmente podem ser tidos como instrumentos de emancipação dos trabalhadores. O Sindicato dos Portuários do Ceará, porém, dentre várias categorias, é uma entidade que ainda presta “assistência” a mais de mil trabalhadores em portos no estado do Ceará118. Em 1996, data da última greve dos estivadores do porto do Mucuripe, a Companhia Docas do Ceará praticamente impôs aos trabalhadores do porto um novo sistema de contratação de mão-de-obra. Com a criação do Órgão Gestor de Mão-de-obra (OGMO), e sob o discurso da racionalização do trabalho na estiva, os sindicatos cederam a administração da contratação do trabalho no porto, de suma importância para a categoria, entregando essa tarefa a um organismo sob a tutela direta da Companhia Docas119. Em última análise, a movimentação portuária moderna subordina-se às oscilações econômicas em escala mundial; ainda que os trabalhadores da estiva alcancem uma estabilidade maior que os da pesca, seus ganhos são sempre relativos e dependentes do número de navios que passam pelo porto. Fernando Silva120 observou que atualmente, em meio a embates sobre questões como a “modernização” (leia-se privatização) e a eliminação do chamado Closed Shop System121, os portuários continuam levando não só a carga, mas também boa parte da culpa pelas mazelas da política implantada e pelos principais problemas que concorrem para a ineficiência dos portos.

120

SILVA, Fernando Teixeira. A carga e a culpa. São Paulo: HUCITEC, 1995. p. 07. No Closed Shop System ou simplesmente “monopólio de estiva”, a contratação da mão-de-obra nas operações de estivagem e desestivagem de cargas do porto fica a encargo do sindicato. De acordo com Gitahy, “não é de surpreender que os estivadores fossem um terreno fértil para a solidariedade em quase todos os portos do mundo e que tivessem criado sindicatos na base do Closed Shop para neutralizar a insuportável ameaça do mercado de trabalho no sistema ocasional de contratação”. Cf.: GITAHY, Maria Lucia Caira. Ventos do Mar: Trabalhadores do porto, movimento operário e cultura urbana. São Paulo: Unesp, 1992. p.114. 121

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No caso do Mucuripe, o próprio porto hoje está em declínio. A partir da construção do novo terminal portuário na praia do Pecém, novamente uma das “mais modernas instalações portuárias do país”122, o estado do Ceará tem promovido esforços no sentido de retirar as funções portuárias de carga e descarga da praia do Mucuripe. Sob a ótica do novo projeto econômico, a enseada é muito mais interessante ao projeto turístico em andamento. Os estivadores, apesar da reduzida expressividade em termos de organização sindical, continuam uma categoria de reconhecido prestígio no bairro. Mesmo com as transformações modernizadoras nos portos, um portuário regularmente escalado para o trabalho percebe rendimentos consideráveis; em alguns casos, a realização de algumas poucas horas de trabalho pode lhe valer uma remuneração que, em outras profissões, lhe custaria pelo menos uma semana de trabalho. Mas há também no porto, sobretudo nos dias atuais, uma certa inconstância. Além disso, essa é uma área cuja força de trabalho se renova muito lentamente. Com a privatizaçãodo do recrutamento da força de trabalho, foi ainda revogada uma antiga tradição portuária na qual o filho mais velho de um estivador tinha garantida a vaga do pai aposentado. Na verdade, não somente o trabalho no mar e na indústria tornaram-se escassos, mas também o bairro foi invadido de tal maneira que dificilmente essas atividades seriam capazes de garantir emprego para tantas pessoas. Por isso, forçosamente, adere-se a novas formas de trabalho: “(...) Eu já fiz tanta coisa já! Já trabalhei in hotel, trabalhei in banca de revista, trabalhei in restaurante, já trabalhei como vendedor ambulante, mas o que eu gostei mais foi de trabalhá in hotel. Eu trabalhava na recepção do hotel e eu tinha contato direto com os turistas e os hóspedes que vinham se hospedar no hotel. Um pessoal muito interessante de várias partes do Brasil, de várias partes do mundo (...) era muito interessante, você aprendia várias coisas novas, o costume das pessoa de outro estado, o jeito de ser das pessoas de outro estado (...) e ainda tinha as gorjeta que a gente ganhava dos hóspedes. Eu levava as bagagens e às vezes eles davam presente (...) eu consegui comprar alguma coisa pra mim quando eu trabalhava no hotel”123.

Se antes eram principalmente a pesca e a indústria que atraíam a mão-de-obra, aos poucos os trabalhadores locais foram adentrando noutros setores da economia e exercendo novas profissões. Com o crescimento do turismo no estado, o ramo de hotelaria, por exemplo, passou a absorver uma fatia significativa da população, sobretudo entre os moradores de praia. Garçom, barman, cozinheiro, recepcionista, camareira, seguranças e muitos outros profissionais passaram a trabalhar em hotéis, bares e restaurantes cada vez mais entupidos. 122

Informativo Cearáportos, ano III, nº. 15, out./nov. de 2003.

123

Entrevista concedida por Mauro Sérgio Domingues ao autor em 18/05/2005.

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Para os entrevistados, entre outras diferenças, esses novos postos de trabalho tinham a vantagem da carteira de trabalho assinada. Esta oferecia garantias tanto quando se está empregado quanto no momento do desemprego, já que o registro da experiência profissional qualifica e facilita a aquisição de um novo emprego. À medida que aumentou a escolarização e que melhoraram as condições de transporte, os jovens do bairro puderam ainda trabalhar no comércio e noutros lugares que requeriam uma capacitação profissional razoável, acirrando ainda mais a dispersão no universo do trabalho. O próprio crescimento do bairro, motivado pela enxurrada migratória dos anos 80 em diante, possibilitou também o aparecimento de novos trabalhadores, voltados para as necessidades internas da comunidade que crescia. É o caso, por exemplo, dos padeiros, que surgiram concomitantes ao surto demográfico, e dos pedreiros, que despontaram juntamente com a ascensão da construção civil. Homens desempregados passaram a se profissionalizar na edificação de casas de alvenaria, uma febre que assolou recentemente o bairro. Serviços temporários para alguns, já que os “bicos” nem sempre aparecem; para outros, mais especializados, os novos ramos de trabalho significavam emprego o ano inteiro. Além disso, esse mercado informal também agrega uma série de tarefas para as quais não se exige quase nenhuma qualificação profissional. No referido setor de construção, por exemplo, os chamados “serventes” são pessoas sem escolaridade alguma e que desempenham, como auxiliar de pedreiro, um trabalho inteiramente braçal. Vale salientar que muitas vezes a sobrevivência da população pode ser garantida a partir da inventividade criativa gerada com os recursos disponíveis na própria localidade, como no caso da captura da sardinha, que, apesar de empregar uma força de trabalho eminentemente masculina, pode despertar uma extensa cadeia produtiva (pesca, compra e venda), capaz de envolver toda a família. Enquanto o homem pesca, em casa as mulheres secam, espetam e fritam as sardinhas ou “piabas”. Por sua vez, os jovens conduzem os espetinhos, consumidos como petiscos pelos turistas nas praias mais badaladas da cidade. Assim, se as circunstâncias históricas gerais possibilitaram o advento do turismo, coube à população praiana a capacidade inventiva de integrar a pesca ao turismo. Esse potencial criativo pôde ainda ser canalizado para o esporte que também se tornou um meio de sobrevivência para muitos jovens locais. O surfe, por exemplo, de esporte marginalizado, emergiu à categoria de profissão de destaque, conquistando uma fatia significativa de adeptos na comunidade. Na contramão das possíveis afirmações profissionais, foi recorrente a noção da efemeridade no mundo do trabalho, das “profissões curtas”. Mesmo em atividades como o surfe, que se caracterizam pela excelência no vigor

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físico, a dedicação total ao esporte por parte dos competidores não possibilita que se tirem os olhos de outros ramos de trabalho, nos quais eventualmente poderiam ingressar quando findarem os patrocínios. É consenso: “tem uma época que a idade pesa”. A mistura e as possibilidades postas no trabalho, de certo modo, impediam a análise desses trabalhadores pela via exclusiva de uma suposta divisão de classes. A circularidade permanente e a vastidão de tarefas que eclodiram nessa região configuravam uma realidade mais abrangente, a força operária entendida como a “classe que vive do trabalho”.

2.4 A seca e a cidade

De modo geral, o deslocamento das classes proletárias para as “areias” e a conseqüente construção da vida social da classe operária nesses espaços julgados “marginais” perpassam vários momentos da história da cidade de Fortaleza. No fim da década de setenta, porém, as migrações cresceram ainda assustadoramente; nesse período, as areias começavam a desaparecer e uma pequena parte da cidade começou a experimentar o asfalto. A ocupação do Serviluz, como observado antes, foi fruto tanto do deslocamento compulsório de grupos sociais há tempos estabelecidos, em função das novas funções econômicas da orla e do encarecimento da terra, quanto da chegada de muitos trabalhadores numa época de grande estiagem no Ceará. Em períodos de seca, a população do interior acredita mais veementemente que é na capital que poderá melhorar de vida. Fortaleza nesse caso se apresenta não somente como o delírio da mudança substancial das condições de vida, ela também seduz concretamente através da sua relativa magnitude e soberba, comparando-se, bem entendido, com as minimizadas perspectivas de vida dos vilarejos do interior do estado124. No início de 1980, os ofícios do governo deixavam clara a certeza de nova estiagem e de mais migração cearense em larga escala125. Segundo relatórios da secretaria do poder executivo, o Governo Federal pretendia aproveitar pequena parte dessa corrente, orientando-a 124

SANTIAGO, Pádua. A Cidade como Utopia e a Favela como Espaço Estratégico de Inserção na Cultura Urbana (1856-1930). In: Trajetos. Revista do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará. V.1, n° 2. Fortaleza, junho de 2002. p. 120. 125 Fundo Governador Virgílio Távora. Subsérie: Secretaria de Obras e Serviços públicos. Data: 1979/1982. Fortaleza-CE. Caixa 04.

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para a construção da Transamazônica, em que supostamente os pioneiros teriam apoio para que pudessem se fixar e progredir no Norte. Mas era preciso ainda dar confiança no futuro aos outros milhares de trabalhadores que permaneceram em seu “torrão natal”126. A situação de calamidade no estado se agravou nos anos seguintes. Em 1981, 123 escritórios de emergência foram criados nos municípios atingidos pela estiagem. Do total da população economicamente ativa do Ceará, pouco mais de um milhão de pessoas, pelo menos 255 mil trabalhadores já haviam sido alistados nas frentes de serviço do governo127. Sobre essa seca no estado, o historiador Frederico de Castro Neves ressaltou: Em 1982, pela primeira vez, as denúncias de ‘genocídio’ alcançaram todo o país. (...) As cenas terríveis da luta pela vida no sertão seco foram mostradas pela televisão em campanhas de solidariedade que se organizaram para ajudar as vítimas do ‘flagelo’. A ‘seca’ novamente aparece com toda a sua força real e simbólica no cenário político nacional e mobiliza campanhas e projetos128.

Em tempos recentes, apesar do descaso e das antigas práticas assistencialistas provisórias do Ceará, os retirantes que vinham para os bairros da capital chegavam em circunstâncias bem diferentes. Ao longo dessa trajetória, aqueles núcleos de pobres da cidade, a exemplo de ocupações mais antigas como a da favela do Pirambu, aprenderam a participar de uma imensa luta pelo reconhecimento, pela integração espacial e pela inserção social de seus moradores129. O migrante confrontava-se com autoridades, ocupava espaços e remodelava constantemente os traços da cidade. O espaço urbano configura-se também a partir do pontilhado de pequenas lutas, dos embates sorrateiros, das tentativas fugazes de fixação e da luta pela permanência definitiva. Nesse processo, a construção de uma cidade diferenciada passa muitas vezes pelo reconhecimento positivo da origem de quem migra: “A minha origem de um povo do sertão, basicamente agricultores, na minha origem se plantava milho, feijão, essas coisas (...)”130. Para muitos entrevistados, a gênese do entendimento da necessidade da luta pela moradia conforma-se exatamente quando se reconhece orgulhosamente a origem comum da vizinhança.

126

Idem. Idem. 128 NEVES, Frederico de Castro. A seca na história do Ceará. In: Op. cit. Uma Nova História do Ceará. p. 100. 129 Op. cit. SANTIAGO, Pádua. p. 127. 130 Entrevista concedida por José Osmir Monteiro de Sousa ao autor em 28/01/2003. 127

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Mas a cidade comporta diversas imagens e representações. O ato migratório, assim, estabelece distintas relações com a terra natal. Para alguns, a cidade é entendida como lugar de passagem efêmera no qual se busca apenas acumular para o necessário retorno. Para outros, vigora a idéia do “nunca mais voltei”, da criação de novos laços afetivos definitivos que ressignificam o local de origem como uma não referência, como um passado a ser esquecido. Porém, de modo geral, essa população desloca-se para os centros urbanos, trazendo como característica desse deslocamento o retorno, ainda que ocasional, para visitar a família deixada para trás131. Entre os que migraram para o Serviluz, após quatro décadas de luta pela fixação, opera-se atualmente uma espécie de contrafluxo, indicando exatamente o retorno definitivo das pessoas mais idosas ao seu lugar de origem, encerrando assim a trajetória na cidade. Geralmente esses migrantes já conseguiram acumular dinheiro suficiente para estabelecer pequenos negócios longe da metrópole; vendem ou deixam aos filhos os seus bens e partem para o interior à procura de uma velhice mais tranqüila. Esse contra fluxo é engrossado também pelos casos em que os pais enviam filhos problemáticos, considerados “envolvidos com quem não presta”, para lugares mais afastados, longe, portanto, das más companhias do mundo urbano. Ali tentam preservá-los das travessuras da cidade. Pouco a pouco, esses deslocamentos fazem reproduzir pequenos hábitos metropolitanos em lugarejos rurais, tornando comum o fluxo de idéias e de tendências entre esses espaços. As experiências díspares indicam que a própria condição do homem que migra deve ser repensada nos tempos atuais. Aquela cruel imagem cristalizada da família flagelada se deslocando em conjunto e peregrinando durante dias por longos percursos de chão rachado pouco apareceu nas entrevistas. No imaginário dos habitantes do bairro, a migração é majoritariamente compreendida como uma estratégia de aquisição de melhorias econômicas e sociais, sendo muito pouco usual a lembrança do flagelo. As condições dos retirantes não eram mais as mesmas das retratadas por Rodolfo Teófilo no passado. Havia novas rotas, novos meios de transporte e os caminhos tinham melhorado bastante. Em veículos motorizados correndo sobre estradas, levavam-se agora poucas horas para a locomoção de um

131

Sintomático desse retorno é a já tradicional prática de piqueniques com destino às localidades interioranas em festa. Anualmente, no carnaval, por exemplo, partem cerca de cinco ônibus lotados de passageiros que moram no Serviluz rumo ao município de Acaraú, no bairro é grande a quantidade de pessoas provenientes desse lugar.

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ponto a outro, a possibilidade da partida e do retorno rápido tornaram-se uma realidade cada vez mais plausível. A facilidade de vir para “dá uma olhadinha” figura como um dos motivos da recorrente feitura de breves reconhecimentos na cidade antes da mudança definitiva. Desse modo, as redes sociais baseadas na família e nos laços comunitários de amizade constituíamse como fundamentais para os migrantes. O entrevistado José Osmir contou que o pai chegou a Fortaleza em 1976, antecipando-se, portanto, em pelo menos dois anos em relação ao início da estiagem. Enquanto o chefe do lar procura trabalho, os demais membros da família permanecem no interior. Na cidade, o pai abrigava-se precariamente na casa de parentes ou amigos ou arriscava-se em moradias provisórias nos lugares onde pareciam ser maiores as oportunidades. Somente quando o pai arranja emprego, a família é chamada. Essa na verdade foi a continuidade de uma antiga prática, o migrante vem e logo retorna ao lugar de origem, prepara-se como pode e volta novamente para a cidade com o intuito de fixação definitiva. Foi o que se percebeu também no depoimento de dona Zuleide: “Eu vim porque o interior tava pouco chovido e a calamidade tava um pouco grande”132. Como já tinha o marido residindo e trabalhando na cidade, vendeu tudo que tinha e comprou as passagens para Fortaleza, onde esperava “formar meus filhos”. Observa-se nesse depoimento que a migração pode ser vista tanto como um ato de desespero, de quem na estiagem espera garantir na capital a sobrevivência, quanto uma atitude mais ou menos planejada, programada em família ou de quem pretende na cidade grande constituí-la. Na maior parte dos casos, o deslocamento significa o fracionamento provisório da família, pois a estratégia utilizada é migração parcelar. Nesse sentido, os espaços dos bairros acabam assumindo contornos de pontos de reencontro a partir da inserção no trabalho. Na cidade o emprego quase sempre não é fácil. “Eu arrumei esse emprego com uma dificuldade e até mesmo com uma briga com um juiz aqui de Fortaleza né?”133. Dona Conceição falou que foi barrada em várias empresas; não conseguindo emprego, resolveu procurar um juiz, pois sabia que precisava dialogar com uma “autoridade da cidade”. Nesse depoimento, ficou evidente a importância do reconhecimento mínimo do funcionamento e normas do mundo urbano. Mesmo sabendo que não tinha qualificação profissional para exercer qualquer tipo de trabalho, dona Conceição foi veemente: “Tenho dois pés, duas mãos e uma cabeça boa e uma grande vontade de aprender”. Sabia que naquele momento precisava também recorrer à pessoa exata. 132 133

Entrevista concedida por Maria Zuleide do Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003. Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.

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“Leve essa carta, seu registro vai ser essa carta”134. Com a recomendação concedida pelo juiz, dona Conceição conseguiu emprego, trabalhou durante sete anos na empresa de pesca Ipecea, fazia o beneficiamento de vários tipos de pescado destinado à exportação. No emprego ganhava, além do salário, uma gratificação pela quantidade de lagosta exportada: “Nessa época eu tinha vinte anos, eu já tinha casa construída, já tinha minha casa com terreno próprio, já tava bem”. Hoje, dona Conceição diz arrepender-se de ter deixado aquele emprego de lado para casar e cuidar da casa, nostálgica, acredita que se “tivesse uma família estruturada quem sabe hoje teria um negocinho”. O conhecimento sobre a situação de moradia, a sabedoria prévia do potencial do mercado de trabalho para as mulheres na área e o reconhecimento da importância da cultura letradas nessa etapa da vida foram atributos essenciais. No espaço suburbano dos bairros, ampliam-se as preocupações com as questões que permeiam a noção de cidadania. A necessidade de ter um registro é quase sempre a primeira obrigação nessa empreitada, afinal ser registrado é ser alguém que existe perante a lei. O registro é o pontapé inicial para a retirada de toda documentação, em caso de engajamento no trabalho, ler e assinar contratos são atividades básicas que servem como meio de proteção contra eventual exploração na empresa. No Serviluz, nos anos 80, as crianças do bairro passaram a ter seus registros expedidos também pelas associações comunitárias locais. Aos poucos, disseminou-se a necessidade do aprendizado da escrita e dos registros formais das relações associativas. Como a maior parte dos pais da comunidade têm sua naturalidade em municípios fora da capital, lugares onde pouco se necessitava desses papéis, documentos e letras podiam ser considerados necessidades secundárias. Na cidade grande, porém, juízes, cartórios e outros mecanismos que regulam a vida urbana tendem a assumir maior importância e a experiência do estudo na escola passa a ser sistematicamente valorizada. Para os pais, incentivar esse aprendizado tornou-se um elemento básico de inserção nas “regras” do jogo, condição da cultura urbana e de quem nele pretende “vencer”. No geral, o balanço da experiência migratória é visto como sinônimo de vitória. Nessas memórias, no entanto, a trajetória vitoriosa parece fazer-se sempre em meio a soluços de arrependimento e choro pela inexperiência no passado, a frustração de não ter sabido aproveitar as oportunidades oferecidas na juventude; tratam-se de pessoas para as quais assumir a família “saiu muito caro”.

134

Ibidem.

85

A vida na cidade certamente não diminui o prestígio pela vida familiar. Para muitos depoentes, a idéia do “fui resgatando a minha família” aparece como um desejo realizado e um motivo de profundo orgulho. O viver na cidade alimentou a necessidade de trazer os parentes para perto. Quando isso não acontece, o mundo urbano da favela servirá de palco para a construção de novos vínculos afetivos e para a formação de movimentos associativos de toda ordem. Na periferia, a construção dos laços de união e a solidariedade acontecem em meio à necessidade objetiva da ajuda mútua: “a gente foi construindo, eu trabalhei com eles as noites, né? Botava meus filhos pra durmi e ia pra lá, ajudar a carregar tijolo e tal, a gente construiu e eles vieram pra cá”135. Na cidade a população pobre quase sempre mora em bairros afastados, lugares onde a precariedade das habitações se confunde com as antigas moradias: “Naquela época era muito bom a gente brincava de tudo, brincadeira natural, de pião, de pipa, de bila, carrinho de lata e assim passava o dia (...) a minha casa a gente abria o quintal lá o portão de casa e via o mar. Depois o bairro foi aumentando, aumentando e as casas aumentando também e hoje em dia o Serviluz tá do jeito que tá” 136.

Desprovidos das melhorias oferecidas noutros cantos da cidade, os habitantes dos bairros suburbanos encontram características físicas que denotam carências de toda ordem. Por isso o momento da constituição das grandes periferias urbanas e da formação de movimentos de luta pela moradia foi também o da elevação da questão habitacional à categoria de política pública emergencial, a partir principalmente da participação mais ativa dos movimentos populares na cidade. Quem migra quer casa. A problemática habitacional foi sem dúvida um dos grandes problemas do governo brasileiro nesse período. O Banco Nacional de Habitação (BNH), criado em 1964 e posteriormente transformado em Companhia de Habitação (COHAB), não atendia à grande demanda por construção de casas populares decorrente da urbanização acelerada137.

135

Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003. Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2003. 137 “O Estado, criando o BNH, enseja amplos benefícios ao capital financeiro e ao capital imobiliário (...) a política habitacional implantada beneficia também outros setores do capital industrial, na medida em que a mercadoria ‘casa’, principalmente os conjuntos habitacionais, convertem-se em grandes consumidores de produtos industriais das mais variadas linhas”. Cf.: SILVA, José B. da. Quando os incomodados não se retiram: uma análise dos movimentos sociais em Fortaleza. Fortaleza: Multigraf Editora, 1992. p. 79. 136

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No Ceará, o Governador do Estado Virgílio Távora criou em 1979 o Programa de Assistência às Favelas da Região Metropolitana de Fortaleza (PROAFA), coordenado pela então primeira-dama Luiza Távora. O programa procurava, sem muita eficácia, amenizar o problema do crescimento desenfreado da cidade. Em Fortaleza as favelas ganhavam espaço e já ocupavam os entornos de obras públicas, as faixas de beira de praia, as areias das dunas e as regiões de manguezal.

População do estado e do município de Fortaleza: Ano

Ceará

Fortaleza

1970

4.491.590

857.980

1980

5.380.432

1.308.919

1990

6.401.245

1.763.546

2000

8.138.484

2.332.657

Fonte: Censo Demográfico IBGE.

População favelada do município de Fortaleza em 1980: Nº de favelas

216

Nº de casas

62.660

Nº de famílias

68.456

População

342.280

Total

24%

Fonte: Proafa.

Censo demográfico de bairros da zona leste: Mucuripe

11.900

Cais do Porto

21.529

Vicente Pinzón

39.551

Grande Mucuripe

203.220

Fortaleza

2.332.657

Fonte: Censo Demográfico IBGE (2000).

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Os números evidenciam o surto populacional pelo qual passou a cidade, que desde 1975 passou a ter mais da metade da população vivendo na sua área urbana. Para se ter uma idéia mais precisa, das primeiras 26.820 unidades habitacionais construídas pelo Proafa, 25.000 foram distribuídas na área metropolitana de Fortaleza e apenas 1.800 no interior do estado. Como efeito decorrente da migração, operou-se a proliferação contínua e crescente das chamadas áreas marginais, depois chamadas áreas de risco, onde a qualidade de vida era extremamente comprometida. Nesses lugares, eram bem pouco perceptíveis os benefícios oriundos da cidade grande. O cenário marginal configura-se sobretudo por meio das estatísticas criminais, nas quais esses espaços emergem como pontos de violência e marginalidade, suscitando a luta política pela construção de novas imagens eivadas da própria comunidade.

2.5 A marginalidade e a imagem do medo

“Se alguém falar que é do Serviluz as pessoas se benzem, algumas pessoas não querem dá emprego. Se a pessoa é preto, pobre e mora no Serviluz é marginalizado total”. “Uns foram pro cemitério e outros foram pra cadeia e quem ficou vivo serviu de exemplo”. “Eu já cheguei a ver o seguinte: um colega nosso na época tava cursando a faculdade e o cobrador do ônibus queria tomar a carteirinha dele, porque não acreditava que aqui no nosso bairro tinha gente fazendo faculdade (...) uma amiga minha também ela sofria muito assim porque ela era classe média e vinha pra cá, a mãe dela só faltava... batia nela, ela saía escondida pra vim surfar, porque a mãe dela dizia que ela vinha pra cá e ia se envolver com drogas e ia se envolver com mil e uma loucuras, aqui só tinha o que não prestava (...)” 138.

Por todas as transformações econômicas e sociais pelas quais passou historicamente o Serviluz, o bairro passou a ser tido na cidade como espaço de miséria, medo e violência. A delinqüência juvenil urbana no Serviluz e suas múltiplas facetas constituem importante capítulo nesta pesquisa.

138

Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003.

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Com o passar dos anos, a marginalidade se transformou numa dura realidade que afetou a convivência entre os moradores. O medo expulsou muitos dos antigos vizinhos e passou a provocar acirrados isolamentos na comunidade. Tinha acabado a época em que se podia dormir com a porta aberta, findara o tempo dos meninos que faziam as coisas “direitinhas” e dos garotos “bem confiantes”. A marginalidade que passa a caracterizar o lugar também suscitou a necessidade de encontrar pequenas estratégias para enfrentar a rejeição, o descaso e, sobretudo, o perigo iminente da morte. A população sentia na pele os vários efeitos da situação violenta do bairro. “Muita gente quando vai procurar emprego não bota nem Serviluz no bairro que mora, bota Vicente Pinzón (...) Era muito triste a gente ir atrás de um emprego pra trabalhar, por a gente morar nesse bairro aqui as pessoas já de antemão já diziam que num tinha vaga pra gente”139.

O reconhecimento da “origem violenta” dos habitantes impedia o ingresso deles inclusive nas empresas localizadas nas proximidades e as pessoas passaram a sentir vergonha do bairro em que moravam. Em entrevistas de emprego, os jovens eram instruídos a mentir sobre sua origem, impulsionados a dizer que moravam em regiões adjacentes, como Praia do Futuro, ou a utilizar outros nomes pelos quais o bairro é conhecido, como Vicente Pinzón e Cais do Porto, para não correrem o risco de ser eliminado antecipadamente. A construção dessa memória negativa do bairro se reforçava em grande medida nos programas policiais da mídia, onde passaram a ser freqüentes a presença de garotos locais, e não foi uma criação realizada somente in loco. Na imprensa havia, de modo geral, um conjunto de imagens depreciativas em que esse espaço aparecia marcado pelo preconceito e pelo estigma. Não somente os departamentos pessoais das empresas insistiam em renegar a população. A rejeição por vezes beirava a totalidade. Um entrevistado afirmou revoltado que bancos como a Caixa Econômica Federal e outros órgãos de crédito passaram a não mais conceder empréstimos para reformas domiciliares a moradores da área. Uma das alegações era a de que o bairro tinha a fama de fraudulento, pois era grande a quantidade de moradores inadimplentes. O pior era que as pessoas não se importavam em ter o nome “sujo” no sistema de crédito, por isso “morador do Serviluz não tinha mais empréstimo!”140.

139

Entrevista concedida por Mauro Sérgio Domingues ao autor em 18/05/2005. Entrevista concedida por José Carlos da Silva ao autor em 08/03/2005. 141 Ibidem 140

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“O pessoal já sabe que aqui aconteceu muita coisa”141. Há, na maior parte dos depoimentos, a certeza de que os moradores do lugar precisam provar em dobro a sua capacidade. No espaço do trabalho, por exemplo, foi necessária uma versátil mudança de postura com vistas à adaptação ao sistema de competição industrial; foi preciso forçar as empresas a valorizarem a experiência e a seriedade de pessoas simples e que, infelizmente, estavam envoltas num universo considerado degradado do ponto de vista. “Essa violência destruiu bastante o ramo de turismo, a rede de turismo aqui foi bastante destruída. Por quê? Por causa da violência! Nós temos aqui uma praia bastante bonita, temos um lindo pôr-do-sol, uma praia linda. Cadê turismo? Aqui não existe turismo. Por quê? Por causa da violência. Os vagabundos botaram os turista pra correr, queriam robar os turista (...)”142.

Entre os lamentos decorrentes da criminalidade, estava a perda do poder de atração que o bairro tinha. Numa região a ser destinada ao turismo, o Serviluz se tornou um espaço muito pouco visitado. Sendo uma praia contígua à badalada Praia do Futuro, a preferida pelos visitantes, a praia dessa favela, no entanto, tornou-se um lugar desaconselhável, os que nela se aventurassem possivelmente seriam assaltados. No porto, o viajante que antes tinha o Farol como destino certo agora era avisado, pela própria Capitania dos Portos, dos perigos existentes na vizinhança. Os turistas foram desviados para outros pontos da cidade, afastados da convivência junto à população pobre da periferia. Para grande parte dos moradores, porém, a violência é, antes de tudo, um fato real e mortal, que incomoda e assusta. Nesse meio, onde a importância da família para os indivíduos é algo basilar e onde os filhos são quase sempre a coisas mais importantes da vida, os “tesouros” que o pobre tem, famílias inteiras estavam sendo drasticamente reduzidas. “(...) Uma coisa que me deixa bastante angustiada é eu ver essa juventude, porque eu já tôu com vinte anos aqui, quer dizer é uma vida né? Tem pessoas aqui que eu vi crescer, que eu acompanhei e hoje eu vejo se acabando ai no crack, e eu sem puder fazer nada, isso me dá uma angústia tão grande (...) uma boa parte da juventude não tem uma perspectiva de futuro, é uma juventude que não sonha, que não tem vontade própria de crescer, de ser alguém na vida, mas eu acho que isso depende muito dos pais, da família”143.

A marginalidade entre os jovens de repente se entranhou com força e aquele núcleo populacional, onde os meninos cresciam voltados para o trabalho e o lar, virou “lugar de bandido”. Garotos começaram a partir cada vez mais cedo rumo à marginalidade, cresciam praticando pequenos furtos e gerando o “terror” no bairro. Muitos morriam antes mesmo da

142 143

Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002. Entrevista concedida por Maria da Luz Oliveira Ribeiro ao autor em 18/05/2005.

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maioridade e nas ruas as imagens da morte se tornaram cenas cotidianas. Rotineiramente crianças amanheciam e anoiteciam junto a corpos ensangüentados ou escutando notícias de assassinatos. “(...) Ele era um garotinho e tal, um menino simples e tudo, gente fina, surfava conosco. Esse garoto ele partiu pra marginalidade, né? O cara ficou assim o ‘terror’ (grifo nosso) do bairro (...) ficou, coitado, ficou sem cara porque atiraram por trás da cabeça dele e fizeram uns rombos na cara (...)”144.

A violência no bairro na verdade não é uma regularidade, mas tem seus períodos de recrudescimento. Funciona como uma espécie de onda; em alguns momentos, aumenta assustadoramente. Em certas épocas, a situação se torna mais inflamada e os nervos ficam à flor da pele. Quando uma gangue rival invade o bairro ou quando morre algum criminoso renomado, por exemplo, provavelmente revides sistemáticos acontecerão. Esses são momentos de tensão que incomodam a todos, exigem certos cuidados especiais para circular na área e produzem um prolongado estado de alerta. Nessas circunstâncias, tanto a polícia quanto os que por ela são procurados passaram a impor constantes “toques de recolher” à comunidade. Nessa esteira, nas ruas e nos becos, aumentou a venda e o consumo de drogas; adolescentes pediam ou tomavam dinheiro de quem passava, roubando e intimidando a população. Em meio a esse clima, atravessar espaços pouco visíveis, como os becos estreitos ou a beira da praia à noite, podia significar o fim trágico da vida. “Eu entrei no beco, se eu fosse um rival, se tivessem me confundido, eu tinha morrido”145. No bairro, corria-se agora o sério de risco de ser “confundido” e morto por uma gangue. Em alguns lugares, era nítido o domínio de jovens encapuzados, desmascarando uma triste realidade que amedrontava e envergonhava os moradores. Ao som da música funk, bailes e festas agrupavam nuvens de jovens armados que tomavam conta das ruas, promovendo “arrastões” por onde passavam. Nas noites de sábado, os jovens do Serviluz se destacava facilmente entre as gangues de adolescentes da periferia de Fortaleza, levando o nome do bairro ao topo desse circuito. Para se ter uma idéia da situação, em alguns pontos de encontro ou passagem das gangues, contavam-se inúmeros furtos, agressões e assassinatos, acontecidos em poucas horas. No Serviluz não há, por exemplo, quem não se lembre do antigo Forró da Bala. Em menos de quatro anos de funcionamento, o pequeno bar acumulava a incrível estatística de 144 145

Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003. Ibidem.

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dezoito mortes ocorridas nele ou no seu entorno146. Um detalhe importante: localizava-se ao lado da Delegacia de Polícia do Farol. A delegacia havia sido instalada no Farol a pedido dos próprios moradores, quando o meretrício se deslocou para o bairro. Como observado, foi precisamente na zona de prostituição que os jovens, juntamente com as mulheres, começaram a realizar os primeiros furtos; o roubo, em princípio crime, de certa forma, tornou-se uma prática local e passou a ser desenvolvida nos mais variados espaços da localidade. A polícia assume nesse contexto um caráter bastante dúbio no seio da comunidade. Tanto se solicita a sua intervenção nas contendas internas, quanto a sua presença pode indicar a entrada de um corpo estranho, alheio aos membros desse organismo. O crescimento da marginalidade, no entanto, ao mesmo tempo em que produziu a contradição e polarizou as opiniões sobre a autoridade policial, fez emergirem múltiplas relações de negociação entre essas partes. Há, de modo geral, um temor das pessoas em relação ao uso da forca policial, do poder da violência usado de forma legal: “Eu tenho mais medo dos policiais do que dos vagabundos que moram aqui”, é uma afirmação recorrente entre os moradores. Para muitos, é preferível encontrar numa madrugada um criminoso conhecido do que a proteção oferecida pela polícia, já que são muitos os casos de policiais corruptos que extorquem e agridem indiscriminadamente. Quando ninguém vê, são eles que mandam e desmandam, classificam todos de bandido e agem indistintamente sobre os moradores. Vale ressaltar que, nessa briga de mocinhos e bandidos, muitos policiais também perderam a vida. Os membros da comunidade conhecem aqueles casos mais célebres, os relatos das façanhas grandiosas do mundo do crime ecoam por gerações. É o caso do finado Cabo Sérgio, temido policial do bairro, que foi misteriosamente assassinado e que ainda hoje tem sua história passada de boca em boca. Após colecionar vários inimigos, o cabo foi brutalmente atropelado por um veículo, o automóvel passou sobre seu corpo várias vezes quando o policial saía de uma churrascaria da rua principal do bairro. O mundo do crime se tornou um elemento tanto real quanto simbólico de exercício de poder. Nas falas, esse universo assusta, mas também fascina. Se parecia complicado seguir sem se perder nas drogas e no submundo do tráfico ou não acompanhar a tendência dos pais

146

A pesar da violência, os bares e os clubes dançantes do Serviluz são bastante freqüentados. Além dos antigos cabarés do Farol e das barracas de praia, alguns comerciantes locais também promoviam festas. O Bar do Surfe, o Forró do Joãozinho, O Som do Seu Pedro, o Pagode do Luiz, o Flórida Drinks, o Clube Jamaica e outros, de duração mais efêmera, se destacaram.

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alcoólatras e das mães prostituídas, a adesão a esse mundo parece seduzir. Se difícil era evitar o amargar da vida nos presídios da cidade ou afastar a morte que ronda diariamente os habitantes da periferia, a participação nesses espaços ditos violentos produz uma espécie de reconhecimento às avessas que encoraja e dá poder. Depois de alguns malefícios, deixa-se de ser apenas mais um anônimo na multidão para ser um conhecido bandido da favela. Parece existir aí, a exemplo do Farol, tanto uma triagem quanto uma mistura complexa entre esses universos e a comunidade, de modo que a divisão simplória dentro e fora não consegue abarcar. No dia-a-dia surgem pequenas interações, desenvolvidas em nível microssocial, que precisam ser consideradas, pois estão na base da conformação das relações de poder e solidariedade. Quando se pensa, por exemplo, no turismo destruído pela marginalidade, percebe-se que a visitação ao bairro não acabou. A não inclusão do bairro nos roteiros oficiais da cidade turística indica não o fim, mas a criação de novos fluxos de visitação. A eliminação da presença de pessoas endinheiradas não acabou com essa prática, mas renovou a permanência da antiga tradição da boa acolhida voltada para “os iguais”. As territorialidades147 que o bairro passou a abrigar criam novas formas de pensar a hospitalidade. Assumir ser do Serviluz com orgulho é uma opção ainda hoje dúbia mesmo internamente, a imagem do medo ecoa e a produção de uma postura valorativa desse espaço guarda sempre suas ressalvas. Mesmo declarando o amor pelo lugar, um entrevistado lamentou que “pra vergonha nossa... assim umas cinco a dez laranjas podres aqui do bairro tentam, insiste, em sujar a imagem do nosso bairro”148. Para muitas pessoas, o fim do circuito de visitação podia indicar o fim do sonho de sobreviver dessa atividade no próprio bairro e o início de um processo de mudança que revertesse a situação marginalizada. “Porque chega! A gente tá fazendo o máximo pra que a área seja bem... sabe... bem vista por aí, pra que as pessoas possam vir pra comer um pouco pouquinho de areia conosco, fazer o surfe conosco, aí tem algumas pessoas que querem estragar (...)”149.

147

A noção de território pode ser compartilhada com Raquel Rolnik: “(...) território como uma idéia de espaço vivido; não só um espaço geográfico delimitado, mas um espaço apropriado e constituído por relações sociais, por relações culturais”. Cf.: ROLNIK, Raquel. Lei e política: a construção dos territórios urbanos. In: Op. cit. Projeto História, nº. 18. p. 137. 148 Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003. 149 Ibidem.

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No contexto de criminalidade, os presídios e as penitenciárias da cidade acabaram tornando-se lugares cujos meandros são conhecidos pelos moradores do Serviluz. Suas informações circulam entre as ruas, os parentes fazem visitas aos domingos e recebem cartas; sabe-se quando um preso do local vai ser solto e quem está marcado com vingança neste retorno. Em algumas rodas de conversa, reproduzem-se as gírias, os jargões e mesmo alguns valores típicos da cadeia. O mundo do crime e o cotidiano das celas, de certa forma, também são revividos dentro da comunidade. Entre os jovens, as penitenciárias nem sempre significam a má sorte do sujeito; em alguns casos, estar preso indica exatamente o contrário, significa estar guardado, ter alimentação gratuita e satisfatória paga pelo Estado. Diferentes inclusive de muitos dos jovens que gozam a liberdade, os presidiários retornam por vezes mais nutridos e fortes, mas, sobretudo, muito mais temidos e valentes devido a essa experiência. Em meio a essa atmosfera, a morte tende a se tornar um fato cotidiano, um acontecimento que pode ocorrer várias vezes em um só dia. Se a morte é fato, o enterro dos mortos passa a ser um ritual comum, uma cerimônia relativamente corriqueira. Nos funerais mais célebres, geralmente bem freqüentados, esse se torna também um momento de revolta e indignação com a pouca valorização da vida humana dentro da comunidade. Há a certeza de que a morte precoce pode acontecer a qualquer pessoa, de que é preciso estar atento. Sintomaticamente a morte guarda traços com a origem interiorana da população, a morte não é exatamente uma estrangeira, mas uma parte ativa da vida. Anjinhos, finados, defuntos, bem cedo se habitua a esses termos, porque a sabedoria popular indica que termos como estes podem fazer compreender melhor a importância da vida. É preciso pensar como a comunidade convive com esse cotidiano violento. Como em certos momentos os próprios moradores do bairro utilizam-se dessa imagem amedrontadora que paira sobre o lugar, para evitar que ele seja ainda mais invadido ou tomado pela especulação imobiliária. Os moradores desenvolvem também mecanismos de autoproteção, por vezes alheia à ação da polícia, regulação sem a qual seria impensável a vida social no bairro. É o que se observa quando se impõe ou se cultiva a prática de não agressão dentro da área. Nesse contexto, a construção de novas imagens e a emergência de novas práticas sociais no bairro se tornaram uma necessidade, passaram a fazer parte dos componentes da identidade e da cultura local. Há nas entrevistas a certeza de que não é possível somente admitir as definições da comunidade feitas do alheio. Do ponto de vista do pesquisador, seria demasiado injusto perceber como se dá a vivência nesse espaço apenas do ponto de vista

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socioeconômico. A cultura popular tem uma riqueza e uma racionalidade próprias, que não podem ser alcançadas quando se olha para o bairro com a mesma lupa da cidade que o recrimina.

2.6 A comunidade “Aqui tinha muita areia nessa praia do Titan ninguém podia comer com tanta poluição a comunidade unida acabou com a situação” 150. “Qualquer momento histórico é ao mesmo tempo resultado de processos anteriores e um índice na direção de seu futuro” 151.

Ao assumir a paróquia do Mucuripe no distante dia 05 de maio de 1950, o padre José Nilson afirmou que tinha encontrado ali uma comunidade miserável, que o encorajou à ação missionária:

Sempre sonhei em trabalhar com os pobres. Era uma espécie de chamamento íntimo, muito forte, a me convocar para essa missão. E o Mucuripe, certamente era um lugar muito indicado para isso, pois aqui, naquele tempo e ainda agora, vive uma comunidade carente de tudo: de alimento, de moradia, de educação, de assistência médica, até mesmo de uma esperança melhor no dia de amanhã152.

A esplendorosa paisagem natural contrastava com a escuridão encontrada nas condições humanas. O padre José Nilson, que já contava com a experiência adquirida noutra comunidade de pesca, organizada sob a forma de colônia de pescadores, liderou no Mucuripe um trabalho de cunho religioso e assistencial que ainda hoje permance . Nas comunidades de pesca, é geralmente bem acentuada a tradição católica. Nas paróquias e pastorais de localidades praianas, as festividades religiosas católicas, como a festa

150

“Trabalhos, lutas e conquistas de uma comunidade sofrida”. Cordel produzido por Maria Zuleide de Oliveira Moura. Disponível na Associação de Moradores do Titanzinho no Serviluz. 151 THOMPSON, E.P. A Miséria da Teoria ou um planetário de erros; uma crítica ao pensamento de Althusser. Zahar Editores. Rio de Janeiro, 1981. p. 58. 152 Palavras do Padre José Nilson, vigário da paróquia do Mucuripe. Cf.: Op. cit. GIRÃO, Blanchard. p. 193.

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do padroeiro São Pedro e o culto a Virgem dos Navegantes, são sempre celebrações importantes tanto do ponto de vista religioso quanto do convívio social. Sempre lotados, os festejos são momentos de devoção e sociabilidade comunitária, sendo os padres figuras de reconhecido destaque entre essa população. Essa experiência religiosa constituiu uma importante matriz dos movimentos de caráter associativo no bairro. O trabalho religioso no Serviluz teve início já na zona de prostituição. O Farol tornouse um excelente espaço para o desenvolvimento de ações filantrópicas; para muitos, a região era vista como sinônimo de carência tanto material quanto espiritual. O Ninho Fortaleza, grupo pioneiro com características de voluntariado no bairro153, procurou concentrar suas atividades assistenciais basicamente sobre as prostitutas. Mas como no Farol era praticamente impossível desvencilhar as mulheres do restante do espaço, o trabalho da Igreja Católica, reforçado depois com a criação das pastorais da mulher e do pescador, ampliava-se a toda a comunidade. Os

moradores

da

comunidade,

por

exemplo,

freqüentavam

os

cursos

profissionalizantes oferecidos pelo Ninho. Mas como foi afirmado, a relação entre o bairro e a prostituição é ambígua. Se o trabalho paroquial muitas vezes não atraía a prostituta, os moradores atraídos a esse universo compartilhavam ao mesmo tempo em que promoviam abaixo-assinados para a remoção da zona para longe do bairro154. A capacidade de estabelecer entendimentos entre as diferenças cuturais que coabitam o mesmo espaço constitui um aspecto basilar para a compreensão da gestação de experiências e movimentos comunitários do bairro. Nas memórias sobre os primórdios da constituição das ações de grupo, está também a necessidade primeira de acreditar no potencial dos sujeitos envolvidos, “porque tem morador que quando vê uma instituição, uma pequena instituição crescendo um pouco, pensa que é brincadeira, pensa que é brincadeira, más que funcionar funciona”155. 153

O Ninho é uma entidade internacional que presta serviços de auxílio às prostitutas em vários países. “No Farol, (O Ninho) está sob condenação de uma equipe voluntária formada por dez mulheres, não importando, por principio, se exercem ou não a prostituição, mas que moram na área da zona, no bairro do Mucuripe e também em outros bairros da cidade”. Op. cit. ANJOS JÚNIOR, p. 54. 154 “No próprio Farol, um bairro totalmente pobre, residentes, que co-habitam o mesmo espaço estigmatizado pela sociedade envolvente, exerçam a discriminação e solicitem ao mesmo poder que também os domina, o confinamento das prostitutas para algum lugar ainda mais isolado”. Op. cit. p. 60.

155

Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003. Ibidem. 157 Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003. 158 Ata de reunião da Associação de Moradores do Titanzinho em 11/07/1982. 156

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A rejeição, por exemplo, quase sempre dificultava a integração das prostitutas aos outros moradores do bairro; o prestígio e a capacidade de liderança das proprietárias dos cabarés, apesar de reconhecidos na comunidade, na maioria das vezes, restringiam-se aos domínios dos prostíbulos. Entretanto, no processo de aprendizado político, as necessidades comuns tendiam a criar permeabilidades e a impulsionar possíveis entendimentos, ainda que significasse a total aceitação do outro. “(...) eu só frequentava essa área aí quando era pra ajudar fazer algum enterro de alguma pessoa que morria, ou então ajudar a tocar em algumas celebrações, missas pra elas (...) não é porque fosse zona de pessoas errantes não, é porque num gosto de me misturar com essa classe não. Mas na hora que necessitava de um trabalho, eu sou comunidade (grifo nosso), eu tinha que agir, eu sou igreja”156

É com base nesse processo de flexibiliação e aceitação, negação e conflito, que surgem as bases associativas do bairro e o sentimento comunitário. O socorro mútuo, nesse caso, muitas vezes emerge como uma condição fundamental à própria existência dos habitantes. A precariedade generalizada tornava necessária uma espécie de atitude de salvação recíproca, quase initerrupta, entre essa população. Problemas de toda ordem irrompiam a todo instante : “aí eu digo não. Num vai atolar não: a gente vai deixar a criatura acolar na pista. Aí, peguei arranjei uma rede, botaram a criatura pra dentro e levaram pra lá. Eu cansei dessas coisas assim né”157. A luta pela sobrevivência dentro da comunidade, desse modo, produz tanto ações coletivamente organizadas quanto é fruto da manifestação individual de solidariedade “(...) se todos nós pegarmos mais gente, é melhor. Se o problema é igual, então vamos lutar com todo mundo. Nós queremos solucionar o problema ou diminuir?”158. A construção da identiadde cultural comunitária não emana apenas dos movimentos com propósitos de reforma social. Hoggart159 diz que é preciso tê-la como algo mais elementar, mais antigo que nasce talvez da própria convicção de que a união se torna necessária caso se pretenda melhorar as condições de vida; essa convicção está na origem dos

159

HOGGART, Richard. As utilizações da cultura. Aspectos da vida da classe trabalhadora, com especiais referências a publicações e divertimentos. Lisboa: Editora Presença, 1973. (Coleção Questões). 160 Entrevista concedida por Maria Ferreira Dias ao autor em 31/06/2006. 161 BARREIRA, Irlys Alencar Firmo. O reverso das vitrines: conflitos urbanos e cultura política em construção. Rio de Janeiro: Rio Fundo Ed. 1992. p. 93

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movimentos cooperativos. É antes fruto do saber feito de experiência, que ensina que o indivíduo se encontra inevitavelmente integrado no grupo. Entre os moradores, foi recorrente a conecção entre o princípio do processo de organização política e a ação da Igreja no bairro. O trabalho comunitário, de acordo com os entrevistados, começou com a união das mães em torno da distribuição de alimentos, roupas e soro caseiro para as crianças. “De lá pra cá a gente começou nessa luta né, a gente começou a se reunir nas ruas como um grupo de mães que já existia e começamos a lutar com os pescadores, pedindo esmola a um, pedindo esmola nas firmas e construímos a escola do Titanzinho, a São Pedro (...) e a gente botou o nome da escola de São Pedro porque São Pedro era pescador”160

Na observação da história das formações dos movimentos sociais urbanos, deve-se ressaltar que tanto as práticas mobilizadoras de maior visibilidade quanto as isoladas em um cotidiano de organização interna dos bairros tiveram a presença da Igreja como um de seus principais mediadores. Como observou Irlys Bareira: Nesses termos, pensar a Igreja como a força social significa atentar para sua ação, não só na formulação restrita de uma diretriz política, mas na veiculação de idéias ou discursos que implicam a formação de uma visão de mundo 161.

Na decada de 1970, contraposta a um certo egoísmo e comodismo, a Igreja passa a incentivar a promoção de núcleos de ação comunitária, visando também libertar o homem das injustiças sociais. O catolicismo, centrado na salvação individual e no conformismo político, rumava em direção a um outro tipo de engajamento. Os discursos paroquiais passaram a tentar conciliar fé, experiência cotidiana e luta pela justiça social. Em Fortaleza, não era a primeira vez que os católicos se engajavam na conscientização dos trabalhadores a partir da precariedade de suas condições de existência. Já na década de 1950, um ex-viigário do Mucuripe deu início a um trabalho de caráter religioso e social que se tornou um referencial. Na comunidade do Pirambu, o Padre Hélio despertou um processo de mobilização política que culminou com a realização, a 1º de janeiro de 1962, da Grande Marcha do Pirambu, cujas fileiras eram engrossadas por mais de vinte mil moradores162.

162

“A Marcha representa para o Pirambú, no âmbito de sua identidade social, o principal evento que assinala a construção da memória coletiva da comunidade, fazendo nascer um sentimento, a partir da tentativa de torná-lo heróico, ou seja que represenasse um fenômeno coletivo e social dentro do movimento polular de Fortaleza, que pode ser considerado como um marco para a ação politica transformadora e histórica dos bairros pobres da

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Eder Saber destacou que os novos personagens que emergiram na cena política brasileira na década de 70 caracterizavam-se principalmente pela diversidade de matizes que lhes serviam de referência. Movimentos de caráter fragmentado, de onde e quando ninguém esperava, emergiam novas ações sujeitos coletivos, que criavam seus próprios espaços e requeriam novas categorias para sua inteligibilidade: “não se trata de alguma suposta identidade essencial, inerente ao grupo e preexistente às suas práticas, mas sim da identidade derivada da posição que assume”163. A pretensão de captar a dinâmica dos movimentos sociais e da cultura comunitária, somente através das condições materiais objetivas, evitando assim uma análise mais específica de suas práticas, pode significar a perda do aprendizado diário que os singulariza. No Serviluz, o reconhecimento da diversidade de referências e matrizes se configurou como uma realidade cada vez mais concreta e diferentes canais passaram a ser acionados em benefício da coletividade. Nesses cantos de praia, pratica-se não apenas o dito catolicismo oficial, não desacreditando os jangadeiros do poder místico da natureza; a beira da praia serve também à prática de ritos de bênçãos e manifestações de devoção à rainha e protetora do mar, Iemanjá. Em algumas praias como a do bairro, manteve-se considerável a quantidade de terreiros de macumba e candomblé. Povo de origem sertaneja, essa população estabelece cotidianamente as mais distintas relações com as forças do sagrado e o sobrenatural. Pairam crenças, por exemplo, nas quais a realização de determinados rituais religiosos podem, também, acabar com os dramas da vida164. Na condição urbana, o migrante não abandona sua fé e a experiência religiosa configura-se como um instrumento na resolucão dos problemas do dia-a-dia. No Serviluz a diversidade religiosa simboliza bem a multiplicidade de culturas que se cruzaram no lugar. Em termos religiosos, nessa praia se adere atualmente a diferentes cultos, sobretudo após a eclosão das igrejas protestantes e pentecostais na área. A Igreja, como

cidade”. Cf.: CAVALCANTE, Lídia Eugenia. Para onde os ventos sopram Pirambu: Memória e identidade social. Dissertação de Mestrado Interinstitucional em História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000. p. 116. 163 SADER, Sader. Quando novos personagens entraram em cena: Experiências, falas e lutas dos trabalhadores da grande São Paulo 1970-1980. São Paulo: Paz e Terra, 1988. p. 44. 164

“Realizar pocissões, promessas ou roubar a imagem do santo da Igreja e só devolvê-la com as chegadas das chuvas eram práticas de fudamental importância nas estratégias de combate à seca”. Cf.: Op. cit. RIOS, Kênia Sousa. p.76. 165 A Assembléia de Deus foi a primeira Igreja Evangélica instalada no bairro, em 1966. Aos poucos, tornou-se comum um conjunto de celebrações que se estendia as ruas e aos domicilios, principiando a conquista gradual de novos adeptos. O Serviluz conta atualmente com pelo menos 12 pequenas igrejas evangélicas.

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fomentadora de organizações associativas no bairro, atualmente atravessa um processo no qual as igrejas evangélicas vêm ganhando considerável terreno165. A idéia de comunidade no bairro tem sua origem e força maior de expressão na religiosidade do povo. Vale ressaltar que durante a pesquisa, ao utilizar os termos bairro e comunidade quase indistintamente, foi preciso tecer algumas reflexões sobre este último conceito.

Isso

aconteceu porque não era possível ocultar que no Serviluz a extensão das redes internas de articulação, a distribuição de solidariedades, o crescimento demográfico repentino e a diversidade cultural daí resultante atingiram tal dimensão que a ampliação do entendimento da idéia de uma comunidade impunha-se. Isso se deu uma vez que parecia preciso deslocar um certo caráter oficial e um certo esvaziamento que ronda o conceito comunidade, com vistas a entendê-lo como experiência concreta, como experiência histórica. Identificado popularmente como Bairro Serviluz, ainda que as fontes administrativas e os jornais prefiram o termo favela, esse conjunto, a meu ver, só se apresentava como uma comunidade na medida em que se fundamenta na relação entre a diversidade que o compõe. Somente sob circunstâncias específicas, os diferentes moradores desse bairro se sentem partilhando de uma experiência comunitária e isso pode não significar a eliminação das diferenças. Em estudos sobre bairros operários e identidade cultural em São Paulo, Duarte166 observou que, numa sociedade do tipo capitalista, uma comunidade ou bairro só podem ser entendidos como artefatos culturais, resultado do esforço humano coletivo e historicamente construído, de tal modo que a unidade e a solidariedade, tanto quanto o discenso que porventura eles expressem, resultam da ação humana dos seus membros. No intuito de compreender e analisar o processo de formação de uma comunidade específica, ainda que uma ampla região nos arredores do Mucuripe apresente características geográficas e históricas convergentes, impõe-se a necessidadede da não homogeneização de um conjunto culturalmente múltiplo. As interações culturais e a produção de experiências coletivas só se dão através da ação social concreta desses sujeitos.

166

DUARTE, Adriano Luiz. Os sentidos da comunidade: notas para um estudo sobre bairros operários e identidade cultural. In: TRAJETOS, Revista do Programa de Pós-graduação em Historia Social e do Departamento de Historia da Universidade Federal do Ceará. v.1, n° 2. Fortaleza, junho de 2002. p.106.

100

No clássico estudo sobre costume e cultura na Inglaterra do século XVIII, Thompson167 já nos alertava sobre a impossibilidade da utilizaçao desses conceitos de forma generalizada ou ultraconsensual. Afinal, seria errôneo esquecer que o termo cultura é um termo emaranhado e complexo, que, ao reunir tantas atividades e atributos em um só feixe, pode na verdade confundir ou ocultar distinções que precisam ser feitas. A comum experiência de migração, trabalho e moradia certa cria vínculos e elos fundamentais de união, mas não é possível pensar esses aspectos como formadores de uma solidariedade “natural”. A comunidade, nesse caso, deve ser concebida não apenas baseada na idéia da harmonia geral, mas principalmente a partir dos múltiplos conflitos que nela são engendrados: “a identificação automática entre bairro e comunidade pode ser enganosa (...) não é o bairro que por si só torna-se comunidade, são as redes sociais construídas e articuladas por seus moradores que podem construí-la”168. No que se refere mais especificamente à moderna noção do termo comunidade, também foi preciso reconhecer que, sobretudo no periodo posterior

aos anos 1980, os

próprios programas oficiais assistencialistas do Estado brasileiro se apropriaram de uma espécie de “poder mágico” que o termo comuniade passou a adquirir entre as classes populares, como agregador de interesses comuns169. Entramos numa nova era e em novos modos de fazer a política. Nesse novo contexto, a sociedade organizada em associações e movimentos populares de todo tipo deixou de ser algo marginal ou alternativo. Os poderes constituídos mudaram seus discursos sobre essas práticas. Os grupos organizados deixam de ser vistos como opositores, passam a ser conclamados como parceiros. Parceria com a comunidade será a nova técnica de órgãos públicos até então assistencialistas, clientelistas ou diretamente repressores170. Assim o Estado transfere sua responsabilidade para as comunidades organizadas, sob o argumento de políticas participativas, deturpando desse modo o significado de comunidade atribuída pelos sujeitos que a constroem. Os movimentos populares criados a partir de ações da sociedade civil utilizaram o conteúdo político do termo comunidade para conferir sentido a uma nova cultura política que se esboçava, fundada no aprendizado de uma nova cidadania, em que a reveidicação em torno da noção dos direitos ocupava um lugar central171. 167 168 169

THOMPSON, E.P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras,1988. p.22. GOHN, Maria da Glória. Movimentos sociais e luta pela moradia. São Paulo: Edições Loyola, 1991. p.14.

Op. cit. GOHN. p. 12. Op. cit. p. 14. 171 Op. cit. 170

101

Dona Mariazinha, líder comunitária do Serviluz, de modo simples e prático, assim expressou sua concepção de comunidade: “(...) A comunidade é nós, todo mundo junto. A comunidade que eu entendo, e é, a gente tem que trabalhar todo mundo junto, mãos dadas (...) você sabe que uma vara quebra, duas vara, três vara quebra, más quatro, cinco, seis ela já não quebra mais (...) isso é meu entendimento, a comunidade é nós tudo reunido, tudo unido, isso é é que é a comunidade”172.

A idéia de bloco, da reciprocidade e do trabalho conjunto está no seio do entendimento local da noção de comunidade. Por outro lado, as culturas urbanas, pricipalmente a partir da intesificaçao do fenômenos migratórios, desencadeados em escala mundial, têm exigido dos pesquisadores contemporâneos a elaboração de novos instrumentos conceituais, sensíveis às novas modalidades de organização das culturas. Canclini173 observou que o termo “cultura urbana” se mostra inadequado para analisar os cruzamentos culturais da atualidade. À medida que a vida na cidade tem impulsionado a procura por formas mais seletivas de sociabilidade, nos bairros, por exemplo, as relações entre seus moradores tendem a se firmar em estruturas microssociais, a partir das quais estes elaboram suas identidades. Com a rápida hibridação de culturas, as fragmentações culturais das metrópoles se tornam cada vez mais dificeis de precisar, pois estas já não se organizam em grupos fixos ou em núcleos estáveis. A comunidade certamente faz-se e é feita com base nessa maleabilidade cultural entre seus membros. Esse racíocinio põe em dúvida a relação entre certas populações e um território capaz de conferir comportamentos comuns ao grupo. Opera-se assim a insustentabilidade da velha noção de comunidade, que apontava para a formação de vínculos mais intensos entre membros de um mesmo grupo quando ajustados dentro do mesmo território. Uma comunidade abriga múltiplos territórios. No Serviluz, o estudo de uma comunidade fixada às margens de uma zona portuária, lugar de trocas e passagens por excelência, e cuja composição social foi resultado do acirramento de distintas migrações operadas na contemporaneidade, a proposta do entendimento da cultura comunitária a partir das ideias de “circuitos” e “fronteiras” foi muita sugestiva.

172

Entrevista concedida por Maria Ferreira Dias ao autor em 31/06/2006. CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 2000.

173

102

No bairro, os indícios mostram que os tipos de ação política praticada não estão diretamente associados a instâncias tradicionais de luta do trabalhador, ainda que existam conexões, mas espalhadas nos diversos núcleos de sociabilidades e culturas que se constituíram. Afinal o mundo do bairro havia deixado de ser apenas o lugar onde as pessoas moravam, passou a ser também o lugar onde desenvolviam-se relações de união e solidariedade, onde acumulavam-se experiências de negociação, vivência comunitária e de resistência coletiva. Ainda no que concerne as matrizes dos movimento associativos, os trabalhadores dos portos são geralmente enfatizados pela presença da categoria nas greves, pela organização sindical e pela mobilização política dos estivadores. Todo padrão sindical parece possível na região do porto e a mão-de-obra do cais é poderosa porque sua capacidade de fazer greve também é poderosa, em geral, os sindicatos portuários têm uma forte tradição de militância174. A presença dos portuários como categoria de um setor estratégico na vida do país transformava-os, portanto, em freqüentes destinatários de uma vasta produção de discursos, o que os tirava do anonimato do cais175. Assim, esses sindicatos tendem a produzir uma ampla documentação que serve de base à compreensão dos seus embates que, em grande medida, tem origem no próprio local de trabalho. Mas no Serviluz, como foi observado anteriormente, o sindicato não constituiu foco privilegiado de politização do trabalhador, sendo mais comum a referência à pesca e ao trabalho da Colônia de Pescadores. “O sindicato dos estivadores já está quase estinto (...) porque com a privatização dos portos os sindicatos perderam a autonomia”, explica seu Natalee176. Para muitos moradores, além da desestruturação sindical, a fadiga do trabalho constitui um grande empecílio, já que a necessidade prática da profissionalização quase sempre limita a participação masculina nas entidades do bairro: “(...) O que falta meu amigo é o seguinte, o cara já chega cansado do trabalho, o trabalhador passa o dia no trabalho, chega cansado, o pescador passa três, quatro dia pescando, chega enfadado (...) então existe as reuniões lá no centro comunitário, mas o cara chega numa situação tão cansada que não tem ânimo para ir a reunião. Então existem muitos trabalhos a ser feito, más a pessoa nem toma conhecimento, os moradores, devido a tarefa do dia-a-dia”177

174

“De Santos a São Francisco, de Sidney a Liverpool, a ameaça de greve dos estivadores é ainda considerada extremamente séria”. Cf.: HOBSBAWM, Eric J. Trabalhadores. Estudos sobre a história do operariado. São Paulo: Paz e Terra, 1981. p. 209-210. 175 Op. cit. SILVA, Fernando Teixeira, p. 05. 176 Entrevista concedida por Natalee Ferreira de Sousa ao autor em 20/05/2005. 177 Ibidem.

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Ao contrário do Seviluz, a concentração operária no Bairro do Pirambu, por exemplo, permitiu uma certa articulação entre o bairro e os sindicatos da região. Por ser um bairro com adensamento de indústrias, seus moradores participaram das mobilizações sindicais, criando objetivamente uma ponta de ligação entre a luta pela moradia e a luta na fábrica, embora o bairro não fosse totalmente constituído de operários. Como observou o padre José Nilson, apesar da existência dos sindicatos, estes eram pouco visíveis na comunidade e pouco se sabia sobre suas atividades. Descia eu, certa tarde, do Morro do Farol Velho, onde distribuíra uma porção de remédios com as famílias mais carentes. Ao passar de fronte ao Pavilhão da Estiva, sede do Sindicato dos Estivadores, recebi a mais estrondosa vaia que um homem já tenha recebido. Havia, na época, um grupo radical de extremistas, de comunistas intolerantes, que resolveram me hostilizar gratuitamente. Afinal, eu não os agredia, não os combatia, nem se quer tomava conhecimento das atividades deles178.

O fato é que, à proporção que a questão da moradia se agravou, as favelas passam a se constituir em focos permanentes de tensão. Entre os interlocutores dos movimentos comunitários no bairro, os sindicatos têm aparecido geralmente com pouca expressividade. Na atual redefinição do operariado e na consolidação dos movimetos sociais contemporâneos, a empresa nem sempre é o lugar da formação política. O trabalho na verdade não pode ser isolado dos outros espaços de reprodução do proletariado, como o espaço da residência. Em 1975, foi criada a Associação de Moradores da Comunidade do Titanzinho. Pioneira, essa entidade inaugurou um novo tipo de organização social que marcaria profundamente a luta comunitária daquelas pessoas. Nos arquivos, estatutos, livro de atas, relatórios, projetos, recibos, certificados etc., encontram-se registros de uma gama de ações produzidas coletivamente e que visavam a princípio solucionar as carências mais imediatas da população. Nas pautas das reuniões, realizadas em salas durante muito tempo improvisadas, passou-se a discutir questões relacionadas ao dia-a-dia: o problema do excesso de ratos, da falta d’água, de como arranjar o trator para retirada da areia, se ia sair do leilão ou do bingo o dinheiro para comprar as vasilhas da merenda na escola. De acordo com os artigos do estatuto dessa associação, registrado em cartório somente em 28 de fevereiro de 1986, essa entidade tinha entre outras finalidades: dar cobertura ao movimento comunitário para o qual todos colaboram espontaneamente, com vistas à organização e autonomia da comunidade; e unir os moradores através da afirmação de seus 178

Palavras do Padre José Nilson, vigário da paróquia do Mucuripe. Cf.: Op. cit. GIRÃO. p. 197

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interesses de trabalhadores e cidadãos, visando o fortalecimento de suas lutas pela superação de seus problemas e necessidades179. Segundo o mesmo estatuto, a associação, “sem fins lucrativos”, funcionaria “desvinculada de qualquer atrelamento político-partidário”. Mas o que podia significar a produção de um documento escrito e registrado num universo onde tradicionalmente predominou a oralidade? “Então o pastor Bill180, o (padre) José Nilson, as assistentes sociais e a Colônia de Pescadores foram muito importantes para minha vida comunitária181. A organização dos moradores do Serviluz em associações comunitárias difundiu-se amplamente. No Serviluz, dona Mariazinha é um grande exemplo de liderança comunitária, constituída da diversidade de matrizes que tomaram o bairro: “Eu como liderança eu tenho contato com todo mundo. Eu tenho meu partido, mas eu não tenho que me atrelar em partido algum, eu tenho que trabalhar em benefício da comunidade (...) a minha reivindicação, eu tenho que pedir benefício pra comunidade (...) por isso eu tenho amizades com todos, o meu trabalho é comunitário, é pela associação, é pelo povo (...) aqui é aberto pra todo mundo” 182.

Dona Mariazinha acumula mais de quarenta anos de prática comunitária onde adquiriu contato com diversos políticos, trabalha como responsável não apenas pelo Serviluz, mas participa de diversos conselhos populares na cidade. Participou da fundação da Federação de Bairros e Favelas de Fortaleza (FBFF), em 1980, e se tornou uma referência no movimento popular no estado183. De modo geral, a participação dos moradores na luta pela melhoria social é entendida como uma forma de valorização do espaço comunitário. Para os participantes, o engajamento correspondia a um momento-chave de participação pública em prol do bem comum: “(...) Foi preciso fazer uma passeata, um evento assim, a gente tudo mal trajado, com roupa pior do que a gente já tinha né? E saimo numa caminhada (...) pegando mais gente. E nós saimo e a gente conseguiu fazer aquele posto ali né? Primeiro era uma salinha ... chegava um médico por semana, mas já era muito que ninguém tinha nada”184

179

Estatuto disponível no arquivo da Associação de Moradores do Titanzinho. Pastor norte-americano que liderou a construção da Igreja Presbiteriana e tornou-se um dos pioneiros no trabalho assistencial e educativo no bairro. 181 Depoimento de Maria Ferreira Dias, a dona Mariazinha, líder comunitária do Serviluz. Op. cit. CEARAH, Periferia, p. 102. 182 Entrevista concedida por Maria Ferreira Dias ao autor em 31/06/2006. 183 Entre inúmeras viagens à Brasília e a participação em diversos conselhos comunitários de Fortaleza, dona Mariazinha é a atual presidente do Conselho das Entidades do Grande Vicente Pinzón, que congrega 36 associações de bairros da área. A reivindicação conjunta foi uma estratégia para o aumento da representatividade das comunidades que possibilitou a formação de parcerias importantes, como às desenvolvidas com a Petrobrás. 184 Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003. 180

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O movimento pela aquisição da cidadania, num bairro repetidamente visto como marginal, não se restringe a modelos formais de reivindicação, como as associações de moradores, mas desenvolve-se quase sempre no improviso diante de situações contingentes. A encenação da própria miséria como uma estratégia política carece de uma definição mais abrangente de política. Nesse sentido, o campo da política ultrapassa o âmbito estritamente institucional e os limites da presença e da ação do Estado, para colacar-se na multiplicidade de formas de poder e nos canais de autonomia comunitária. Se os eventos comunitários assumem grande importância, já que era através deles que uma grande leva de despossuídos procurava amenizar suas carências básicas, a vivência comunitária também enseja a mudança de comportamento e a construção de novos valores: “(...) eu tenho essas coisas tudinho notado, tenho o dia que foi aberto a programação do posto (de saúde), tenho o dia que veio esses posto (de eletrecidade), tenho o dia da inauguração do chafariz ali na rua da frente”185.

Entre esses novos valores, está o reconhecimento da necessidade de registrar as conquistas, de comemorar cada vitória e fazer da memória comunitária um referencial para as futuras gerações. O processo de aprendizagem coletivo e a noção de cidade como uma comunidade desenvolvem-se de modos variados, corroborando a diversidade de estratégias criadas no meio. “(...) Nós da comunidade do Serviluz vinhemos solicitar soluções para a retirada da areia que está nos atingindo bastante, já caiu casas, outras estão enterradas. A areia está causando doença, ninguém não consegue dormir, nem comer, diante das condições que estamos. Cada vez mais piorando ainda mais devido à época do vento” 186.

Entre os grupos comunitários do bairro, as associações de moradores constituíram talvez o modelo mais acabado e mais estruturado de organização, mas não o único. A visibilidade das associações ocorre porque, além do potencial de reivindicação, os seus membros conseguiam assimilar a compreensão da cultura escrita, o que possibilitou a abertura de novos canais de inserção. “Devemos falar sem vergonha e sem querer falar bonito, mas sim falar o que sentimos da maneira que sabemos”187. Surge vinculada à necessidade das letras, a idéia da participação política como uma espécie de desempenho, já que todo documento grafado precisa também 185

Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003. Ata de reunião da Associação de Moradores do Titanzinho em 10/11/1982. 187 Ibidem. 186

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ser apresentado verbalmente e a forma da apresentação é as vezes tão importante quanto aquilo que se apresenta. Outra importante mudança comportamental observada nas associações refere-se à participação efetiva das mulheres locais188. Nas atas de reuniões, as letras trêmulas das assinaturas indicam a nítida supremacia da presença feminina. Ainda que nem todos soubessem assinar, as mulheres superam freqüentam, como grande maioria, todas as reuniões. Para se ter uma idéia, na ata de reunião em 11/07/82, entre as 17 pessoas que assinaram, havia o nome de apenas um homem. Curiosamente, 12 das participantes chamavam-se Maria189. Os estudos recentes têm como perspectiva procurar a história da mulher no âmbito privado, nas relações cotidianas e nas redes de poderes informais190. No Serviluz, foi a partir da investigação das práticas cotidianas das associações que se percebeu a quebra de preconceitos, a superação de desafios, a elaboração de novos valores e a criação de novos tempos e espaços.

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Apesar disso, nos depoimentos, foram constantemente lembrados nomes importantes para as associações, como o do seu Manoel de Paula, mais conhecido como “galo velho”, e o do seu Francisco de Assis, recentemente falecido. Esses homens foram presidentes da Colônia de Pescadores do mucuripe e principiaram a gestão de parcerias entre a comunidade e as entidades de pesca. 189 Ata de reunião da Associação de Moradores do Titanzinho em 11/07/1982. 190 Cf.: DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1990.

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Capítulo III 3 O homem e a natureza: os elementos para as transformações 3.1: As areias que voam

“Cumpre saber que o vento é compósito. Acredita-se que o vento é simples; engano. Essa força não é somente dinâmica, é química; não é somente química, é magnética. Tem alguma coisa que é inexplicável (...) o vento é cheio de mistério. Do mesmo modo que o mar. Também ele é complicado; debaixo de suas vagas de águas, que se vêem, há outras vagas de força, que se não vêem. Compõe-se de tudo. De todas as misturas, a do oceano é a mais invisível e a mais profunda. Tentais conhecer esse caos que vai ter ao nada. É o recipiente universal, reservatório para as fecundações, cadinho para as transformações (...)”. (Trabalhadores do Mar, Victor Hugo)

No presente capítulo, procura-se analisar as relações estabelecidas entre homem e natureza, a fim de argumentar que os habitantes desse lugar não viveram a atmosfera que os circundavam impunemente. Residindo sobre uma localização geográfica atípica, rica e selvagem, desenvolveram a partir daí suas estratégias de sobrevivência, constituíram traços culturais e organizaram o cotidiano. Dentro das possibilidades históricas, dadas pelo meio e pela intervenção do homem na natureza, procuraram, quase sempre de maneira coletiva, inventar formas dignas e agradáveis de sobreviver na ambiência na qual se relacionavam. O espaço, desconsiderando possíveis determinismos geográficos, torna-se um elemento básico da cultura. De certa forma, os moradores do bairro fizeram operar uma lógica de vida diferenciada, que, muitas vezes, contrastava com a racionalidade que se pretendia para o espaço urbano do progresso. No trabalho, nas habitações e nos relacionamentos pessoais, emerge a criatividade de sujeitos históricos entrelaçados ao meio. Em determinadas circunstâncias, os habitantes do Serviluz e regiões adjacentes se apropriaram culturalmente das condições naturais estabelecidas, preservando-as, modificando-as e utilizando-as em benefício próprio. O homem é um animal social.

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A carta abaixo apresentada foi remetida à cidade de São Paulo e endereçada ao programa de televisão “Porta da Esperança” no dia 05 de março de 1990. Com ela, os membros da Associação de Moradores do Titanzinho esperançavam obter reformas na Escola Comunitária São Pedro, construída em 1978 e constituída durante anos de apenas três pequenas salas de aula. Na luta comunitária do Serviluz, natureza e cultura se entrelaçavam. Prezado Sr. Silvio Santos E com grande satisfação que estamos escrevendo a V. Sa. Em primeiro lugar, desejamos contar um pouco da história da nossa comunidade: Somos, aproximadamente, oito mil pessoas constituídas basicamente de pescadores e artesãos. Nós morávamos na praia da barra mansa no mucuripe de onde fomos retirados pela marinha e colocados aqui na praia do Titanzinho que é outra faixa de terreno, mais além, na beira do mar que fica no bairro Serviluz. Sofremos muito com a chuva de areia que invade nossas casas e tempera nossa comida. Há onze anos nos mudamos para esse local. Com grande sacrifício fixemos nossas casinhas. São muitas famílias e a terra e o dinheiro curtos, por isto fomos obrigados a fazer casinhas muito pequenas, na maioria com dois a três cômodos, muitas delas sem banheiro, onde vivem mais ou menos oito pessoas. Há dez anos estamos tentando organizar nossa comunidade com o propósito de enfrentarmos juntos a luta pela sobrevivência (...)”191.

A Associação do Titanzinho foi formada basicamente por mulheres de pescadores expulsos da Praia Mansa. A comunidade tinha se fixado no Serviluz havia mais de dez anos e as mobilizações políticas eram extremamente necessárias porque as dificuldades de habitação continuavam enormes. Acompanhando uma tendência geral na cidade, a carência de escolas havia se configurado como um sério problema para o bairro desde os anos 80. Segundo dados da associação, em 1990, aproximadamente sessenta por cento da população era constituída de crianças menores de quinze anos que, na maioria, não conseguiam ingressar nas escolas públicas fora do bairro e ficavam “sujeitas à marginalização e ao jargão de menor abandonado”192. Apesar da não contemplação no programa de Sílvio Santos, os moradores do lugar, que já haviam iniciado pequenas reformas no espaço, foram se engajando: “Eu fui olhar como era o movimento! Um quartin!”193. A partir do envolvimento de novas pessoas, “olha começou a andar, e hoje se encontra uma casa grande, dando capacidade a mais de trezentos alunos”194.

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Carta disponível no arquivo da Associação de Moradores do Titanzinho. Em 16 de agosto de 1990, foi celebrado um acordo entre o Fundo das Nações Unidas e a Associação de Moradores do Titanzinho, no qual se aprovava um pedido de ajuda financeira para a comunidade e seus projetos sociais. Via representação do Unicef no Brasil, passavam a fazer parte das “Entidades e Projetos Apoiados pelo Criança Esperança”. 193 Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003. 194 Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003. 192

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O trabalho comunitário, sob a forma de associações, alcançava quinze anos de experiência de luta quando a referida carta foi escrita, seus associados acumulavam e partilhavam projetos. Parcerias e aprendizados foram se desenvolvendo com entidades de outros bairros da periferia da cidade. A procura pela cidadania a partir da organização em associações comunitárias tornou-se uma prática comum no Serviluz e marcou presença forte em melhorias sociais. Acontece que um dos pontos marcantes dos diferentes movimentos associativos que foram se formando no bairro era a sabedoria em elaborar suas estratégias e reivindicações por moradia e trabalho em função do tipo específico de paisagem no qual estavam inseridos. É também em cima dessa sigularidade, que os moradores passam a cantar a história do bairro: A areia fazia funil, era uma assombração O feijão quando cozinhava, niguém podia comer não. Nesse tempo as criancinhas, viviam pra morrer e nós sempre cobrávamos, a força do Poder. Vinha gente dos órgãos, estudar a solução Mas só os que sofriam, trabalhavam feito uns cão, Retirando areia pesada que tirava tudo então.195

No Serviluz, por exemplo, na ampliação do pequeno espaço da escola, os moradores daquela praia precisavam superar, além da falta de recursos para tocar a obra, um enfrentamento desgastante com o tipo de solo sobre o qual estava a obra. As condições adversas do meio ambiente se faziam presentes em muitos aspectos da vida, interferindo diretamente no cotidiano. Os homens e mulheres situavam-se num ecossistema próprio, ativo, e em dados momentos pareciam travar duelos contra gigantes, as forças da natureza. Uma breve leitura dos projetos desenvolvidos na comunidade nos revelou que os esforços dos grupos de moradores e outros núcleos sociais eram em boa medida canalizadas na superação de problemas referentes às condições ambientais ou a elas relacionados. As reuniões campais eram pautadas em temas como: o excesso de ratos; a poluição advinda do lixo; a retirada de entulho dos becos e ruas; a constante falta de água encanada e energia elétrica nas casas; o plantio de vegetação e a vinda do trator para amenizar o vôo das areias. A carência material era generalizada nos bairros pobres da cidade; bairros da zona de praia leste, como Pirambu e Barra do Ceará, apresentavam semelhanças geográficas às do Serviluz, mas os prejuízos de moradia deste bairro, advindos da natureza, são severos. Os

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ventos fortes varrem finas nuvens de areia que podem facilmente soterrar casas. Em alguns meses do ano, principalmente de agosto a novembro, a areia deteriora bastante os prédios. É senso comum na comunidade que a área do Serviluz tem a “segunda maior maresia do mundo”, que a concentração dessa substância é voraz, devora eletrodoméstico, porque rapidamente “a maresia penetra pra dentro dos móveis, enferruja geladeira, fogão e estraga televisão e assim vai... ”196. Ali, objetos e corpos desgastam-se na contínua combinação dos elementos da natureza. No caso da reforma da Escola São Pedro, localizada à beira mar, o solo arenoso fazia ceder as paredes, o vento quebrava as telhas e a movimentação das dunas progressivamente soterrava a estrutura física da escola. A luta contra as intempéries se amplia de modo sazonal, notadamente durante o período das ressacas da maré, nas enchentes trazidas pelos meses de inverno e na época dos ventos intensos, entre agosto e outubro. Se as manifestações da natureza são sazonais, os dramas dos moradores contra seus efeitos podem ser vividos diariamente. Uma entrevistada, cuja casa já havia desabado uma vez, observou que nas reuniões de ruas se lutava quase ininterruptamente, a fim de se evitar a areia que caía nas casas. A preocupação novamente recaía sobre as crianças, devido aos altos índices de mortalidade e doenças entre os meninos do bairro; a areia podia anunciar a morte. “Dava diarréia, pneumonia, vômito e chegaram a morrer. Vários caixõezinhos eu fiz devido essa crise de diarréia que aparecia nas crianças, uma calamidade muito grande! (...), olhe, era muito crítico, muito sofrido. Eu via calamidade das mães chorando, limpando os olhos dos filho direto, chei de areia tudo. Quando botava o feijão no fogo aqui, metade era areia. Às vezes minhas filhas: - Não, como isso não mãe que meus dente é tudo ringindo... Mastigando areia pura... Eu chorava. Às vezes botava um lençol por cima das cadeira e botava elas pra comer debaixo pra na hora do almoço não comer só areia” 197.

Dona Zuleide comprou sua casa, um pequeno “localzinho”, de um morador que não mais agüentara o peso da areia e a poeira das pedras. A ameaça de desabamento deixava todos em constante atenção. Além disso, a areia nos alimentos, o acúmulo de lixo na praia e os poços artesanais cavados próximos às fossas propiciavam afecções de toda ordem. Entre os moradores mais próximos do mar, fazia-se necessária a realização de pequenos improvisos diários. “Aí o pessoal faz o quê? Descarrega areia com carrinho de mão, outros agoam, outros

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Cordel produzido por Maria Zuleide de Oliveira Moura, disponível na Associação de Moradores do Titanzinho. 196 Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002. 197 Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003.

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bota planta, bota palha pra ver se diminui, mas todo ano a mesma coisa”198. A experiência concreta com um meio natural que pode mostrar-se hostil torna também esse um espaço marcado pela inventividade popular, capaz de amenizar os transtornos e reverter situações adversas. Diferentemente da ameaça proporcionada pelo fogo, o enfrentamento diário das águas, dos ventos e das areias já existiam antes da chegada desse povo à região. A questão é que estes elementos se transformaram em problemas comprometedores com a intervenção e ocupação humana. A construção dos espigões e a edificação de novas habitações, ecologicamente irregulares, evidenciaram também a força da natureza local. Para se ter uma idéia da potência da ventania, vale lembrar que em 1996, na área da Praia Mansa, foi instalado o equipamento para obtenção de energia através da força dos ventos199. As dificuldades e aventuras envolvendo a natureza também emergem com certa facilidade e entusiasmo nas narrativas dos moradores. Grande parte dessa população veio dos longos 573 quilômetros de litoral cearense para “tentar a vida” em Fortaleza. Na cidade, morar nos morros e na beira de praia para muitos não era exatamente uma novidade. Na nova habitação urbana, exercia-se a permanência de práticas antigas, como o hábito de caminhar longos trajetos ou cavalgar. Para subir a parte mais baixa de um morro, era preciso andar; em alguns locais, a duna era tão alta e tão íngreme que praticamente impossibilitava a chegada à porta de casa sem uma caminhada enfadonha. Dona Conceição200 contou que, apesar de ter nascido em Camocim, onde a praia era “bela” e a areia “bem grossa”, e não “fina” e “voadora” como a do Serviluz, nunca gostou de morar no litoral. A entrevistada acredita que, somente por ironia do destino, ela agüentou não apenas morar a vida inteira na praia como também, chegando à cidade, trabalhar em um frigorífico com produtos marinhos durante sete anos, casando-se ainda com um pescador com o qual teve três filhos. “Sempre o destino me castigou com isso aí (...) olhe eu vou dizer: pra mim foi a necessidade, tá entendendo! pra mim foi muita necessidade que me deu muito a importância de eu resistir essa coisa que eu não queria (...)”201.

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Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002.

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189

Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003. Instalado pela Companhia Energética do Ceará (COELCE) em 1996, o Parque Eólico é composto de quatro geradores de 40m de altura e 300kw de potência cada. Cf.: Museu do Jangadeiro no Farol do Mucuripe 200 Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003. 201 Ibidem. 199

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Há, nesse caso, o entendimento da condição praiana como uma experiência de suma importância. Há também o desenvolvimento de certas sensibilidades que tornam os moradores capazes de distinguir detalhes, aparentemente secundários, por exemplo, na composição do solo. Se para alguém de fora a areia da praia pode aparentar ser tudo igual, para os que convivem diariamente com seus efeitos, essa é uma observação no mínimo importante. A questão é como as pessoas foram constituindo diferentes modos de apreciação da natureza que as envolvem. Prazer ou obrigação, a condição de se relacionar de forma mais direta com o meio na verdade é uma experiência já adquirida por boa parte dos migrantes que chegaram ao Serviluz. Além dos antigos habitantes da Praia Mansa, muitos moradores do bairro eram provenientes de morros ocupados nas proximidades202 e enfrentavam situações como os riscos de erosão e o perigo decorrente da enchente das marés. “Então essa área aqui começou porque o Titan Velho (Praia Mansa) foi invadido pelas águas, e o governo com medo, a Capitania com medo de o pessoal anoitecerem vivo e num amanhecerem que o mar tava crescendo muito, tomando os paredão (...) pra gente atravessar nas marés grandes era um sufoco. A gente ia enxuto e voltava molhado porque o banho era certo. Maior perigo! Então, aí eles mudaram o pessoal pra essa área, e foi se localizando, aumentando e duma família trazendo outra e assim sucessivamente (...)”203.

Quem chega a Fortaleza e se desloca para essa região precisa considerar como fatores cruciais de moradia a situação ambiental, a localização, a natureza do espaço. Tradicionalmente essa região foi de pesca e outras atividades, profissões que apresentavam uma forte interação com o meio em que se trabalha. No Serviluz a prática do surfe deu uma continuidade renovada a essa tradição em que natureza, trabalho e cultura se fundem. A natureza transformada em selvagem, talvez pela maneira grosseira como foi modificada, dificultou inclusive a montagem do porto e da indústria. No decurso das obras, bem como no processo constante de manutenção, a natureza avaria sem tréguas os prédios e equipamentos das fábricas, os elementos naturais impõem também os seus impasses à modernização; muitas vezes, é o próprio ambiente alterado que expõe as contradições e furos do processo modernizador. Mas, contrariando as revoltas da natureza, o desejo industrial burguês se projeta sobre os recursos naturais, transformando-os a serviço do sistema capitalista de exploração. A enseada foi desastrosamente aproveitada por ocasião do porto. Nos anos cinqüenta, a 202

Castelo Encantado, Morro Santa Teresinha, Morro do Teixeira, Morro das Placas, Lagoa do Coração, Favela da Sardinha, Favela do Marrocos, Favela do Luxou, parte do Papicu e da Praia do Futuro, entre outras, são regiões de dunas ocupadas trabalhadores migrantes na parte leste de Fortaleza. 203 Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003.

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termelétrica SERVILUZ teve seu prédio construído à beira-mar do Mucuripe, exatamente porque a usina se beneficiava da água mansa represada pelo quebra-mar. O projeto de energia da época, aliás, fora desenhado para utilizar a água do mar, o que só era possível com a manutenção permanente de equipes de mergulhadores. Eram os homens das classes trabalhadoras que cumpriam o penoso serviço de limpeza e deslocamento das bombas de dragagem da usina; eram eles, e não os donos das fábricas, que teriam seus corpos mutilados pelo capital. Muitas vidas se perderam na disputa pela domesticação dos elementos, a tentativa de submissão da natureza ao progresso foi por vezes bastante perversa. Em tempos recentes, na construção do Porto do Pecém, diferentemente do ancoradouro Mucuripe, anunciou-se a preocupação em reduzir os possíveis impactos ambientais na orla: “Para a sua implantação, diversas variáveis ambientais, como ventos, marés correntes e ondas foram monitoradas, de modo a reduzir possível impacto no local e na sua área de influência”204. Apesar do discurso de aproximação com a comunidade e da proteção ambiental, tanto a preservação dos ecossistemas quanto a qualidade de vida da população dessa parte do litoral do Ceará foram comprometidas com o deslocamento das pessoas que habitavam o local. Escolha ou necessidade, o fato é que quem chegava ao Serviluz sabia que habitava um pedaço de chão que até bem pouco tempo era água do mar. Antes do surto ocupacional em massa, ocorrido no final dos anos 70, as marés beiravam os portões das indústrias, raras eram as edificações. Parecia impensável a criação de um conglomerado humano que atualmente apresenta um contingente de pelo menos vinte mil pessoas, um bairro inteiro erguido naquele terreno irregular e arenoso, um lugarejo afastado onde o domínio visível da natureza parecia representar a própria ausência da já anunciada civilização urbana. Nas entrevistas os moradores comumente se remetiam “àquele tempo”, referindo-se ao restrito povoado de pesca e ao meretrício estabelecido desde os anos sessenta. Relembram claramente que nesse tempo nem todos os espaços podiam ser ocupados por casa, era preciso muita coragem, pois na área prevalecia ainda uma intensa sensação de isolamento, sem energia elétrica, entre dunas e matagais. Essa lembrança do lugar paradisíaco é quase sempre uma referência especial do passado, mas não um passado nostálgico e idealizado, e sim uma memória viva que denota com clareza como nos dias atuais a população mudou e para melhor.

204

Informativos Cearáportos, ano III, nº. 15, out./nov. 2003.

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O fato é que as condições naturais foram fundamentais no início da ocupação, e, pela fragilidade da estrutura habitacional, muitos casebres da praia desabaram várias vezes, soterrando o sonho da vida estável na cidade. Acrescente-se aos problemas de infra-estrutura e à ausência de saneamento básico a incômoda sensação de não ser o dono da terra em que se vive, já que oficialmente o terreno é pertencente ao Patrimônio da União. Sendo uma concessão da Marinha, as casas não podiam ser compradas ou vendidas e a ocupação somente era possível na condição de moradia de pescador, o que na prática não aconteceu. Na cabeça de alguns moradores, a qualquer hora o espaço pode sofrer intervenção da Capitania dos Portos, já que o terreno está sob sua jurisdição, e tornou-se ainda um dos alvos favoritos da especulação e da indústria turística. “Esse boato corre há muito tempo: um dia o Serviluz vai sair daqui”, são expressões que apontam a luta pela permanência como questão a ser enfrentada de forma contínua. “Essa área da praia eu sou contra dizer que vai sair alguém (...) porque existe a lei. Se existe a lei pra gente não sair daqui, ela tem que ser cumprida”205. Os projetos de retirada da população atravessam as gerações, há, porém, o consenso local de que “a praia do Serviluz é uma praia dos pobres”206. A luta inicial pela ocupação “naquele tempo” deu lugar aos embates pela continuidade no hoje. Esse conflito ganha importância à medida que a comunidade se conscientiza da importância da manutenção de homens e mulheres no espaço onde operam suas ações, onde constroem suas culturas. Um fato importante é que as pequenas casas do Serviluz só foram erguidas após a construção de um grande espigão de pedras, capaz de fazer recuar e barrar as águas. Com o mar “dominado”, os tratores e caçambas derrubaram morros e limparam o terreno. As pedras foram alinhadas por locomotivas e então construídas as primeiras palhoças de taipa. Rapidamente, protegido pelas rochas, aquele pedaço de terra até então ocupado por uma ou duas ruas transformou-se num formigueiro humano impressionante. As pedras há muito tempo tinham como destino o Mucuripe. Ali funcionou uma antiga pedreira. Retirantes de outros tempos, desnutridos e famintos devido ao flagelo, somente recebiam a ração distribuída nos socorros públicos do governo após arrastarem pedras de mais de quinze quilos por quilômetros de distância, num percurso sobre areias. As pedras, antes destinadas às obras do porto, passaram a ser empregadas na construção de imensas paredes de proteção contra o mar e posteriormente nos alicerces das pequenas casas dos trabalhadores. 205 206

Entrevista concedida por Maria Ferreira Dias ao autor em 30/06/2006. Entrevista concedida por Natalee Ferreira de Sousa ao autor em 20/05/2006

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É importante observar como, mesmo após a construção de milhares de casas, as pedras ainda guardam a sensação do isolamento. A exemplo dos areais antigos, pontos ermos em que parecia impossível o advento da civilização, as pedras no Serviluz são hoje espaços estigmatizados. Na literatura cearense, figurou a imagem das areias como lugar inóspito, incômodo, desprovido do conforto da vida urbana; no bairro, porém, as pedras e as areias não são lugares vazios, mas abrigam sociabilidades diferentes. Apesar da vista belíssima, ali permanece a sensação de se viver sobre um espaço pouco freqüentado, solitário e pouco visto no litoral de Fortaleza; é um espaço móvel, já que mesmo as pedras sucumbem às pancadas do mar e à movimentação do solo. Quem ali sobe, ainda que esporadicamente, vê que se tornou cada vez mais fácil escalar as pedras; a natureza muda seus caminhos, as pessoas reaprendem a caminhar. Imaginar que a longa pilha de pedras serve apenas como mecanismo de proteção contra o avanço do mar é uma grande desatenção. Esse espaço soma-se a outros do bairro onde a natureza e o tipo de arquitetura sobre ela empreendida foram definidos socialmente pelos moradores como espaços proibidos. Lugares escuros à noite e de difícil acesso possuem fronteiras sociais em que os espaços são transformados em territórios, considerados proibidos, perigosos e não aconselháveis para muitos moradores da mesma comunidade. Os homens de várias formas se apoderam e demarcam pedras, batizam mares e nomeiam ruas de areia. Nas praias acontecem namoros proibidos; sobre as pedras, muitos jovens iniciam a sexualidade, experimentam drogas, enlouquecem. Mortes, acidentes, traições matrimoniais e toda uma gama de ações e atos escusos se desenvolvem sobre poeiras e paralelepípedos, mas, entre os moradores, pode haver divergências gritantes sobre o gostar ou não da vida à beiramar. A praia quase sempre é tomada como ponto de encontro, da diversão e da amizade, pode ser assim o melhor lugar para curtir uma boa “basquetada”207. A praia conserva a idéia da dádiva, da fortuna, da fecundidade e do privilégio, mas também o pensamento do sufoco, da maldição, da desgraça e da falta de sorte de ali habitar. É preciso também considerar que ali se desenrolam variadas formas de sociabilidade, afeto e lazer. Apesar do estigma, são espaços concebidos e utilizados por muitos moradores como uma extensão da própria casa, ainda que para fazer coisas que não se faria na intimidade do lar, porque é exatamente a condição, culturalmente criada, da pouca aceitação e visibilidade noturna que faz do lugar atrativo ou repulsivo.

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Brincadeira, lazer entre amigos geralmente regado a bebidas e comidas angariadas no coletivo.

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Desse modo, da relação dos homens do local com a natureza emerge também a desarmonia. Nas memórias surgem tanto as imagens do paraíso quanto as do inferno. A ambiência perigosa tem como marca os constantes riscos e acidentes banais. Ao longo do tempo, as histórias de garotos distraídos, vitimados em acidentes fatais, se espalharam. Bater a cabeça ou escorregar numa ponta de pedra ao tomar banho não é fato raro. Sabe-se que é preciso conhecer em pormenores os locais propícios para mergulhar, ter noção dos acessos mais práticos, saber reconhecer as melhores “locas”208. Se há controvérsias sobre os desígnios da natureza e as relações do homem com o meio, há igualmente uma contradição sobre o valor econômico atribuído às casas da beira mar. Nessa parte do litoral, operou-se uma lógica de ocupação em que as residências mais próximas da praia são as mais vulneráveis às intempéries naturais e por isso menos valorizadas comercialmente. Como não interessa aos trabalhadores de maior poder aquisitivo morar diante do mar, as residências à beira da praia continuam sendo as mais rudimentares em matéria de arquitetura e segurança domiciliar. Mesmo nas casas das ruas principais, é comum que, para amenizar o cair da areia nos cômodos, as telhas sejam forradas com um tipo de lona plástica. Mas nem o plástico elimina a estranha sensação do cair da terra sobre o corpo, que sente facilmente a idéia de habitar um lugar cuja natureza se revela ímpar. Seja como local de moradia, seja como meio de trabalho, seja para fins de lazer, as nuanças geográficas interferem diretamente no dia-a-dia da população, aguçando sobremaneira as sensibilidades. Do teto emplastificado sob o qual se dormia ao chão movediço sobre o qual se pisava, os elementos naturais deixam suas marcas no cotidiano do lugar. Até há pouco tempo, as areias das dunas infestavam de pulgas os pés das pessoas; quando se olhava para os dedos de uma criança, notava-se que estes estavam repletos de buracos deixados por bichos-de-pé. As pulgas migravam da areia, alojavam-se no corpo e penetravam na carne. Em algumas falas, a deficiência socioeconômica devia ser superada pela própria utilização racional do ecossistema, a mediação entre consciência dos valores humanos e a natureza, o mutualismo com o ambiente, o aprendizado do espaço como impulsionador das transformações sociais necessárias. Nesse contexto, parte da juventude passa a expressar os problemas e a cultura local em sua mutiplicidads, o entendimento de cultura pode não mais se restringir ao microcosmo do

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Cavernas esculpidas entre as pedras, algumas conseguem abrigar cerca de oito pessoas.

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bairro, ainda que o espaço contenha os elementos essenciais de sua formação, mas se baseia na integração da comunidade ao planeta: As folhas dos livros não dizem tudo que querem dizer. O fogo não queima tudo que tem para queimar. A água do mar não chegou onde quis. O homem impediu a natureza de se revelar e onde ele está? Vai ficar. A terra é fértil, é vida que brota de todo lugar. O homem parece que não entendeu a lição? (...) supérfluo, vil metais, estrato de uma conta gorda no Banco Cental. As coisas da vida ainda me dão prazer de viver, na beleza de ser. A vida quão longa é tão bela, que ainda dá para fazer o que dá para fazer. A terra e as coisas da vida é tudo um só e tudo gira em torno de você. E tudo isso é parte de você. Tudo, tudo.209

3.2 Arquitetura local: da taipa ao tijolo “(...) Se propunham como objectivos não uma mera melhoria das condições materiais de vida dos trabalhadores, mas sim a procura de satisfações mais elevadas, satisfações essas que se tornariam mais acessíveis após a obtenção de um mínimo de condições materiais”.

(Richard Hoggart) “O bairro tem sua infãncia , juventude e velhice. Esta, como a das árvores é a quadra mais bela, uma vez que sua memória se constituiu”.

(Ecléia Bosi) Como observado anteriormente, as fortes agitações marítimas, os ventos, as dunas e posteriormente os incêndios não facilitavam a fixação do homem na região do Mucuripe, e o Serviluz permaneceu um local pouco habitado até o fim dos anos 70. As migrações para Fortaleza, no entanto, provocaram uma acirrada disputa pelos espaços urbanos e as camadas pobres da população procuravam se fixar mesmo em locais considerados inadequados e insalubres para a habitação. Não sendo possível eliminar a imensa massa de trabalhadores que no período tomava conta da cidade, os movimentos sociais pressionavam o governo a participar mais ativamente da melhoria habitacional nas favelas, urbanizando-as. 209

Letra da música “Tudo” do cantor local Eduardo Lenda.

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Nos anos 80, os levantamentos topográficos e os projetos de terraplanagem das dunas empreendidos pelo Estado reafirmavam a dificuldade, há muito sentida na prática pelos moradores da praia, de garantir condições mínimas de moradia sobre as areias. Esse trabalho era extremamente problemático devido aos constantes escorregamentos e erosões da terra. O trabalho exigia elevados recursos financeiros. Cuidados especiais precisavam ser aplicados na execução de tarefas como o tráfego de equipamentos sobre pneus ou a fixação de cobertura vegetal num terreno deslocado ininterruptamente pelo vento. Mesmo com o uso de uma terra mais grossa e com a irrigação permanente, os desmoronamentos por vezes aconteciam. Além disso, não era possível urbanizar as dunas sem destruir seus elementos naturais. Já na edificação portuária, solicitava-se constantemente a intensificação do plantio de maiores extensões de grama verde sobre os morros do Mucuripe, para que a areia não soterrasse as construções. A necessidade de se resguardar contra os efeitos perversos dessa paisagem natural alterada e o receio das conseqüências assustadoras do crescimento demográfico que assolou a região provocaram uma verdadeira revolução, em termos de moradia, no Serviluz. “(...) quando chegou o primeiro ônibus pra passar nessa linha aí, foi uma animação muito grande né (...) aí todo mundo foi lá pra pista pra comemorar. Aí o motorista sentiu-se muito feliz, um motorista mais feliz do que aquele ... Porque tiraram ele de dentro do ônibus nos braços sabe? Era os homens, pescadores, sabe pescador como é que é né? Eles se sentiam muito ruim quando chegavam do mar né, do porto do Mucuripe pra cá, de pés, no escuro. Quando chegava aqui num dava nem pra saber direito qual era a sua casa de tão escuro que era, só a zuada do mar. Aí quando veio o ônibus aqui foi uma festa uma coisa.... uma festa” 210.

Durante esta pesquisa, constatou-se que o Bairro Serviluz foi constituído em meio à uma série de transformações urbanas. Esse espaço deixou de ser somente um povoado onde o fogo significava luz. De modo curioso, a denominação do bairro popularmente quase não é atribuída a usina de energia elétrica, usualmente, atribuí-se o nome do bairro ao letreiro do ônibus. Se no plano industrial o Serviluz foi um projeto fracassado em termos de geração de eletricidade, no plano cultural, essa comunidade fomentou experiências sociais bastante iluminadas. Ao tempo dos cadeeiros e velas, sobreveio à época dos refletores. A lua e as estrelas já não iluminavam a contento os caminhos em terra, e a chama do fogo se tornou uma severa ameaça. Com o passar dos anos, os postes de eletricidade já não eram suficientes somente nas ruas e estabeleceu-se a necessidade da iluminação noturna na praia. Ali, se havia adquirido uma certa sensibilidade para a luz elètrica e desenvolvido o gosto do uso noturno do espaço.

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Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.

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O desejo do asfalto também se concretizou e as memórias das areias atualmente misturam-se as lembranças da poeira da cidade asfaltada. Nos depoimentos, a imagem do paraiso podia ser enganosa, e a agradável sensação dos pés afundando docemente na areia macia da praia, ilusória. A caminhada daqueles tempos não mais fazia sentido e o transporte, a pé e no escuro, agora oferecia riscos diante da quantidade de prédios e objetos postos sobre as dunas. No dia-a-dia do trabalhador, o ônibus, e por consequência o asfalto, significavam facilidades no trabalho e na sonhada educação dos filhos. Por outro lado, a luta e a adesão dos moradores as melhorias urbanas, como o sistema de transporte, possibilitou a difusão de trabalho, educação e novas amizades fora dos limites do bairro, anunciando o multicuturalismo. Ao mesmo tempo, a aquisição de equipamentos urbanos possibilitou que a comunidade ensaiasse lâmpejos de autonomia em relação à cidade. O crescimento do comércio local, por exemplo, consolidou um sistema de compra e venda de produtos que permitiu a fixação dos moradores, pois estes passaram a dispôr de serviços básicos nos arredores da casa. “Quem conheceu o que era Serviluz e o que ele está agora, o Serviluz virou uma cidade”211. Sobre a transformação operada nas condições de habitação no bairro, há, de modo geral, certo espírito de vitória na concepção da maioria dos moradores. A convicção era a de que nos dias de hoje era indigno estabelecer a convivência dentro de frágeis choupanas de madeira. Nas falas, o avanço do tempo e as mudanças materiais acarretadas nesse processo trazem a sensação do sucesso, da permanência, da fixação de quem acompanhou a sistemática melhoria das frágeis habitações de barro, madeira e plástico. “Mas graças a Deus que quase todo mundo já tem o seu emprego digno, as condições de moradia tão melhor, ninguém mora mais em casa de tábua, todas são de tijolo. Vinte anos de conquista eu tô vendo o resultado”212.

Nas construções, aos poucos, os moradores passaram a não mais utilizar as mãos para modelar o barro da taipa; entrou em cena o tijolo. Este passa a ser assentado com os braços e os utensílios de trabalho do pedreiro, instrumentos de um profissional cada vez mais requisitado na comunidade. No decorrer dos anos, substitui-se a madeira pelo tijolo e a pedra, o barro pelo cimento e a cal, a palha pela telha, o chão de terra batida pelo cimento, frio e úmido.

211 212

Entrevista concedida por Maria Ferreira Dias ao autor em 31/06/2006. Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003.

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Não tardou muito e logo se começou a pisar em azulejos e cerâmicas, começaram a aparecer casas com o teto forrado a ferro e concreto, ergueram-se as primeiras lajes, o duplex, e as pessoas passaram a viver umas sobre as outras. Sintomático do crescimento do ramo da construção civil no Serviluz passou a ser o grande número de obras espalhadas pelas ruas. Em épocas como as de final de ano, e ainda hoje, é notadamente difícil encontrar, entre as vielas estreitas, uma em que não se esteja empreendendo qualquer tipo de construção ou reforma. Ruas e becos ficam interrompidos em vários pontos, obstruindo o trânsito de carros e pedestres devido à exposição dos materiais de construção à entrada das portas. Disso resultou ainda o crescimento da quantidade de furtos a sobras de material deixado nas ruas. Ora, de certo tempo para cá, foram diminuindo os vazios característicos dos quintais em função da necessidade de improvisar novos cômodos. À medida que o terreno passou a ser todo construído, tornou-se difícil depositar objetos no interior do espaço domiciliar bastante reduzido. O material a ser usado na obra do dia seguinte, guardado fora da casa, passou a carecer de acirrada vigilância. Mesmo com o bairro já tendo praticamente todo seu plano físico ocupado, a reprodução das habitações não cessou. Novos barracos, outros “puxados”, e muros passaram a separar terrenos cada vez menores. A terra foi se dividindo entre os membros mais jovens da família, à medida que esta se multiplicava. As moradias se amontoavam. Novas frentes de casas, onde antes “tudo era mar”, foram aparecendo e o bairro mudou significativamente suas feições. Mas tal mudança não foi assim tão repentina. Nas circunstâncias sociais e ambientais que o bairro apresentava, durante algum tempo, pareceu pouco animador aos trabalhadores que alcançassem alguma sobra em seus orçamentos e investissem seus parcos salários nesse espaço. Além disso, rondava o temor permanente do desalojamento compulsório, não compensando melhorar o imóvel, já que, no caso de uma possível indenização, o valor do barraco seria o mesmo. Os problemas sanitários eram cruéis e os detritos das residências corriam a céu aberto. Em épocas chuvosas, a areia acumulada à entrada da comunidade se tornava mais consistente, formando uma barragem natural, impedindo o escoamento das águas da chuva, que ficavam acumuladas, provocando o alagamento da área, o que aumentava ainda mais os riscos de desabamento e o conseqüente agravamento do estado de saúde da população. Com a chuva, o perigo vinha do céu e a calamidade se manifestava através das enchentes. Em 1984, logo no primeiro grande inverno que sucedeu o longo período de estiagem, entre 1978 e 1982, ocorreram vários desabamentos dos casebres de taipa. Muitas famílias ficaram desabrigadas. Pouco tempo depois da chegada ao bairro, os moradores mais

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uma vez empreenderam uma enorme batalha pela retirada da areia e reconstrução das casas. Travou-se naquele momento uma longa peregrinação nos órgãos públicos: passeatas, documentos, abaixo-assinados, denúncias nos jornais e na televisão. Os documentos arquivados na Associação de Moradores do Titanzinho indicam que, depois de acirrada luta, um projeto da Prefeitura de Fortaleza previa a reconstrução de 585 casas, a ser realizada progressivamente em quatro etapas, atendendo de imediato os casos de maior urgência213. Apesar do projeto e do início das reconstruções, as obras emperravam constantemente; em1985, um novo documento foi remetido à prefeita da cidade, solicitando o recomeço imediato das obras. Novamente o inverno se aproximava e algumas famílias, a serem contempladas nas últimas etapas do projeto, ainda permaneciam abrigadas em barracas de lona, fustigadas pelo calor excessivo do sol durante o dia e pelo frio intenso à noite. À exceção dos prédios destinados aos cabarés do Farol, essa foi certamente a primeira grande invasão das casas de alvenaria sobre as areias do bairro. Inserindo-se nos projetos habitacionais públicos, organizada em associações de moradores ou construindo sob o regime do mutirão, a população angariava recursos de toda ordem; resistia, reedificava e procurava viabilizar condições mínimas de segurança e salubridade no meio do areal, exigindo habitações mais resistentes. Visualizando o bairro através da conformação arquitetônica urbana, observa-se que, até o início dos anos 90, mais precisamente em 1994, ano em que começaram as obras do Projeto Sanear do Governo do Estado, ainda não havia calçamento nem esgoto214. Somente nesse período as pedras, há tempos transportadas pelos retirantes, e o asfalto, há anos produzido na fábrica localizada ao lado, começavam enfim a solidificar as ruas. Com as vielas pavimentadas, muitos becos foram fechados, as residências receberam ligação domiciliar de esgoto, a iluminação foi reforçada e um calçadão que ligava a orla do Serviluz à da Praia do Futuro foi construído. No discurso do governo, a favela tornava-se bairro. Nos depoimentos, a urbanização se fazia eivada de contradições: “(...) tem rua asfaltada já hoje, quer dizer, é bom é não é né? Por um lado é bom, é bonito e tudo, mas ai já há o sofrimento da galera com o calor e aquele negócio todo, quintura, outros tipo de doença na pivetada (...) tem o Sanear também, muito bom o Sanear, mas só que os cara mete na goela, tu gasta quinze reais de água, gasta mais quinze de esgoto numa coisa que já tá ali, que não precisa fazer nada. A

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Documento disponível no arquivo da Associação de Moradores do Titanzinho. O Projeto Sanear foi iniciado na gestão de Ciro Gomes, com um discurso ‘mudancista’ seu governo introduziu consideráveis melhorias sanitárias em Fortaleza. A idéia do Sanear era a implantação de 1.025 km de rede de esgoto, cerca de 148 mil ligações domiciliares, que beneficiariam mais de 700 mil pessoas. Sobre atuação dos “Governos das Mudanças”, cf.: GONDIM, Linda Maria Pontes. Clientelismo e modernidade nas políticas públicas – Os “governos das mudanças” no Ceará (1987-1994). Fortaleza: Ed. UNIJUÍ, 1998. 214

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coisa mais difícil é fazer a manutenção aqui, uma galera todinha pagando Sanear e mal vem o Sanear aqui desentupir um esgoto ”215.

Após a urbanização, não demorou muito e a areia tomou conta de tudo novamente, a calçada sumiu e o tráfego de veículos nas ruas da praia já não era mais possível. Chegar à beira da praia motorizado só acontecia se fosse sobre as rodas de um trator, a máquina derrubava sistematicamente os morros, mas não adiantava, a “areia vem do mar”, acreditam alguns moradores. Nas ruas principais do bairro, algumas paredes haviam sido feitas de tijolo e, em detrimento das ruas da praia, prevalecia a construção de alvenaria. No decorrer do tempo, a população do bairro foi progressivamente melhorando seu poder aquisitivo e, mesmo nas ruas consideradas secundárias, a casa ganhou reforço arquitetônico. Nos nomes das ruas (ver mapas), misturam-se termos relacionados à natureza, homenagem a políticos importantes para o bairro e a forte religiosidade do povo; nomes parecem revelar a própria diversidade que compõe a história dessa ocupação. A distribuição das casas entre essas ruas se deu de forma desordenada, becos estreitos e vielas tortuosas eram a condição geral. A partir das obras do Sanear, correções foram feitas e as transformações se espraiaram, mudando a fisionomia espacial do lugar. Antes dessas intervenções, os becos dominavam como forma mais prática de acesso. Era quase impossível não utilizá-los. Por eles se chegava mais rapidamente, cortava-se o caminho para qualquer destino nos arredores; os que não os conheciam se perdiam facilmente entre suas entradas e saídas. Pelos becos, ia-se da rua principal, que margeia os terminais de gás do complexo industrial, em direção à beira da praia, atravessando e furando praticamente todas as ruas do bairro. Seguindo através dessas pequenas passagens, secretas para os que não dominavam a paisagem irregular, passava-se sem ser visto. O próprio delineamento físico do beco transformou seus contornos em espaços singulares, conferindo-lhes múltiplos usos sociais e ao mesmo tempo acentuando seu caráter de perigo e isolamento. Nesses lugares, processavam-se nascimentos e óbitos. Quando o projeto de urbanização foi implantado, porém, boa parte dos becos não podia ser eliminada. O desenho original do projeto não previa que um só beco podia comportar inúmeras famílias e que não era possível isolá-las completamente.

Alguns

abrigavam dezenas de casas e o pequeno corredor continuava sendo o único caminho possível para a rua. 215

Entrevista concedida por Raimundo Cavalcante Ferreira ao autor em 12/05/2006.

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No Serviluz, não havendo exatamente uma regra geral em termos de arquitetura e padrão habitacional, a não ser a da fragilidade comum, o bairro foi acontecendo e tomou forma própria em períodos distintos. No tempo em que era reduzida a quantidade de moradores, era normal que os casebres, exprimidos de ambos os lados por outros casebres, tivessem entrada e saída para duas ruas diferentes. Era igualmente comum que as casas fossem maiores em comprimento do que em largura, daí a infinidade de pequenas frentes. Como o bairro cresceu de forma assustadora, a pressão demográfica se fez sentir mais intensamente. A partir da década de 80, mesmo nos barracos já apertados ao extremo, foi se tornando necessário aglomerar um número cada vez maior de pessoas convivendo sob um mesmo teto. Segundo Steven Johnson “a potencialidade dessa progressão geométrica não é somente uma singularidade matemática – ela é essencial para a própria origem da vida”216. Assim, o autor enfatiza como as favelas de uma cidade são fenômenos emergentes e produtores de autonomia. “O espaço metropolitano habitualmente aparece como uma linha de arranha-céus, mas a verdadeira magia da cidade vem de baixo”217. Antes do inchaço que assolou o lugar, ocorria que, em apenas um dos lados do terreno, se concentrava a área construída, dois ou três cômodos, e nesse lado da casa se fazia a frente que dava para a rua. O outro lado do terreno estava geralmente destinado ao quintal. Nos espaços dos quintais, prevalecia ainda o resquício da verde e abundante mata, outrora encontrada na aldeia do Mucuripe; na areia frouxa dos morros, continuava a florescer uma cobertura vegetal típica da região, árvores que cresceram em terras vazias nos anos em que as dunas ainda não haviam sido ocupadas sequer por choupanas de palha. Mesmo sendo um pressuposto básico da construção, a limpeza do terreno para fins de ocupação pelo homem não eliminou, de imediato, a variedade vegetal praiana. Como era muito importante nas condições de moradia da época, cabe detalhar um pouco melhor essa vegetação, pois é sabida a sua utilidade diária. Da variedade de espécies, destacava-se a permanência do coqueiro, planta que sempre teve uso variado entre a população pobre que vive na costa, sobretudo entre as comunidades pesqueiras. Do coqueiro tudo se aproveitava: com o coco raspado, faziam-se as tapiocas, os doces e o preparo do peixe cozido com pirão; a água extraída era doce, tanto podia ser vendida gelada quanto utilizada na hidratação de crianças doentes; com a casca seca, mantinha-se aceso o fogo das pequenas 216

JOHNSON, Steven. Emergência: a dinâmica de rede em formigas, célebros, cidades e softwares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 62. 217 Op. cit. p. 68.

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embarcações e os fogareiros caseiros; das palhas vinha a proteção e a cobertura de casas, fazia-se espeto para assar sardinhas, pipas e outros brinquedos populares; com o tronco, erguiam-se alpendres e produziam-se rolos de madeira sobre os quais deslizavam as embarcações mar adentro. Permaneceram também algumas mudas de cana-de-açúcar e as conhecidas castanholeiras218. Muitos quintais tinham ainda suas plantações de pião, utilizados nos rituais de cura das benzedeiras. De algumas poucas árvores, esperavam-se os frutos; outras tinham apenas função de produzir uma boa sombra. De modo geral, naquele tempo, via-se ali a presença de uma grama rasteira e esverdeada onde não faltavam crianças a brincar; outrora, era possível, entre o mato e a cerca caída, circular pelas várias propriedades vizinhas sem precisar pôr os pés na rua. O quintal também foi se tornando um espaço destinado ao trabalho. Pequenas tarefas ou atividades complementares de renda podiam ser ali realizadas; em alguns casos, o fundo da casa se transformou numa espécie de oficina caseira. Na época majestosa da pesca da lagosta, por exemplo, famílias inteiras se reuniam à sombra de uma árvore ou sob um pequeno alpendre de palha para tecer redes de arame ou náilon, destinadas à captura do marisco. Não raramente, após o serviço, logo se acendia uma pequena fogueira com a madeira armazenada no quintal e preparava-se ali a comida, talvez peixe assado. Mas esses hábitos remanescentes foram aos poucos diminuindo. Cresceu o número de fogões alimentados a gás de cozinha, o fogo se tornou menos uma necessidade e mais uma diversão esporádica entre amigos. Nas ruas e quintais do bairro, era bastante comum a presença de animais. Cavalos e burros faziam transporte humano ou carregavam mercadorias a serem vendidas de porta em porta nas imediações. Aliás, não faltam narrativas afirmando que o aterramento das águas do Mucuripe foi feito sobre o lombo de burros. No Serviluz, quando cresceu o comércio local, esses animais foram largamente empregados. Ainda hoje pequenas carroças continuam rodando sobre o asfalto recém-chegado. A criação de galinhas, patos, porcos e outros bichos nas cercanias era prática comum. Era um tipo de complemento da alimentação familiar, herança dos povos nativos que pescavam, mas sabiam igualmente cultivar pequenas hortas e costumavam criar animais. Com o passar do tempo, não apenas os hábitos alimentares e as noções de higiene modificaram-se, mudou, inclusive, as referências que os mais velhos atribuíam aos bichos como parte importante do cotidiano familiar. 218

Árvores típicas de praia que produzem pequenos frutos comestíveis, mas que são pouco apreciados. A sombra é sua maior utilização.

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À medida que vai se diversificando o tipo de alimentação consumida entre a população local, comerciantes começaram a lucrar com o abate e venda desses animais e a criação de bichos no bairro se tornou um problema. “Porco comendo caroço de manga em cima da minha casa”219, as reclamações aumentavam e a presença de animais solto nas ruas deixava de ser fato corriqueiro diário. Em certo momento, a própria comunidade passou a boicotar as carnes provenientes desses criatórios caseiros. Foram se tornando cada vez mais constantes as denúncias e as reclamações vindas da vizinhança e listas de assinaturas coletivas passaram a exigir o fechamento de chiqueiros e pocilgas nas imediações. O quintal já não mais podia ser aceito como depósito de lixo ou como pequenos currais; sobre esses lugares a vigilância sanitária começava a impor padrões de limpeza e higiene urbana. De modo que o asseio pessoal impulsiona transformações também na satisfação das necessidades fisiológicas, antes realizadas nos fundos da casa sob árvores e folhagens. “Se o Serviluz hoje em dia tá sujo, eu sou ciente, não é por culpa da prefeitura, é porque tem muito morador seboso”220. Na cidade, intensifica-se a necessidade com os cuidados sanitários mínimos, porque “pobre porco sempre num falta nas favelas”221. De modo geral, higiene e salubridade foram termos que passaram a acompanhar o crescimento demográfico dos grandes centros urbanos. Curiosamente, é sempre na periferia que estão os lugares mais propícios a se desenvolverem focos de epidemias e infecções de toda ordem. A regulação das práticas de higiene se configura como uma mudança de postura, mas os novos modos assépticos também encontram resistências. Diariamente as pessoas, ainda hoje, correm para a beira da praia para jogar lixo ou mesmo despejos fecais. A luta pela limpeza da praia, nesse sentido, passou a ser um embate fundamental na mudança de imagem que os moradores procuraram empreender no lugar. Os habitantes passaram a encarar a degradação do patrimônio ambiental como fator prejudicial a qualidade de vida e como um modo de desvalorização do espaço. Deve-se admitir que o inchaço e a mudança da fisionomia do bairro foram, em boa medida, resultados da pressão habitacional imposta pelo crescimento desordenado da cidade. As mudanças na melhoria das condições das habitações populares, no entanto, não devem ser creditadam somente à política assistencialista do Estado. Antes, essa transformação deve ser percebida através das necessidades, estratégias e possibilidades criativas que os moradores desenvolveram nos espaços em que vivem. Estando os espaços da periferia submetidos a 219

Entrevista concedida por Maria Zuleide Moura de Oliveira ao autor em 01/01/2003. Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002. 221 Entrevista concedida por Maria Zuleide Moura de Oliveira ao autor em 01/01/2003. 220

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planejamentos urbanos excludentes, seus moradores forjam nesses espaços a participação política prática; a seu modo, inventam e constroem uma cidade diferenciada dentro da metrópole supostamente harmônica e racionalizada. É preciso considerar que a transformação física pode incitar também uma mudança cultural, novos materiais, novas conformações espaciais, novos valores domésticos. A mudança material por vezes aguça e produz novos hábitos, comportamentos e sensibilidades. Nesse sentido, a percepção da organização das vivências nesses pequenos espaços constitui um aspecto fundamental da cultura. Afinal, a história humana não acontece somente entre decretos administrativos e gabinetes, ela manifesta-se também entre becos e quintais, entre plantas e animais. Isso significa reconhecer a mão e o controle do Estado no desenho urbanístico dos bairros e ao mesmo tempo problematizar sua ausência, reconhecendo aí à tendência à autonomia das comunidades. Os próprios incrementos habitacionais induzem a transformação das relações sociais internas, a tendência à generalização das relações de caráter individualistas, entretanto não elimina por completo hábitos e costumes arraigados. Cada contexto histórico parece guardar suas singularidades e, apesar da convivência de múltiplas temporalidades, as paredes de tijolo podem fazer adormecer certas formas de socialização, acesas à época da madeira. No Serviluz, ao tempo das frágeis varas, sobreveio a época das pequenas fortificações. Não foi apenas a resistência das casas que se acentuou; de certa forma, cresceu também a resistência das pessoas que as habitam em relação às outras. Observa-se a esse respeito o aumento do número de rixas e contendas entre vizinhos, à medida que os muros passaram a substituir as cercas. Quando acabou, ou pelo menos se tornou menos comum, o contato visual direto entre a vizinhança, curiosamente aumentou a intervenção da polícia para conter ânimos e evitar agressões mútuas, porque ali se instaurou a noção da propriedade privada, tornou-se preciso disputar por cada palmo de chão e a brigar por cada centímetro de terra. Por outro lado, as brigas acontecem exatamente devido à permanência da preocupação e da curiosidade para com o outro. Nas casas reformadas, ainda existia a possibilidade de ouvir os mínimos movimentos dos vizinhos, o barulho dos móveis sendo arrastados, o quebraquebra entre irmãos e as brigas de casal. Quando o som de alguém está ligado, é possível saber de onde ele ecoa quem o está escutando, se é alguém da casa ou se há o recebimento de alguma visita naquele ambiente. Sabe-se pelo faro a hora do almoço e pelo cheiro se descobre

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o cardápio e a mistura do dia. O cotidiano alheio pode ser inalado pelas frestas. Os vizinhos acabam se responsabilizando mutuamente pelas moradias. Se não há ninguém em casa, é preciso que um dos moradores mais imediatos esteja sabendo, deixá-lo atento e vigilante é um ato de prudência. Em alguns momentos, parece existir a necessidade de tornar público o conteúdo de acontecimentos que se passam entre as quatro paredes de um domicílio. A alvenaria não impediu exatamente a transmissão de informações entre a rua e o lar, entre aquilo que é público e aquilo que deve ser privado. O fato é que melhorar a condição de moradia passou a significar muito nesse contexto. O próprio mercado imobiliário descobriu a necessidade que os operários tinham de realizar o famigerado sonho da casa própria e a sofrida realidade encontrada nos lares de palha e barro se tornou um prato cheio para determinados setores da construção civil. Ao mesmo tempo, como foi dito, o dinamismo e as demandas desse mercado acabaram abrindo espaços para novas profissões e ocupações entre as classes sociais de baixa renda. É um ciclo que não parou de crescer. As construções de alvenaria, no entanto, demoraram algum tempo para se impor como a arquitetura principal do bairro. A não ser em situações em que se conseguiram doações, como nos calamitosos episódios de enchentes e desabamentos, a renovação das habitações foi um trabalho basicamente lento e familiar. Pequenos reparos, uma arrumadinha, de uma população que passou a assimilar melhor as noções de acúmulo e criou a necessidade de economizar, de guardar um pouquinho para mudar o lugar em que se vive. Alguns fatores concorreram sobremaneira para tal mudança: a necessidade de se firmar numa terra de propriedade da União Federal, afastando o fantasma do despejo pelas ações do Estado ou da iniciativa privada; a diminuição dos transtornos ocasionados pela natureza e a possibilidade de aumentar a fruição desta; a precisão de se resguardar do próprio crescimento assustador do lugar que assumiu a rotina da criminalidade das ruas; e o desejo de não apenas sobreviver, mas viver dignamente após anos de trabalho no mundo urbano. A mudança material é somente uma aponta do ice berg, pois nesse espaço operou-se também uma mudança cultural tão ou mais significativa. Uma mudança certamente lenta e em permanente exeução. As atitudes básicas da população trabalhadora aparentemente se mantêm sem grandes alterações. A diferença reside principalmente naquilo que Hoggarth classificou como “mudanças de atitudes-para-com-as-atitudes”222. No Serviluz, as novas tendências e os

222

Op. cit. HOGGART, p. 81.

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novos rumos da juventude denotam alterações significativas nos padrões local de comportamento, o bairro passou a contar com uma diversidade práticas que marcou a trajetória da comunidade. O tempo foi passando agora pude entender, O que décadas passadas, deixou para você. A luz do farol, já não brilha mais, A luz que vem agora vem de lá dentro do cais. A luz que nos dá força, e a que conduz, Por isso, não é toa, que nos chamamos Serviluz. Tenho minha vida toda pra viver, Pois em décadas futuras, vou tá junto com você. Falando e expressando no meu vocabulário, Isso e pros cabeças, no Serviluz não tem otário223.

3.3 Surfe: o surgimento de uma escola local

Nesta parte da pesquisa, procura-se, através dos depoimentos orais de jovens da comunidade e de publicações especializadas em surfe, enveredar pelos caminhos das águas, deslizando nas histórias de adolescentes que descobriram novas formas de trabalho no mar, inventando novos modos de ganhar a vida na arrebentação. Analisa-se o surgimento de uma espécie de escola local de surfe entre os meninos da comunidade. Procura-se interrogar sobre a possível constituição de um estilo de vida, próprio, a partir da introdução do surfe no bairro, aumentando mais ainda o mosaico de misturas e a multiplicidade de influências na conformação das culturas locais. Em meio às múltiplas culturas urbanas que convergiram historicamente para o bairro, talvez entre os surfistas se perceba com maior ênfase a recente hibridez cultural operada nesse espaço. “Eu nasci aqui em Fortaleza e a maior parte da minha vida foi na beira da praia (...) Eu tenho um interesse muito grande por esse bairro porque é um bairro que ao chegar com onze anos de idade eu me apaixonei por esse bairro”224.

Uma primeira observação é importante: dentre os entrevistados na presente pesquisa, o grupo envolvido com a prática do surfe mostrou-se especialmente preocupado em destacar a 223

Letra da música “Décadas Passadas” do grupo Farol RAP, do Serviluz. Autores: Gean Carlos Serafim, Tanqredo Alves Morais, Paulo Maurício de Oliveira e Jorge Rafael.

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importância do mar para a sua vida. O fato de morar perto da praia entre os surfistas, contrariando o senso comum do bairro, constituía um imenso privilégio. Os praticantes desse esporte facilmente expressavam o amor pelo lar e a satisfação de ter à porta de casa um espaço excelente para a prática do surfe. Fala-se de uma geração que nasceu e cresceu num bairro litorâneo, mas, morando na beira da praia, não desejou seguir a tradicional profissão dos pais. Diferentemente daqueles que aderiram aos novos postos de trabalho que surgiam na região, continuaram optando pela vida no mar. Não mais se arriscavam nas temerosas pescarias, mas desenvolveram o gosto pela “adrenalina de estar dentro d’água competindo”225. O gosto pelo mar no surfe se configura como uma condição fundamental. Na praia do Titanzinho, no Serviluz, há entre aqueles que surfam o reconhecimento de que, ao chegar ao bairro, se estabelece um contato muito intenso com a natureza, a natureza é concebida como provedora de numerosos benefícios. “Se o menino tá dentro d’água o que ele tá vendo dentro d’água! Tá vendo uma gaivota que tá passando, tá vendo um peixe que tá passando, uma tartaruga... ele já começa a ter assim noções de oceanografia, começa a observar mais os astros, sabe que na lua cheia e na lua nova a maré é mais cheia ou mais vazante e pode dá onda, qual a época do ano que tem a melhor onda, já começa a se preocupar com a onda assim... vai esperar o dia que o mar tá mais perfeito e tal pra surfar. Enfim, o moleque já começa a pensar mais na natureza, começa a ver o lado mais bonito do negócio se ele tiver dentro d’água”226.

Se alguns moradores destacavam as imposições da natureza e as deficiências sanitárias do bairro, nutrindo o desejo de abandoná-lo, outros, apontavam que a realidade oferecida pela natureza não constituía exatamente um problema. Ao contrário, faltava exatamente uma relação mais equilibrada com o meio ambiente, a fim de se aproveitarem os benefícios que a natureza podia proporcionar. No surfe a fruição da natureza é uma prática contemplativa. Nesse recipiente, experimentam-se os elementos e concebe-se a vida como um espetáculo ininterrupto de metamorfoses. Se, isoladamente, cada elemento já impressiona, combinados eles produzem efeitos ainda mais surpreendentes. Entre esses elementos, as ondas, fusões das forças das águas e dos ventos, são os mais especialmente encantadores. As ondas são manifestações de energia do vento que tomam formas nas águas do mar. Mas a complexidade da ondulação, se deixa clara a onipotência da natureza, também possibilita enxergar a intromissão da mão 224

Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003. Entrevista com Lucinho Lima, In: Revista Hard Core, ano 15, edição, 182, outubro de 2004. 226 Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003. 225

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humana nesse espetáculo. Na praia do Titanzinho, a modificação da paisagem, acarretada pela introdução da pedra, alterou também o desempenho dos jovens locais que sobre as ondas passaram a imprimir também suas marcas. É bem verdade que, mesmo entre aqueles que não praticam o surfe, vislumbravam-se as águas marinhas como uma dádiva e o mar como uma benção, como sendo capaz de fornecer a alimentação básica e garantir a sobrevivência. “(...) ainda existe o pescado dos três malhos (próprio para capturar sardinhas) na área do Titanzinho porque é um meio de sobrevivência, do pobre procurar uma sardinha pra comer com seus filhos”227.

Antes dos surfistas, os pescadores constituíam costumeiramente o grupo de trabalhadores que dependem de modo mais direto do mar como fonte de sobrevivência. A pesca é influenciada, mais que qualquer outra atividade econômica, pelas forças da natureza. Essa é a última e única atividade humana de caça de grandes proporções e a própria mobilidade dos recursos pesqueiros no ecossistema marinho é marcada pela complexidade dos fenômenos naturais, de modo que o conjunto de processos e condições naturais influencia também nas relações entre os grupos sociais, tanto em termos de trabalho quanto de moradia. A paisagem cultural gira em torno da disponibilidade dos recursos naturais. Vale ressaltar então que, na pesca e no surfe, as relações entre homem e natureza se apresentam de fundamental importância. A natureza nessas atividades não pode ser considerada uma entidade estática, mas como uma série de processos maiores, alheios à ação humana, sobre os quais o homem pode interferir. Natural e social se articulam. Na região do Mucuripe, quando prevaleceram as comunidades de pescadores, eram visíveis as imbricações entre a vida social e a produção do pescado228. Mas com a crise da atividade pesqueira, os homens já não mais conseguiam manter a contento suas numerosas proles. Como já foi dito a pesca de alto calado acarretou mudanças nas relações de trabalho e a tendência à proletarização do pescador. A mudança nas condições de vida dos pescadores e a alteração introduzida no meio ambiente diminuíram bastante a disponibilidade do peixe nas proximidades da costa, assim os trabalhadores do mar foram sendo forçados a ingressar noutros ramos de atividade.

227

Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/012003. Em sociedades que vivem diretamente da exploração natural, é mais perceptível a correlação entre reprodução social e reprodução natural. 228

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No bairro boa parte dos jovens que surfam são filhos de pescadores. Cresceram na beira d’água, ajudando os pais na lida diária da praia, geralmente limpando as embarcações, consertando redes ou executando pequenos serviços de transporte, mas vários fatores contribuíram para a decisão dos filhos de largar a profissão do pai. Já foi analisado como a formação de um parque industrial nos arredores, em certo momento passou a recrutar boa parte da mão-de-obra na vizinhança. Ao chegar à idade de trabalhar, os jovens tinham que optar entre os trabalhos disponíveis, praticamente todos braçais; a indústria podia oferecer uma razoável estabilidade e carteira de trabalho assinada, garantias difíceis de serem obtidas na pesca. O fato é que a industrialização promoveu ocupações e serviços cujo ritmo de trabalho diferia muito do emprego nos ofícios tradicionais. O surfe, no entanto, apresentava ainda muitas semelhanças com o modo de vida dos antigos jangadeiros, sobretudo no que concerne à interação e ao apego do homem pelo seu espaço de trabalho. Entre pesca e surfe, porém, afloram também distinções importantes. Uma diferença considerável está na preocupação do surfista com a manutenção dos recursos naturais. A idéia da criação de uma consciência ecológica de preservação da natureza produziu interferências práticas no local onde se realizava o esporte. Ao que parece, a idéia da preservação não foi enfaticamente posta no mundo da pesca, enquanto no surfe preservar assume formas bastante contundente. Obviamente isso não significa que o velho homem do mar não se sentiu incomodado com as mudanças físicas no meio ambiente, basta observar a escassez do pescado no litoral, mas pouco procurou remediá-las. Se os sindicatos e demais formas de associações dos pescadores não enfocaram a preservação ambiental como uma bandeira de luta propriamente dita, isso aconteceu porque essa é uma questão relativamente recente. A idéia de uma política ecológica, por sua vez, é contemporânea da explosão do surfe no planeta. Como o bairro serviluz é muito populoso, o uso da força transformadora da natureza passou a preceder de um trabalho de limpeza da praia, de conscientização ecológica no espaço. A idéia ativa de que a praia não é uma lixeira, mas um point para o surfe, surge como pressuposto ao desenvolvimento das habilidades corporais no mar. É o que se observa no manifesto do grupo S.O.S Titanzinho: A praia do Titanzinho, situada na esquina leste de Fortaleza, é o berço dos melhores surfistas do Brasil, o melhor e mais constante point da cidade. Tema de música e famosa no mundo do surfe pela força de suas ondas e por seus famosos surfistas. Porém, esse paraíso está sofrendo com a poluição há muitos anos, resultado da falta de educação da maioria dos moradores e da falta de leis que punam verdadeiramente os poluidores, os quais jogam lixo na praia causando

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sujeira, doenças e deformação do coral. O quadro é alarmante, basta olhar a praia e mergulhar para perceber o grande estrago causado ao meio ambiente. A água é suja e transmite micose, isso não pode continuar assim, pois é crime ambiental e prejudica a todos que têm no mar sua fonte de sobrevivência e lazer229.

No surfe, se é forte a preocupação ambiental, é pouco visível a organização social. Enquanto existem fartas experiências históricas de organização e luta coletiva entre os pescadores em torno da aquisição de melhores condições materiais de trabalho, parecem não existir formas associativas que batalhem pelo surfe como uma modalidade de trabalho. Aqui, diferentemente da pesca, tende a prevalecer o desempenho individual do atleta. “Você não pode depender só de uma profissão que é curta, né? Se você tivé no auge, no topo você ganha (...) do salário mesmo você não faz um pé de meia, geralmente dos prêmios né? Se for profissional então o surfe é bom, mas é bom que os jovens que almejam ganhar tudo na vida com o surfe pense melhor né? Que só o surfe ele não vai ter uma vida estável não”230.

Nos depoimentos, nitidamente o esporte foi transformado numa modalidade de trabalho. Apesar da possível instabilidade, o surfe se tornou uma realidade econômica palpável na comunidade. Em recente edição, a Revista Veja exibiu o auto-retrato do jovem surfista Pablo Paulino. Garoto pobre, Pablo foi criado no Titanzinho, em Fortaleza, e cedo se consagrou um fenômeno no mundo do surfe ao ganhar o campeonato mundial na categoria júnior. Aos dezessete anos de idade, desbancou australianos, havaianos e americanos, melhores do mundo no esporte, faturando um prêmio de seis mil dólares. O jovem assinou ainda um ótimo contrato com a grife Billabong, uma das maiores marcas de surfe do mundo, que lhe garantia, além de um excelente salário, uma ampla estrutura que incluía técnico, preparador físico, nutricionista e professora de inglês231. A necessidade do idioma inglês acontece porque nesse esporte, além das viagens pelo mundo, os praticantes precisam assimilar termos técnicos, muitos dos quais, têm origem em outros países. Nas grifes, nas manobras e na comunicação diária entre os surfistas, variadas expressões possuem uma matriz importada. A cultura do surfe se integra ao mercado industrial de proporções globais. As marcas se multiplicam e ganham tecnologia de ponta. Vende-se indumentária, lugares e toda a parafernália que compõe um estilo de vida diferenciado. É um espaço privilegiado para o lançamento de novidades e modismos entre o público jovem. As velhas vestes dos homens do 229

O grupo S.O.S Titanzinho foi criado por surfistas locais e procura despertar um censo de preservação ambiental no bairro. Documento disponível na Escolinha de Surfe do Titanzinho. 230 Entrevista concedida por José Carlos da Silva ao autor em 08/03/2005.

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mar ganharam tecidos sintéticos. Nas águas, a manutenção do estilo de vida, entrelaçado ao meio, ganhou nova roupagem, renovando uma tradição capaz de adaptar-se, ou recriar-se, em função dos novos tempos. O universo do surfe constitui-se a partir de palavras como estilo, ousadia, originalidade e determinação. A própria história do surfe é narrada nas publicações especializadas, através das grandes façanhas, dos recordes e das narrativas heróicas dos grandes vultos enfrentando grandes ondas. A fama é um componente importante no “esporte dos reis”232. De fato, descer em ondas com vários metros de altura faz desse esporte uma prática bastante arriscada, há o perigo real dos corais de pedra ou mesmo o risco de acidentes com o próprio equipamento. As marcas nos corpos novamente servem de testemunho. Nas revistas especializadas nesse esporte, a radicalidade do surfe se concretiza no forte apelo às imagens dos competidores. As páginas se compõem basicamente de fotografias, que ocupam a quase totalidade (ou mais) de uma página. Destacam-se os movimentos bruscos e velozes dos homens desafiando a natureza; o próprio espaço geográfico é uma peça fundamental na composição da imagem. No surfe, o cenário pode, inclusive, definir o desempenho dos atletas. No Serviluz, esse esporte constituiu-se como propulsor de cultura e redes de sociabilidades; o surfe também se caracteriza pelas territorialidades que o definem. É justamente o que ocorre em certos espaços urbanos, como a praia do Titanzinho, os quais são tomados por indivíduos, pelas relações específicas entre eles estabelecidas. Sendo essas relações de disputa, conquista, poder e dominação, está criado o contexto em que o espaço se torna um território a ser criado e disputado233. Apesar da imagem, aparentemente equilibrada e saudável, o esporte ainda aparece carregado de pesados preconceitos. “(...)chegaram uns cara de fora aí, uns caras ai de São Paulo e disseram: - rapaz tem que tirar a galera do Titanzinho que a equipe tá muito favela. Vamo tirar a galera todinha do Titanzinho que a marca tá muito favela. E olhe que nessa época a gente tinha os melhores daqui e a gente tava levantando a marca”234.

Mas a prática desse esporte na periferia urbana de Fortaleza emergiu como mais uma possibilidade concreta de inserção social. E, à medida que se formou uma espécie de escola 231

Cf.: Revista Veja, 23 de fevereiro de 2005. p. 89. Remete a origem mitológica do esporte, na qual o surfe teria nascido entre os reis das Ilhas da Polinésia, dando ao surfe um aspecto de ritual sagrado. 233 AZEVEDO, Diego Paula Pesssoa. Fora ‘haole’: um estudo sobre cultura e terrrtorialidade no surfe. Monografia do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará. Fortaleza: 2003. P. 25. 234 Entrevista concedida por Raimundo Cavalcante Ferreira ao autor em 12/05/2006. 232

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local, muitos surfistas se profissionalizaram e ganharam dinheiro. No entanto, fora dessa praia de sucesso, procurei também os depoimentos dos jovens da mesma comunidade que não lograram êxito no esporte; na verdade, a maioria. A partir do êxito de alguns competidores locais, os jovens do Titanzinho tornaram-se figurinhas carimbadas em revistas e demais publicações especializadas no esporte. Uma questão sempre recorrente nessas reportagens era o amargo reconhecimento do percurso vitorioso desses atletas; na mídia ficava sempre a interrogação: como era possível um menino chegar tão longe, vindo do lugar tão pobre e violento no qual ele nasceu? Na concorrida disputa por títulos, parecia impossível que de um lugar tão precário pudessem sair tantos talentos e estrelas. “(...)tinha um cara que sempre fazia umas matérias e sempre colocava o Titanzinho lá em baixo. Só falando de porco, de praia suja e não sei o quê... Até camisa o cara fez pra vender com o nome do Titanzinho, ai tinha um porco e uma fese desenhada na camisa(...) ai por causa disso eu discutir com ele, bota um cara surfando, uma coisa melhor. Toda vida que você abria o jornal tava lá o cara falando mal do Titanzinho. A sociedade não vai ler isso aqui não, a sociedade vai vê se você botar uma manobra, um tubo”235.

A superação do preconceito e da desigualdade econômica exigia, porém, tanto um severo treinamento quanto uma série de mudanças no estilo de vida da juventude, mescla de velhos hábitos e novos comportamentos. Emergiu a necessidade e o desejo de elaborar novas opções de vida, de vibrar com outras sensibilidades: No futebol, se o cara não está jogando bem eles tiram e colocam outro. No surfe não, quem for mais bonitinho está com patrocínio. O cara dá um aéreo e fica com a prancha cheia de logotipo (...) Foi de repente, já competia enquanto meus amigos jogavam futebol. Sabia surfar e jogar bola, mas tive que escolher. Hoje vejo que através do surfe conheci outros países e estados, já meus colegas do futebol ainda não saíram do Titanzinho236.

A trajetória árdua é regra geral. No Serviluz, o surfe não teve um começo tão rico e tão nobre. O surfe no início era marginalizado, hoje é uma profissão; muitos atletas sobrevivem, outros somente sonham. Esse esporte também era extremamente caro, inacessível, para as condições financeiras da população local. Ao que tudo indica, o surfe explodiu do Havaí para o mundo no início do século XX, chegando ao Brasil nos anos 1940, quando as pranchas eram ainda fabricadas de madeira oca. Com a intensificação da sociedade de consumo e a adesão aos esportes de massa, o surfe se

235

Ibidem.

236

Entrevista com Lucinho Lima, In: Revista Hard Core, ano 15, edição, 182, outubro de 2004.

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estabelece no Ceará nos anos 1970. Na década de 80, contudo, era restrito o acesso às novas pranchas feitas de fibra. “Aqui no Titanzinho então, meu, na década de oitenta não tinha prancha de fibra, tinham pranchas de fibra as pessoas ricas que tinham sua prancha e que de forma nenhuma emprestava, né?, não emprestava” 237

O acesso restrito e o elevado preço do equipamento constituíam um sério problema para os meninos ingressarem nos “tubos”238. Como não tinha dinheiro, o campeão mundial Pablo começou a surfar com um pedaço de prancha quebrada; somente aos oito anos de idade, ganhou uma prancha da já consagrada surfista local Tita Tavares239. Essa foi a realidade inicial para quase todos os atletas. “Eu aprendi a surfar em cima de um pedaço de madeira como quase todos os garotos daqui. Aos trancos e barrancos eu pegava uma tábua, serrava e fazia uma prancha (...) a gente conseguia uma carteira de cigarro e ia prum prédio desses na Praia do Futuro ou lá no Náutico ali, e trocava por um pedacinho de tábua e aí fazia a gente fazia nossa pranchinha. Quando eles não dava a pranchinha pelo cigarro aí o jeito era a gente tirar essa tábua e sair correndo, ou então serrar a porta da casa da nossa mãe”240.

A prancha de madeira foi uma solução elaborada com um material fartamente empregado no cotidiano e assim se iniciou a popularização do surfe no bairro. “O começo com o surfe foi desde lá do Mucuripe (...) veio naquelas taubinhas que a gente chamava de sonrisal né? Na praia, jogava a tauba na beira da praia e pulava em cima. Naquela época no Mucuripe ninguém surfava de tauba na onda não. Na época, jogava no chão e pá... pulava em cima, saia deslizando na areia. Aí quando cheguei aqui no Titanzinho vi a galera surfando de tauba em cima da onda, aqui era mais desenvolvido, a galera do Titanzinho já surfava na onda mesmo”241.

Observa-se que deslizar sobre a madeira era inclusive o aprimoramento de uma antiga prática da pesca, das embarcações que, para atingir a terra firme, precisam cruzar a arrebentação das ondas. Nesse processo histórico, a habilidade em reutilizar os elementos do dia-a-dia, constituiu um aprendizado fundamental, capaz de produzir emergências essenciais à população. 237

Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003. Manobra em que o surfista fica dentro da onda. Cf.: Surfinário em anexo. 239 Surfista local ganhadora de vários títulos nacionais e uma das poucas atletas do país a participar do circuito internacional, o Word Championship Tour (WCT). Tita Tavares e Fábio Silva, detentor de vários títulos nacionais, são os mais renomados surfistas do bairro. 238

240 241

Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003. Entrevista concedida por Raimundo Cavalcante Ferreira ao autor em 12/05/2006.

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No Titanzinho, antes mesmo do inchaço populacional, adeptos desse e de outros esportes náuticos chegavam em seus carros àquela praia. Vindos de várias partes da cidade, traziam consigo um mundo de novidades para a comunidade. A partir do relacionamento com as pessoas de fora, os meninos do lugar começaram a conhecer pranchas, roupas, equipamentos e acessórios que permeiam o universo do surfe. O surfe reforçou a idéia do acolhimento, do bairro como espaço do lazer e da interação. Durante certo tempo, os surfistas que chegavam ao bairro entravam na água muito tranqüilamente. O lugar ainda guardava as características de um paraíso. Mas, no decorrer dos anos 80, alguns fatores proporcionaram mudanças repentinas naquele lugar, até então paradisíaco. As pessoas que chegavam viram nascer ali um bairro popular, uma favela, cujas águas e areias a população passou a dominar. Era preciso, a partir de determinado momento, negociar, entre outras coisas, o próprio direito de entrar e sair ileso do local. Constroem-se também territórios sobre as águas. Como conseqüência da crescente onda de violência, os grandes campeonatos realizados na praia se afastaram do bairro a partir da década de oitenta. Em 1982, o Setembro Surfe, importante competição estadual, anunciava entre as inovações daquele ano a transferência do local da realização do evento: “O certame será deslocado da praia do Titanzinho para o Icaraí, que oferece melhores condições técnicas para a promoção”242. O crescimento do esporte acarretou o surgimento de novos adeptos e de novos espaços para sua prática. No Serviluz, no entanto, a retirada das competições do Titanzinho está relacionada a acontecimentos desencadeados no próprio lugar, pois tanto a marginalidade se acirrou como a quantidade de esgotos e outros poluentes despejados na água da praia aumentaram consideravelmente, à medida que novas casas foram sendo instaladas. Os embates, dos quais podem vir o entendimento, entre homem com a natureza são a tônica. A própria historicidade do lugar, tido como um reduto de esgoto e de pessoas perigosas, tornava-o extremamente discriminado na cidade. As ondas nem sempre cobriam a prostituição, a violência e a poluição perante os olhos da cidade. O próprio surfe era um esporte discriminado por ser praticado nessa área. A superação do preconceito social que recaía sobre a comunidade, para alguns entrevistados, podia contar com o apoio quase incondiciona, da natureza. A prática do surfe se projetou como uma possibilidade concreta de renda e inserção social. A prática do esporte deve, no entanto, estar associada à imagem de uma juventude saudável, cristalizada nos

242

Jornal O Povo, em 22/08/82. p.07.

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corpos torneados dos atletas locais, para se reverter a imagem denegrida do Serviluz, sinônimo de mazela urbana, e faze-la flutuar em novas memórias. O surfe, a exemplo de muitos outros projetos sociais ali desenvolvidos, era uma forma de provar que o bairro não era somente feito de grandes problemas, de mostrar o nosso potencial e deixar claro para os de fora do bairro que “aqui tem pessoas que prestam”243. Essa reversão, no entanto, é entendida como um processo lento. Os garotos tinham dificuldades em desenvolver essa prática, antes de tudo porque os pais não aceitavam a idéia. Surfar, com efeito, era sinônimo de não estudar, da ociosidade e do vício. Durante muito tempo, dentro da própria comunidade, esse era nitidamente um esporte carregado de preconceitos sociais, coisa de bandido e vagabundo. Mas, aos poucos, a prática do surfe fez a garotada alcançar sucesso, ir além daquilo que aparentemente estava colocado como limite da vida na favela. E, desse modo, o surfe também surgia como válvula de escape à delinqüência que assolava as ruas do bairro, “ele agarrou com unhas e dentes como sendo assim aquilo que vai salvar a vida dele, que vai colocar ele num patamar mais elevado”244. Para o entrevistado João Carlos, o “Fera”, “o Titanzinho é o celeiro do surfe cearense”, principalmente “porque aqui é esquina leste de Fortaleza, aqui é onde o vento faz a curva”, “aqui é um lugar maravilhoso”. Por isso a falta de preservação da praia era debilidade do bairro. Para ele, sobretudo o combate à marginalidade juvenil exorbitante precisava se intensificar, pois esta acarretava um dos grandes problemas do bairro: a falta de visitantes. “Fera”, instrutor e técnico de surfe, entende que a discriminação do local perante a cidade, ocasiona, entre outras coisas, a falta de emprego para os nativos. “Nós temos aqui a água que pode trazer grandes benefícios para a molecada (...) tem bandidos, mas tem ondas”245. Para superar tais problemas, colocava-se a necessidade premente de melhorar a imagem do lugar, bastante temerosa na cidade. Em 1995, quando começou o projeto S.O. S Titanzinho, entrevista afirma que o bairro Serviluz passava por uma situação difícil. O lugar estava novamente abandonado e gangues rivais disputavam à bala a sua hegemonia, a criminalidade produzia dados alarmantes e as mortes acabavam com famílias inteiras. O surfe passou a ser entendido como uma força mutante, capaz de tirar as crianças da ociosidade e das drogas, transformar corpos e mentes. A vida dentro d’água como propulsora de outros aprendizados e criadora de novas habilidades se tornou uma prática local. O desenvolvimento de movimentos rápidos, de 243

Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003. Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003 245 Ibidem. 244

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manobras radicais, a fluência na onda, tudo aquilo a ser captado numa plasticidade fotográfica. No surfe, há a possibilidade de se estabelecerem boas relações com pessoas vindas de outras partes da cidade, uma forma de ganhar a vida fora do pesado trabalho industrial. São incontáveis os benefícios advindos do mar: saúde, harmonia com a natureza e a paz espiritual de quem protagoniza um estilo de vida saudável e feliz. Existe, entre os praticantes desse esporte, a concepção da natureza como uma espécie de força mutante, que transforma mentes e corpos e que é capaz, por exemplo, de transformar crianças magricelas em verdadeiros campeões mundiais de surfe. Mas o surfe é também um ato de lazer na comunidade: “num surfo pra competir, só pra brincar, tomar banho, pra relaxar a cabeça”. “Porque eu num sei viver longe do mar não”246. O surfe é muitas vezes um ato de diversão que engloba homens e mulheres nas horas de folga do trabalho. Cair na água é procurar esquecer os problemas do dia-a-dia, é reavaliar o passado, o presente e o futuro: “Eu tenho trinta e seis anos, mas eu sou um irado, eu volto a ser criança todas as vezes que eu surfo”247. Entre os sufirtas, é mais nítida a idéia de cultura concebida como uma experiência mutante. “Cultura da pessoa é o jeito que você vive, o seu hábito de viver, de falar (...) a cultura ela muda de uma hora pra outra (...) você tá aqui e querendo outra coisa, fazer outra coisa, uma coisa diferente né? Você tá fazendo uma coisa que nem é do seu país, da cultura de outro país. Você tá fazendo aquilo ali e você gosta e vai desenvolver aquilo ali, as vezes até mesmo naturalmente (...) você troca porque alguma coisa te agradou né?”248.

A través de atividades como o esporte, novos grupos culturais tornaram-se uma realidade para boa parte da juventude249. Como estratégia de inserção social, esses núcleos vinheram somar-se aos outros centros comunitários já constituídos, como associações de moradores, escolinhas de surfe, igrejas e terreiros de macumba. Observando essa efervescência, dona Mariazinha foi enfática: “Nós estamos de parabéns, o Serviluz realmente tem muita história pra contar”250. Nos dias 28, 29 e 30 de abril de 2006, o bairro Serviluz esteve em festa. O projeto Cultura em Movimento, da Secretaria de Cultura do Estado (Secult), armou sua tenda na 246

Entrevista concedida por Mauro Sérgio Domingues ao autor em 18/05/2005. Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003. 248 Entrevista concedida por Raimundo Cavalcante Ferreira ao autor em 12/05/2006. 249 Entre os novos grupos culturias destacam-se o Projeto de Artes do Serviluz (PAS) e o grupo Peleja. Formado por estudantes secundaristas, e alguns universitários, procuram conscientizar a juventude local através de intervenções artísticas e ambientais, em diferentes espaços do bairro. 250 Entrevista concedida por Maria Ferreira Dias ao autor em 31/006/2006. 247

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comunidade251. No palco, dezenas de artístas locais revezavam-se em exibições que deixaram o público atento e curioso. Filmes de curta metragem enfatizaram aspectos do cotidiano violento do bairro; peças teatrais encenaram episódios dramáticos da dura vida na favela; bandas de músicas cantaram, em ritmos variados, a história do bairro; poesias; espetáculos de dança e balé; apresentações esportivas de capoeira e Kung Fu, expressaram corpos saudáveis e alegres da comunidade. Nessa pesquisa, tentou-se focalizar como as articulações das diferenças culturais, a vivência das experiências intersubjetivas, o interesse comunitário e os valores culturais coletivos são negociados e renegociados a nível local. As transformações culturais, no entanto, não acontecem de modo espontâneo, como colocou Homi Bhabha: Os termos do embate cultural, seja através de antagonismos ou afiliações, são produzidos performaticamente (...) a articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação complexa, em andamento252.

Essa perspectiva de cultura, forjadas no interior das contingências da vida, põe em dúvida a questão econômica, a herança cultural e a tradição como fatores essenciais de identificação entre os homens. Desse modo não há uma identidade original, uma forma genuína ou uma tradição naturalmente recebida. Não havendo uma tradição cultural altêntica, os projetos de comunidade e a formação das sociabilidades devem ser concebidos como emergências e como hibridismos culturais que brotam no tempo do agora, e não como suave transição em direção a um futuro melhor. Em meio a desenraizamentos contínuos, conflitos e atos inssurgentes que marcam o tempo transitivo dos corpos em perfomance, as experiências criativas redefinem o devir, supostamente dado pela racionalidade econômica e cutural dominante. A precária definição arquitetônica das ruas e as frentes pobres das habitações escondem uma ampla rede de articulação entre universos distintos. A grande potência comunitária reside na sua capacidade de produzir territórios menores, invisíveis, mas conformadores de padrões de relacionamento e respeito. Um bom observador notaria, sem surpresas, que numa ponta de rua pode-se abrigar uma igreja católica, dois terreiros de macumba, vários moradores evangélicos, dois ou três rezadores e possivelmente alguns ateus convictos. Ora, o que faz dessa mistura uma riqueza 251

Cultura em Movimento – Secult nos Bairros é um projeto do Governo do Estado do Ceará que patrocina apresentações cuturais intinerantes nos bairros da periferia de Fortaleza.

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não é apenas a diversidade em si, mas principalmente a capacidade de articulação dessas diferenças.

252

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. p. 20-21.

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Conclusão A tradicional ocupação da enseada do Mucuripe por jangadeiros pobres começou a ser ameaçada quando empreendimentos capitalistas desenvolveram-se sobre essas areias. Da segunda metade do século XX em diante, o porto e a indústria modificaram a paisagem natural, deslocando homens e culturas, à medida em que a natureza da praia passou a ser considerada habitação privilegiada. Nesse processo, pescadores, prostitutas e outros trabalhadores pobres, vivendo em condições insalubres, passam a construir lutas e solidariedades pela sobrevivência e pela permanência. Em condições ambientais específicas, os moradores do bairro articulam habilmente natureza e cultura. Novas experiências no trabalho, mudanças de hábitos e a tomada de conciência para a organização coletiva em âmbito local, marcaram a trajetória histórica dessa comunidade. A trasformação na cultura material e nos padrões de comportamento da população se disseminaram, e encontraram resistência, a partir da convivência dos múltiplos sujeitos, conformando múltiplos territórios dentro do mesmo bairro. Cabe ressaltar que a tentativa de captura dessas vivências, sobretudo a partir da técnica metodológica que envolvia a oralidade, apontou a provisoriedade e a fugacidade das interações culturais contemporâneas. Emergiu daí a necessidade de construção de um texto de história, não restrito aos possíveis limites da disciplina, mas um texto tão vasto e fluído quanto a própria experiência humana em construção.

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Relação de Siglas

BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento BNB – Banco do Nordeste do Brasil BNH – Banco Nacional de Habitação CHESF – Companhia Hidrelétrica do São Francisco COHAB – Companhia de Habitação CONEFOR – Companhia Nordeste de Eletrificação de Fortaleza DNOCS – Departamento Nacional de Obras Contra as Secas FBFF – Federação dos Bairros e Favelas de Fortaleza IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente PAS – Projeto de Artes do Serviluz PROAFA – Programa de Assistência as Favelas de Fortaleza SECULT – Secretaria da Cultura do Estado SUDEPE – Superintendência de Desenvolvimento da Pesca SUDENE – Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste SER – Secretaria Executiva Regional SERVILUZ – Serviço de Luz e Força de Fortaleza

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Relação de imagens anexas

1. Ruas do bairro. 2. Imagem aérea da Praia do Mucuripe 3. Praia de Iracema em 1938. 4. Pescadores da Praia do Mucuripe em 1952. 5. Jangada do Mucuripe em 1952. 6. Vista do Porto do Mucuripe. 7. Pesca com a rede de “três malho”. 8. Praia do Titanzinho. 9. Praia do Serviluz. 10. Surfista do Serviluz. 11. Crianças do Serviluz.

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Fontes e arquivos:

a) Fontes Escritas 1 - Jornais: O Povo, Correio do Ceará, Unitário, Tribuna do Ceará, O Estado (Setor de Microfilmagem da Biblioteca Pública Menezes Pimentel. Jornal alternativo Mutirão (Instituto da Memória do Povo Cearense -- IMOPEC). 2 - Revistas:Veja, Fluir e Hard Core (Ano e edições variados). 3 - Arquivos da Associação de Moradores do Titanzinho, da Associação de Moradores do Serviluz e da Escolinha de Surfe do Titanzinho. 4 - Inventário do Acervo Virgílio Távora (Arquivo Público do Ceará - APEC). 5 – Arquivo e boletins informativos da Companhia Docas do Ceará, do Sindicato dos Portuários e do Sindicato dos Pescadores do Ceará. 6 – Letras de músicas e cordéis de artistas locais.

b) Fontes Orais 1

Francisco Herton Lima Rodrigues. Essa entrevista foi realizada na casa do entrevistado, em 30/02/2002. “Agente comia peixe até seis veszes por semana”, relembrou, nostálgico, Francisco Herton, mais conhecido como “moço”. O depoente conta que já passou por várias profissões, afirma que todo trabalho é digno desde que garanta a sobrevivência dos filhos. Entre idas e vindas, lembra com saudades da irmã que há tempos foi para a Itália e que somente nas férias pode rever.

2

Maria Zuleide de Oliveira Moura. “Pau pra toda obra”, foi assim que se autodefiniu dona Zuleide, a entrevista realizada na sala de sua casa em 01/01/2003. Dona Zuleide participou da primeira gestão da Associação de Moradores do Titanzinho. Através do seu depoimento, tomamos conhecimento das dificuldades iniciais de construção de um espaço de participação coletiva, dos projetos realizados, da morosidade burocrática e das fissuras internas que permeiam o dia-a-dia das entidades.

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3

José Osmir de Monteiro de Sousa. Jovem e disposto, Osmir sugeriu que a entrevista fosse realizada, em 28/01/2003, sobre as pedras do paredão onde não “tinha interferência”. A exemplo do pai, José Osmir é filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT), segundo o entrevistado: “atualmente nosso bairro conta com aproximadamente trinta tipois diferentes de associações”. No Serviluz, são poucas as pessoas engajadas a políticapartidária, sobretudo aos partidos de sequerda.

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João Carlos Sobrinho. Essa entrevista foi realizada na casa do depoente, em 27/02/2003, com um grupo de quatro amigos (Camila, Idalina, Thiago e Pereira), durante uma disciplina acadêmica. Mais conhecido como “Fera”, João Carlos é uma referência local em termos de conscientização ecológica. Técnico e instrutor de surfe, afirma que é na natureza que está o maior patrimônio cultural do bairro. Acredita que cabe principalmente aos moradores criarem estratégias que viabilizem a visitação turística no bairro, e, sobretudo, que essa interação com o pessoal de fora pode ser benéfica e produtiva.

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Maria da Conceição Alves dos Santos. Contamos também com a participação dos quatro colegas da Disciplina de Seminário de Leitura, ministrada pela professora Kênia Rios, na realização dessa entrevista, em 27/02/2003. Na sala de sua casa, dona Conceição contou que veio do Camocim, interior do Ceará, à procura do pai, já estabelecido na capital. Na cidade, trabalhou como “classificadeira” numa empresa de pesca e exportação de lagosta: “nós éramos 280 mulheres, todas trabalhando de carteira assinada”, relata, referindo-se ao tempo em que era grande a quantidade de mulheres trabalhando na indústria.

6

José Carlos da Silva. Descontraído, o entrevistado concedeu seu depoimento na casa de um amigo em 08/03/2005. José Carlos fala com muita naturalidade das transformações ocorridas no bairro, então com “duas ruazinhas”, à época em que nasceu. “Minha mãe comprava dólares”, afirma, relembrando os tempoa áureos da zona de prostituição do Farol do Mucuripe.

7 Mauro Sérgio Domingues. “Serginho” , como é mais conhecido, falou sobre sua experiência como morador do bairro em 18/05/2005, na sala de sua residência. O entrevistado contou sobre as transformações fisicas do bairro desde a época da Praia Mansa, tempo em que seu pai foi o primeiro morador da ilha a adquirir aparelho de televisão. Mauro Sérgio, não seguindo no ramo de pesca, passou a trabalhar no setor hoteleiro onde pensa ter descobertos novos aprendizados importantes para sua vida.

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Maria da Luz Oliveira Ribeiro. Muito atenciosa, dona Daluz, como é mais conhecida, falou ao gravador em sua casa em 18/05/2005. A entrevistada diz que começou a se

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envolver no trabalho comunitário apartir do convívio e do incentivo do marido, seu Francisco, que durante anos colaborou com a Colônia de Pescadores. Entre outras coisas, dona Daluz lamenta o estado de abandono de muitos jovens do bairro e o crescimento vertiginoso do consumo de drogas entre os adolescentes locais.

9 Raimundo Cavalcante Ferreira. Entrevista realizada na casa do depoente em 12/05/2006. “Raimundinho”, como é mais conhecido, ex-competidor, foi campeão cearense de surfe amador em 1987. Apesar de apaixonado pelo esporte e um dos primeiros do bairro a receber patrocínio, não conseguiu se firmar como profissional. Trabalha ocasionalmente como instrutor e organizador de campeonatos de surfe, mas exerce outras profissões.

10 Natalee Ferreira de Sousa. Essa entrevista foi realizada na casa do entrevistado em 20/05/2006. Estivador aposentado após trinta anos de serviço, seu Natalee demonstra uma imensa compreensão do processo de trabalho portuário e entende o porto do Mucuripe como ponto-chave da ocupação dessa parte da cidade. Leitor compulsivo procura sempre o entendimento mais amplo dos fenômenos que envolvem a história do bairro. É enfático ao firmar a necessidade premente de educar os mais jovens para otrabalho.

11 Maria Ferreira Dias. Dona “Mariazinha”, como é mais conhecida concedeu sua entrevista na sede da Associação de Mortadores do Serviluz em 31/06/2006. A entrevistada fala com entusiasmo da melhoria operada na comunidade e dos projetos que ajudou a desenvolver com os moradores. Conta como começou a formação da primeira associação de moradores no bairro, as viagens à Brasília e orgulha-se de ser reconhecida como uma referência na luta comunitária inclusive fora Fortaleza: “me sinto homenageda”, resume.

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Anexos

1- Ruas do bairro (Fonte: Listel 2006).

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2- Imagem aérea da Praia do Mucuripe (Fonte Geogle)

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3- Praia de Iracema em 1938. (Fonte: Museu da Imagem e do Som (MIS).

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4- Pescadores do Mucuripe em 1952 (Fonte: “Mucuripe”,fotos de Chico Albuquerque).

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5- Jangada do Mucuripe em 1952 (Fonte: “Mucuripe”, fotos de Chico Albuquerque)

6- Vista do Porto do Mucuripe (Fonte: do autor)

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7- Pesca com a rede de “três malho” (Fonte: do autor)

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8- Praia do Titanzinho (Fonte: do autor)

9- Praia do Serviluz (Fonte: do autor).

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10- Surfista do Serviluz (Fonte: do autor).

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11- Crianças do Serviluz (Fonte; do autor)

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