D2 CULTURA
DOMINGO, 11 DE OUTUBRO DE 2009 O ESTADO DE S.PAULO
Revolução Darwiniana:
Cartas de um caçador de provas Dois volumes organizados por Frederick Burkhardt saem no País e mostram que cientista confiava na veracidade de sua teoria Darwin não foi apenas um gênio da biologia, que com sua teoria mudouasmaisdiversasáreasdo pensamento; foi também um escritor exímio. Seus textos podem nãoter a incisividade de um Thomas Huxley, seu “buldogue”,quelevouacaboatarefade defender suas ideias diante do conservadorismoedoobscurantismo com um poder verbal admirável. Mas o que Darwin se propôsafazer–apaciente,minuciosa e perfeccionista coleta de evidências sobre a mutação das espécies,depoisdeconhecerprofundamente “o outro lado” – fez com muito estilo. Esse estilo elegante e claríssimo, sem pompa nem arrogância, é oque se vê em seus relatos de viagem, diários, ensaiosetambém nascartasdos volumes Origens e A Evolução (EditoraUnesp,trad.VeraRibeiro e Alzira Vieira Allegro, 312 e 346 págs., R$ 59 cada um), organizadas por Frederick Burkhardt e lançadas agora em bela ediçãocomemorativadecapa dura. Ler suas cartas é acompanhar a maneira como foi desenvolvendo suas ideias sob o compromissomaiordechegarauma verdade factual desconhecida. Essa maneira se assemelha muitoà suavisão dahistórianatural: ela é gradual, opera por meio de pequenasmudanças,masemdeterminados momentos dá saltos, inaugura novos e duradouros ramos. Alguns eventos abrem sua mente para se desviar em relação à opinião dominante.LerOsPrincípiosdeGeologia,deCharlesLyell,ofezperceber que a explicação criacionista não batia com os fatos: a Terra era muito mais antiga do que diziam os Evangelhos, e as distintascamadassubterrâneasrevelavam ser impossível a criação simultânea de tudo. Sem essa leitura, Darwin não estaria aberto a ver o que viu em sua viagem no Beagle. Não por acaso,Lyelléumdeseuscorrespondentes no volume Origens. Outro evento literário que se somou às experiências pessoais foi a leitura do Ensaio Sobre o Princípio da População, de ThomasMalthus,em1838.Asequência epistolar deixa claro que, dois anos depois de retornar da viagem,enãoduranteela,foique Darwinsedeucontadequeomaterial coletado permitia que esboçasse uma teoria original sobre a diversidade de espécies. Em mais alguns anos de coleta, como diz em 1844 em carta a outro naturalista, J.D. Hooker (leia nestapágina),jáestavaconfiante desuavisão.Lamarckeoutrosjá haviam se dado conta de que as espécies sofrem transforma-
REPRODUÇÃO
Cronologia
1809 Charles Darwin nasce em 12 de fevereiro em Shrewsbury, Inglaterra.
1818 Entra no colégio interno de Shrewsbury.
1825-27 É matriculado no curso de Medicina na Universidade de Edimburgo, na Escócia, mas abandona o curso.
1828 Entra no curso de Teologia na Universidade de Cambridge.
1831-36 Viaja como naturalista convidado a bordo do Beagle. Circunavega a América do Sul e atravessa o Pacífico.
1838 POR MARES NUNCA DANTES NAVEGADOS – O Beagle, navio da histórica viagem: correspondência, de estilo elegante, revela percurso intelectual
Trecho ●● PARA J.D. HOOKER, 11/1/1844
“(...) À parte meu interesse geral pelas terras do Sul, tenho agora estado empenhado, desde minha volta, em um trabalho muito pretensioso, e que não conheço nenhum indivíduo que não chamasse de uma grande tolice. Fiquei tão impressionado com a distribuição dos organismos nas Galápagos etc. etc., e com o caráter dos mamíferos fossilizados
ções ao longo das gerações, mas Lamarck acreditava que elas se deviam à persistência dos hábitosdecadaespécie.Darwin,estudando fósseis e embriões que coletava com ajuda de amigos em várias partes do globo, deu ênfase à existência de ancestrais comuns, a partir dos quais as espécies se desenvolviam à medida que suas características se mostravamadaptadas ounão ao ambiente.Nãoeraagirafaque,alongando o pescoço, gradualmente extraía vantagens da natureza ao redor; era por ela ter um pescoço longo que a natureza ao redor permitia sua sobrevivência. A vantagem não produz a muta-
Goleada de livros, claro, traz Dawkins Lançamentos sobre Darwin incluem também o brasileiro Sandro de Souza Continua a invasão do mercado editorial, principalmente de língua inglesa, por livros sobre Charles Darwin; mas no Brasil, por enquanto, poucos chegaram. Além do livro de Steve Jones, a Record lança em novembro o novo da dupla de biógrafos Adrian Desmond e James Moore, A Causa Sagrada de Darwin. A Companhia das Letras anuncia para o mesmo mês outro livro do controverso Richard Dawkins, O Maior Espetáculo da Terra. E a Larousse publicou O Jardim de Darwin, de Michael Boulter. De autores brasileiros, um dos dignos de nota é A Goleada de Darwin, de Sandro de Souza, também da Record. No exterior, além dos já comentados como Evolution – The First Four Billion Years, editado por Mi-
chaelRuseeJosephTravis,eAngels and Ages – A Short Book About Darwin, Lincoln, and Modern Life, do jornalista cultural Adam Gopnik, há incontáveis títulos.Entreelessedestacampela qualidade Darwin’s Universe, de Richard Milner (University of California Press), e Darwin’s Armada, de Iain McCalman (W. W. Norton & Company). O objetivo de Dawkins, de quem foi publicado apenas neste ano A Grande História da Evolução (The Ancestor’s Tales, 2004),éagoraexplicarporquea seleçãonaturaléumfatohistórico,que “não podeser negado como o Holocausto não pode ser negado”,segundoescrevenocomeço de The Greatest Show on Earth (Free Press). O maior espetáculo da Terra é a natureza,
americanos etc. etc., que decidi coletar às cegas toda sorte de dados que pudessem ter alguma relação com o que são as espécies. Li pilhas de livros de agricultura e horticultura, e nunca parei de colecionar dados. Por fim, surgiram alguns raios de luz, e estou quase convencido (contrariando a opinião com que comecei) de que as espécies não são (isso é como confessar um assassinato) imutáveis. Deus me li-
vre do disparate lamarckiano de uma ‘tendência para o progresso’, de ‘adaptações oriundas da vontade lenta dos animais’ etc., mas as conclusões a que sou levado não diferem muito das dele – embora os meios de mudança sejam totalmente diferentes. Creio haver descoberto (isso é que é presunção!) a maneira simples pela qual as espécies adaptam-se primorosamente a diversas finalidades.”
ção; é subproduto dela. A mudança de ponto de vista, que mostra um engenho natural movidoemgrandeparteporaleatoriedade, transformou o conhecimentohumano.Ascartasdosegundo volume mostram bem a aflição de Darwin quando Lyell sugeriu que escrevesse um resumo de suas ideias, até porque outros como Alfred Wallace estavam chegando às mesmas conclusões. O projeto de Darwin era fazer um “grande livro das espécies”, muito mais amplo que A Origem das Espécies, o qual publicaem1859paranãoperderaprimazia do achado. (Wallace, no entanto,foioprimeiroareconhecer que Darwin tinha ido mais longe.) Especulações de que ele temiademais oimpactosobreos religiosos da época, como sua própria esposa Emma, não se sustentam nas cartas. Estas mostramumDarwinabençoadamente “pretensioso”, segundo ele mesmo; sua atitude era mais “os fatos são estes, nada posso fazer” do que “vocês vão ter que me engolir”. Mas, embora se queixealgumasvezesda“severidade” com que Huxley desafia o preconceito cristão, em 1860 tiraochapéuparasuacoragemno debate com o bispo Wilberforce e escreve: “Essa querela é o melhor dos assuntos.” ● D.P.
suaengenhosidade,suacomplexidadenascidadeumabasemuito simples. Dawkins mostra como as variações estudadas pela genética confirmam sua visão, desde que Theodore Dobzhanski sintetizou Darwin e Mendel em 1937 e a estrutura do DNA foi determinada pela dupla Watson e Crick em 1953. O mesmo, mas com menos detalhamento e profundidade, é feito com eficiência pelo brasileiro Sandro de Souza, pesquisador em biotecnologia formado na USP e em Harvard. Por sua vez, a dupla Desmond e Moore, autora de Darwin–A Vida deUm Evolucionista Atormentado, destaca no novo livro “a postura antiescravidão” do naturalista. Apesar de passagens com um teor racial característico da época (como seu horror diante do “barbarismo” dos índios da Terra do Fogo, na Patagônia), Darwin nunca foi um racista, um defensor da superioridade moral de uma raça em face das outras; ao contrário, sempre foi um crítico do preconceito, como se manifestou na passagem pelo Rio de Janeiroem1832,durantea monarquia escravocrata. Desmond e Moore se esforçam por dissociarDarwin e asleituras quedele fizeram intelectuais como Herbert Spencer, este sim um advogado da raça branca. Darwin’s Armada, do professor australiano Iain McCalman (editoraNorton), temoponto de partida mais original entre todos esses lançamentos: descre-
Lê o Ensaio Sobre o Princípio da População, de Malthus, e tem a ideia da seleção natural.
1839 Casa-se com a prima Emma Wedgwood. Publica em livro o Diário de Viagem.
1842 Muda-se para a Down House, a 20 km de Londres.
1851 Sua filha, Annie, morre aos 10 anos de idade.
1859 Publica, em 24/11, A Origem das Espécies.
1871 Publica A Descendência do Homem.
1872 Publica A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais.
1876 Começa a escrever sua autobiografia.
1882 Morre em 19/4, sendo enterrado na Abadia de Westminster.
ver quatro grandes viagens de naturalistas que se engajaram no que chama de “batalha pela Teoria da Evolução”. A primeira delas, claro, é a de Darwin ao redor da América do Sul, a bordo do Beagle,1831- 36. As outras sãoasdeJosephHookerpeloPolo Sul, 1839-43, Thomas Huxley pela Austrália, 1846-50, e Alfred Wallace pela Amazônia e pelo sudeste asiático, 1848-66. McCalman narra bem essa viagens e mostra como esses três amigos de Darwin, em seguida, defenderam em público sua teoria; Wallace, em especial, chegou a conclusões muito parecidas de forma independente. O livro do antropólogo Richard Milner, ampliação de doistrabalhosanteriores(inclusive um prefaciado por Stephen Jay Gould, prefácio agora repetido), é uma verdadeira enciclopédia ilustrada da evolução, de A a Z. Darwin’s Universe (University of California Press) é o que mais merece tradução no Brasil. Além desses destaques, o ano Darwin tem visto também a multiplicação de livros que usam sua teoria para analisar outras áreas, como as artes (The Art Instinct, de Denis Dutton), a linguagem verbal (Adam’s Tongue, de Derek Bickerton), a ficção e o conhecimento (On the Origin of Stories, de Brian Boyd). Tudo isso torna uma afirmação segura: uma diferença notável entre o ser humano e as outras espécies é que elas não produziram nenhum Charles Darwin. ● D.P.