Dalva Garcia Cbfc

  • October 2019
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  • Pages: 26
DO FILOSÓFICO AO LITERÁRIO: FRONTEIRAS E POSSIBILIDADES Dalva Aparecida Garcia* [email protected]

“O Rei fartou-se de reinar sozinho e decidiu partilhar o

poder com a Opinião Pública. - Chamem a Opinião Pública – ordenou aos serviçais Eles percorreram as praças da cidade e não a encontraram. Havia muito que a opinião deixara de freqüentar os lugares públicos. Recolhera-se ao beco sem saída, onde furtivamente, abria só um olho, isso mesmo lá de vez em quando. Descoberta, afinal, depois de muitas buscas, ela consentiu em comparecer ao Palácio Real, onde sua Majestade, acariciando-lhe docemente o queixo, lhe disse: - Preciso de ti. A Opinião muda como entrara, muda se conservou. Perdera o uso da palavra ou preferia não exercitá-la. O rei insistia, oferecendo-lhe sequilhos e perguntando o que ela pensava disso e daquilo, se acreditava em discos voadores, horóscopos, correção monetária, essas coisas. E outras. A Opinião Pública abanava a cabeça: Não tinha opinião. - Vou te obrigar a ter opinião – disse o Rei, zangado. – Meus especialistas te dirão o que deves pensar e manifestar. Não posso mais reinar sem teu concurso. Instruída devidamente sobre todas as matérias, e tendo assimilado o que é preciso achar sobre cada uma em particular e sobre a problemática geral, tu me serás indispensável. E virando-se para os serviçais: -Levem esta senhora para o curso intensivo de Conceitos Oficiais. E que ela só volte aqui depois de decorar bem as apostilas.” (DRUMMOND, 1985)

Quando nos perguntamos o que é literatura, ou mesmo o que é a filosofia, tendemos a afirmar que o campo da racionalidade e dos sistemas explicativos seria o campo da filosofia e o espaço das emoções e dos afetos seria o campo da arte e da literatura, capaz de nos arrebatar. Aqui convém questionar: estariam as relações entre

*

Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças e PUC/SP

filosofia e literatura marcadas com certezas claras e distintas, como no cogito cartesiano? Essa

caracterização

não

é

simples

porque

esbarra

na

caracterização da própria filosofia. Alguns referenciais para traçar essa distinção podem ser encontrados nas obras de G.G Granger , Gilles Deleuze e Felix Guatari e Frédéric Cossutta. É claro que a escolha desses autores obedece, aqui, a escolha de um critério: no caso, a pesquisa de obras que tinham por objetivo específico delinear o que caracterizaria um discurso propriamente filosófico, ou ainda, o que poderíamos entender por “Filosofia”. Embora sustentando posições diferentes acerca do problema, é possível

encontrar

um

traço

comum

nos

textos:

para

esses

pensadores, a especificidade do texto filosófico seria a construção de um universo de significação que tem sua raiz na experiência vivida, mas se desloca da mesma através de conceitos. Enquanto o artista cria significações e nos faz vivê-las, o filósofo transpõe o vivido em termos de abstrações conceituais. Independentemente dos mecanismos de construção de um texto

filosófico,

seja

por

meio

de

uma

cadeia

dedutivas

de

argumentação ou por estilizações subjetivas e metafóricas, o que nos permite identificar um texto como filosófico é a possibilidade da construção e reconstrução dos conceitos. No universo conceitual estaria a instância mediadora do vivido e do pensado, do particular e do universal, do concreto e do abstrato que permite ao filósofo deslocar, atribuir sentidos, destruir e construir significações. Há também, em Granger e em Deleuze e Guattari, a tentativa de diferenciar a filosofia, da ciência ou da arte, de forma que, seja possível preservar as qualidades de um discurso propriamente filosófico.

Deleuze e Guattari, no texto “O que é a filosofia?”,1 se opõem ao tratamento que Granger dá ao conceito filosófico, uma vez que consideram que o domínio da criação dos conceitos é próprio da atividade filosófica, entendem que Granger apenas submete a filosofia à primazia da lógica e da ciência. A fim de tornar claro esse debate, partirei das afirmações de Granger através da leitura do texto “Por um conhecimento filosófico”2 , para depois colocá-la sob o crivo das posições defendidas por Deleuze e Guatari e, finalmente, adentrar no terreno que, aqui, nos interessa: o das fronteiras e possibilidades de quem se coloca entre duas formas de pensar.

Onde está a filosofia?

Granger inicia seu trabalho buscando responder a um problema comum,

presente

em

toda

a

história

da

filosofia:

como

o

conhecimento filosófico seria possível? O primeiro passo seria o de diferenciar a filosofia da ciência e, portanto, caracterizar o que poderia ser denominado “ciência”. Para o pensador, as ciências visam construir modelos abstratos dos fenômenos, representados como estruturas distanciadas do vivido, de tal forma que, seja possível calcular, ou melhor, evocar “a idéia de operações definidas e reguladas”. A filosofia não pode propor verdadeiros modelos dos fenômenos e, segundo Granger, quando tentou se lançar a essa tarefa, o resultado foi o fracasso. Em segundo lugar, as ciências definem os fatos que tratam de maneira que seja possível pôr em dúvida, informar, ou, mesmo, confirmar o que se afirma, por meio de operações submetidas à regras e protocolo. Já a filosofia não pretende explicar fatos.

1

DELEUZE, J. GUATTARI, F. O que é a filosofia?. Rio de Janeiro: ED. 34, 1992. Cf. GRANGER, G. G. : Op. Cit.

2

Em terceiro lugar, diferentemente das ciências, a filosofia não teria objeto específico, pois seu campo de aplicação seria o conjunto da experiência humana. Mas não se trata de analisar um conjunto global de fatos, como poderíamos supor. Por isso, Granger nos alerta para uma intenção oculta que habitaria toda a filosofia, ou seja, a de não organizar fatos, mas sim, significações entendidas como uma experiência global que envolve experiências vividas colocadas em perspectiva. Ora, se a filosofia não lida com fatos não haveria objetos filosóficos. Também não poderíamos confundir a filosofia com a arte. A arte visa criar objetos concretos cuja existência seria inseparável dos materiais

que

ela

utiliza.

Esse

suporte

material

efetivamente

realizado, ou reconstituído pela imaginação, simboliza experiências que nos transportam para além do sensível. Neste sentido, se pudéssemos atribuir à filosofia o estatuto de arte, ela seria a “arte da linguagem”,

todavia,

o

discurso

filosófico

não

suscita

objetos

consistentes, apreensíveis sob múltiplos aspectos; objetos indutores de experiência, capazes de evocar imagens e sentimentos. Contudo, nos declara Granger: “Afirmar que a obra filosófica não se confunde com a obra do artista não significa, contudo que se queria recusar à obra de arte todo o valor, todo o alcance filosófico. Mas, na poesia e no romance, por exemplo, só se acha a representação de um mundo preparado pelo trabalho filosófico. O que o artista mostra, mais do que faz, ordinariamente, o mundo vivido é aquilo sobre o que deve se exercer o trabalho do filósofo. Enquanto criador de objetos a partir de materiais emprestados da experiência (...) o artista faz parecer significações e nos leva a vivê-las como ele em nosso próprio imaginário. Em troca, o filósofo se propõe como tarefa transpor essas significações vividas, essas significações em estado nascente, em termos de abstrações conceituais.”3

Esta afirmação nos parece interessante, pois se a filosofia não poderia confundir-se com a arte; a arte, por sua vez, traria em seu 3

GRANGER:Op. Cit p. 17.

bojo, as “significações em estado nascente”, o que poderia, talvez, abrir o caminho para a filosofia em um universo marcado pelos fatos e pelas informações. Contudo, continuemos perseguindo a análise de Granger: da mesma forma como não podemos confundir a filosofia com a arte, temos que ter um cuidado redobrado ao afirmarmos que a “filosofia é uma arte”, uma vez que só existiria filosofia à medida em que fazemos filosofia. Afirma Granger: “um programa filosófico, se já não for em si mesmo sua execução, é impostura”. Isto constituiria um dos principais problemas do ensino de filosofia, pois se podemos extrair esquemas das obras científicas originais, o mesmo não pode ser efetuado com as obras filosóficas. O conteúdo filosófico só poderia se manifestar nas próprias obras filosóficas. Sendo assim, o autor considera a filosofia um estilo: “Entendemos por estilo que, sendo um trabalho de execução, o que a filosofia produz se expressa, ao mesmo tempo, ao nível dos conteúdos manifestos que o filósofo organiza explicitamente num sistema de conceitos e, ao nível latente de um por em forma mais livre, elementos não designados, não pertinentes na própria expressão”.4

Mas a questão do estilo poderia nos conduzir a alguns perigos comuns no entendimento desse fazer. Granger nos adverte: se a palavra verdade não se sustenta no “fazer filosofia” poderia, de alguma forma, ser aplicada às ciências porque, em última análise, os fenômenos acham-se limitados a um quadro de operações que lhes permitem ser posto à prova. Porém, não poderíamos afirmar que, as teses filosóficas seriam enunciados provisórios e revisáveis porque a precariedade da filosofia seria de outra ordem: implicaria na liberdade de uma escolha global, de uma perspectiva sobre o significado de nossa experiência. Isso não significa professar o relativismo, nem mesmo o ceticismo:

4

Idem. p. 19.

“Se o conhecimento filosófico é relativo, não é por ser o simples e puro reflexo de uma época ou de um temperamento (...) O conhecimento filosófico é a interpretação de uma experiência de uma época. (...) mas torna essa experiência singular assimilável como figura intemporal de uma consciência formulada através de conceitos, não como a figura fugaz das suas condições históricas. (...) O ceticismo impõe-se somente quando muitas afirmações inconciliáveis se justapõem, com a pretensão – incerta - de serem reconhecidas como verdade. Se as teses filosóficas não se situam num plano em que as verdades possam ser definidas, o ceticismo perde seu sentido.”5

Visto

que

a

própria

natureza

conceitual

da

filosofia

a

salvaguardaria das interpretações equivocadas que conduzem ao relativismo

ou

ao

ceticismo,

seria

necessário,

então,

nos

perguntarmos sobre a natureza do conceito filosófico. Granger afirma que, por oposição às impressões e aos afetos, o conceito seria o modo de representação que a ciência utiliza. Resta-nos, saber, na perspectiva de Granger, o que caracterizaria um conceito filosófico em oposição a um conceito científico. Ou melhor, como um conceito não científico seria possível? Granger designa o conceito filosófico como metaconceito: “Esta qualificação de metaconceito deve evocar a hipótese de que tais conceitos nunca visam verdadeiramente nem para designar um vivido enquanto tal, nem para representá-lo absolutamente pela mediação das estruturas, isto é, por exemplo, relações de conjunto entre os objetos. Sua função é fornecer pontos de apoio para uma linguagem que quer falar dos conceitos naturais, descobrindo ‘seu sentido’, isto é, construindo, uma organização totalizante.”6

Ora, essa afirmação de Granger devolve à filosofia um lugar privilegiado frente às ciências, pois a coruja de Minerva poderia ver à distância, em pleno entardecer, o trabalho minucioso e fragmentado que as ciências formulam

de perto, quase “microscopicamente” e,

assim, recuperar o “sentido” da história. Novamente, em uma outra perspectiva, 5 6

Idem. p. 21. Idem. p.164.

o

papel

da

filosofia

estaria

alargado.

A

posição

privilegiada da filosofia frente à ciência ou à arte continua preservada mesmo quando Granger denomina os conceitos filosóficos como “conceitos frouxos”. Embora a filosofia seja conhecimento, não pode ser entendida como

um sistema dedutivo de uma Mathesis

Universalis , mas deve ser analisada por uma análise de modos de raciocínio pelo qual opera, a citar: o funcionamento de noções filosóficas num sistema simbólico e sobre um conceito inexato – sobre o qual o conceito filosófico seria uma “perspectiva estilística”, isto é, desenvolvido, como instrumento filosófico. Quanto à primeira operação, afirma Granger, que a palavra que veicula o conceito tem por referência a totalidade de uma experiência e não um objeto separado que seria decomposto. Quanto à segunda, pode-se ler: “A análise filosófica parte realmente do simbolismo como de um fato. Mas nunca à maneira do filólogo que descreve como igual este estado de fato, nem bem entendido, à maneira do homem da ciência, que na ocasião destrói e reforma os simbolismos naturais visando construir um modelo abstrato de nosso mundo de objetos (...) A filosofia se dedica a explicitar em que e como, simbolismos incluindo os que constroem deliberadamente a ciência, são e representam (...) nesse sentido, que ela não tem objetos, nem os cria, mas elabora significações. De tal sorte que os conceitos filosóficos, talvez mais essencialmente do que os conceitos objetivos, formam um sistema. Sua própria função é de levar a uma totalidade (que é preciso construir). Em um sentido, uma filosofia não é nada mais que uma linguagem, isto é, um sistema simbólico, mas organizado de uma maneira que o distingue de um sistema formal. E essa linguagem funciona como metalinguagem.”7

Talvez seja o sentimento de crise perante os meta-discursos que tenham feito Deleuze e Guattari retomar a caracterização da filosofia enquanto atividade conceitual em uma perspectiva diferente de Gilles Gaston Granger. Talvez pelos mesmos motivos tenham iniciado o projeto do texto “O que é filosofia?” com a seguinte afirmação: 7

Idem. p. 206.

“Tínhamos muita vontade de fazer filosofia, não nos perguntávamos o que ela era, salvo por exercício de estilo; não tínhamos atingido este ponto de não-estilo em que se pode dizer enfim: mas o que é isso que fiz toda minha vida?”.8

Problematizando a idéia de philia, os autores afirmam ser, o filósofo, o amigo do conceito ou o conceito em potência. Isso implica em dizer que os conceitos não são achados, produtos ou formas, mas criações e, por isso mesmo, nos remetem ao filósofo como àquele que os tem em potência. Justamente porque não haveria “um céu para os conceitos” que eles não seriam nada sem a assinatura de quem os criou. Definida a filosofia como criação de conceitos, resta aos autores definir o que ela não seria e, provavelmente, esse é o lugar em que os autores iniciam um suposto debate frente a caracterização de Granger. Prosseguimos, então, tentando resgatar o procedimento que nos ensinaram os autores da Teoria Crítica, ou seja, o tentar ler nas entranhas do texto: Para Deleuze e Guattari, a filosofia não seria contemplação, pois contemplações são as coisas mesmas, vistas na criação dos conceitos. Também não poderia ser reflexão, pois isso seria o mesmo que nada dizer a seu respeito, uma vez que ninguém depende da filosofia para refletir

o

que

quer

que

seja.

Finalmente,

não

poderiam

ser

comunicação, pois a comunicação seria útil para criar o consenso e não o conceito. Afirmam, finalmente: “A filosofia não contempla, não reflete, não comunica, se bem que tenha que criar conceitos para estas ações ou paixões. A contemplação, a reflexão, a comunicação não são disciplinas, mas máquinas de construir Universais em todas as disciplinas. Os Universais de contemplação, e em seguida de reflexão, são como duas ilusões que a filosofia já percorreu em seu sonho de dominar as outras disciplinas (idealismo objetivo e idealismo subjetivo), e a filosofia não se engrandece 8

DELEUZE e GUATTARI: op.cit., p. 9

mais apresentando-se como uma nova Atenas e se desviando sobre os Universais da comunicação que lhe forneceriam as regras de um domínio imaginário dos mercados e da mídia (idealismo inter-subjetivo). Toda criação é singular, e o conceito como criação propriamente filosófica é sempre uma singularidade. O primeiro princípio da filosofia é que os Universais não explicam nada, eles próprios devem ser explicados.”9

Se, encontramos nesta citação, o mesmo ímpeto demolidor que balança os alicerces do poder redentor da filosofia, presente em Benjamin, é preciso cuidado, pois os autores não decretam a falência da filosofia, antes retomam sua vivacidade, trazendo à tona os rivais da

filosofia

em

sua

densa

história,

a

citar:

a

sociologia,

a

epistemologia, a lingüística, a psicanálise e a análise lógica e, por fim, a informática, o design, a publicidade e todas as disciplinas da comunicação. Mas, a “velha senhora” quanto mais tropeça em rivais mais encontra força para criar conceitos que “são antes meteoritos que mercadorias”.10. “Fala-se hoje em falência dos sistemas, quando é apenas o conceito de sistema que mudou. Se há lugar e tempo para a criação de conceitos, a essa operação de criação sempre se chamará filosofia, ou não se distinguirá da filosofia, mesmo se lhe for dado outro nome”.11

A imagem dos conceitos como meteoritos abala a idéia de totalidade presente em Granger, embora seja preciso considerar que os autores afirmam que os conceitos nos indiquem uma espécie de corte no caos, de articulação e superposição; afirmam o todo porque o conceito totaliza seus componentes, mas um “todo fragmentário” – “uma condição para sair do caos que não cessa de espreitá-lo, de aderir a ele, para reabsorvê-lo12.” Desta forma, não poderíamos pensar no conceito sem seus componentes - sem um contorno irregular definido pela cifra de seus 9

Idem. p. 15. Idem. p. 19. 11 Idem. ibidem. 12 Idem, p.27. 10

componentes -, como também não podemos pensar em um conceito sem que ele nos remeta a um problema que possibite sua criação e sem uma história em “zigue-zague” que remete a pedaços vindos de outros conceitos, ou ainda, em um devir que bifurcará o conceito sobre outros conceitos. Sendo assim, afirmam Deleuze e Guattari ser o conceito, ao mesmo tempo, absoluto e relativo. Relativo a seus componentes, aos outros conceitos, ao plano a partir do qual se delimita, aos problemas que tenta resolver. Absoluto pela condensação que opera, pelo lugar que ocupa no plano de imanência, pelas condições que impõe ao problema.

“É

absoluto

como

todo,

mas

relativo

enquanto

fragmentário”.13 Finalmente, afirmam que o conceito não é discursivo porque a filosofia não seria formação discursiva que encadeia proposições. Consideram uma “idéia infantil” da filosofia, entender os conceitos medidos por uma “gramática filosófica”. Os conceitos não seriam proposições encadeadas porque só teriam consistência fora de coordenadas, uma vez que entram livremente em “relações de ressonância” (os componentes de um se tornam conceitos de outros componentes heterogêneos), sendo assim, não há razão para que os conceitos se sigam. O conceito, portanto, se define por sua consistência, mas não tem referências; é auto-referencial, põe a si mesmo e põe seu objeto, ao mesmo tempo em que é criado. Ora, diante dessa caracterização, fica fácil entender porque Deleuze e Guattari atribuem à filosofia o domínio da criação de conceitos e negam a existência dos conceitos científicos. Neste contexto, torna-se transparente a crítica que fazem a Granger: “Começamos por atribuir o poder do conceito à ciência, definimos o conceito pelos procedimentos criativos da ciência, medimo-la pela ciência, depois perguntamos se não resta uma possibilidade para que a filosofia forme, por sua vez, conceitos de segunda zona, que suprem 13

Idem, p.34.

sua própria insuficiência por um vago apelo ao vivido. Assim Gilles Gaston Granger começa por definir o conceito como uma proposição ou uma função científicas, depois concede que pode até mesmo haver conceitos filosóficos que substituam a referência do objeto pelo correlato de uma ‘totalidade do vivido’.14

Não nos cabe adentrar nesse debate de gigantesmas. É preciso considerar que Granger, para salvaguardar o domínio filosófico, submete a filosofia à uma análise muito parecida com “o tribunal kantiano”. Em contrapartida, Deleuze e Guattari parecem nos querer livrar das amarras do “transcendental” para colocar a filosofia no chão de uma “composição fragmentada de ladrilhos”.15 Mas... se à filosofia cabe o domínio da criação dos conceitos, o que seria, nessa perspectiva, a ciência e a arte? A tese é que a filosofia cria conceitos (que não se confundem com idéias gerais ou abstratas), enquanto a ciência tira prospectos (proposições que não se confundem com juízos), e a arte cria perceptos e afectos (que também não se confundem com percepções ou sentimentos). Ora, neste universo de engodos, continuemos a tentar prosseguir o caminho traçado, cientes de nossos possíveis erros de interpretação e leitura e “das inevitáveis

confusões” que

podem se seguir. A ciência tem por objeto funções que se apresentam como proposições nos sistemas discursivos. Teríamos, então, que delimitar as possíveis diferenças entre a ciência e a filosofia no interior dessa perspectiva. A primeira refere-se ao plano de imanência, primordial para a criação 14

dos

conceitos:

o

crivo

filosófico

recortaria

o

caos

e

Idem. p. 47. Os autores afirmam que os conceitos filosóficos são totalidades fragmentárias que não se ajustam umas às outras, já que suas bordas não coincidem. Acerca do plano de imanência que permite a criação conceitual afirmam: “os conceitos ladrilham, ocupam e povoam o plano, pedaço por pedaço enquanto do próprio plano é o meio indivisível em que os conceitos povoam sem romper-lhe a integridade, a continuidade: eles ocupam sem contar (a cifra do conceito não é número), ou se distribuem sem dividir.” Cf. DELEUZE e GUATTARI: op.cit., p. 52.

15

selecionaria movimentos infinitos do pensamento, dando consistência ao virtual por meio de conceitos. Já, no caso da ciência, haveria necessidade de renunciar ao infinito, para ganhar uma referência capaz de atualizar o virtual, como uma parada de imagem, uma desaceleração. “É por desaceleração que a matéria se atualiza, como também

o

pensamento

científico,

capaz

de

penetrá-la

por

proposições”. – “Desacelerar é colocar um limite no caos”.16 Portanto, a primeira diferença entre a filosofia e a ciência refere-se, no caso do conceito, a um plano de imanência. No caso da função, a um plano de referência. A segunda diferença diz respeito ao papel das variáveis no conceito e na função: No conceito temos um “conjunto de variáveis inseparáveis sob uma razão contingente”; na função, um “conjunto de variáveis independentes sob uma razão necessária”.17 Também é preciso destacar uma diferença singular entre filosofia e ciência, apresentada por Deleuze e Guattari, para buscarmos entender a diferença entre prospectos e juízos: se na filosofia nos remetemos aos

“personagens

conceituais”,18

na

ciência

convivemos

com

“observadores parciais”. Sendo assim, o papel do observador parcial na ciência é perceber e experimentar, embora as percepções e afecções não sejam a do sujeito, mas pertencem a coisa que ele estuda. “Os observadores científicos seriam

pontos de vista nas

coisas mesmas.” Neste contexto, não poderíamos confundir “conceitos” com “prospectos”. O conceito, na perspectiva de Deleuze e Guattari, não é uma função científica porque não é uma proposição lógica (pertence

16

Idem. p.155. Cf. Idem, p 163 – (grifo nosso) 18 Ao escreverem sobre personagens conceituais, Deleuze e Guattari, se referem à tradição filosófica, que traz à tona o apelo aos conceitos criados nesta trajetória não linear. Afirmam: “O personagem conceitual não é o representante do filósofo, é mesmo o contrário: o filósofo é somente o invólucro de seu principal personagem conceitual e de todos os outros, que são intercessores, os verdadeiros sujeitos de sua filosofia. Os personagens conceituais são os ‘heterônomios’ do filósofo, e o nome do filósofo, o simples pseudônimo de seus personagens.” Idem: p. 86. 17

ao sujeito e não ao conjunto); não pertence a nenhum sistema discursivo, não tem referência. “Os conceitos são monstros que renascem de seus pedaços”19 , da mesma forma que, “a filosofia é devir, não história; ela é coexistência de planos, não sucessão de sistemas”20. Ao abordarem a arte, enquanto criadora de perceptos e afectos, a definem de forma intrigante: “A arte conserva, e é a única coisa no mundo que conserva”. Para os pensadores o que se conserva, a obra de arte, é um bloco de sensações, ou melhor, um conjunto de perceptos e afectos. Tanto os perceptos não são percepções, como os afectos não são sensações porque a arte transborda a força dos que são atravessados por ela, é capaz de existir apesar da inexistência do homem, ou seja, o criador a mantém “em pé sozinha”. Apesar de pintarmos, esculpirmos, compormos e escrevermos com sensações e a partir de percepções. Tais percepções não nos remeteriam a um objeto (referência): “se assemelham a algo, é uma semelhança produzida por seus próprios meios, e o sorriso na tela é somente feito de cores, de traços, de sombras e de luz”.21 O objetivo da arte seria o de arrancar o percepto das percepções do objeto e de arrancar o afecto das afecções, extrair um puro ser de sensações. Apesar de considerarem estar o escritor em uma posição diferenciada do pintor ou do escultor, pois o material de suas obras são as palavras, o caracterizaria um romance, como obra de arte, não seria a memória, mas a fabulação. Desta forma, afirmam: “Os personagens não podem existir, e o autor só pode criálos porque eles não percebem, mas entraram na paisagem e fazem eles mesmos parte do composto das sensações.”22 Uma posição parecida pode ser encontrada no texto de Sartre, “O que é literatura?” quando o autor se propõe a distinguir o poeta do 19 20 21 22

Idem, Idem. Idem. Idem.

p.183. p.78. p.216. p. 219.

prosador

para

reafirmar

a

possibilidade

de

uma

literatura

comprometida com a filosofia da existência; o que, para Franklin Leopoldo e Silva23, permitiria se instaurar entre a literatura e a filosofia em Sartre uma espécie de “vizinhança comunicante” pelo qual Sartre poderia dizer e não dizer as mesmas coisas – vizinhança fundamental para seu projeto existencialista: “Fundido à palavra, absorvido pela sua sonoridade ou pelo seu aspecto visual, adensado, degradado, o significado também é coisa, incriada, eterna: para o poeta, a linguagem é estrutura de mundo exterior. O falante está em situação na linguagem, investido pelas palavras; são prolongamentos de seus sentidos, suas pinças; ele as manipula a partir de dentro, sente-as como sente seu corpo, está rodeado por um corpo verbal do qual mal tem consciência e que estende sua ação sobre o mundo. O poeta está fora da linguagem, vê as palavras do avesso, como se não pertencesse à condição humana e, ao dirigir-se aos homens, logo encontrasse a palavra como barreira”.24

Desta forma, não haveria como confundir a arte com a filosofia. Mas, Deleuze e Guattari, parecem apontar para a questão que se pretende abordar neste trabalho, ao afirmarem: “Os três pensamentos se cruzam, se entrelaçam, mas não em síntese, nem em identificação. A filosofia faz surgir acontecimentos com conceitos, arte ergue monumentos com suas sensações, a ciência constrói estado de coisas com suas funções. Um rico tecido de correspondência pode estabelecer-se entre os planos.”25

Para além das fronteiras

A elaboração dos conceitos, no interior do texto filosófico, permite-nos distinguir filosofia e literatura. Segundo Granger, na literatura

temos

substituição

23

a

destas

suspensão

dos

referências

do

referenciais do discurso

vivido

descritivo

por

e

a um

Cf. SILVA, Franklin Leopoldo e. Ética e Literatura em Sartre: ensaios introdutórios. São Paulo: UNESP, 2004, pp. 11 – 32. 24 SARTRE, J. P. O que é literatura?. SP: Ática,1999, p. 14. 25 DELEUZE e GUATTARI: Op. Cit. p. 254.

equivalente ficcional. A filosofia, através do conceito, propõe a “reconstrução desse discurso” e não simplesmente sua suspensão e substituição. Exatamente por isso, Granger alerta para o perigo do uso de metáforas na construção do texto filosófico, pois o uso excessivo da imagem interrompe a exposição abstrata e a substitui por um equivalente concreto. A metáfora alude às imagens que podem ser compreendidas sem exatidão, a situação poética poderia ser um problema para o rigor filosófico e, conseqüentemente, para os mecanismos

da

demonstração

filosófica,

necessários

para

a

reconstrução do vivido. Já, para Frédéric Cossuta a função da metáfora, no interior do texto filosófico, teria que ser examinada de uma forma mais complexa. Entende que a desconfiança que os filósofos teriam no uso metafórico da linguagem teria sua origem na recusa do mito, ou seja, “haveria

uma

antinomia

original entre

o

esforço

filosófico

de

inteligibilidade e o peso concreto da imagem que veicularia a ignorância e a irracionalidade”.26 Mas também recupera dos filósofos “tradicionais” a impossibidade de um “pensamento puro”, totalmente livre, da força das imagens. Sendo assim, o autor busca analisar nos textos

filosóficos

de

diferentes

pensadores

(Descartes,

Kant,

Nietzsche, dentre outros) as possíveis funções do emprego das metáforas. Sem dúvida, se trata de um convite interessante, mas nos limitaremos a tratar do que autor denomina como “função filosófica do uso da metáfora”. Para Cossutta, a metáfora, em alguns textos, pode assumir uma função mediadora intradiscursiva. Neste caso, o emprego da metáfora seria fraco, uma vez que, somente alguns aspectos da doutrina seriam metaforizados, a dominância não seria metafórica. Seria como uma espécie de desdobramento dos conteúdos filosóficos que se efetua por formas expressivas diferenciadas, o que supõe para a 26

COSSUTA, F. Elementos para a leitura dos textos filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.99.

metáfora funções pedagógicas ou funções ornamentais e persuasivas. “A função didática, por sua vez, torna-se possível pela tradução, em formas de expressão figuradas, de um conteúdo que só será acessível posteriormente”27 no interior do texto filosófico, em sua circularidade. Mas a metáfora poderia assumir também, na filosofia, uma mediação extradiscursiva ou desintegradora do discurso: “Quando, ao contrário, é impossível substituir, apagar, traduzir e, por outro lado, os critérios de importância se unem para dar à metáfora um lugar privilegiado, esta não é mais um desdobramento de uma doutrina na escrita; ela provoca uma ruptura de encadeamento discursivo e indica regiões de ser ou formas de experiência inacessíveis por outros meios (...) A metáfora não é um desvio interno nem uma ruptura, não combina com a língua empregada pelo filósofo, nem com a construção do espaço da doxa, mas constitui um momento indispensável de análise.28

Essa análise nos conduz a um texto que se realizaria no fundo de sua própria impossibilidade, como nos aponta Jeanne Marie Gagnebin, ao apontar Kafka como narrador, em sua leitura de Benjamin. Essa inclinação poética da filosofia poderia nos conduzir a, pelo menos, dois caminhos: poderia implicar no fim da filosofia ou na possibilidade de uma renovação. Mesmo considerando os riscos, que nos aponta Granger, preferimos

entender

esse

procedimento

como

possibilidade

de

renovação. Para tornar um pouco mais clara essa posição, voltemos para relação entre a filosofia e os conceitos. Para Granger, os conceitos seriam pontos de vista sob o qual a experiência se organiza e podem ser entendidos como feixes em busca de significações para as experiências, sendo assim é preciso admitir que os conceitos só podem ser criados a partir das referências vividas na experiência. Apesar de Deleuze e Guattari afirmarem que a filosofia se coloca sob um a plano de imanência e não de referencias, admitem 27 28

Idem. p. 123. Idem. p. 124 - 125.

que a filosofia não é “sorriso sem o gato” Por outro lado, defendem que tais “pontos de vista”, se é que assim podemos chamar, podem ser desligados de sua relação referencial e considerados em si. O conceito, neste caso, torna-se reflexivo, torna-se “auto- referente”. No texto sistemático – entendido como texto filosófico - os conceitos reflexivos servem reciprocamente para a organização dos sentidos da experiência. Se a filosofia ganha em rigor, paga o preço de uma abstração capaz de distanciar o conceito de seu campo referencial de experiência. Creio estar aqui o nó que os professores de filosofia do Ensino Médio tentam desfazer, ou seja, aproximar o conceito filosófico de um campo referencial de experiência que se mostra cada vez mais fragmentado. Mas seria possível admitir um universo conceitual num texto de ficção? Exatamente por poder substituir as referências do discurso descritivo por “pseudo- referências”, o texto literário supõe uma maleabilidade em relação aos conceitos. Apresenta-se, desta forma, possibilidades de uso de conceitos e, com isso, possibilidades de diferentes formas para a organização da experiência. O real e a ficção se entrelaçam: a unidade da ficção não é a unidade de uma consistência sistemática, mas sim uma unidade que se configura como equivalente de uma experiência. Essa unidade pode subverter os esquemas da realidade em camadas sobrepostas no texto literário. A literatura pode não somente apresentar conceitos, mas também problematizar conceitos e representar condensações préconceituais. No texto literário é possível encontrar a tematização de experiências

pré-conceituais

e

se

abrir

ao

universo

de

problematização e criação de conceitos. Talvez por esse motivo, a filosofia quando duvida da validade dos grandes sistemas explicativos se aproxima da literatura.

Esse exemplo está em Voltaire e em

Benjamin, mas poderíamos pensar em Nietzsche, Sartre e muitos outros filósofos.

Ora, se admitirmos com Voltaire que a filosofia é livro a ser escrito, o que supõe uma atividade criadora e criativa, a literatura teria muito a ensinar à filosofia e poderia apontar caminhos para seu ensino Neste sentido, é preciso aprender com Carlos Drumond de Andrade para não transformar as aulas de filosofia no espetáculo da “opinião em palácio” e oferecer conceitos condensados em apostilas a serem decoradas. Mas seria ingênuo de nossa parte supor que toda e qualquer literatura poderia se prestar a um trabalho de introdução à filosofia. Seria, pois, necessário verificar as condições que permitiram ao leitor de um texto de ficção adentrar pelas portas do conceito.

Entre Caminhos: entremeios...

Entre o texto de ficção e o texto filosófico é necessário se considerar camadas sobrepostas e complexas. O suporte para buscarmos conhecê-las não pode ser facilmente encontrado na análise do texto filosófico. Busquei, então, um referencial na análise do texto literário, mais propriamente em um texto de Karlheinz Stierle, intitulado “O que significa a recepção dos textos ficcionais?” publicado em uma coletânea organizada e traduzida por Luis Costa Lima – “A literatura e o leitor: textos de Estética da Recepção”. São várias as nuances desse texto que busca contrapor e analisar algumas teorias referentes ao delineamento do que poderia caracterizar uma estética da recepção. Tomo a liberdade de deixar esse debate de lado, pois isso implicaria em uma digressão que, creio eu, não nos poderia auxiliar para a compreensão de nosso problema, ou seja: de qual literatura estaríamos falando para buscarmos sua correspondência com a filosofia? Passemos aos aspectos do texto que nos permitem almejar chegar ao lugar de onde partimos. O primeiro passo é tentar

esquadrinhar o que se denomina “a recepção ingênua do texto pragmático”. Nos textos pragmáticos, o autor (sujeito da produção) levaria em conta a imagem do leitor e seu papel em um contexto de ação; sendo assim, a produção textual se coloca em um horizonte de perspectiva que ultrapassa o próprio texto. Na articulação do texto, o horizonte do autor se condensa em expectativa, permitindo ao leitor esclarecer seu horizonte pela distância em que se encontra do texto. Os textos pragmáticos se orientariam para além de si mesmos: o texto poderia ser pragmaticamente utilizável, pois seu núcleo se encontra fora de si, na esfera da ação, ou seja, o leitor seria levado para fora do texto que pode ser assim abandonado como forma vazia – o texto se esgotaria. Já a marca básica do texto de ficção não é uma simples função da realidade a ser retratada, pois não haveria como haver uma correção por meio de um conhecimento minucioso da materialidade dos fatos a que se refere: “Os textos ficcionais são, no sentido próprio, textos de ficção apenas quando se possa contar com a possibilidade de um desvio de dado, desvio na verdade não sujeito à correção, mas apenas interpretável ou criticável (...) Em sua essência, a ficção não significa identidade entre a materialidade dos fatos e o estado dos fatos, fosse apenas parcial; significa, sim, diferença.” 29

Mas, é preciso considerar que o estatuto do discurso ficcional e pragmático, não se mostra tão claro quando nos referimos à recepção do leitor, pois haveria uma forma de recepção que poderia ser denominada “recepção quase pragmática”. Na recepção quase pragmática, o texto ficcional é ultrapassado em direção a uma ilusão textual, despertada no leitor pelo texto. Desta forma, a recepção da ficção se configuraria, em última análise, 29

STIERLE, K. “O que significa a recepção dos textos ficcionais?”. In: LIMA, Luiz Costa. A literatura e o leitor – Textos de Estética da Recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p.132.

em ilusão. Isso se faz claro quando nos lembramos do leitor iniciante, ou seja, a criança às voltas com o mundo da imaginação: para a criança, os contos infantis seriam a pura presença do imaginário, pois elas não se dão conta da mediação; os contos infantis se apossam das crianças concretizando experiências de angústia, esperança, pavor, etc. Mas se o texto de ficção se abre ao leitor no sentido de uma leitura ingênua, é claro que também a ficção pode ganhar uma pragmática própria orientada para a fusão com a ilusão. O exemplo mais próximo seria o da literatura de consumo que só funcionaria como provocadora para a criação de uma realidade ilusória: “Nesta literatura, que conta com a recepção quase pragmática, os diferentes momentos são organizados de forma a liberar os estereótipos da imaginação e da emoção e, simultaneamente, a ocultar que a própria linguagem os tenha desencadeado (...) O narrador afirma a história por sua tomada de posição; a história se afirma a si própria por meio da decorrência; os conceitos da história reciprocamente se afirmam por meio de sua correlação inequívoca e não problemática; as expectativas do mundo ilusório engendrado pelo texto são afirmadas por seu resgate; por fim, a visão de mundo do leitor é afirmada à medida que o texto lhe devolve seus estereótipos (...) O leitor responde ao estímulo do texto com estereótipos de sua experiência, que, por assim dizer, se formam independentes de si, e que provocam a evidência da ilusão30.

Ora, diante dessa análise, fica fácil compreender o sucesso dos chamados “best-sellers” da literatura como “O Código Da Vinci” ou “Harry Porter” e, arriscaria, inserir aqui, “O mundo de Sofia” - de Jostein Gaardner - que busca intercalar os elementos do “romance banal” com a história da filosofia, de tal forma que, seja possível, ao leitor, abandonar a “filosofia” e perseguir o mundo da personagem em seu mistério e suas angústias. É claro, que diante dessa colocação, não pretendo retomar uma posição elitista e antipática, como muitas vezes nos reportamos às

30

Idem, p. 134 e 135.

análises de Adorno. Trata-se, somente, de tentarmos delinear o que nos parece mais adequado, sabendo reconhecer a validade desses textos para impulsionar o hábito da leitura em um país de não leitores. O que nos parece mais adequado, ainda percorrendo as pistas do texto, seria a potencialidade do texto “pseudo-referente” de vir a ser “auto-referente”. Para que isso seja possível, seria preciso uma segunda

leitura

fazendo

aparecer

camadas

sobrepostas

que

obedecem uma ordem complexa, cujos alinhamentos constituem, pela expansão, a própria poética do texto. Só mediante uma segunda leitura, seria possível ao leitor, situar o texto já trabalhado e o texto não

explorado

e,

assim,

converter

a

primeira

leitura

(quase

pragmática), causadora da ilusão, em uma leitura captadora da ficção. Desta forma, o texto de ficção auto-referencial deve ser internamente trabalhado, enquanto o texto pragmático deve ser trabalhado tendo em vista uma intenção que o transcende. O texto de ficção deveria abrir espaço para a multiplicação de possibilidades de relacionamento, possibilidades de significação que poderiam tornarse, para o leitor, espaço de reflexão que permitiria a penetração no texto, sem esgotamento. Seu limite estaria na capacidade do leitor de retirar “suas forças germinativas”, como afirma Benjamin acerca da narrativa, ou, ainda, do leitor apreendê-lo como um conjunto de relações constitutivas de sentido. Os espaços vazios, o “não dito” do texto não só permite, como também exige do leitor que indague, que supere o horizonte da experiência cotidiana para instaurar um movimento

de

reflexão

que

têm,

como

ponto

de

partida,

a

provisoriedade do texto nas suas diferentes camadas. Desta forma, seria preciso admitir que assim como há textos de ficção que só se concebem a partir de uma recepção quase pragmática, há outros cuja própria forma exigiria uma recepção reflexiva. Mallarmé é, apontado no texto, como o precursor de uma

tradição na ficção moderna que bloqueia a possibilidade de uma recepção quase pragmática: Pela desorganização do material semântico, torna-se mais visível a força organizatória no campo sintático, à medida que este surge, semanticamente, como estrutura possibilitadora de perspectivação de estados de fato (...) Uma literatura experimental, ao explorar as possibilidades da própria ficção e da reflexibilidade tematizada por ela, representa, ao mesmo tempo, para a recepção o desafio de abordá-la de modo reflexivo, e 31 assim, ampliar o próprio potencial da recepção”.

O estranhamento seria, portanto, um dos modos pelo qual a ficção se manifesta. Embora toda obra de ficção pressuponha um leitor que se baseie na orientação de sua própria experiência, o que garante a comunicabilidade do texto, também se corre o risco do leitor colocar, de forma irrefletida, o seu repertório, falseando a ficção. O texto “do passado”, desta forma, impõe desafios ao leitor contemporâneo, justamente porque estaria vedada a gratificação “quase pragmática”. Por isso, afirma Stierle, Nietzsche teria visto uma vantagem na recepção que se volta ao próprio texto. Em Aurora, Nietzsche afirma: “uma obra nova de qualidade, enquanto se encerra na atmosfera úmida de seu tempo, não vale quase nada, justamente por ainda trazer consigo o cheiro das feiras e das inimizades e as opiniões e toda efemeridade entre o hoje e amanhã.” Continua Stierle: “Precisou-se de um filósofo que fosse um filólogo, de um filólogo que fosse um filósofo, ou seja, de um questionador de todos os estereótipos da experiência, para que se revelasse a aridez como qualidade estética do texto, qualidade que, sem nenhuma metáfora, é a experiência estética básica do leitor, raríssimas vezes refletida. E a esta só se alcança pela recepção orientada para a própria ficção, não mais para a ilusão ficcional. Walter Benjamin, seguindo Nietzsche, renovou a distância temporal entre a obra e a recepção (...) Enquanto na perspectiva do leitor contemporâneo, o sistema paradigmático do leitor pode ser partilhado pelo autor, com o crescimento da distância temporal o 31

Idem, p. 154.

sistema do texto e o sistema do leitor cada vez mais se afastam. Assim o texto recebe do passado um horizonte do futuro que o ultrapassa.”32

Desta forma, seria preciso buscar na literatura, uma forma de narração capaz de convidar o jovem leitor ao deslocamento, ao incômodo, à reflexão, uma vez que a ficção não poderia ser entendida, na leitura de Karlheinz Stierle, como “um reflexo do mundo, nem como representação de um mundo bem diverso”. Ao contrário, ela descreveria, numa configuração que não se esgota, a mediação entre dois campos. “É, nesta fronteira, que se articulam as figuras de experiência possível (...) que, ao mesmo tempo, se define pela intimidade de uma concepção prévia do mundo e pela estranheza do outro, oposto àquele”.33 Ora, se a hipótese deste trabalho estaria em encontrar na possibilidade do uso da narrativa, elementos

para um convite à

filosofia que pudesse ter elementos suficientes para o encontro e o desencontro, para a identidade com o texto e para o estranhamento necessário à reflexão, fica claro que não poderíamos recorrer a qualquer texto. “A ficção, que não se presta diretamente ao papel de sermão ou guia de boas maneiras, é a que importa para a função de distanciamento orientador”.34 Talvez,

por

isso,

Voltaire

em

seu

“Micrômegas”,

sarcasticamente, ofereça aos filósofos um livro em branco sobre a finalidade de todas as coisas e atribua a este conto, o subtítulo de “conto filosófico”.

32 33 34

Idem, pp. 158 - 159. Idem, p. 161. Idem, p. 163.

Mas se ainda podemos nos perguntar sobre as

finalidades do conto de Voltaire,

é preciso recorrer a Walter

Benjamin: “Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, quase tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa está em evitar explicações”

De

qualquer

forma,

entre

caminhos,

temos,

enquanto

professores de filosofia, algumas pistas para buscar meios para nossa inesgotável tarefa de se introduzir os jovens no trabalho crítico e criador da filosofia. Estas pistas nos apontam um olhar desconfiado para textos imediatamente capazes de seduzir e iludir, como os textos de ficção “quase pragmáticos” que nos aponta Stierle. Ou ainda, para a desconfiar do primado da informação que se esgota em explicações, como nos aponta Benjamin.

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