UNIVERSIDADE TIRADENTES
REGINA MARIA MOTA ARAÚJO
A CULINÁRIA COMO ATRATIVO TURÍSTICO EM SERGIPE
Aracaju 2005
REGINA MARIA MOTA ARAÚJO
A CULINÁRIA COMO ATRATIVO TURÍSTICO EM SERGIPE Trabalho de conclusão de curso (TCC) apresentado à Universidade Tiradentes como um dos pré-requisitos para a conclusão do Curso Seqüencial de Gestão de Empreendimentos Turísticos.
ORIENTADOR: Prof. Ms. C. José Carlos Santos Cunha
Aracaju 2005
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REGINA MARIA MOTA ARAÚJO
A CULINÁRIA COMO ATRATIVO TURÍSTICO EM SERGIPE
Trabalho de conclusão de curso (TCC) apresentado à Universidade Tiradentes como um dos prérequisitos para a conclusão do Curso Seqüencial de Gestão de Empreendimentos Turísticos.
Aprovada em: __________________
RESUMO
A gastronomia representa hoje um setor de grande importância dentro do chamado turismo cultural devido ao seu significado social implícito. Assim também, a cozinha sergipana traz ingredientes e modos de preparar únicos, que comunicam ao turista muito sobre a cultura do Estado que quer conhecer. A presente pesquisa justifica-se por abordar um tema importante embora recente, e sobre o qual ainda há carência de estudos. Quanto ao objetivo geral, é a reflexão sobre os aspectos culturais e não apenas econômicos envolvidos no turismo gastronômico, especialmente em Sergipe; quanto aos objetivos específicos, são divulgar conhecimentos sobre a cozinha sergipana e nordestina, servir de base para futuros aprofundamentos no assunto, sugerir propostas para a divulgação, desenvolvimento e consolidação dos atrativos encontrados. Utilizando a pesquisa bibliográfica, foram levantadas as questões mais relevantes a respeito da relação turismo/gastronomia, da cozinha como patrimônio cultural, da importância econômica da alimentação para o turismo dos elementos da culinária nordestina e das iniciativas válidas na área do turismo gastronômico. Todas as questões são trazidas para a realidade sergipana, e a partir daí é possível a elaboração de propostas ao mesmo tempo vantajosas para a economia do Estado e para o desenvolvimento sócio-cultural da população que produz essa culinária.
Palavras-chave: Turismo; Gastronomia; Culinária nordestina; Cozinha regional; Atrativos turísticos, Turismo em Sergipe.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1. Distribuição do PIB do turismo entre seus setores........................................14.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..................................................................................................1 GASTRONOMIA E TURISMO..........................................................................5 Turismo cultural........................................................................................5 A gastronomia no PIB do turismo............................................................7 A CULINÁRIA SERGIPANA............................................................................10 Origens...................................................................................................10 Principais atrativos culinários.................................................................14 Culinária junina.......................................................................................15 Culinária sergipana, referencial de identidade......................................16 DISCUSSÕES SOBRE O TURISMO GASTRONÔMICO EM SERGIPE.......19 Introdução: o regionalismo.....................................................................19 A culinária elevada a patrimônio............................................................21 Roteiros gastronômicos..........................................................................22 Museus da alimentação.........................................................................25 Cenários gastronômicos.........................................................................26 Sugestão de metodologia.......................................................................31 CONCLUSÃO..................................................................................................34 BIBLIOGRAFIA................................................................................................35 BRANDÃO,
Darwin.
A
cozinha
baiana.
2.
ed.
Rio
de
Janeiro:
Tecnoprint/Ediouro. [197-]................................................................................................35
ARBACHE, Jorge Saba et al. Matriz de contabilidade social do Brasil para o turismo – 2002. Relatório da pesquisa Competitividade do Preço do Turismo no Brasil – Impactos Econômicos Intersetoriais e Políticas Públicas. Centro de Excelência em Turismo da UnB. Brasília. 2004. Disponível em: Acesso em: 29 out. 2005. p. 7.........................................................................................35 FREYRE, Fernando. A culinária no manifesto regionalista. In: ENCONTRO CULTURAL DE LARANJEIRAS: 20 Anos. 1994, Aracaju. Anais... Aracaju: Governo do Estado de Sergipe, 1994. p. 57-61..................................................................................35 NASCIMENTO, Luzia Maria da Costa.
Os três santos juninos. Aracaju:
Academia Sergipana de Letras, 2005. p. 223-4..............................................................35 SCHLÜTER, Regina G. Gastronomia e turismo. São Paulo: Aleph, 2003. (Abc do turismo)...............................................................................................................35 SERGIPE (Estado). Governo do Estado. Home Page Oficial do Governo de Sergipe.
Sergipe.
[200-]
Disponível
em:
Acesso em: 30 out. 2005................................................................35 _______________. Secretaria de Estado do Turismo. Turismo Sergipe. Sergipe. [200-] Disponível em: Acesso em: 30 out. 2005..................................................................................................................................35 VIANNA, Hildegardes. Breve notícia da alimentação na Bahia. In: ENCONTRO CULTURAL DE LARANJEIRAS: 20 Anos. 1994. Aracaju. Anais... Aracaju: Governo do Estado de Sergipe, 1994. p. 63-71..............................................................35
INTRODUÇÃO
A culinária
regional
tem
uma
grande
importância
na
Gestão
de
Empreendimentos Turísticos. A gastronomia é hoje responsável por 37,56% do PIB em Turismo no Brasil, ou seja, a maior parte1. Além disso, para se divulgar e “vender” um determinado destino turístico, é preciso conhecer com detalhes todas as características do lugar, não apenas geográficas ou climáticas, mas culturais. A cozinha é uma delas.
Desde que foi criado o conceito de “patrimônio cultural” pela Unesco, em 1997, foi dado enorme impulso ao turismo cultural, voltado não somente para os lugares, mas para os valores intangíveis das pessoas que habitam tais lugares. Aí se incluem tanto museus, peças arquitetônicas pelo patrimônio histórico, mas o artesanato, a música e a culinária, dentre outras manifestações culturais.
O presente estudo analisa as questões ligadas à importância da gastronomia para o turismo em Sergipe, enfatizando principalmente seus aspectos culturais. O Estado possui um cardápio de pratos típicos bastante rico, o que se deve não somente à herança das várias culturas que aqui deixaram sua marca ao longo da história da região, como a africana, a indígena e a européia, mas aos sabores originais dos gêneros alimentícios locais (mandioca, milho, coco, bovinos e caprinos). São exemplos dessas iguarias a canjica, o mungunzá, a tapioca, a carne-de-sol, o pirão e o caruru. 1
ARBACHE, 2004, p. 7.
Esta constatação vai contra a noção, outrora muito difundida, de que Sergipe não poderia ser inserido nas rotas de turismo nacionais e internacionais em pé de igualdade com outros destinos da região, como Bahia, Pernambuco e Ceará. A divulgação da cozinha sergipana vem, muito oportunamente, somar-se à crescente política de valorização de atrativos naturais do Estado nos últimos quinze anos. A reforma do Aeroporto de Santa Maria e o conseqüente aumento no número de vôos diretos para Aracaju é um sinal claro disso.
No plano nacional, a abertura de cursos superiores voltados para a Gastronomia em muitas faculdades também gera um aumento do interesse pela cozinha regional. Ao mesmo tempo, o investimento de restaurantes e hotéis na culinária nordestina não se justificaria se esta não fosse um elemento importante no cenário turístico.
Embora a relação entre culinária e turismo no Brasil seja um tema muito atual, não encontramos nenhum trabalho de vulto sobre o assunto. A escassez de títulos é ainda maior quanto ao plano regional. Assim, esta pesquisa se justifica pela necessidade de se ampliar nossos horizontes sobre o potencial turístico sergipano – afinal, a divulgação da cozinha sergipana atrai interesse sobre o Estado, sendo elemento estratégico para a implantação, alavancagem e consolidação do turismo.
O objetivo geral do trabalho é uma reflexão sobre o recente fenômeno do turismo gastronômico que vá além dos índices econômicos, mas considere os aspectos
culturais envolvidos, especialmente em Sergipe. Como objetivos específicos, estão contribuir para o conhecimento dos principais pratos da cozinha sergipana e nordestina; deixar aos interessados no assunto, especialmente em Sergipe, uma referência a mais; sugerir propostas para a divulgação, desenvolvimento e consolidação dos atrativos encontrados.
A pesquisa está organizada no sentido das questões mais amplas para as mais específicas. A primeira parte trata das relações entre gastronomia e turismo, os conceitos por detrás do turismo gastronômico, a participação da cozinha típica para o turismo cultural etc. Uma vez lançadas as bases para a discussão, procede-se ao próprio atrativo turístico, ou seja, a culinária em Sergipe, suas origens e modalidades. Haja vista que muitas informações sobre a cozinha sergipana foram obtidas em trabalhos sobre a cozinha baiana e nordestina, devido às diversas similaridades entre elas.
A metodologia utilizada é a pesquisa bibliográfica, tendo como fontes livros, revistas e publicações em meio eletrônico. O principal referencial teórico é o livro Gastronomia e turismo, de Regina G. Schlüter, Bacharel em Turismo e Doutora em Psicologia Social pela Universidad Argentina, além de diretora do Centro de Investigações e Estudos Turísticos de Buenos Aires. Adotamos a discussão sobre os aspectos sociais da culinária e seu impacto sobre o turismo em geral, direcionando nossa atenção para o caso sergipano.
O estudo se valeu ainda da matriz de contabilidade social (MCS) do Brasil para o turismo em 2002, elaborada no Centro de Excelência em Turismo da Universidade de Brasília para avaliar o impacto da gastronomia sobre o PIB do turismo, o que dá um lastro também econômico a uma discussão eminentemente cultural.
O estágio também se enquadra na área de gastronomia. Trata-se de dois estabelecimentos, ambos da marca “Drop’s”, mas com perfis diferentes, de acordo com a localização. O primeiro é uma choperia situada à Av. Adélia Franco, que oferece, além das bebidas, várias opções de pratos inspirados na cozinha internacional, petiscos e sanduíches.
A segunda casa encontra-se na segunda fase da orla de Atalaia. Aí a ênfase é dada nos sanduíches, e não há pratos mais sofisticados. Embora se enquadre no ramo de fast-foods, o Drop’s inspirou esta pesquisa sobre comida típica. Explica-se: em resposta à popularidade das tapiocas na orla, os proprietários pretendem incluir esta iguaria no seu cardápio.
Relacionando os âmbitos nacional e regional do turismo gastronômico, é possível enxergar a atual importância da culinária como atrativo turístico no Estado, as soluções encontradas e a viabilidade dessa tendência para o futuro, sempre de uma forma sustentável e de forma a promover a cultura e os habitantes que a produzem. As conclusões dessa pesquisa inédita podem ser tomadas como referência não apenas para estudos sobre Sergipe, mas sobre o nordeste brasileiro.
GASTRONOMIA E TURISMO
Turismo cultural
Desde as suas origens, o turismo baseia-se nas manifestações patrimoniais, quer naturais, quer culturais. Exemplos são os locais históricos, que exercem forte atração sobre os turistas do mundo todo. Mas além desse patrimônio visível, existe o patrimônio intangível, definido pela Unesco desde 1997 como um conjunto de formas de cultura tradicional e popular. Segundo SCHLÜTER (2003, p. 10):
Os aspectos tradicionais da cultura, como as festas, as danças e a gastronomia, ao conter significados simbólicos e referirem-se ao comportamento, ao pensamento e à expressão dos sentimentos de diferentes grupos culturais, também fazem parte do consumo turístico, sejam por si mesmas ou como complemento de outras atrações de maior envergadura.
Apesar do reconhecimento, o patrimônio cultural é extremamente frágil, pois além de estar sujeito às transformações naturais de seu grupo de origem, agora sofre o efeito da “homogeneização da cultura” promovida pelos meios de comunicação. Assim, as comunidades periféricas que possuem tradições próprias acabam adotando valores dos países que ocupam o centro da economia global.
Contudo, a globalização, ao mesmo tempo em que leva aos países menos industrializados o modus vivendi dos países industrializados, também faz conhecer a
estes a riqueza de tradições espalhadas pelos lugares mais longínquos do mundo. É então que surge o turismo cultural, em que a gastronomia ocupa um lugar especial como uma das chaves para a compreensão da cultura de um povo. “Ainda que o prato esteja à vista, sua forma de preparação e o significado para cada sociedade constituem os aspectos que não se vêem, mas que lhe dão seu caráter diferenciado” (Ibid., p. 11).
O documento-base elaborado no Congresso da Unesco sobre Turismo Cultural na América Latina, em Havana, Cuba, eleva o valor das receitas culinárias ao nível dos monumentos nacionais e defende políticas culturais que considerem o ato de comer sob o ponto de vista da tradição e da criatividade, e não somente da alimentação. Aqui se faz necessária a transcrição das palavras de Regina Schlüter a respeito:
No ato da alimentação o homem biológico e o homem social ou cultural estão estreitamente ligados e reciprocamente implicados, já que nesse ato pesa um conjunto de condicionamentos múltiplos, unidos mediante interações complexas: condicionamentos e regulagens de caráter bioquímico, termodinâmico, metabólico ou psicológico; pressões de caráter ecológico; modelos socioculturais [sic]; preferências e aversões individuais ou coletivas; sistemas de representações ou códigos (prescrições e proibições, associações e exclusões); “gramáticas culinárias”, etc (Ibid., p. 12-3).
Contudo, para que a culinária seja considerada um atrativo turístico, não basta apenas apontar suas qualidades, mas relacioná-la com o seu local de origem – melhor dizendo, o “cenário gastronômico”. É a partir desse lugar que é vista a comensalidade, ou o ato social de comer, seja entre parentes, seja entre amigos:
De todos os rituais, o da comida é o mais comum, já que se pratica em todos os lugares e é um fator de diferenciação social e cultural com
base na forma de preparar e ingerir a comida, o que e com quem se come, e os ciclos da alimentação diária (Ibid., p. 51).
Os dados a seguir confirmam a importância do turismo e da gastronomia para a da economia brasileira.
A gastronomia no PIB do turismo
Para uma noção do atual peso da gastronomia sobre o turismo nacional, é útil recorrer à matriz de contabilidade social (MCS) do Brasil para o turismo em 2002, primeira parte do estudo Competitividade do preço do turismo no Brasil: impactos econômicos intersetoriais e políticas públicas, coordenado pelo Professor Jorge Saba Arbache na Universidade de Brasília. Incluindo atividades produtivas, distribuição de renda, emprego, consumo de bens e serviços, investimentos e comércio exterior, a MCS descreve a estrutura de toda a economia e permite uma simulação das relações desta com o turismo.
As fontes utilizadas para essa matriz foram: Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio de 2002, Pesquisa de Orçamentos Familiares de 2002/2003, Pesquisa de Contas Satélite do Turismo 1999, Tabelas de Recursos e Usos do Novo Sistema de Contas Nacionais de 2002 e Contas Econômicas Integradas de 2002. A partir de tais indicadores foi possível dividir a economia em cinqüenta e quatro setores produtivos, doze destes sub-setores turísticos.
Os restaurantes e outros estabelecimentos de serviços de alimentação estão, juntamente com agências de viagens, atividades auxiliares de transporte, aluguel de automóveis, hotéis e serviços recreativos ou culturais, entre as atividades que compõem o segmento turístico, definidas de acordo com as diretrizes da Organização Mundial do Turismo para a construção de contas satélites do turismo (WTO, 2000 apud ARBACHE, 2002, p. 4).
Esta pesquisa traz conclusões muito interessantes para o caso em estudo. O PIB do turismo corresponde a 5,56% do PIB da economia nacional, valor acima da média dos outros setores econômicos e que corresponde a 77,5 bilhões de reais em 2002. Deste valor, a gastronomia é responsável pela maior parcela, ou seja, 37,56% (figura 1). É surpreendente observar que o turismo alcançou tamanha participação na economia tendo apenas 0,17% do investimento privado na economia (Ibid., p. 6-7).
Figura 1. Distribuição do PIB do turismo entre seus setores (ARBACHE, 2004, p. 7)
Isso indica que o setor ainda tem uma enorme capacidade de crescimento, e dentro dele, a gastronomia tem um dos maiores potenciais de geração de emprego e renda a baixo custo.
A CULINÁRIA SERGIPANA
Origens
Desde os tempos coloniais, Sergipe tem sido um ponto estratégico nas rotas de comércio e informação entre a Bahia e Pernambuco. Nesse território foram introduzidas culturas apropriadas aos regimes climáticos do nordeste, tais como canade-açúcar, algodão, fumo, arroz, mandioca, além do couro. Esses produtos eram exportados para os Estados vizinhos.
Devido à sua formação, o Estado comunga dos mesmos valores culturais da região a que pertence, incluindo a culinária. A proximidade com a Bahia fez com que incorporasse muito da cozinha de seu vizinho maior, afinal, a emancipação política sergipana só veio em 1823.
Daí não se deduza que a gastronomia de Sergipe é um mero transplante de outros lugares. O sergipano possui um modo peculiar de preparar seus pratos típicos, o que pode ser constatado por uma cozinha simples e ao mesmo tempo perfumada e saborosa. Nesta cozinha está a contribuição do índio, do português e do negro africano.
O índio, primeiro habitante do país, trouxe ao branco conhecimentos privilegiados sobre o território e seus meios de subsistência, incluindo a caça, a pesca, a confecção de remédios e a utilização de folhas, frutos, cascas e raízes na alimentação. Entre estas estão o inhame e a macaxeira. A mandioca ocupa um lugar de destaque, devido aos múltiplos produtos que dela são extraídos:
A mandioca, abstração feita do aipim, que pela ausência do ácido cianídrico pode ser utilizado diretamente no seu estado natural, fornece a farinha de guerra, a farinha seca e a farinha d’água; a tapioca e a farinha de tapioca, a carimã ou mandioca puba, ou apenas puba; o polvilho, amido ou goma (VIANNA, p. 65).
Esta raiz, por ser comum na região nordeste e base de grande parte de sua culinária, acabou criando uma “cultura” em torno de si, devido à afetividade e ao caráter simbólico que lhe conferem a sociedade nordestina.
A maior contribuição do negro foi o azeite de dendê ou “azeite de cheiro”, marca distintiva da cozinha baiana. A palmeira que lhe dá origem, a Elaeus Guineense, veio do litoral africano. A fabricação caseira do azeite possui várias etapas. Do cacho maduro são separados os “cafunés”, coquinhos de sabor adocicado, e levados para cozimento. Após amolecerem, são pisados e batidos com uma colher de pau, a “apuração.” O azeite que coalha é separado e refinado num filtro, e passa a ser chamado “flor do azeite.” A borra restante, chamada Bamba, é engarrafada também para consumo. Da seiva do dendezeiro, fermentada e filtrada, obtém-se ainda o vinho de dendê.
Embora os índios consumissem pimenta, deve-se aos africanos a sua incorporação à cultura popular. Como não encontrassem aqui todos os tipos de pimenta encontrados em sua terra natal, especialmente a “pimenta da costa”, os escravos adotaram as espécies brasileiras, chamadas genericamente de “pimenta de cheiro” ou “malagueta.”
A pimenta, chamada atarê no idioma nagô, como hoje, é fundamental na cozinha dos orixás (Ibid., p. 66). Dentro da realidade baiana, a cozinha ritual do candomblé ocupa uma posição central. A cozinheira é parte da hierarquia das sacerdotisas, sendo escolhida entre as filhas-de-santo, sempre sob orientação de uma mulher mais velha. O azeite e a pimenta são as bases da culinária africana, acompanhados por outros ingredientes, como o gengibre, o camarão seco. O coentro, o cominho etc.
O consumo de carnes, embora presente no português, recebeu muita influência dos escravos africanos:
Os negros, por sua vez, comiam a carne seca e aquelas partes menos nobres que deram origem a pratos bastante apreciados por aqui: o sarapatel (nas versões de porco, boi e frango), a rabada e a feijoada, que em Sergipe é preparada com bastante verdura. Estes enriqueceram as receitas que conheciam com ingredientes que a natureza local oferecia (SERGIPE, [200-]).
O legado português pode ser encontrado, entre outros lugares, nos doces e guloseimas. Boa parte desses quitutes são feitos à base de coco, cuja presença no litoral nordestino também se deve aos colonizadores. Dele é extraio o leite de coco, e
apartir dele são feitos doces muito apreciados, como as famosas cocadas, atração à parte em São Cristóvão/SE. A tradição das quituteiras remonta a 1802, quando surgem os primeiros relatos sobre as baianas quituteiras, portando o seu tabuleiro de cocadas pelas ruas. Quem relata é Darwin Brandão, em A cozinha baiana [197-].
O mesmo autor menciona três tipos de culinária encontrados no nordeste: a cozinha brasileira, a africana e a sertaneja. O primeiro gênero é assim denominado por considerar genuinamente nacional só a contribuição indígena (concepção muito estreita para os tempos atuais), e assim engloba as tapiocas, beijus e carimãs, à base de mandioca, encontrados na região norte e no litoral do Brasil.
O segundo tipo se distingue pela origem africana, já mesclada com outros elementos, à medida em que teria passado para mesas mais refinadas. Em terceiro lugar, temos a cozinha sertaneja, “mais pobre e mais simples”, encontrada ao sul de Feira de Santana e na direção do rio São Francisco (BRANDÃO, [197-], p. 24). A cozinha existente no resto do país seria uma cozinha internacional, carente de autenticidade no preparo e nos condimentos.
Guardado o devido distanciamento em relação a esta fonte, podemos incluir a cozinha sergipana nas duas primeiras modalidades, uma vez que possui tanto elementos indígenas quanto africanos, e guarda grande semelhança com a culinária baiana.
Principais atrativos culinários
Sergipe, embora seja o menor Estado da Federação, apresenta, dentro de seus limites geográficos, climas e relevos diversificados, que determinam diferentes modos de vida. Assim, há o clima sub-úmido (litoral, com largura de 20 a 40 km), o de transição semi-árido (agreste, como Itabaiana e Lagarto) e o semi-árido (oeste do Estado, com seca de 7 a 9 meses ao ano). O relevo é predominantemente plano, com pequenas altitudes que vão aumentando para o interior.
O litoral sergipano destaca-se pelos seus frutos do mar, como camarão, lagosta, peixes de diferentes espécies e os famosos caranguejos, preparados de diversas maneiras: ensopados, escaldados, cozidos ou fritos. Já o Sertão das caatingas possui uma cultura bem diferente, devido ao isolamento geográfico, à formação da população, descendente de brancos e índios, ao clima semi-árido e à criação de gado, atividade marcante na região. Daí o tão difundido consumo de carnes como a de bode e a de carneiro. Pratos comuns são a buchada e a carne-do-sol com pirão de leite.
O tradicional café nordestino está presente em todo o Estado, sendo servido de manhã e à noite e composto de delícias como a torta de macaxeira com charque, o cuscuz, o beiju de tapioca, arroz-doce, batata-doce, inhame e pé-de-moleque, entre outros pratos.
As frutas da região desempenham um papel muito importante no preparo de sucos, sorvetes e sobremesas. Suas cores e sabores são os mais variados. Exemplos: mangaba, graviola, pitanga, sirigüela, cajá, carambola, manga, araçá, caju, entre outras frutas, também apreciadas in natura.
Culinária junina
A culinária associada às festas juninas, comemoradas intensamente no Estado, deve ser tratada à parte, devido à sua importância no contexto dos rituais, ou seja, atos sociais que expressam mensagens, valores e sentimentos de um grupo através de várias gerações. A comida assume características especiais nas ocasiões festivas individuais ou coletivas de fundo religioso, como é o caso.
As festas juninas, importantes em todo o Brasil, mas principalmente no nordeste, podem ser classificadas como ecofestas, cerimônias realizadas desde a Antigüidade para propiciar boas colheitas por ocasião de certos acontecimentos astronômicos ou estações. No caso em estudo, a homenageada era a deusa Juno (daí o nome Junônias, e depois, Juninas), quando da chegada do verão no hemisfério norte. Com a era cristã, os ritos pagãos foram substituídos pelas comemorações em honra de Santo Antônio, São João e São Pedro, com muita dança e comida, esta feita com gêneros de cada região.
No nordeste a maioria dos pratos é feita à base de milho, mandioca, macaxeira e amendoim. No período são muito populares os bolos de milho, a canjica, a pamonha, o beiju e o cuscuz de coco. Entre as bebidas, destacam-se os licores de umbu, jenipapo, pitanga e tamarindo.
Se no Sul do Brasil a comida é introduzida nas festas típicas para “reforçar a autenticidade da italianidade” (SCHLÜTER, 2003, p. 32), incluindo massas, polenta e vinho, pode-se dizer que no nordeste a culinária enriquece as festas juninas com seu forte referencial de nordestinidade, importante na criação de um ambiente diferenciado.
Culinária sergipana, referencial de identidade
Assim como no clima, na geografia, na história e na economia, Sergipe tem um laço cultural íntimo com a região a que pertence. No caso da culinária, suas influências foram as mesmas, apenas combinadas de maneiras diferentes, de modo a produzir cores locais. É por isso que a maioria dos pratos apresentados aqui pode ser encontrada em todo o nordeste, mas com maneiras de prepara diferentes.
Regina Schlüter (2003) aponta cinco motivações principais ligadas aos hábitos alimentares: satisfação das necessidades básicas, necessidade de segurança (armazenamento), necessidade de pertinência, status e auto-realização. Dentre estas, a motivação que parece mais claramente representar o caso nordestino é a
necessidade de pertinência, pois aqui a comida vai além do aspecto nutricional: ela indica fazer parte de um grupo.
Estamos falando aqui de identidade, uma forma simbólica de classificação que cria uma posse. Ora, a gastronomia é um meio de comunicá-la, pois através dela as pessoas transmitem suas preferências, mesmo que estejam distantes de sua terra natal. Haja vista as “casas do norte” e os restaurantes de São Paulo, onde os emigrantes nordestinos vendem, respectivamente, os ingredientes e a própria comida dos seus Estados de origem.
Um alimento pode ser símbolo de um determinado espaço geográfico. É o caso das massas, associadas à Itália; do arroz, ligado à Ásia; do uísque, marca da Escócia. Da mesma forma, ao saborear uma carne-de-sol, o brasileiro imediatamente faz uma associação com a região nordeste.
Sobre a presença marcante e diversificada da cozinha do nordeste, da qual Sergipe faz parte, a mesma autora afirma: “Com suas múltiplas formas de preparo e sabor, a cozinha nordestina entrega ao visitante uma árdua tarefa: descobrir qual é a melhor tradução do espírito desse povo.” (SCHLÜTER, 2003, p. 24) Contudo, é preciso ter muita coerência ao se apresentar os pratos típicos, a fim de que não sejam usados como referência versões estilizadas. Por volta da década de setenta, Darwin Brandão alerta para a contrafacção de pratos baianos feita em restaurantes do Rio de Janeiro. Como em Sergipe, as casas de família são o ambiente privilegiado para se conhecer a comida nordestina. Como afirma o autor,
Assim é o baiano, assim é o nordestino, como o nortista, de um modo geral; se gosta da pessoa leva-a para casa para comer. A dona da casa ou a cozinheira, por sua vez, tratam de oferecer não um, mas vários pratos para o convidado escolher. É a forma de homenagear (BRANDÃO, [197-], p. 23).
Se o turismo cultural, valorizando todos os usos e costumes das populações, está em evidência, certamente o clima familiar aqui referido há de ser um elemento essencial a ser incorporado ao prato típico e ao ambiente em que este é servido.
DISCUSSÕES SOBRE O TURISMO GASTRONÔMICO EM SERGIPE
Introdução: o regionalismo
No contexto da culinária brasileira, a contribuição nordestina, da qual Sergipe comunga, é, sem dúvida, uma das mais ricas e originais. A consciência dessa importância vem se desenvolvendo desde longa data, encontrando-se já no 1° Congresso Regionalista do nordeste, realizado de 7 a 11 de fevereiro de 1926, em Recife.
O evento, formado por intelectuais de várias áreas do conhecimento, tinha por objetivo valorizar a cultura regional, não como elemento de divisão, mas como definidora da própria identidade nacional. Na ocasião, o hoje célebre escritor Gilberto Freyre sugere a instalação da seção de culinária e confeitaria locais num evento chamado Exposição Geral de Pernambuco.
Como o próprio autor afirma, a idéia ainda causa estranheza para a alta sociedade da época, mas nem por isso deixa de defender uma posição de destaque para a culinária nordestina dentro do movimento regionalista, ao lado das artes
plásticas, da engenharia e da literatura. Vale a pena transcrever a sua lista de pratos típicos apreciados até hoje:
Seja como for, é esta a idéia do pavilhão: um pavilhão de quitutes. Quitutes pernambucanos. Quitutes de milho, feijão e farinha de mandioca; ensopados e peixes condimentados com leite de coco; o doce e noz ralada, a cocada, a água de coco com o clássico ‘Catarro.’ E o ‘doce de caju seco.’ Doce de caju em calda. E ‘pé de moleque’ fatalmente condimentado com a castanha de caju e maturi. E doce de goiabada em calda e em massa. E doce de araçá. E geléia de goiaba. E todos esses doces e bolos de que outrora eram as donas de casa que desciam à cozinha para tomar o ponto; o arroz doce; e a canjica; a ‘manguzá’ e ‘grudes’; e quantas cousas [sic] nos deixou a glutoneiria dos engenhos (FREYRE, 1924 apud FREYRE, 1994, p. 59-60).
O interesse despertado nos regionalistas pelos pratos nordestinos não se deve somente ao seu sabor único, mas às suas origens portuguesa, indígena e africana, imagem da própria cultura brasileira. Contudo, a mescla desses elementos formadores é tal que às vezes se torna difícil delimitar as suas competências.
Nos tempos atuais, devido ao fenômeno da globalização e a conseqüente intensificação das diferenças nacionais e regionais, tem crescido o interesse dos turistas pelos restaurantes étnicos. A cozinha do nordeste certamente tem se favorecido dessa tendência, a julgar pela profusão de restaurantes especializados nos pratos da região no Brasil inteiro (a cozinha mineira também é um exemplo).
Contudo, nem sempre o turismo ganha com isso. Como bem observa Regina Schlüter (2003, p. 45), “em sua maioria serve-se a gastronomia tradicional sem um valor agregado, representado por elementos que permitam uma melhor
compreensão da cultura.” Vejamos a seguir como obter um desenvolvimento sustentável tendo por base a culinária regional.
A culinária elevada a patrimônio
Vimos, no capítulo intitulado “Gastronomia e turismo”, a definição de patrimônio. Contudo, antes que surja essa denominação, há um procedimento a ser seguido. Assim esclarece SCHLÜTER (2003, p. 69):
Para que algum elemento de uma cultura seja considerado patrimônio deve ser previamente ativado, ou seja, deve ser considerado como tal por um agente social interessado em propor uma versão da identidade e conseguir adesões para a mesma (...) já que não é somente algo que se leva dentro e se sente, mas que também é necessário expressar publicamente.
Ora, o turismo certamente é um ativador de patrimônios, ao valorizar elementos que às vezes não têm apelo para o habitante local, mas sim para o turista. Na
Argentina,
por
exemplo,
vários
alimentos
são
considerados
patrimônio
gastronômico nacional, como o malte, o doce de leite e o vinho tinto Malbec. Essa ativação foi obra conjunta de órgãos públicos, iniciativa privada e ONGs. Voltamos a citar a mesma autora sobre a importância da gastronomia nos novos moldes do turismo:
A gastronomia como patrimônio local está sendo incorporada aos novos produtos turísticos orientados a determinados nichos de mercado, permitindo incorporar os atores da própria comunidade na elaboraão
desses produtos, assistindo ao desenvolvimento sustentável da atividade (Ibid., p. 70).
A despeito do bem-sucedido exemplo argentino, não vemos essa iniciativa difundida em território brasileiro, menos ainda no que se refere ao nordeste. Tal postura é injustificável, primeiro porque nossa culinária apresenta uma variedade e originalidade sem paralelo em outros lugares do globo e representativa dos elementos formadores do povo brasileiro; segundo, porque, se este patrimônio gastronômico não for reclamado por seu país de origem, outros países podem fazê-lo em nosso lugar.
Roteiros gastronômicos
O turismo cultural, que engloba a gastronomia, é atualmente responsável pela geração de renda e empregos. Contudo, nem sempre a cultura está entre as maiores motivações dos turistas, tornando-se mesmo um elemento acidental. Tendo em vista esse empecilho, há uma estratégia muito usada para que a gastronomia seja uma motivação dos deslocamentos turísticos: as rotas temáticas e culturais que agrupam
em
um
unico
produto
rentável
vários
produtos
menos
atrativos
individualmente.
As rotas organizadas em função de um determinado produto têm por objetivo incentivar o seu consumo, e conseqüentemente, o desenvolvimento da área rural que lhe deu origem. Na Argentina, essa iniciativa se insere no Plano Nacional de Turismo Rural, desenvolvido pela Secretaria da Agricultura, Pecuária e Pesca e a
Secretaria de Turismo. Há sete rotas: do caprino, do marisco, da truta, da pêra e maçã, da fruta fina, do ovino e do cervo. Embora o ambiente urbano tenha potencial para rotas gastronômicas, é no âmbito rural que estão os maiores esforços.
A Unesco elaborou o conceito denominado “rotas do diálogo”, que é a interconexão entre diferentes povos e seus usos, costumes, religiões e tradições num contexto globalizado, propiciando, assim, que as pessoas conheçam melhor a si mesmas através do outro. No caso específico das rotas gastronômicas, os valores culturais de uma determinada localidade são transmitidos tendo por meio a alimentação. Assim, Muito mais interessante que apenas mostrar os produtos agrícolas é relacionar a sua produção e preparação com a cultura que os rodeia.
No Brasil destaca-se a rota que promove o desenvolvimento rural do sul do país tendo por tema as tradições trazidas pelos imigrantes italianos até fins do s. XIX. O projeto Roteiros de Turismo Rural e Patrimônio da Imigração Italiana é uma iniciativa do município de Caxias do Sul/RS, que com a cooperação dos municípios de Bento Gonçalves e Flores da Cunha, chegou inclusive a obter financiamento da União Européia.
A cultura da região foi muito valorizada com o resgate de antigas tradições culinárias por especialistas e historiadores, tendo por base livros de receita antigos, depositários de segredos de família. Além dos pratos típicos, o vinho também exerce um papel fundamental nesses projetos nascidos no sul do Brasil.
No México foram criadas rotas gastronômicas ligadas às regiões indígenas e às regiões de longo passado colonial. No primeiro caso, temos as rotas “Mixteca”, “Mística” e “Istmenha”, todas no Estado de Oaxaca, onde o turista pode encontrar comidas e utensílios preservados há séculos pelas tribos locais. No segundo, o alvo são as cidades mexicanas tombadas pela Unesco como Patrimônio da Humanidade.
O web site da Secretaria de Turismo de Sergipe traz os roteiros turísticos mais famosos do Estado: Aracaju, Cidades Históricas, Litoral Norte, Litoral Sul, Foz do São Francisco, Canyon de Xingo e “Roteiros Alternativos” (ou seja, os passeios ecológicos), contudo, apenas na página da capital sergipana são listados os estabelecimentos gastronômicos. Haja vista que os restaurantes típicos, sob o título “Delícias Regionais”, estão colocados em último lugar na lista, depois das comidas japonesa, italiana etc. e que alguns já estão fora de funcionamento há algum tempo, o que evidencia a falta de manutenção da página.
Isto indica que um vasto potencial de atrativos turísticos está deixando de ser aproveitado, talvez devido à novidade dos conceitos que estão sendo aqui abordados. Contudo, num Estado que tem como prioridade o desenvolvimento turístico, é preciso desertar a consciência para as rotas gastronômicas o quanto antes.
Muito ainda há por fazer em nossa realidade. Assim como no caso gaúcho e argentino, em Sergipe há produtos em torno dos quais podem ser criadas rotas. Para citar apenas um exemplo, temos a mandioca, uma das bases da alimentação no
interior do Estado. Em muitas localidades que possuem antigas casas de farinha há ricas tradições e belas paisagens que representam atrativos para o turista.
Museus da alimentação
Também no quesito patrimônio histórico o Estado não deixa nada a dever a outros locais do país e do exterior. São Cristóvão, a quarta cidade mais antiga do Brasil (foi fundado em 1590 por Cristóvão de Barros), possui vários conjuntos arquitetônicos do período colonial e um museu de arte sacra, a terceira mais importante coleção do país no gênero.
Contudo, o município não é conhecido apenas por seus atrativos históricos, mas culinários. Destacam-se as deliciosas cocadas vendidas nas portas de antigas residências e os biscoitos suíços bricelets, feitos por freiras franciscanas. Atualmente, o projeto “São Cristóvão, Cidade da Seresta” está atraindo muitos visitantes, grande parte sergipanos, para a cidade nas noites de sexta-feira, para ouvir seresteiros famosos tocando e cantando.
Uma alternativa original, que se relaciona com o contexto das cidades históricas, é o do museu especializado em gastronomia. Assim como a arquitetura, a escultura e a pintura representam a cultura de um povo, a culinária também, pois está dentro do conceito de patrimônio intangível.
Um museu da alimentação deve elaborar uma representação que compreenda o funcionamento dos sistemas alimentares com suas cinco etapas e suas interconexões: produção, distribuição, preparação, consumo e eliminação, além de suas localizações: plantações, depósitos, mercados, cozinhas. Essa iniciativa é relativamente nova, por enquanto focalizada nas bebidas alcoólicas (museu da cerveja, no Chile). Como observa Regina Schlüter (2003, p. 84):
Ainda que a gastronomia faça parte dos museus etnográficos ao mostrar as diferentes maneiras de produzir e consumir alimentos de diversas culturas, não são muitos ainda os museus dedicados exclusivamente a um produto alimentar ou a um prato em particular.
O exemplo da mandioca, dado anteriormente, poderia também servir a esta proposta dentro da realidade do Estado de Sergipe.
Cenários gastronômicos
A observação de iniciativas bem-sucedidas de culinária como atrativo turístico no Brasil pode trazer vários insights para os casos nordestino e sergipano. Anteriormente foram abordados os “cenários gastronômicos”, em que o caráter social da alimentação pode se desenvolver. Ao mesmo tempo, viu-se que os restaurantes étnicos podem desperdiçar todo o potencial turístico da gastronomia, ao desprezar os elementos culturais agregados aos pratos que apresentam.
Contudo, há exemplos do contrário. Regina Schlüter (2003) refere o caso do Durski, restaurante de comida ucraniana, polonesa e russa, situado em Curitiba, Paraná. Esse estabelecimento apresenta vários diferenciais em relação a outros do gênero, em que se encontram trajes típicos e quadros evocativos de determinado lugar: um espaço de artesanato, apresentação ocasional de danças folclóricas e o menu, que além dos nomes dos pratos, fornece fotos, descrição dos mesmos e informações sobre as características daquela culinária específica.
Em Sergipe há um exemplo que reúne a maioria dos atributos encontrados no exemplo anterior: o Cariri, na Passarela dos Caranguejos da orla de Atalaia. Ao adentrar o estabelecimento, o primeiro aspecto que salta aos olhos é o arquitetônico, tanto no telhado à mostra e no acabamento rústico do interior quanto na decoração, feita com objetos comumente encontrados nas casas do interior sergipano, incluindo utensílios de cozinha e vasos de barro. Há várias referências a símbolos da região, como o vaqueiro e o cangaceiro.
A casa possui dois ambientes: o restaurante e a pista de dança. No primeiro e mais externo funciona o restaurante de comidas típicas. Lá encontram-se as mesas e um pequeno palco para música ao vivo, feita por bandas especializadas em MPB. O segundo, separado do primeiro por uma bilheteria, é a pista de dança, localizada ao redor do palco maior onde se apresentam diversas bandas de forró tradicional, conhecido como “pé-de-serra.” Esta parte é climatizada através de ar condicionado e pequenos jatos de água fria que são lançados sobre os casais dançantes de modo a aliviar o calor. As mesas aqui ficam mais ao fundo, e a decoração também é típica.
O local tem movimento muito bom, incluindo as noites de segunda-feira, em que outrora os bares e restaurantes de Aracaju estavam sempre fechados. No referido horário a casa de forró oferece a “Noite do meu Bem”, espaço não para os forrós desta vez, mas para boleros nostálgicos que convidam os solteiros que querem encontrar companhia. Boa parte das pessoas que visitam o restaurante é de turistas, atraídos pelo ambiente, pela dança e pela comida típica.
É significativo o fato de o proprietário do Cariri ser oriundo de outro Estado nordestino, o Ceará. Isso mostra que Sergipe oferece oportunidades de lucro para empresários que queiram aqui investir. O restaurante Recanto da Paraíba, um dos mais tradicionais de Aracaju, também foi criado por um nordestino de outro Estado. Lá pode-se encontrar uma enorme variedade de pratos e temperos da culinária nordestina, principalmente sertaneja: charque, feijão de corda, pirão, manteiga de garrafa etc. O Miguel, que é referência em Aracaju, também oferece esses produtos, porém sua ênfase é no churrasco. Outros destaques da cozinha regional: Carne do Sol do Ramiro, Texano e Amanda (caranguejos e frutos do mar).
Esses empreendedores trazem consigo o know-how de outros centros mais desenvolvidos
no
turismo
e
assim
estimulam
iniciativas
locais.
Dentre
os
empreendimentos mais recentes, destacam-se: O Paió, com a peculiaridade de funcionar num casarão de características coloniais e pelo típico café nordestino lá servido; e o Mangará, casa especializada em sopas e pratos da região.
Com o crescimento do turismo no Estado nos últimos quinze anos, a culinária local saiu dos tradicionais restaurantes e ganhou notoriedade em dois outros locais: a praça de alimentação dos shopping centers e a rede hoteleira.
Quanto ao primeiro caso, tanto o Shopping Riomar quanto seu concorrente mais novo, o Jardins, trazem restaurantes de comida nordestina, ao lado de outros estabelecimentos especializados em fast-food, comida japonesa, chinesa, italiana e internacional. A manutenção de um espaço em qualquer um desses centros é de custo muito alto, o que comprova a lucratividade da culinária local. Outro aspecto importante é o da maior divulgação da cultura local num local por onde passam milhares de pessoas das mais variadas procedências a cada instante. Em virtude do desenvolvimento do setor hoteleiro no Estado também cresceu o interesse por uma cozinha que pudesse ser apresentada ao visitante como “típica.“ O Hotel Parque dos Coqueiros é um exemplo. Segundo informações da própria empresa, veiculadas em seu web site, o Parque dos Coqueiros foi o estabelecimento que mais cresceu em termos de hospedagem e eventos no último ano.
Nos fóruns, seminários e congressos nacionais e mesmo internacionais são de praxe as amostras da cultura sergipana, na qual a culinária tem papel preponderante. No ramo dos hotéis merecem menção: Delmar, Celi, Aquarius, entre outros, além de diversas pousadas, como a Pousada dos Kiriris e a Relicário. Todos os exemplos estão no bairro de Atalaia.
Outro cenário gastronômico muito importante é o dos mercados, que, como vimos, são referenciais de identidade até mesmo para nordestinos radicados em outras regiões do Brasil. Tal importância deve-se ao fato desses locais apresentarem os ingredientes para o preparo das comidas regionais e a oportunidade privilegiada para o turista de fazer contato com a cultura local.
No mercado municipal de Aracaju os comerciantes vendem, em suas respectivas bancas, produtos muito variados, que vão de gêneros alimentícios locais, incluindo verduras, legumes, peixes e carnes, até esculturas de barro, passando por ervas medicinais e afrodisíacas, utensílios de cozinha e diversos produtos do artesanato local. É indispensável a visita às feiras do interior, onde se pode encontrar o comércio sertanejo em uma forma mais espontânea e variada. Entre os aspectos que mais chamam a atenção estão aves, caprinos e ovinos, vendidos ou trocados ainda vivos, e os folhetos de cordel. A Feira de Itabaiana é a mais famosa do Estado.
Mas o turismo gastronômico de Sergipe tem seu ponto alto em uma época determinada do ano: nas festas juninas, ocasião em que os turistas têm uma oportunidade única de ver e experimentar a cultura local.
Durante os meses de junho e julho, a Prefeitura de Aracaju e o Governo do Estado realizam eventos ligados às comemorações dos santos juninos que vêm atraindo uma quantidade crescente de pessoas, especialmente turistas. Na capital destacam-se: o Forró Caju, atualmente o evento de maior divulgação e que conta com a apresentação de artistas de fama nacional nos diversos palcos montados no Teatro
Municipal; o tradicional Forró da Rua São João, realizado no primeiro bairro de Aracaju e apoiado pela prefeitura, como o primeiro; e a Vila do Forró, que vai do meio de junho ao fim de julho, realizado numa pequena cidade cenográfica montada na praça de eventos da Orla de Atalaia, estrategicamente localizada próxima a grandes hotéis. Aqui também ocorrem shows de artistas famosos e exibição de quadrilhas.
Esses eventos oferecem aos interessados apresentações de grupos folclóricos e bandas de forró, feiras de artesanato, apresentações de quadrilha e muitas barracas de comidas típicas. No interior também há festas com a mesma linha das realizadas em Aracaju. Destaque especial seja dado aos forrós de Areia Branca e Estância.
Nesses eventos, a cozinha junina é valorizada como elemento cultural, dentro de um contexto maior, juntamente com outros produtos turísticos. Fora essas ocasiões, a culinária regional não tem a projeção que poderia ter nas rotas em torno de determinados produtos alimentícios.
Sugestão de metodologia
A esta altura é importante citar aqui a metodologia aplicada aos projetos de roteiros culturais com ênfase na gastronomia do México, entendendo que possa vir a ser útil ao caso sergipano, pelo menos como diretriz. A seguir, a transcrição dos passos a serem tomados, do livro de Regina Schlüter (2003, p. 77):
a) Criação de uma base de dados com todos os atrativos turísticos, culturais e gastronômicos. b) Preparação de um mapa onde se localizam os atrativos mais importantes. c) Projetos de circuitos que combinem arte e gastronomia, assim como outros aspectos de interesse turístico. d) Realização de visitas de campo para assegurar que os serviços oferecidos reúnam um mínimo de qualidade e os tempos estimados para as visitas sejam corretos. e) Submissão das propostas a um painel de especialistas, composto por operadores de turismo e agentes de viagem das cidades onde se quer captar o fluxo turístico, para conhecer sua opinião.
Destacam-se a integração entre elementos artísticos e gastronômicos na criação das rotas (afinal, cozinhar também é uma arte), o assessoramento de especialistas nas áreas envolvidas e a busca de constante atualização de meios, atitudes que podem impulsionar em muito as iniciativas já existentes no Estado e fundamentar tantas outras.
Por fim, inclui-se também o questionário de perguntas semi-estruturadas para avaliação do potencial das rotas, elaborado por Alicia Bernard e Patrícia Dominguez:
• • • • • • •
Você considera que pode haver turismo interessado em circuitos de arte e gastronomia? Você considera que os circuitos propostos podem ser de interesse? Que tipo de mercado pode interessar-se pelos circuitos propostos? Que tipo de promoção você considera ser mais adequada para esta proposta? Você acredita que se dispõe de infra-estrutura mínima necessária? Você considera que as cidades com Patrimônio Histórico necessitam de mais promoção? Você considera que as rotas devam combinar-se com as de outro Estado? (ibid., p. 78)
As perguntas formuladas acima são de grande utilidade na elaboração de táticas de turismo gastronômico, pois levam em conta aspectos mercadológicos (público-alvo, busca de parcerias), de marketing (promoção das rotas) e estruturais (avaliação da infra-estrutura existente).
CONCLUSÃO
A culinária em Sergipe apresenta um enorme apelo turístico, tanto pela qualidade dos seus pratos quanto pelo seu valor cultural, síntese das culturas ibérica, negra e indígena. Entretanto, com exceção talvez das festas juninas, esse potencial está sendo sub-aproveitado pelas políticas de promoção do turismo no Estado. Tal fato se deve, em grande parte, à novidade do conceito de turismo cultural, do qual a gastronomia é parte muito importante.
Ao mesmo tempo, há iniciativas bem-sucedidas em outros Estados e países que podem ser perfeitamente adaptadas ao caso sergipano: a elevação de certos gêneros alimentícios à categoria de patrimônio intangível; as rotas gastronômicas envolvendo localidades que produzem
determinado
produto; os museus
de
alimentação, que oferecem aos visitantes aspectos singulares do alimento em questão; e os cenários gastronômicos, que enfatizam o aspecto social dos pratos a serem consumidos.
O turismo gastronômico, desde que seja desenvolvido de forma sustentável, certamente trará muitas vantagens para a economia do Estado. Mas o benefício mais importante é o da promoção da cultura de Sergipe, que em face das culturas dos seus visitantes se enriquece e se auto-afirma.
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