Correio Braziliense

  • May 2020
  • PDF

This document was uploaded by user and they confirmed that they have the permission to share it. If you are author or own the copyright of this book, please report to us by using this DMCA report form. Report DMCA


Overview

Download & View Correio Braziliense as PDF for free.

More details

  • Words: 1,991
  • Pages: 1
CD-5

CMYK

CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, domingo, 7 de setembro de 2008 • 5

CADERNO C LITERATURA RODRIGO LACERDA EXPERIMENTA A FORMAÇÃO JUVENIL E TRAÇA ENREDO SOBRE RAPAZ INDECISO NA PROFISSÃO E ENVOLVIDO COM O PRIMEIRO AMOR

EDUCAÇÃO SENTIMENTAL NAHIMA MACIEL DA EQUIPE DO CORREIO

R

odrigo Lacerda estava em crise. Um bloqueio criativo o impedia de seguir adiante com o romance Outra vida. A trama, ainda inédita, se perdia, Lacerda não sabia mais como conduzir a história. “Estava muito empacado”, admite. Resolveu então relaxar, mas não largou teclado e computador. O descanso do escritor carioca consistia em escrever outro livro. O fazedor de velhos nasceu assim, sem muita pretensão, rápido em relação aos seis anos de Outra vida e com um único compromisso:

o autor tinha coisas a dizer à filha de 13 anos e essas coisas estariam no livro. “Não adiantava eu simplesmente dizer. Era preciso que eu fizesse ela sentir. Tem uma frase que gosto muito: conselho é que nem sol de inverno, ilumina, mas não aquece”, acredita. Lacerda conta a trajetória de Pedro, adolescente infeliz com o curso de história para o qual prestou vestibular e em fase de descoberta do mundo literário. O fazedor de velhos do título é um professor que instiga o protagonista a seguir os estudos em literatura. O velho Nabuco delega ao menino algumas tarefas que o obrigam a ler Shakespeare, autor das

obras completas presenteadas pelo pai e estacionadas na estante. Pedro aceita as propostas e acaba por conhecer Mayuni, afilhada de Nabuco e neurocientista obcecada em mapear o funcionamendo do cérebro durante o envolvimento amoroso. Pedro se apaixona pela moça e vive o primeiro grande amor. “Me dei tanta liberdade no processo de composição desse livro que, na minha idéia, o fazedor de velhos era o vilão da história e acabou virando um personagem altamente positivo. Foi um processo delicioso, não tinha nenhum plano, nenhum esquema para seguir”, conta Lacerda. Com linguagem sim-

ples e clara, a primeira incursão do autor no mundo da literatura juvenil pode ter como alvo o público adolescente, mas não descarta os leitores adultos. O fazedor de velhos tem todos os elementos da prosa solta exercitada por Lacerda no romance Vista do Rio e nos contos de Tripé. Agora que descansou e contou a história de Pedro, o autor retoma a história intrincada de Outra vida, programado para sair em abril de 2009. O romance se inscreve na tentativa de perseguir um desejo. Lacerda quer se tornar um romancista capaz de conduzir tramas com dezenas de personagens. “Todos com uma

densidade psicológica substancial. (Quero ser) aquele romancista que tem uma longa galeria de personagens. Ainda tem muito chão pela frente, mas esse é o projeto”, garante. Quando publicou o primeiro livro, O mistério do leão rampante (1995), o escritor de 38 anos investiu no realismo fantástico para contar a história de uma jovem do século 17 impossibilitada de amar por causa de um feitiço. Depois, mudou o estilo e passou a incorporar a realidade e, eventualmente, episódios sobre a própria vida. “É um realismo suave. Não é pessimista, também não é otimista. Não faço obras em que tudo seja

degradação, que todos os personagens sejam viciados, assassinos. Não é uma coisa neonaturalista, uma tendência da literatura contemporânea que já rendeu muita coisa boa, mas que não é minha linha de trabalho. É um realismo um pouco mais generoso”. Em entrevista, Lacerda conta como concebeu O fazedor de velhos, obra de formação, destinada ao público de todas as idades.

O FAZEDOR DE VELHOS Romance de Rodrigo Lacerda. CosacNaify,136 páginas.R$ 37.

Zuleika de Souza/CB/D.A Press - 7/4/04

PONTO A PONTO //RODRIGO LACERDA Linguagem cristalina Escritor fez obra acessível a jovens e adultos, definida como como “mensagem de otimismo” . DEFINIÇÃO O que o livro acaba revelando é que fazedor de velhos é tudo e todo mundo que, de alguma maneira, não recusa a emoção e, ao não recusar a emoção, vive transformações que fazem com que se sinta mais leve, de maneira que não tenha nenhuma vontade de trocar a maturidade pelos anos de juventude porque fazer essa troca significaria deixar de viver um monte de coisas importantes. O tema principal do livro é a sensibilização das emoções. A única maneira de enfrentar o passar do tempo é viver intensamente. O professor, de certa forma,

é um fazedor de velhos e tem o aprendiz, Pedro, que acaba se transformando também no fazedor de velhos à medida que se transforma num escritor. LIVRO DE FORMAÇÃO É uma formação profissional, amorosa e pessoal no sentido mais amplo. O mundo dos adolescentes hoje é muito pesado. A produção cinematográfica e literária sobre coisas de adolescente em geral tem drogas, orgias, assassinatos. Eles estão, muito cedo, entrando num mundo pesado. Achei que seria importante mostrar que tudo isso existe, as drogas, a fluidez dos sentimentos, a perda do referencial amoroso no mundo de hoje, mas não é só isso que existe. Ainda existe a possibilidade da paixão, do amor duradouro, da amizade profunda, da comunicação entre as gerações. O livro é uma mensagem de otimismo. Todas essas coisas ruins existem, mas as coisas boas não deixaram de existir.

LITERATURA REALISTA Os desafios a que me propus me levaram para isso e esses desafios foram de avançar no esforço de dar densidade psicológica aos meus personagens. Ao fazer isso, caminhei naturalmente para uma literatura mais realista e distante do universo fantástico. LINGUAGEM Tenho que ser sempre muito claro, nada hermético. Mesmo quando faço digressões literárias faço de modo que qualquer pessoa de qualquer nível intelectual me acompanhe. Quando falo de Shakespeare, você não precisa já ter lido Shakespeare para entender. Quando falo do Eça de Queiroz, não precisa ter lido para entender. A maneira como abordo os temas contribui para que seja um livro também passível de ser lido por jovens. É uma linguagem cristalina nas intenções e isso faz a diferença.

RODRIGO LACERDA ESCREVEU O FAZEDOR DE VELHOS, ENQUANTO DESCANSAVA DE OUTRO PROJETO LITERÁRIO

CONTINUAÇÃO DA CAPA Jorge Cardoso/CB/D.A Press - 25/8/98

Qual foi a extensão do trabalho de equipe no set? Foi um pouco como levar a parte de Cuzco, de Diários de motocicleta, às últimas conseqüência. A parte peruana de Diários é marcada pela improvisação constante. Em Linha, ela invade o filme como um todo, do início ao fim. Apesar de inspirado em documentários, o roteiro de Linha de passe tem uma arquitetura complicada. Como foi aliar uma estrutura dessas às improvisações? É um pouco como jazz: quanto melhor a melodia – o roteiro –, mais fácil bifurcar dela. O roteiro do Linha de passe era bem amarrado. Isso nos permitiu subvertê-lo constantemente.

A atriz Sandra Corveloni disse ter se surpreendido quando assistiu ao filme.Ela percebeu que a personagem Cleuza,mesmo quando não aparecia na tela,provocava influência sobre a maior parte das cenas do longa. Esse eco deixado pelos personagens foi proposital? Isso já está incluído no próprio conceito de uma linha de passe: mesmo quem está fora do quadro faz parte do jogo. Também há o fato de que o personagem de Cleuza é um pouco como o rio para o qual correm todos os afluentes da história. Ela é o esteio ético e moral do filme e, por isso, está de alguma forma presente, mesmo quando não está em cena. O personagem de Reginaldo (Kaíque dos Santos),o menino que busca o pai, pode ser visto como um reflexo de Josué,de Central do Brasil? O que aproxima e distancia os dois personagens? A questão da ausência do pai já está presente em Terra estrangeira, continua em Central do Brasil e agora está em Linha de passe. Pais desconhecidos ou que partiram são recorrentes no Brasil. O personagem de Josué era ficcional. Reginaldo é inspi-

rado no caso real de um menino que passou anos procurando o pai, sobre o qual só sabia que era negro e motorista de ônibus. De ônibus em ônibus, esse garoto aprendeu a dirigir. E, um dia, roubou um ônibus e partiu com ele em plena cidade de São Paulo, para tentar chamar a atenção do pai ausente. Não conseguiu. Essa ausência do pai é crônica no Brasil, vem desde o tempo da colônia e se estende até hoje. A falta do pai e a incapacidade de se pertencer a um país andam de mãos dadas. Em que sentido Linha de passe significa, para você, uma experiência nova com o cinema? Desde Terra estrangeira ou Central do Brasil, acredito que os personagens de um filme têm o direito de se outorgarem uma segunda chance, se rebatizarem mundo afora. Pelo fato de as relações sociais no Brasil terem se acirrado tanto nos últimos 10 anos, essa luz no fim do túnel talvez pareça mais distante, mas nem por isso menos desejável. É desse binômio que é feito Linha de passe: a esperança e a desesperança… O filme é um pouco como um Entreatos para mim, a possibilidade de fazer um projeto de risco em que seja possível experimentar.

CMYK

Qual a principal diferença entre dirigir sozinho e em dupla? De quem é a última palavra? Das mulheres, claro. Falando sério, é um processo realmente coletivo, que começa a quatro mãos e acaba incorporando também os atores, a equipe técnica. Quando dirijo sozinho, traço um vetor de desenvolvimento, trabalho muito próximo dos atores. Com Daniela, esse leque se abre consideravelmente.

Como os filmes de João Moreira Salles influenciaram Linha de passe? Sem os documentários do João sobre o mundo do futebol e das igrejas evangélicas, Linha de passe não existiria. Não só pela construção de dois dos cinco personagens centrais, mas pela própria gramática do filme, mais próxima do documentário do que da ficção. Na sua visão, o que representa o futebol para o brasileiro? Um jogo de futebol pode emocionar tanto quanto assistir a um filme? O futebol tem uma importância fundamental na vida brasileira, e o livro recentemente publicado por José Miguel Wisnik, Veneno remédio, dá uma excepcional radiografia disso. Por um lado, é o que nos explica. Pelo outro, representa uma meta para dezenas de milhares de jovens quebrarem as barreiras sociais do país. É bastante complicado filmar

CD-5

A esperança e a desesperança

❛❛

PAIS DESCONHECIDOS OU QUE PARTIRAM SÃO RECORRENTES NO BRASIL

❛❛

ENTREVISTA//WALTER SALLES

cenas de futebol. São 22 jogadores em campo, mais os treinadores e os bancos de reserva. Dar conta de tantos elementos num curto espaço de tempo não é matéria fácil. O que representa a vitória de Linha de passe no Festival de Cannes? Cannes é, antes de mais nada, o lugar onde a idéia do cinema de autor permanece vivia – de Nuri Bielge Ceylan a Jia Zhang-ke, passando por Lucrecia Martel ou Atom Egoyan. O festival não é só o ponto de encontro de diferentes cinematografias, mas também de visões de mundos diferentes, às vezes colidentes, muitas vezes complementares. As mais diversas vertentes estéticas convergem para lá. Cannes é, em suma, o lugar onde a nossa compreensão do mundo se torna, no espaço de 10 dias, mais abrangente. Esse último festival foi aquele em que a ficção e o documentário estiveram mais próximos, uma forma narrativa engravidando a outra.

Você se identifica com o cinema de autores como o dos irmãos Luc e Jean-Pierre Dardenne (A criança) e o de Gus Van Sant (Paranoid Park), que tem cadeira cativa no festival? Sim, sou fã dos Dardenne e de Gus Van Sant, por razões diferentes. Os irmãos redefiniram o drama social, enquanto Van Sant conseguiu promover uma certa decantação da narrativa, aquilo que os Cahiers du Cinema chamam de “deflação dramatúrgica”. É raro isso funcionar. Com Van Sant, dá certo. Wim Wenders afirmou, há duas semanas, que precisa filmar Brasília. E você, tem o mesmo desejo? Como vê a cidade? Estava do lado dele quando Wenders falou isso. Acho que ele tem razão. A cidade é eminentemente cinematográfica e tem aquelas características próprias à geografia que ele procura. Espaços vazios, lugares onde é possível perder-se ou reencontrar-se.

Related Documents

Correio Braziliense
May 2020 14
Correio
November 2019 22
Correio
November 2019 19
Correio Brasiliense
June 2020 12