Consumo-jornalismo-e-imagem-ebook.pdf

  • Uploaded by: Karine Anabel Moraes
  • 0
  • 0
  • December 2019
  • PDF

This document was uploaded by user and they confirmed that they have the permission to share it. If you are author or own the copyright of this book, please report to us by using this DMCA report form. Report DMCA


Overview

Download & View Consumo-jornalismo-e-imagem-ebook.pdf as PDF for free.

More details

  • Words: 58,166
  • Pages: 185
eBook

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

ELIZA BACHEGA CASADEI

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM Uma história do consumo nas revistas brasileiras no século XX

EDITORA CASA FLUTUANTE

LIVRO-REPORTAGEM & ACADÊMICOS

SÃO PAULO, 2017

© 2017 by Eliza Bachega Casadei Conselho Editorial Marcia Furtado Avanza, doutora em Ciências da Comunicação / USP Márcia Neme Buzalaf, doutora em História / UNESP Maurício Pedro da Silva, pós-doutorado em Literatura Brasileira / USP Vinicius Guedes Pereira de Souza, doutor em Comunicação / UNIP Projeto editorial Israel Dias de Oliveira Imagem da capa CC0 Creative Commons

CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO: EDITORA CASA FLUTUANTE

C334e

CASADEI, Eliza Bachega. Consumo, jornalismo e imagem: Uma história do consumo nas revistas brasileiras no século XX / Eliza Bachega Casadei. — São Paulo: Editora Casa Flutuante, 2017. ISBN 978-85-5869-035-5 1. Jornalismo em revista 2. Periódicos 4. Consumo I. Título CDU 070.051 CDD 741.65

[2017] Todos os direitos desta edição reservado à Eliza Bachega Casadei

EDITORA CASA FLUTUANTE Rua Manuel Ramos Paiva, 429 - Belenzinho São Paulo - SP Fone: (11) 2936-1706 www.editoraflutuante.com.br

O livro “Consumo, Jornalismo e Imagem” faz parte da pesquisa “Uma história dos imaginários do consumo a partir do fotografável de cada época”, financiada pelo Edital CNPq/ MCTI No 25/2015 - Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas (nº do processo 444821/2015-5)”.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO Uma história das visualidades do consumo?...........................................................................9 CAPÍTULO 1 O pathos do consumo como distinção (de 1900 a meados de 1930): O masculino, o feminino e o político em uma correlação de aconselhamentos e de convocações afetivas O fotografável da revista da semana de 1900 a 1910. .......................................................16 A virilidade como produto................................................................................................21 Consumos ativados pelo complexo afetivo-editorial.......................................................33 A sátira pictórica política e a escala dos valores morais..................................................37 A tranformação em uma revista feminina........................................................................47 Relações de consumo e imagens da distinção...................................................................57 CAPÍTULO 2 O consumo das vanguardas artísticas para a massa (de 1920 a meados da década de 1940): Trangressões estéticas esvaziadas de senso político e lastros de real baseados em acordos formais em O Cruzeiro e Revista da Semana A convocação do consumidor pela imagem a partir das vanguardas artísticas. . ............70 O star system.......................................................................................................................84 As vanguardas no consumo do princípio de testemunhas como elemento estético. . .....86

CAPÍTULO 3 O consumo do princípio de testemunha a partir de diferentes narrativos pela imagem: Mudanças formais entre as décadas de 1920 e 1950 Diferentes articulações do consumo do princípio de testemunhas no plano narrativo....... 99 Enquanto isso, nas capa.....................................................................................................116 CAPÍTULO 4 A convocação pela justaposição de imagens na revista Realidade: Ênfase no processo e um novo lugar de autoridade para o jornalismo O projeto afetivo-editorial da revista Realidade. ..............................................................122 A justaposição como técnica de composição: A ênfase no processo como mecanismo convocacional A justaposição como mecanismo de produção de sentido:.............................................127 A justaposição do ponto de vista do conteúdo:................................................................130 A justaposição do ponto de vista da construção de um lugar de consumidor:.. .............132 A convocação como remontagem de mundo. ...................................................................134 CAPÍTULO 5 As imagens sem conflito de Manchete e Fatos e Fotos: O culto à vida privada a ao Brasil desenvolvimentista O projeto afetivo-editorial de Manchete e Fatos e Fotos:. . ................................................140 Estratégias convocacionais jornalísticas em consonância com a publicidade: Ausência de conflitos e personalização de valores universais.........145 CAPÍTULO 6 A afirmação de um espaço de autoridade de um saber sobre o mundo: As imagens-síntese da revista Veja A construção performativa de um saber sobre. ................................................................155 O interpretativo como eixo de um projeto afetivo-editorial.. ..........................................160 Convocaçãoes de autoridades na composição imagéticas...............................................163 Últimas considerações.............................................................................................................171 Referências bibliográficas.......................................................................................................175

INTRODUÇÃO

Uma história das visualidades do consumo?

É possível pensar em uma história do consumo a partir do jornalismo? Essa é uma pergunta que comporta muitos sims como resposta, a depender de certas escolhas de pesquisa. Em um primeiro sim, é possível pensar em uma história que conte os diferentes modos a partir dos quais pessoas consumiram as notícias ao longo do tempo, em uma arqueologia da recepção que comportasse desde os diferentes hábitos culturais até os diversos dispositivos tecnológicos implicados no ato da leitura. Um segundo sim poderia se referir aos modos como o jornalismo se sustentou ao longo do tempo, a partir de seus diferentes modelos de negócio e de financiamento. Há, ainda, um terceiro sim, que comporta os modos de atuação da publicidade no jornalismo, em uma história das simbioses possíveis entre a informação de caráter propagandístico e as de teor referencial, tanto do ponto de vista estilístico quanto de conteúdo. Poderíamos, ainda, em um quarto caminho possível de pesquisa, adotar a perspectiva de estudos que mapeiam os modos como o jornalismo retratou o mundo do consumo e as diferenças semânticas comportadas por esse termo ao longo do tempo, em um campo comum à história das mentalidades. E, assim, inúmeras outras possibilidades de pesquisa se abrem a

9

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

partir de uma pergunta que é, ao mesmo tempo, tão simples e tão cheia de ambiguidades. Nesse livro, uma escolha de pesquisa foi feita para responder essa questão. Aqui, não se trata de mapear os diferentes modos de ler a notícia ou de financiá-la, nem ao menos os diferentes campos semânticos aludidos ou a forma como os dois tipos de discurso se misturam. Aqui, se trata de tentar entender como a imagem de caráter jornalístico mediou certos projetos de bem estar e bem viver ligadas a universos de consumo, bem como as formas a partir das quais tais conteúdos se materializaram em visualidades específicas a partir do estudo do fotografável de cada época histórica. Em termos mais sintéticos, tentaremos contar uma história dos modos e estratégias de convocação para o consumo mediados pela imagem no jornalismo em revista ao longo do século XX. Para que possamos empreender uma pesquisa desse tipo, é necessário considerar, em primeiro lugar, que há uma simbiose bastante específica entre comunicação e consumo, que nem sempre é óbvia. Douglas e Isherwood (2004) chamam a atenção para o fato de que o consumo, muitas vezes, é pensado a partir de um ponto de vista utilitarista, como um ato que visaria à satisfação de certas necessidades, sejam essas físicas, emocionais, espirituais ou, ainda, ligadas à manutenção de um sistema econômico maior. Tais abordagens ignoram um fato importante sobre a vida econômica que diz respeito à questão de que os comportamentos dos indivíduos estão diretamente relacionados aos valores que a comunidade mais ampla confere a certos atos. Dessa forma, o ato de poupar, por exemplo, pode ser considerado como uma virtude em certas sociedades (como uma marca de austeridade e autocontrole) ou como um problema em outras (em contextos em que uma boa exibição de si seria importante para o estabelecimento de laços sociais fortes). “Gastar moderadamente não é sempre nem em qualquer lugar considerado melhor do que ser mão-aberta. Cada cultura corta suas fatias de realidade moral de maneiras diferentes e distribui aprovação ou desaprovação a virtudes e vícios de acordo com as visões locais” (DOUGLAS e ISHERWOOD, 2004, p. 64), de forma que certos ambientes sociais afetam as percepções morais sobre as proporções desejáveis do consumo em relação à renda.

10

ELIZA BACHEGA CASADEI

É nesse sentido que “o consumo é a única atividade essencial pela qual nos envolvemos, diariamente, com a cultura de nossos tempos” (SILVERSTONE, 2014, p. 150) e os objetos, para Douglas e Isherwood (2004, p. 105) são elementos necessários “para dar visibilidade e estabilidade às categorias da cultura”. Desloca-se, dessa forma, o entendimento de que de que o consumo seja um ato “necessário à subsistência e à exibição competitiva” e supõe-se que ele é um dos marcadores importantes das relações sociais estabelecidas em seus posicionamentos hierárquicos e no estabelecimento de laços. E, assim, “os bens, nessa perspectiva, são acessórios rituais; o consumo é um processo ritual cuja função primária é dar sentido ao fluxo incompleto dos acontecimentos”. Mais do que isso, os objetos “são, portanto, a parte visível da cultura” (DOUGLAS e ISHERWOOD, 2004, p. 112). Em outros termos: O homem precisa de bens para comunicar-se com os outros e para entender o que se passa à sua volta. As duas necessidades são uma só, pois a comunicação só pode ser construída em um sistema estruturado de significados. Seu objetivo dominante como consumidor, colocado nos termos mais gerais, é a busca de informação sobre a cena cultural em constante mudança (DOUGLAS e ISHERWOOD, 2004, p. 149).

É sob esse ponto de vista que Silverstone (2002) irá afirmar que consumo e mediação são atividades interdependentes, não apenas do ponto de vista de que todo ato de consumir sempre media significados e valores, como também a partir do pressuposto de que as indústrias midiáticas são em grande parte responsáveis pela publicização e circulação desses valores compartilhados pelos objetos. Mais do que isso, o próprio ato de consumir (e o que pode ser definido como consumismo ou excessos de consumo) depende desse acordo social estabelecido – acordo esse que é sempre mutante e sujeito a renegociações de sentido. A imprensa é um fórum privilegiado para a observação da luta simbólica acerca do que é considerado um consumo legítimo e validado socialmente, na medida em que é possível perceber embates públicos acerca do que significa consumir muito ou pouco, bem ou mal, certo ou errado. A imprensa, nesse sentido, é um dos instrumentos importantes da mediação

11

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

simbólica sobre as decisões de aumentar o nível e a intensidade de nossas atividades de consumo ou não (SILVERSTONE, 2002, p. 156). É nesse sentido que a presente pesquisa visa fazer um mapeamento histórico dos modos a partir dos quais a imprensa convoca ao consumo. Isso será feito não a partir do material publicitário, onde tal convocação se mostra de maneira mais óbvia, mas sim, no próprio conteúdo jornalístico, onde tais questões estão mais camufladas por uma deontologia profissional. Mais ainda é necessário dizer algo mais sobre isso. Especificando um pouco mais do que se trata esse livro, é necessário especificar que tais convocações para o consumo serão procuradas em um tipo de material específico: no fotografável de cada tempo histórico estudado, de forma que o consumo será buscado em suas visualidades. Muito embora todo e qualquer objeto ou evento possa ser fotografado do ponto de vista técnico, Bourdieu (1998, p. 6) nos lembra que “ainda assim, é verdade que, entre o número teoricamente infinito de fotografias que são tecnicamente possíveis, cada grupo escolhe uma quantidade finita e bem delimitada de assuntos, gêneros e composições” a serem fotografadas. As fotografias que são efetivamente tiradas, portanto, carregam consigo os valores, os preconceitos e os interesses de determinados grupos sociais detentores de um poder de produção de imagens e, portanto, de visibilidade e articulação de visualidades. Esse fato fica evidente ao se pensar em quais são os temas mais comumente fotografados e mediados pela instância midiática em cada tempo histórico. Normalmente, as câmeras fotográficas são utilizadas em momentos em que se busca solenizar e imortalizar os principais momentos da vida social: não seria por acaso, portanto, que as fotografias se tornam especialmente importantes em rituais que reafirmam justamente esses valores de comunhão, tais como casamentos, aniversários, funerais, entre outros. A imagem, nesse sentido, funciona como uma espécie de atadura para as comunidades porque reforça valores que esse grupo atribui a si próprio em uma representação imagética. Além disso, a fotografia não apenas reforça o laço social, mas, principalmente, mostra quais são os atores mais importantes nessa constituição relacional interna ao grupo retratado. Nesse sentido, Bourdieu (1998) co-

12

ELIZA BACHEGA CASADEI

menta que as fotografias de crianças não eram importantes ou numerosas até, pelo menos, a primeira metade do século XX; é apenas quando os filhos são considerados atores mais relevantes para o laço social que a quantidade de fotografias infantis aumenta e ganha relevância. Nesse jogo, o indivíduo retratado é menos importante que o papel social que ele assume na imagem. Em uma fotografia de um casamento, por exemplo, as pessoas não são retratadas como sujeitos autônomos dotados de uma subjetividade própria, mas sim, a partir dos papéis sociais que elas ocupam na imagem: o pai da noiva, o marido, os tios etc. E é por isso que, para Bourdieu (1998, p. 24), “o real objeto da fotografia não são os indivíduos, mas as relações entre os indivíduos” materializadas em uma imagem forte (quem está ao lado de quem, quais as alianças feitas e quais laços são estabelecidos a partir desses arranjos). A fotografia é, assim, uma oportunidade privilegiada de observar como os valores do grupo podem ser comunicados – e, inclusive, seus valores de consumo. A fotografia é uma forma de fortalecer os laços sociais e de demarcar o outro como o diferente. A fotografia materializa valores, relações hierárquicas, costumes, imaginários sobre o eu e o outro, hábitos, comportamentos, rotinas e práticas, mediando partilhas sobre os modos de vida que são validados e os que não são legitimados em cada grupo social. Observar fotografias, nesse sentido, significa olhar de perto certos valores de grupo e hierarquias sociais auto-atribuídas em cada tempo histórico. O mapeamento do campo daquilo que é fotografável em cada época, sob essa perspectiva, se torna um instrumento de análise poderoso para o entendimento acerca do modo como a vida cotidiana é entendida e estetizada em cada época histórica, bem como a partir de quais termos tais valores mudam ao longo do tempo. Isso posto, podemos especificar do que se trata a nossa história dos imaginários de consumo nas revistas: o objetivo desse livro é realizar um mapeamento do que foi fotografável nas revistas brasileiras ao longo do século XX, com o objetivo de entender as interrelações entre comunicação e consumo. Iremos estudar as relações de consumo materializadas nessas imagens, bem como as mudanças que tais visualidades sofreram ao longo do tempo. Ao mediarem certos discursos acerca dos modos validados de vida e de construção do eu, as fotografias mostram de maneira

13

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

privilegiada as relações entre comunicação e consumo, uma vez que tais discursos mediam imaginários constituídos que repetem lugares comuns relacionados a um projeto de felicidade, de bem viver e de futuro, articulados a partir de narrativas que modalizam formas validadas de consumo. Trata-se de um material de estudo privilegiado para entendermos que as diferentes formas de convocação para o consumo são historicamente marcadas e possuem visualidades que mudam ao longo do tempo. Como material de trabalho para a análise foram escolhidas seis revistas brasileiras importantes de cada período do século XX, a partir dos critérios de tiragem, circulação e relevância historiográfica. São elas: Revista da Semana (1900-1958), O Cruzeiro (1928-1975), Fatos e Fotos (19611985), Realidade (1966-1976), Manchete (1952-2000) e Veja (1968-1999). Tal mapeamento será feito a partir do desvelamento dos processos de composição utilizados nas imagens publicadas, com ênfase nas capas: nós iremos mapear as técnicas de composição mais comumente utilizadas em cada período histórico para que, a partir delas, possamos entender os efeitos de sentido que elas engendram em relação aos valores de consumo de cada época, bem como a forma como eles mudaram. Como toda história, esse livro não conta toda a estória, de forma que as escolhas teórico-metodológicas foram enumeradas ao longo dos capítulos. Não obstante isso, a ideia estruturante da pesquisa visa elucidar certos processos discursivos a partir dos quais a imprensa materializou em imagens questões relativas ao consumo ao longo do tempo, efetuando a partilha entre modos legitimados de vida e convocando para formas específicas de consumir e de estar no mundo.

14

CAPÍTULO 1

O pathos do consumo como distinção (de 1900 a meados de 1930): O masculino, o feminino e o político em uma correlação de aconselhamentos e de convocações afetivas

Os estudos sobre as interrelações entre comunicação e consumo, muitas vezes, pautaram-se por um entendimento a partir do qual os valores de consumo são comunicados com base em “um sistema de normas, valores e regras que estruturam formas de comportamento e interação em múltiplas esferas da vida” (SAFATLE, 2016, p. 15). E isso no sentido de que o valor simbólico dado ao consumo e seus objetos (materiais ou não) nunca são medidos por uma régua meramente individual, mas sim, são avaliados em referência a certas normatividades que são socialmente compartilhadas. São sintomáticos desse entendimento estudos clássicos como os de Bourdieu (2007) – para quem o gosto é um processo indissociável das práticas e competências que fundamentam um habitus, de forma que os objetos funcionam como marcadores que expressam os desvios diferenciais a partir de retraduções simbólicas inscritas nas culturas dos diferentes grupos sociais e seus processos de distinção. É possível encontrar posições similares em Douglas e Isherwood (2004, p.28), que irão afirmar que “dizer de um objeto que ele está apto para o consumo é o mesmo que dizer que o objeto está apto a circular como marcador de conjuntos particulares de papéis sociais”, de forma que “os bens em sua reunião

15

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

apresentam um conjunto de significados mais ou menos coerentes, mais ou menos intencionais”. Safatle (2016, p. 15), contudo, problematiza uma questão importante acerca de tais abordagens: para além da inscrição em um sistema de normas compartilhadas, compreender o campo social implica em abordar também o conjunto de emoções que são mobilizadas nesse mesmo campo, explicitando “seus modos de construção, seus circuitos de afetos com regimes extensivos de implicação, assim como compreender o modelo de individualização que” tais afetos produzem, “a forma como ele nos implica”. Assim, “talvez precisemos partir da constatação de que sociedades” e, consequentemente, as lógicas sociais do consumo, “são em seu nível mais fundamental circuitos de afetos”. A coesão social das normas, nesse sentido, não é garantida pela adesão tácita a um conjunto de regras, mas sim, por certos circuitos de afeto bastante demarcados. É o afeto implicado que, em última medida, determina a aquiescência à norma. A adesão a certos valores de consumo, portanto, está alicerçada na produção contínua de afetos “que nos fazem assumir certas possibilidades de vida a despeito de outras”. Tais formas de vida “se fundamentam em afetos específicos, ou seja, elas precisam de tais afetos para continuar a se repetir, a impor seus modos de ordenamento, definindo, com isso, o campo dos possíveis” (SAFATLE, 2016, p. 16). O jornalismo participa da mediação dessa cadeia de afetos ligados a formas de consumo de maneira fundamental. Muito embora ele não esteja necessariamente vendendo um produto específico – como no caso da publicidade ou dos anúncios comerciais – a gestão dos afetos implicada no jornalismo participa da estruturação de uma cultura de consumo, reatualizada na valorização de certas formas de vida em detrimento de outras. Nesse capítulo, estudaremos como esse processo foi materializado na Revista da Semana, a partir da verificação do modo como se estruturavam imageticamente suas capas. A partir da visibilidade dada a certos temas e questões pela publicação é possível depreender um jogo de afetos ligados a valores de consumo historicamente marcados.

O fotografável da revista da semana de 1900 a 1910

A Revista da Semana surgiu com uma tiragem de 50 mil exemplares, em 1900, como um encarte do Jornal do Brasil, o que, portanto, lhe

16

ELIZA BACHEGA CASADEI

garantia uma ampla difusão e uma tiragem muito expressiva para a sua época histórica. A tiragem do periódico salta de 50 mil exemplares, em 1900, para 62 mil, em 1902 (CASTRO, 2007, p. 46) com o encarte da revista. Mesmo em 1945, A Revista da Semana ainda era a segunda revista mais lida do país, perdendo apenas para O Cruzeiro, um outro marco reconhecido na literatura sobre a história da imprensa nacional. Em 1945, por exemplo, as revistas mais lidas eram “O Cruzeiro (37,7%); Revista da Semana (15,5%); Careta (11,3%); Seleções (10,7%) e A Cigarra (9,7%)” (MIRA, 2001, p. 14). A Revista da Semana é unanimemente apontada como marco do surto – que se prolongaria por décadas – das chamadas revistas ilustradas ou de variedades. Com apresentação cuidadosa, de leitura fácil e agradável, diagramação que reservava amplo espaço para as imagens acontecimentos sociais, crônicas, poesias, fatos curiosos do país e do mundo, instantâneos da vida urbana, humor, conselhos médicos, moda e regras de etiqueta, notas policiais, jogos, charadas e literatura para crianças, tais publicações forneciam um lauto cardápio que procurava agradar a diferentes leitores, justificando o termo variedades. Pode-se supor que tal uso cumpria função estratégia: diante do relativamente minguado público dependia de se conseguir ampliar ao máximo os possíveis interessados, dai o recurso a uma rubrica ampla, que permitia incluir de tudo um pouco (LUCA, 2006, p. 121).

Ainda um suplemento do Jornal do Brasil, podia-se ler, em seu cabeçalho, os dizeres “Photographias, vistas instantâneas, desenhos e caricaturas”, enfatizando a intencionalidade de uma vocação visual para o suplemento – mesmo que a maior parte do conteúdo das páginas internas fosse composto de texto. Além disso, devido a problemas técnicos relacionados à impressão, nem todas as imagens jornalísticas publicadas nos primeiros anos da Revista da Semana eram fotografias – muitas vezes, tratava-se de desenhos feitos com base em fotografias. A liberdade de criação dessas imagens variava bastante, desde tentativas de mimetizar o mais fielmente possível o registro fotográfico até extrapolações bastante fantasiosas, com a dramatização dos fatos retratados. Não obstante isso, a revista estruturou o seu projeto editorial, desde o início, na valorização

17

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

do registro fotográfico (mesmo que a partir de parâmetros de aceitação e contratos de leitura do registro referencial diferentes daqueles que irão vigorar nas décadas seguintes no jornalismo). Outro dado interessante refere-se ao fato de que, dentre as 33 primeiras capas da revista (todas elas publicadas em 1900), apenas nas primeiras 14 delas houve a preocupação de representar acontecimentos factuais ou coberturas propriamente jornalísticas. As demais eram compostas por reproduções de quadros ou por gravuras de cunho artístico ou satírico. Destas primeiras 14 capas, é possível extrair algumas informações importantes, se observarmos os temas que eram mais comumente retratados por ela e que formavam o fotografável da publicação. No que diz respeito aos principais assuntos de interesse, há uma predominância do jornalismo comemorativo e dos assuntos ligados à medicina, ambos com 28,5% das ocorrências (4 capas). No primeiro caso, destacam-se as Comemorações do Centenário do Descobrimento (com 2 capas). No que se refere à medicina, a abordagem da revista pode ser enquadrada no campo do jornalismo de curiosidades com um cunho sensacionalista, com capas com imagens da autópsia e do enterro de uma criança e outra com fotografias de bebês anencefálicos, por exemplo. Os crimes, as artes teatrais e a política são assuntos também tratados com certa frequência (com duas capas cada ou 14,5% das ocorrências). No que diz respeito à política, as duas capas dizem respeito: uma a um retrato da família real italiana e outra aos ambientes internos do Palácio do Catete, temas usualmente enquadrados sob a ótica de um certo colunismo social. Além disso, destaca-se que todos os temas remetiam a assuntos nacionais: apenas a capa sobre a família real italiana escapa desse padrão e retrata um assunto internacional. Os temas de interesse resvalam também nos principais atores sociais que foram retratados nesses primeiros da revista. Sobre isso, destaca-se o fato que, das 14 capas, apenas duas delas não possuíam imagens com pessoas. Nesse quesito, os militares (35,7% do total de capas e 41,5% de capas com pessoas) figuram em cinco capas e as crianças em quatro (28,5% do total de capas e 33% de capas com pessoas). As capas também eram normalmente compostas por mais de uma imagem – das 14, apenas 6 possuíam uma imagem única, de forma que,

18

ELIZA BACHEGA CASADEI

no total, foram publicadas 37 fotografias de capa nessas primeiras edições. Essas imagens possuíam como característica estética particular a predominância do plano geral na composição (em 78% delas). O uso do plano médio ocupa 22% das ocorrências e não há nenhuma fotografia que utilize o close. Em diversas ocasiões, a revista procurou enfatizar os processos de produção concernentes à imagem disposta na capa. Era possível ler instruções como “fotografia oferecida pelos Srs. Bastos e Dias” (20/05/1900), “Fotografias tiradas do alto de uma janela no 1o andar”, “Fotografia tirada a 2 metros de distância” (10/06/1990), “Fotografia instantânea apanhada casualmente por um dos nossos fotógrafos” (24/06/1990). Tratava-se de uma maneira de valorizar a própria fotografia a partir do esmiuçamento, já na capa, de suas condições de produção, em uma época em que o público consumidor ainda estava pouco habituado a ela. As capas são majoritariamente compostas por homens. Das 23 fotografias com pessoas, 70% delas são compostas exclusivamente por homens e 17,3% por homens e mulheres. Apenas 12,7% das imagens são apenas de mulheres. Outro dado interessante refere-se ao fato de que em apenas 39% das ocorrências as pessoas aparecem sozinhas na fotografia; na maior parte dos retratos, 61%, elas aparecem acompanhadas por outras pessoas. Além disso, em 65% das ocorrências, as pessoas são identificadas pelos nomes; nas demais, 35%, elas não são identificadas e estão retratadas apenas como membro de uma coletividade. Isso mostra o fato de que a revista possuía um projeto editorial-imagético baseado na valorização da relação: mais do que os indivíduos em sua singularidade, importava os vínculos e os relacionamentos estabelecidos por ele – fato ressaltado pela predominância de imagens coletivas em que os indivíduos podem ser identificados pelos nomes. A preocupação com o jornalismo retrocede entre o final de 1900 e o início de 1901, de forma que as capas passam a retratar quadros e figuras religiosas, majoritariamente, em uma fase que dura até quase o início de 1902, com poucas capas que retratam assuntos jornalísticos. Em 1902, é possível notar a retomada dos interesses jornalísticos nas capas da Revista da Semana e a manutenção de algumas das características anteriores nas ilustrações publicadas.

19

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

As pautas que compõem os assuntos das capas nessa outra fase se dividem em alguns temas preferenciais. O tema mais retratado diz respeito ao jornalismo de comemoração, com 30,7% das incidências, seguido pela cobertura política (com 21,5% das ocorrências), dos crimes (com 16,9%) e da religião (com 12,3%). Paisagens naturais compõem 7,7% das capas, Ciência e Tecnologia 4,6%. O jornalismo social e as celebridades compõem, cada um, 3% das capas (com predominância das celebridades ligadas à música e dos esportes, com 1,5% de incidência cada um). Mesmo depois dessa pausa nos interesses propriamente jornalísticos, algumas das características anteriormente mencionadas se mantêm na publicação nos anos seguintes, de forma que, nos primeiros anos da revista, alguns padrões imagéticos podem ser notados. Em primeiro lugar, destaca-se a maciça presença masculina nas capas da revista. Do total de imagens de capa com temáticas jornalísticas1, 69,4% eram compostas apenas por homens e somente 4,7% apenas por mulheres. Homens com mulheres compunham 15,3% das capas e 10,6% não continham pessoas na imagem (como paisagens, monumentos etc.). Outro dado relevante refere-se ao fato de que 75,3% das pessoas retratadas podem ser identificadas pelo nome – ao passo que 24,7% apenas fazem parte de uma coletividade representativa de um processo. Tanto no que diz respeito ao grupo de fotografias com homens quanto com mulheres, há uma predominância da fotografia de pessoas acompanhadas em detrimento de pessoas que aparecem sozinhas: compondo 70% de fotografias em grupo e 30% de fotografias individuais. Há, contudo, um ligeiro desvio em relação aos gêneros. As mulheres aparecem sozinhas em 18,75% das imagens e, os homens, em 27,7% delas. Ainda, as mulheres estão acompanhadas somente de outras mulheres em 5% das imagens – no restante (95%), elas estão acompanhadas de homens. Os homens acompanhados (72,3% do total de imagens), eles estão acompanhados somente de outros homens em 93% das imagens e de mulheres em 7% delas. 1  Foram descartadas da contagem capas que não versassem sobre temas jornalísticos (como aquelas que continham pinturas ou outras obras artísticas), de acordo com os objetivos da pesquisa.

20

ELIZA BACHEGA CASADEI

As personagens presentes na capa são predominantemente adultas, entre 20 e 50 anos, de forma que jovens e velhos compõem menos de 10% das capas publicadas. Excetuando-se o primeiro ano da revista, as crianças também não compunham um grupo social de relevo nas capas, sendo responsáveis por apenas 2% das ocorrências. A Revista da Semana também não possuía, em suas capas, personalidades derivadas, de forma que todos os retratados estão ali por serem personalidades primárias. No que diz respeito às técnicas de composição, há um claro predomínio dos planos gerais (em 87,7% das imagens) e apenas 12,3% em plano médio. Não há imagens em close. Todas as imagens também estão compostas em ângulo reto e há um predomínio do equilíbrio estático (em 69,8% das ocorrências) em detrimento do equilíbrio dinâmico (em 30,2% das imagens). Os assuntos retratados focavam predominantemente no Brasil, de forma que menos de 10% das capas versavam sobre temas internacionais. O esmiuçamento de tais dados – ou, em outros termos, do fotografável (ou, mais precisamente, da composição do imagético) – das capas da Revista da Semana em seus primeiros anos compõem um quadro a partir do qual é possível entrever a mobilização de uma série de afetos. Há, especialmente, a construção de um certo modelo de masculinidade historicamente marcado que é engendrado a partir de emoções ativadas na composição dessas imagens. Há, ainda, como um complemento dessas imagens, um certo modelo de mulher engendrado – todos eles ligados a um modelo imaginado de sociedade e de seus modos de funcionamento, em uma hierarquização de valores sociais, regras e normas e, fundamentalmente, de afetos que garantem a adesão imaginária a eles. Tais afetos podem, ainda, ser correlacionados a valores de consumo, objeto central dessa pesquisa específica, que não estão postos na comercialização de produtos específicos, mas sim, na venda de modos de vida validados materializados em estruturações de desejos específicos, como será esmiuçado a seguir.

A virilidade como produto

Das imagens que compõem as capas da Revista da Semana em seus primeiros anos, a maciça presença masculina nas capas (70% delas) é um

21

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

dos aspectos mais notórios desde complexo editorial de afetos mobilizados. A masculinidade, portanto, para a Revista da Semana, se mostra, na capa, como um produto a venda. Não se trata, contudo, de qualquer masculinidade. Um olhar mais atento revela um processo de construção de virilidade que se apoia em características identitárias bastante específicas e um modo de fazer editorial que se apoia em projeções e modos de construção do corpo e do desejo historicamente marcadas. Revela, também, um modo próprio de construção do feminino que se constitui como um complemento da masculinidade urdida pela publicação, conforme iremos delinear a seguir. A Revista da Semana se vale, certamente, de “uma base antropológica de representações extremamente antigas, mas sempre presentes, atribuindo uma ‘valência diferencial’ aos sexos e assegurando uma hegemonia de poder viril, fundada num ideal de força física, firmeza moral e potência sexual” (COURTINE, 2013, p. 8). Fundada em tais representações há, nas capas da revista em seus primeiros anos, um modo bastante específico de retratar a masculinidade a partir de parâmetros bastante delineados. De uma maneira geral, pode-se dizer a masculinidade na Revista da Semana é urdida a partir de três eixos temáticos centrais que compõem a maior parte das imagens presentes em suas capas: (1) o mito viril-militar; (2) o mito viril-criminoso e (3) a valorização de atividades que eram consideradas tipicamente masculinas na época como a política e a medicina. Embora esses três eixos se materializem separadamente em capas específicas, eles estão correlacionados em um projeto editorial mais amplo que valida certos modos de vida em detrimento de outros, a partir da mobilização de certos afetos. Ora, um dos primeiros aspectos dessa masculinidade à venda pode ser observado a partir do tipo de personagem social mais comumente retratado na Revista da Semana: os militares, presentes em quase metade das capas do período. Sobre esse aspecto, é importante pontuar que a virilidade associada ao militarismo, no início do século XX, passa por um processo de reacomodamento simbólico, que nos ajuda a entender o modo como essa imagem é apropriada pela Revista da Semana tanto no que diz respeito à própria figura do militar quanto a partir do modo como tais articulações se ramificam para as outras masculinidades comunicadas pela revista.

22

ELIZA BACHEGA CASADEI

Isso porque “ao longo do século XIX, toda a evolução ocidental havia relacionado o mito viril estritamente ao fato militar e à atividade guerreira, a ponto de fazer da preparação ao combate, e do próprio combate, o critério, senão único, ao menos decisivo, da virilidade” (AUDOIN-ROUZEAU, 2013, p. 239). A Primeira Guerra Mundial, segundo Audoin-Rouzeau (2013), foi um ponto culminante desse processo, na medida em que a propaganda feita para os jovens era articulada em torno da ideia de que a atividade guerreira era uma oportunidade de materialização de uma imagem de homem forjada há bastante tempo. A relação da masculinidade com a violência, tal como explica Virgili (2013, p. 83), contudo, mudou de forma radical no final do século XIX e início do século XX, de forma que se passou “progressivamente de uma masculinidade ofensiva – ser um homem era combater, adotar comportamentos desafiadores e fazer a demonstração da sua força por meio da violência – para uma masculinidade dominada”. E isso no sentido de que os próprios treinamentos do exército passaram a enfatizar a obediência, o controle e o bom uso da razão em detrimento da raiva. E, assim, “no início do século XX, o novo modelo masculino que se impôs passo a passo foi aquele de uma relação contida e racional com a violência” (VIRGILI, 2013, p. 84). Após as consequências da Primeira Guerra Mundial, tal relação se solidifica, de forma que o próprio mito do homem guerreiro é ressignificado de maneira radical. A militarização da virilidade, segundo Courtine (2013, p. 9), “vai conhecer com a guerra o seu apogeu trágico: a devastação dos corpos solapa o mito militar-viril e inscreve a vulnerabilidade masculina no coração da cultura sensível”, em um processo que, embora anterior, se aprofunda a partir da Segunda Guerra Mundial, que “derruba o entusiasmo viril pela proeza guerreira e põe um termo à busca heroica do sacrifício e da glória”. As imagens heroicas da guerra do século XIX são substituídas por imagens de corpos dilacerados e quebrados. Tal processo, contudo, já estava em curso mesmo no período anterior, de forma que é possível notar uma série de manifestações da cultura em que a identificação entre a masculinidade, a violência e a atividade guerreira é problematizada. Os primeiros anos da Revista da Semana estão posicionados justamente no meio desse processo de ressignificação da masculinidade militar, em um momento em que ainda havia formas de sua afirmação ativa a

23

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

partir da violência e da atividade guerreira e, ao mesmo tempo, processos de negação dessa mesma violência, a partir do elogio do comedimento e de uma masculinidade que se afirma pelo bom uso da razão. A modificação das imagens de masculinidade passa mesmo por uma série de resistências e recomposições, em um processo que não é linear nem livre de contradições. “Tudo acontece como” se o mito viril-militar “ao preço de uma surpreendente plasticidade, soubesse se transformar, se reinventar e, finalmente, sobreviver ao segundo conflito mundial, como ele havia feito, por sinal, em relação ao primeiro” (AUDOIN-ROUZEAU, 2013, p. 244). No que diz respeito à Revista da Semana, tanto a masculinidade truculenta e brutal quanto a virilidade comedida encontram abrigo em suas capas. Tal tensão entre o modelo de homem racional e o seu paradigma violento se materializa, especialmente, em uma divisão de pautas, que compõem as principais temáticas da publicação: quanto ao primeiro termo, destacam-se as capas relacionadas ao mito viril-militar; no que concerne à segunda, as imagens que destacam crimes hediondos, como esmiuçaremos a seguir. Tais temáticas/pautas dificilmente apareciam juntas na mesma capa. Elas compõem, contudo, uma estrutura editorial de afetos que se complementam e formam um circuito de emoções bastante específico e historicamente marcado no jornalismo. A potência viril materializada na figura do militar, na Revista da Semana, se expressava sempre a partir de um certo comedimento racional, que se expressava em uma valorização da “virilidade casta”, em articulações em que “todas as virtudes ligadas ao estereótipo reencontram-se: a coragem física e moral, evidentemente, mas também a honra, o respeito absoluto pela palavra acordada, o pudor dos Capa da edição de 26/10/1902 sentimentos, a solidariedade infa-

24

ELIZA BACHEGA CASADEI

lível e o amor dos camaradas” (AUDOIN-ROUZEAU, 2013, p. 245). Tais características expressavam-se na Revista da Semana, principalmente, pelas características principais de composição adotadas nas imagens das capas, que conotam alguns sentidos culturalmente bem demarcados. No que diz respeito às técnicas adotadas, o predomínio dos planos médios nas fotografias individuais e a totalidade de uso de ângulos retos e do equilíbrio estático conotam não apenas a firmeza do corpo, mas fundamentalmente, a robustez do caráter do retratado, consubstanciado em conotações presentes nas suas expressões faciais e em suas postura corporal. O militar é exaltado como uma das figuras exemplares da sociedade e como modelo de masculinidade a ser adotado. Ainda em relação à predominância do ângulo reto e do equilíbrio estático, é necessário considerar que se trata também de um diálogo com o padrão de beleza em voga na época. “Durante anos, o sentimento de ‘estar a vontade’ careceu dos charmes atuais. Tendia a ser um atestado de excentricidade, quando não de doença”. Dessa forma, “uma aparência descontraída não era reconhecida como sedutora, podendo denotar desleixo ou indesejada rusticidade. A contração da postura (e isso valia para várias idades e ambos os sexos) indicava elegância e primor” (SANT’ANNA, 2014, p. 23). Outra característica composicional que pode ser observada é a valorização da solidariedade que liga os combatentes entre si e à uma “efusão viril que vincula (...) pessoas que vão juntas ao combate”. A união do grupo e sua disciplina é entendida como uma força moral que o indivíduo entrelaça ao restante de suas contribuições para com a sociedade. Na Revista da Semana isso se materializa na quantidade expressiva de imagens que mostram os militares em conjunto, em comemorações e festejos principalmente, sempre a partir do uso de planos gerais, com ângulos retos e equilíbrios estáticos, que conotam simbolicamente força e solidez para a fotografia. Um dado digno de nota no que se refere às capas da Revista da Semana diz respeito ao fato de que aquelas que representam mais de uma pessoa (ou uma coletividade) são predominantes em relação àquelas em que figuram personagens sozinhos. Isso mostra que o projeto editorial da revista valoriza mais as relações pessoais estabelecidas do que as personalidades

25

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

Capa da edição de 12/01/1902

Capa da edição de 06/07/1902

tomadas em sua individualidade. Esse dado também informa sobre a masculinidade urdida nas capas: um homem é aquele que sabe manter contatos e relações e é também sobremaneira julgado por elas. A masculinidade militar da Revista da Semana também urde uma relação bastante específica com a morte. Audoin-Rouzeau (2013, p. 244) aponta o “saber morrer” como uma dessas esferas de plasticidade do mito viril-militar, com o culto de uma morte bem morrida, merecida tanto em virtude do sofrimento quanto das boas intenções das ações realizadas em vida e em combate. Tal faceta explica grande parte das capas ligadas ao jornalismo comemorativo na Revista da Semana que, muitas vezes, fazia homenagens a militares mortos ou, ainda, mostrava monumentos ligados ao combate em suas capas. A morte bem morrida, assim, se articula a ode de uma vida bem vivida, de acordo com certos padrões morais e regras bem estabelecidas. O saber morrer também se estendia a outras homenagens fúnebres, mesmo aquelas não vinculadas a militares. É possível dizer, portanto, que a masculinidade militar posta como produto na Revista da Semana em seus primeiros anos, articulava-se em

26

ELIZA BACHEGA CASADEI

Capa da edição de 12/01/1902 Capa da edição de 06/04/1902 Capa da edição de 02/03/1902

torno da firmeza dos valores morais, da solidariedade e hierarquia que une os combatentes entre si e do saber morrer. Há, contudo, um outro lado do mito viril materializado pela Revista da Semana que se coaduna a valores bastante diversos: junto a essa masculinidade racional, comedida e regulada em um conjunto de normas, é possível encontrar formas mais violentas, bestiais e truculentas de sua expressão. Assim, a grande frequência de pautas relacionadas a crimes na Revista da Semana também participa de um outro modelo de virilidade, com características bastante específicas que, se coaduna a um projeto afetivo-editorial da publicação e a um sistema bastante específico de valores. As fronteiras entre a violência legítima e a inaceitável sempre formaram linhas tênues. Sobre essa questão, Kalifa (2013, p. 302) comenta que o mito do homem criminoso sugere algo além de um mero pertencimento a uma sociedade dos meninos maus ou dos homens infames e, sim, informa sobre traços constitutivos da masculinidade ocidental e sua valorização. Os valores ligados ao homem criminoso é, nesse sentido, capaz de estruturar um microcosmo que forja uma identidade e uma cultura a partir dos quais se cristalizam ideais e esquemas de uma masculinidade tida como desejável e fascinante. Essa questão é ainda mais evidente se pensarmos que tais representações não emergem dos próprios criminosos (de fato, são poucos os registros daqueles que efetivamente escrevem em jornais ou publicam livros),

27

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

Capas das edições de 19/01/1902, 20/01/1092 e 02/02/1902, respectivamente

mas sim, da imaginação dos escritores e jornalistas, de forma que o adjetivo “criminoso” “assinala, sem dúvida, mais as realidades percebidas e impostas do exterior do que as verdadeiramente experimentadas pelos interessados” (KALIFA, 2013, p. 320). O mito do criminoso viril se articula, fundamentalmente, “no entrecruzamento de um saber, de uma moral e de um certo uso das mulheres” onde “surge a figura do homem. Aquele que consegue conjugar esses atrativos com a força física está assegurado de um poder exclusivo. Ele é o homem, livre e independente, que nada poderá atingir, que ninguém poderá constranger” (KALIFA, 2013, p. 317). Na Revista da Semana, a característica composicional central das capas que versavam sobre os crimes é a dramatização da violência, de forma que o homem criminoso é mostrado em ato, exercendo a sua potência transgressora. Não são mostrados apenas retratos dos criminosos ou das vítimas (uma prática bastante comum em diversas publicações do século XIX e início do século XX, no Brasil), mas sim, o criminoso exercendo o seu crime. Tal característica composicional tem uma implicação importante no tipo de afeto mobilizado e na forma de masculinidade evocada. Tal como apontado por Kalifa (2013, p. 306), entre os atributos mais marcantes do homem criminoso na cultura, pode ser destacada a força física e a resistência muscular, de forma que a beleza é apenas uma caraterística acessória e dispensável. Sobre isso, Sant’Anna (2014) aponta que, no começo do século

28

ELIZA BACHEGA CASADEI

XX, “com ou sem modismos, havia uma tendência em considerar os traços faciais harmoniosos como qualidades mais femininas do que masculinas. Em várias regiões do país, concordava-se que a beleza com algum aspecto feroz ou mesmo brutal cabia muito bem aos homens”. Além disso, mostrar o crime dramatizado, em ato, em outros termos, significa mostrar o criminoso exibindo a sua potência física e muscular, bem como sua resistência vitoriosa aos golpes da própria vítima. Tal como apontado por Kalifa (2013, p. 306), no mito viril-criminoso “homem é aquele que suporta e sabe suportar, o álcool como os golpes” (KALIFA, 2013, p. 306), em uma exibição de sua própria potência. A potência viril-criminosa nas imagens da Revista da Semana, portanto, se articulam a partir de uma certa teatralização da imagem que, narrativamente, não mostra o que aconteceu no registro imagético, mas sim, realiza um esforço para mostrar como aconteceu – o que aumenta a evocação dramática do fato retratado (GOMBRICH, 2012, p. 19) e remete a uma série de valores relacionados a um ideal de masculinidade. Além disso, nas fotografias da Revista da Semana, trata-se de uma masculinidade acompanhada de certos objetos de consumo, especialmente das armas, como facas ou revólveres, que funcionam elas próprias como extensões de sua força muscular e virilidade. Há de se observar, também uma certa matriz indumentária que acompanha esses criminosos, de forma que eles são sempre retratados estando bem vestidos, com roupas asseadas, nunca rasgadas e de acordo com certos padrões de moda vigentes. Além disso, ele está vinculado também a um arranjo corporal específico. Como apontado por Sant’Anna (2014, p. 39), a propaganda do início do século reforçava esse estereótipo que “recorria à valorização da força (...) muito mais do que a qualidade da flexibilidade corporal. O corpo do homem belo rimava com a imagem de uma silhueta compacta. Como se nenhum traço de leveza fosse bem-vindo em sua robustez”. O mito viril-criminoso não pressupõe apenas características físicas demarcadas, como também um savoir faire específico. Nesse sentido, não basta portar armas ou um tipo físico, mas sim, saber usá-los de forma correta, servindo-se bem dos músculos e punhos. “Esta é, com toda evidência, a capacidade decisiva, aquela que faz ou desfaz as reputações, alimenta as façanhas, confirma as hierarquias. É o ‘ato de homem’ por

29

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

excelência” (KALIFA, 2013, p. 308). A dramatização da ação criminosa nas capas da Revista da Semana reforça a afirmação desse savoir faire em um ato bem sucedido. Por fim, um outro atributo do mito criminoso-viril apontado por Kalifa (2013, p. 311) refere-se ao desprezo pelas mulheres. A maior parte dos crimes retratados pela Revista da Semana refere-se, justamente, a assassinatos realizados no âmbito familiar, especialmente contra as esposas, de forma que outros tipos de violência não são noticiados com a mesma frequência pela publicação. A masculinidade evocada na figura do criminoso é, portanto, de uma constituição afetiva essencialmente ambígua, na medida em que evoca, ao mesmo tempo, valores que estão na escala moral do negativo, mas também, do desejo, de um savoir faire e de características físicas que podem se tornar desejáveis e positivadas. Por fim, há um terceiro eixo da valorização da masculinidade nas capas da Revista da Semana, referente à valorização de atividades que, na época, pertenciam ao âmbito quase exclusivamente masculino, especialmen-

Capa da edição de 09/06/1901

Capa da edição de 07/12/1902

30

ELIZA BACHEGA CASADEI

te a política e as atividades ligadas à ciência (como a medicina). No que concerne à política, era bastante comum que a revista publicasse retratos dos políticos em suas capas. Eles eram normalmente compostos em plano médio, ângulo reto e equilíbrio estático e serviam como uma espécie de apresentação dessa personalidade. No que se refere ao campo das ciências, era comum que a revista noticiasse congressos e encontros científicos, bem como fizesse a cobertura sobre atividades realizadas em hospitais e centros de pesquisa considerados de excelência. Não se tratava de uma cobertura ligada ao jornalismo científico propriamente dito, mas sim, uma espécie de publicização de boas práticas ambientadas nesses espaços. Tais capas representavam a masculinidade tanto do ponto de vista da valorização de um ideal de beleza quanto de um savoir faire socialmente validado. Sobre a questão da beleza masculina, Sant’Anna (2014, p. 15) chama a atenção para o fato de que “os homens apareciam com pouca frequência nos conselhos de beleza”, porém seria errôneo afirmar que não existisse um certo ideal de beleza que era explorado pelas publicações ilustradas como A Revista da Semana. “Cuidar da barba e do bigode, por exemplo, era tão importante quanto a escolha de um chapéu apropriado e a manutenção da limpeza dos calçados”. Além disso, “muita atenção ao jeito de andar, pois esse denotava macheza, força e distinção ou, então, o contrário. Pomadas para o cabelo e loções perfumadas também agradavam inúmeros mancebos ciosos de um porte firme e forte”. Assim, “para um burguês ‘bem-nascido’, a distinção de classe social tinha que ser expressa em detalhes: o corte de sua casaca, na qualidade de suas roupas, na alvura de seus tecidos”, de forma que “chapéus, cartolas e luvas, para-sóis e leques, guarda-chuvas e bengalas eram acessórios essenciais na construção da imagem de uma ‘dama’ e de um ‘cavalheiro’” (OLIVEIRA, 2010, p. 185). Para além da beleza, impunha-se, ainda, a inteligência como um atributo masculino, representada pelas habilidades necessárias para circulação no mundo da política e da ciência – instâncias consideradas masculinas por excelência na época. As três articulações imagéticas da masculinidade expostas nas capas da Revista da Semana, contudo, não valem apenas por aquilo que elas engendram separadamente. Há um circuito de afetos que amarra os três eixos da

31

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

masculinidade construídos pela Revista da Semana. Tanto no que se refere à valorização do mito viril-militar, do mito viril-criminoso ou do mito viril-político-cientista, há um sistema de emoções que é evocado e, a partir dele, garante-se uma espécie de adesão a valores vinculados a modos de vida validados historicamente, de forma que é possível afirmar que as capas da Revista da Semana em seus primeiros anos forma um projeto-afetivo-editorial urdido a esses personagens-chave. Um dos primeiros aspectos mais notórios nesse projeto-afetivo-editorial diz respeito à evocação do medo. Tal como apontado por Safatle (2016), a gestão social do medo é uma estratégia fundamental da construção da coesão social que encontra uma formulação teórica desde ao menos Hobbes. “Trata-se, principalmente e de maneira silenciosa, de definir a figura do indivíduo defensor de sua privacidade e integridade como horizonte, ao mesmo tempo último e fundador, dos vínculos sociais”, de forma que “se produz a transformação do medo contínuo da morte violenta, da despossessão dos bens, da invasão da privacidade, do desrespeito à integridade dos meus predicados em motor de coesão social” (SAFATLE, 2016, p. 17). As figuras e os modos de vida implicados no mito viril-militar, do mito viril-criminoso ou do mito viril-político-cientista revelam modos de encarnação de medos específicos de uma época histórica. Como nos lembra Safatle (2016, p. 20), “uma encarnação não é necessariamente uma representação, mas um dispositivo de expressão de afetos”, que podem ser unidades imaginárias ou articulações simbólicas. Ora, as duas principais figuras que emergem das capas da Revista da Semana, o militar e o criminoso, são figuras que articulam a masculinidade justamente a partir do medo, uma em complemento à outra. O medo como afeto político, como coloca Safatle (2016, p. 20), “tende a construir a imagem da sociedade como coro tendencialmente paranoico, preso à lógica securitária do que deve se imunizar contra toda violência que coloca em risco o princípio unitário da vida social”, que não vem apenas de um risco exterior, “mas da violência imanente da relação entre indivíduos”. O criminoso, ao se posicionar como figura nefasta, mas principalmente, como um potencial de desejo presente em cada homem, encarna imageticamente a figura do medo imanente a toda relação social. A sua própria figura só pode se articular como objeto de desejo justamen-

32

ELIZA BACHEGA CASADEI

te porque encarna o medo do outro e a vontade de possuir as habilidades necessárias para escapar desse risco potencial do outro (materializado em um bom manejo dos músculos, das armas e das contingências sociais). Como carrega em si ao mesmo tempo o desejo e o asco, o criminoso encarna também a figura a ser combatida (acompanhada do desejo de se livrar do risco potencial do outro). Mas, para que esse criminoso possa ser eliminado, demanda-se a imagem de uma masculinidade outra que seja tão forte quanto essa – daí a emergência da figura do militar, com todos os seus valores positivos encarnados. O militar e o criminoso formam um mesmo complexo editorial-afetivo na Revista da Semana na medida em que o medo não pode se sustentar sozinho enquanto afeto político. Porque “não há poder que se fundamente exclusivamente no medo. Há sempre uma positividade a dar às estruturas de poder sua força de duração”. E, assim, “poder é, sempre e também, uma questão de promessa de êxtase e de superação de limites. Ele não é só culpa e coerção, mas também esperança de gozo” (SAFATLE, 2016, p. 20). Tanto o militar quanto o criminoso carregam em si o medo e a possibilidade de superação do medo em suas figuras. O terceiro eixo da masculinidade engendrada pela Revista da Semana, correlacionada à valorização de atividades consideradas tipicamente masculinas na época como a política e a medicina, funciona na mesma chave editorial-afetiva, posto que fornece soluções para os medos que não podem ser resolvidos apenas a partir do uso da violência, dos músculos e das armas, mas sim, de saberes ligados a áreas específicas da inteligência humana. Uma vez expostos os parâmetros a partir dos quais as masculinidades são urdidas nas capas da Revista da Semana e o complexo editorial-afetivo que é ativado a partir delas, é possível articular, também, certos valores de consumo que estão estruturados a partir disso.

Consumos ativados pelo complexo afetivo-editorial

Nem sempre os afetos são postos como atores relevantes para o entendimento das questões sociais, tal como apontado por Safatle (2016, p. 37). E isso porque “aceitamos que a dimensão dos afetos diz respeito à vida individual dos sujeitos, enquanto a compreensão dos problemas ligados aos

33

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

vínculos sociais exigiria uma perspectiva diferente, capaz de descrever o funcionamento estrutural da sociedade e de suas esferas de valores”. Ao contrário, “os afetos nos remeteriam a sistemas individuais de fantasias e crenças, o que impossibilitaria a compreensão da vida social como sistema de regras e normas”. Para Safatle, contudo, os afetos são mecanismos que não podem ser ignorados do jogo social porque são eles que garantem, em grande medida, as adesões a certos conjuntos de normas que sustentam o vínculo social – e, dentre esses vínculos, as relações de consumo. Mais do que a valorização da deliberação como instância reguladora, portanto, Safatle compreende “a forma como indivíduos produzem crenças, desejos e interesses a partir de certos circuitos de afetos quando justificam, para si mesmos, a necessidade de aquiescer à norma, adotando certos tipos de comportamento e recusando repetidamente outros”. Se o afeto é um componente indispensável para entendermos o consumo em suas interrelações com a comunicação, isso se deve ao fato de que ele é “indissociável de uma dinâmica de imbricação que descreve a alteração produzida por algo que parece vir do exterior e que nem sempre é constituído como objeto da consciência representacional” (SAFATLE, 2016, p. 38), construindo vínculos inconscientes. Quando o afeto não é de todo retirado dos estudos de comunicação e consumo, muitas vezes ela é correlacionado à força das identificações, tomadas como os principais fundamentos dos atos que envolvem a publicização dos bens. Nem sempre essa é a questão que está em jogo, como parece mostrar o complexo afetivo-editorial implicado nas capas da Revista da Semana em seus primeiros anos. É necessário inserir afetos outros, para além do jogo das identificações, que estão pressupostos nas relações entre comunicação e consumo. De um ponto de vista da comunicação social, a mediação de tais afetos se aproxima bastante da noção de convocação nos dispositivos midiáticos (PRADO, 2013). A partir do pressuposto de que, “na sociedade de controle, a biopolítica penetra nos dispositivos midiáticos, não a partir de um supereu repressor, mas de um supereu que incita o gozo” (PRADO, 2013, p. 163), Prado argumenta que se os antigos dispositivos disciplinares atuavam a partir da dualidade da recompensa e da punição, os media já se encontram inseridos em uma nova lógica do poder, que usa o de-

34

ELIZA BACHEGA CASADEI

lineamento de mapas de sucesso e satisfação como articuladores de suas lógicas discursivas. De acordo com o modelo teórico proposto por ele, os meios de comunicação de massa atuam como analistas simbólicos que, a partir de processos de convocação instalados em dispositivos com contratos comunicacionais adequados, prometem aos leitores a suturação imaginária da falta, a partir de narrativas modalizadoras que atuam em nome de um suposto saber sobre o assunto. Tais narrativas, que têm a própria vida como tema, fornecem ao leitor uma espécie de guia para o sucesso, fundamentado em estratégias de visibilidade e voltado para a lógica do consumo. Em outros termos, os media não atuam somente para informar, mas sim, para fornecer mapas cognitivos/semióticos sobre como viver no mundo e obter sucesso a partir dele (PRADO, 2013, p. 107). Se os antigos dispositivos disciplinares atuavam a partir da dualidade da recompensa e da punição, os media já se encontram inseridos em uma nova lógica do poder, calcada em tecnologias (discursivas) da felicidade. Em outros termos, a convocação diz respeito a um mecanismo editorial-afetivo que remete a uma falta imaginária como forma de articular e vender uma determinada receita de felicidade, baseada tanto em produtos de consumo propriamente ditos quanto em modos de existência socialmente validados. Em outros termos, a jornalismo forneceria (imaginariamente) aos seus leitores o savoir faire necessário para que ele possa se movimentar e obter sucesso dentro desse modo de vida legitimado e construído a partir de um circuito de normas e afetos. No jornalismo, “a convocação diz ao leitor: você só precisa de um programa e de um mapa para bem-viver, para achar seus objetos perdidos, para reencontrar-se, para encontrar seu par, para fazer seu par gozar juntinho com você, para ter o máximo sucesso na vida, no trabalho, na vida amorosa” e, assim, o enunciador (a própria revista) “é o sabedor que mostra os modos de obter tudo isso sem enfrentamento desse antagonismo fundamental da linguagem e da vida, que Agamben chama de o ‘Aberto’” (PRADO, 2010, p. 70). Isso posto, é possível perceber que o complexo afetivo-editorial da Revista da Semana em seus primeiros números fornece também convocações sobre como essa masculinidade ideal pode ser alcançada. A masculinidade é um produto à venda na Revista da Semana não apenas pelo apelo

35

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

à virilidade em si, mas, justamente, porque seu projeto editorial promete oferecer conhecimentos e habilidades necessários para que essa imagem de masculinidade possa ser atingida. E o que deve saber esse homem projetado pela Revista da Semana? A resposta a essa pergunta se encontra no conteúdo das páginas internas da publicação, que oferece um sistema que integra conhecimentos necessários, recreações validadas e um tipo ideal de mulher que deve estar ligada a esse homem idealizado. Primeiramente, um bom conhecimento literário – durante os primeiros anos, a maior parte do conteúdo da Revista da Semana esteve relacionado à publicação de contos, crônicas, poesias e fragmentos de romances. Depois, um bom conhecimento do poder, especialmente no que concerne às relações estabelecidas – muitas das fotografias das páginas internas retratavam políticos com suas famílias (em uma espécie de colunismo social), em reuniões de trabalho (posto que era importante saber quem se relacionava com quem) ou em caricaturas (o que expressava um certo senso crítico). Por fim, um conhecimento cultural vasto, especialmente em relação à programação de teatros, a cobertura de esportes e das atividades dos clubes esportivos e as novas descobertas da ciência e da medicina. De uma forma geral, uniam-se no conteúdo interno da Revista da Semana algumas formas de recreação masculina – especialmente aquelas que “exprimiam ao mesmo tempo a potência, o desejo e a dominação do corpo viril” (KALIFA, 2013, p. 309) como os esportes, o teatro, a cobertura dos crimes e das atividades nos clubes – e determinadas competências orais ou discursivas – um certo saber comentar sobre assuntos de interesse cultural e político mais amplo. Os signos do consumo, portanto, são evocados na Revista da Semana a partir de uma construção moral e afetiva da masculinidade que se materializa nas capas e são ramificados em seus conteúdos internos. Há, contudo, uma outra questão que emerge: conforme colocamos anteriormente, a Revista da Semana possuía uma grande parcela de leitores do sexo feminino, o que pode causar um certo estranhamento diante desse circuito de afetos bastante relacionado à masculinidade em seu projeto editorial. A figura feminina, nos primeiros anos de publicação da Revista da Semana, é convocada pela via do masculino – como a projeção do

36

ELIZA BACHEGA CASADEI

desejo e do olhar do outro e não por si mesma. O conteúdo especificamente feminino da revista se resumia à parte de moda – que em si já conota a construção da mulher desejável em termos de uma matriz indumentária. Todo o processo de convocação da revista, contudo, se articulava em torno de masculinidades construídas e as demais esferas afetivas da vida social eram projetadas em torno desses valores. Para as mulheres, a revista fornecia imaginariamente o que ela deveria saber para a manutenção dessas masculinidades consolidadas e seus modos de vida validados. Essas relações genéricas irão mudar na própria Revista da Semana ao longo dos anos seguintes, conforme esmiuçaremos nos próximos tópicos, mas essa é uma configuração constante na primeira década da publicação.

A sátira pictórica política e a escala dos valores morais

A partir do final da década de 1900, a Revista da Semana passa a dar uma ênfase acentuada para os assuntos políticos, sem abandonar os padrões de masculinidade articulados no início do século na publicação. Tratava-se de uma política, contudo, estruturada a partir de dois eixos: a saber, (1) como colunismo social e (2) como sátira pictórica. Destaca-se também o fato de que o material imagético aumenta em proporção ao textual, ocupando a maior parte das páginas da publicação. No ano de 1910, por exemplo, das 45 capas que compunham o material jornalístico publicado pela Revista da Semana, 80% era composto por pautas de cunho político e os outros 20% estavam relacionados ao jornalismo comemorativo – 44% dele relacionado a algum evento militar. Do conteúdo político, a grande maioria, 76%, era composta por caricaturas. O restante era composto por retratos ou gravuras de políticos – o que figurava como certo colunismo social político, pois apresentava o rosto das personalidades que frequentavam os círculos do poder. Há, ainda, alguns dados interessantes que podem ser derivados aqui. No que concerne aos personagens que habitavam essas imagens, os homens ainda figuravam a maioria das capas e de forma ainda mais radical do que no período anterior. Do total de capas, 87% continham homens e apenas 13% mulheres. Ainda no que se refere a isso, as mulheres presentes na capa eram de uma natureza imagética

37

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

Capa da edição de 13/06/1910

Capa da edição de 31/07/1910

bastante específica: nenhuma delas representava pessoas identificáveis pelo nome, mas sim, processos e metaforizações da política como “a câmara” ou “a política” em si. Os homens retratados, por sua vez, embora aparecessem muitas vezes como metaforizações de processos e instâncias políticas, não estavam restritos a esse tipo de representação: em 40% das capas trata-se de personalidades que podem ser identificadas pelo nome e em 60% de caricaturas que representam processos ou instâncias. A disparidade entre homens e mulheres pode ser justificada pelo isolamento feminino das esferas políticas mais amplas (nem o voto das mulheres era ainda permitido), em um projeto editorial que privilegiava um campo que era ocupado exclusivamente por homens. A exclusão das mulheres da esfera política, nesse ponto, pode ser observada graficamente na Revista da Semana. As relações e laços também perdem um pouco a força nesse período – em 68% das capas, as personalidades retratadas aparecem sozinhas, em contraste com o observado no início do século.

38

ELIZA BACHEGA CASADEI

No que diz respeito às técnicas de composição mais comumente utilizada, alguns traços se mantém: há a predominância dos planos gerais, em 59% das capas, e médios, em 30% delas. Há a introdução de alguns closes também, em 11% das publicações. O ângulo reto também é utilizado em todas as composições e o equilíbrio estático predomina em relação ao dinâmico – em 70% das capas. Nesse ponto, é importante pontuar que a predominância do plano geral conota que o projeto editorial da revista não estava tão interessado no personagem político isoladamente, mas sim, na inserção do personagem em uma relação contextual mais ampla – ou seja, em interação com o cenário e com o contexto expandido. O uso predominante do ângulo reto e do equilíbrio estático conotam seriedade e dureza na composição da imagem. A caricatura política e o colunismo social se imbricavam na Revista da Semana a partir do compartilhamento da celebração de valores comuns, conforme discutiremos a seguir. Embora a política fosse o assunto predominante nas capas nesse período, o colunismo social mantinha-se como temática central das páginas internas, em uma simbiose entre crítica política e educação moral no projeto afetivo-editorial urdido pela publicação nesse período. A caricatura na Revista da Semana segue uma tradição já presente na imprensa brasileira desde o século anterior. Embora a caricatura e a charge política tenham sua origem, de acordo com a historiografia da área, no século XVII, na Itália, a partir do século XIX, no Brasil, já é possível observar todas as características próprias que compõem o universo conceitual da linguagem caricatural ainda hoje presentes no gênero. O termo caricatura deriva-se justamente da ideia de carregar, que “tem o sentido de exagerar, de ressaltar determinadas características do retratado, sempre com intenção crítica e zombeteira. Significa fazer carga contra alguém, ou seja, atacar. A versão francesa do conceito, charge, expressa com mais nitidez essa ideia: carga” (MOTTA, 2006). As primeiras caricaturas brasileiras disponibilizadas para o grande público datam de 1830, especialmente ligadas ao nome de Araújo Porto Alegre (MOTTA, 2006). Nesse momento, já é possível observar algumas características distintivas do gênero como o alcance popular e abrangente dado pela composição de desenhos compreensíveis para o grande público

39

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

feitos a partir de técnicas como a evocação a metáforas simples e arquétipos tradicionais. Observa-se também a tradução de acontecimentos e personagens políticos em imagens simples e cômicas, com a transposição de conceitos abstratos para soluções imagéticas de alcance popular. Assim, a caricatura, para Motta (2006, p. 18), “contribui para desmistificar e dessacralizar o poder, mostrando líderes e chefes de estado como seres humanos falíveis e, eventualmente, ridículos. Ao mesmo tempo, torna os assuntos políticos menos misteriosos e mais próximos do universo de compreensão do público”. Para Motta (2006), a incorporação do gênero caricatural e da charge política pela imprensa é uma das evidências de sua forte raiz popular. Se, no início, as sátiras políticas gráficas eram impressas em folhas unitárias e oferecidas ao grande público especialmente por vendedores ambulantes, a grande procura por tais produções fez com que elas fossem incorporadas pelos periódicos logo na primeira metade do século XIX, muitas vezes com publicações especialmente dedicadas ao gênero. É a partir de 1844 que elas são incorporadas às publicações, em títulos como Lanterna Mágica, embora seja apenas a partir de 1860, com a fundação de A Semana Ilustrada, que o gênero passe a obter uma relevância mais acentuada. “Efetivamente, a caricatura veio preencher o espaço da comunicação doméstica. Em sua primeira fase (1844-1895) revelou um caráter combativo, e nos melhores casos, uma intensa participação na vida social e política do Segundo Reinado. Marcou uma nova posição do artista em relação à sociedade” (BELUZZO, 1992, p. 210). A caricatura adapta-se ao discurso jornalístico ao funcionar como crônica política, coadunadas às vertentes ideológicas dos veículos. O Diabo Coxo, de Ângelo Agostini, fundado em 1865, destaca-se como o primeiro jornal de caricaturas publicado em São Paulo, consolidando a crítica política e de costumes a partir do humor gráfico. Para Sodré (1999, p. 179), a caricatura chega à imprensa brasileira em um de seus momentos mais difíceis: “trata-se da fase intercalar, em que, vagarosamente, surgem alterações específicas e técnicas, preparando a imprensa dos fins do século, quando os problemas políticos voltam a primeiro plano e empolgam novamente e empolgam novamente a escassa opinião existente”. A caricatura, para ele, surge como um novo impulso de um

40

ELIZA BACHEGA CASADEI

jornalismo político em um contexto em que os jornais de opinião perdiam a força e eram relegados a um segundo plano. No início do século XX, a sátira política gráfica brasileira se moderniza. De acordo com Lima (1963, p. 140), há nesse período “o aparecimento quase simultâneo de três artistas que iriam dominar durante quase meio século no campo da sátira gráfica, Raul Pederneiras, o popularíssimo Raul, Calixto Cordeiro (K.Listo) e J. Carlos”. Todos esses artistas contribuíram com a Revista da Semana. Assim, “surgindo a pequeno intervalo, os dois primeiros em 1898, e em 1902 o último, forma esses três grandes artistas do traço cômico que realmente nacionalizaram a caricatura brasileira, pelo caráter nitidamente regional no seu sentido mais alto – do que revestia sua arte”. Nesse período, a sátira ferina combinada com os ataques pessoais cede espaço a uma caricatura mais reflexiva (MIANI, 2012). Sobre a valorização da sátira política na Revista da Semana, é possível dizer que ela se imbuía de um forte caráter moral, relacionado à valorização de um ideal de sociedade e de uma escala de valores determinada que, muitas vezes, se afirma pela sua negação. Tal caráter moral, contudo, se afirma menos como uma característica específica das produções individuais da Revista da Semana e mais como uma estruturação de gênero, de forma que a escolha de valorizar esse tipo de produção se coaduna a um projeto editorial específico que desenha um universo de consumo. Para detalharmos tais questões, é necessário considerar que o gênero da caricatura política, para Gombrich (2012, p. 190), possui algumas características importantes. A primeira delas, seguindo o pensamento de Ernest Kris, refere-se ao fato de que “a sátira pictórica se apoia nessa oscilação entre a realidade e o sonho, entre o mito e a metáfora, para obter o seu efeito” a partir de um mecanismo que utiliza “’a regressão a serviço do ego’, ou seja, uma exploração consciente de um mecanismo inconsciente” a partir da expressão de impulsos hostis. Assim, embora a caricatura não se refira ao ato de ferir fisicamente uma pessoa, busca-se machucar sua persona, ou seja, “sua posição na rede de convenções culturais”, “a soma de todos os valores e crenças compartilhadas que garantem a posição de uma pessoa” (GOMBRICH, 2012, p. 193). A caricatura, para Gombrich (2012, p. 193) é mesmo mais um capítulo dos “anais da crueldade humana” que “registraram incontáveis métodos para desonrar uma pessoa, desde o vitorioso que põe

41

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

o pé sobre o pescoço do derrotado ao ato de leva-lo ao local de execução ou ao pelourinho, além de exposições semelhantes ao escárnio e à desgraça públicos” a partir do acionamento de uma rede de valores imaginários. A eficácia da produção do escárnio em uma sátira política gráfica, portanto, depende de certo acordo sobre uma escala de valores determinada, sua hierarquização e ativação por meio de um desenho simplificado. Não há, portanto, caricatura que funcione fora de um universo moral desenhado por uma escala de valores acordados socialmente. É sob esse ponto de vista que é possível dizer que a eficácia de uma caricatura, não apenas depende do acionamento de um sistema de mitos, memórias e metáforas compartilhados socialmente, mas sim, está subordinado a uma predisposição de aceitação do público e, assim como outros rituais sociais, funciona como uma forma de reforço dos vínculos e valores comuns que mantém um grupo de pessoas unido. Ela não é um mecanismo de convencimento, mas sim, de reforço e de mediação dos limites de pertencimento. A predisposição de superioridade do próprio grupo de pertencimento em relação a outros é um dos mecanismos básicos do deboche, de forma que “a sátira pictórica tem contribuído para essa noção bastante tola de superioridade ao reforçar o estereótipo que determinado grupo tem de si mesmo e dos demais” (GOMBRICH, 2012, p. 196). A caricatura, assim, não apenas remete a uma escala de valores, como também (e, talvez, principalmente), atua no reforço dos valores de grupo, evocando premissas elogiosas para o grupo de pertencimento e, complementarmente, expondo valores negativos para o considerado o outro. Na caricatura, o deboche e a depreciação do outro servem como uma forma de auto-valorização do próprio grupo e da estruturação de valores que esse grupo se auto-atribui. Quando associada ao jornalismo e à crônica política, deriva-se dessa característica o fato de que a sátira política pictórica tem muito pouco poder de convencimento, de forma que a sua função é menos argumentativa do que de síntese. De acordo com Gombrich (2012), ela funciona como uma metáfora para comentar os tópicos do dia, de forma que “ela se baseia em um público que aprecia a astúcia da comparação que não consegue explicar uma situação, mas a resume” (GOMBRICH, 2012, p. 198). É nesse sentido que “o mais característico”, portanto, “da sátira pictórica é

42

ELIZA BACHEGA CASADEI

seu conservadorismo, ou seja, a tendência de se basear no velho estoque de motivos e estereótipos”. E, assim, “esses motivos podem ocupar o lugar do mito comunitário, servindo para nos reassegurar a forma de uma explicação” (GOMBRICH, 2012, p. 199). A sátira política pictórica, nesse sentido, se direciona muito pouco para aquele que é objeto do deboche, estando direcionada para a exaltação dos valores e pré-concepções daqueles que a consomem. “Em geral, para o sátiro político, é mais importante lisonjear o público, não incitar o ódio. A receita do sucesso é (...) infle seus egos, confirme seus preconceitos e, acima de tudo, diga-lhes para não se preocuparem” (GOMBRICH, 2012, p. 209). Para resumir a ideia, Gombrich (2012, p. 210) evoca a resposta dada pelo cartunista Nicholas Garland, em uma entrevista para o The Independent, no final da década de 1980: Nunca, jamais, penso nos cartuns políticos como uma maneira de influenciar pessoas... Acho que eles fazem outra coisa. Os cartuns dos quais me recordo mais são aqueles que, muito sucintamente, expressam algo que eu já sabia, mas de um modo que me é bastante acessível (...) [O cartum] simplifica questões políticas normalmente muito complicadas em imagens fáceis e até infantis. Ele cria um pequeno mundo onde todos os tipos de questões que nos afetam de maneira bastante séria podem ser reexaminados. Às vezes tem o efeito de diminuir nossa ansiedade em relação a elas...

A sátira gráfica política na Revista da Semana, nesse período, atende justamente à reafirmação de valores de grupo, ao condenar às más práticas políticas, estabelecendo uma hierarquia de ações condenáveis, condensadas em uma imagem de fácil entendimento. As caricaturas estão a serviço de uma educação moral própria à época, que aponta o dedo para as más práticas. Ao privilegiar a caricatura em seu projeto editorial, nessa fase, a Revista da Semana compõe um complexo editorial-afetivo a partir do qual os valores de seus supostos consumidores são celebrados e ratificados, evocando mecanismos de identificação mais amplos ao homologar valores comuns e uma moral política comumente aceita. Ao observarmos os temas mais recorrentemente abordados nessas charges, é possível delinear um complexo afetivo de práticas condenáveis.

43

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

A dissociação dos sentimentos evocados da imediaticidade e efemeridade das pautas tratadas revela certos conjuntos de sentimentos negativos que são constantemente abordados. A crítica ao ato de enganar os outros é o tema mais recorrentemente reportado nos desenhos, com uma incidência de 36% do total das charges do período. Ela está especialmente direcionada aos políticos e abarca desde fraudes eleitorais até o ludibriamento do outro nas negociações da política internacional. O uso de expedientes políticos para a trapaça é, portanto, um eixo central das narrativas afetivas engendradas pela Revista da Semana e une seus consumidores tanto em torno da crítica desse tipo de comportamento quanto em termos da imagem que é feita da política brasileira no período. Seguido a isso, a crítica mais comumente posta nos desenhos está direcionada aos excessos cometidos pelos políticos (com 20% das incidências), o que se manifesta em um uso massivo de hipérboles nos traços. A ira descomedida, a exaltação e o furor são, portanto, comportamentos também tidos como indesejáveis pela revista. Em terceiro lugar, há a crítica ao uso da máquina pública para a obtenção de benefícios pessoais, em 18% das charges. Outras articulações afetivas importantes nos desenhos referem-se à ganância dos políticos (tema de 10% das charges), à morosidade de suas ações (8,1 das incidências) e a falta de inteligência em alguns de seus atos (6%). Tais recorrências, portanto, indicam não apenas uma reincidência temática, mas sim, a estruturação de um repertório de afetos condenáveis historicamente marcado. Tais afetos mediam uma imagem de sociedade compartilhada e facilmente identificável por meio de traçados estereotipados. É nesse sentido que a sátira pictórica política e o colunismo social da Revista da Semana estavam, nesse período, a serviço de um mesmo projeto-editorial-moral. Se a exaltação dos valores de grupo conhece a sua face negativa por meio do escárnio na sátira política, a sua face positiva se dará por meio de uma cobertura da alta sociedade ligada ao colunismo social. O espaço para o colunismo social ganha prevalência no conteúdo interno da publicação. Em edições sorteadas do ano de 1910 é possível observar isso de maneira clara. Na edição de 23 de janeiro, as pautas jornalísticas diziam respeito a um perfil de Joaquim Nabuco, à cobertura de

44

ELIZA BACHEGA CASADEI

festivais artísticos e da agenda cultural, o acompanhamento dos membros da colônia portuguesa que estavam em um cruzador português ancorado no Rio de Janeiro (acompanhado de uma reportagem sobre a tripulação de outros navios), uma reportagem sobre um congresso de irrigação nos EUA com a presença de brasileiros, um perfil da família Baeta Neves, um perfil do 4o Posto de Socorros Policiais, a cobertura de uma festa de um grupo de alunos do Externato Gonçalves e de outras escolas de elite, uma reportagem sobre moda para mulheres, os falecimentos da semana e movimentação artística e esportiva dos clubes mais proeminentes. O direcionamento desses assuntos enquadrava-se nos parâmetros mais amplos do colunismo social, com especial atenção para o comportamento, ação e curiosidades sobre as pessoas envolvidas. Trata-se de uma estrutura de elaboração de pautas que irá permanecer, ao longo do período, nas outras edições da revista. A cobertura do dia a dia de alguns espaços de elite – como os principais colégios, clubes e teatros – é exaustivamente exposto. Como observa Patroclo et alii (2015) em relação à cobertura do colégio Pedro II na Revista da Semana, estavam presentes “desde as cerimônias de formatura, as festividades cívicas, a eleição da aluna mais bonita ou um almoço dos professores com uma autoridade governamental”. Além disso, “também eram dedicados amplos espaços a homenagear e a preservar o passado do Colégio de Pedro II”. A partir dessas pautas, é possível perceber que o eixo que organiza a estruturação de pautas da Revista da Semana no período é, a partir do colunismo social, empreender um elogio às boas práticas. As boas ações eram encontradas pela Revista da Semana nos consultórios médicos, nas escolas, nos clubes esportivos, nas festas da alta sociedade, entre outros espaços. Tal cobertura construía um ethos para a elite brasileira do início do século, exaltando as suas supostas qualidades intrínsecas, em um projeto afetivo-editorial que colocava a educação moral como ponto nodal de sua estruturação. De fato, a revista era a face mais visível de um Brasil cuja construção da imagem de si estava toda voltada para o progresso, de forma que a revista insistia na veiculação dos ícones da modernidade. A denúncia e a preocupação social, embora já de longa data fizessem parte das preocupações centrais da imprensa brasileira, eram temáticas reservadas aos

45

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

jornais que faziam delas as suas matérias-primas. De fato, a Revista da Semana deve ser inserida dentro do contexto da ecologia informativa de sua época que, desde o final do século XIX, estipulava uma divisão de trabalho bastante clara entre os jornais e as revistas que delimitava, de uma maneira geral, os programas dos periódicos. “Aos jornais, a matéria política; às revistas, a literatura, as modas, o entretenimento” e, como explicita Martins (2001, p. 126), se nos primeiros “os jornalistas assumiram o papel de paladinos da verdade, colocando-se num olimpo intocável de fornecedores de opinião, apartidários, sendo ‘intérpretes de um poder impessoal’, o que justificava a sua atuação crítica e contestadora aos atos do governo”, à revista coube um papel muito diferente. A ela, restou-lhe o papel de “sorriso da sociedade” (MARTINS, 2001, p. 126). Des Hons (1987, p. 27) descreve essa primeira geração de revistas brasileiras como publicações que visavam espelhar o que de mais distinto havia na sociedade. “Mesmo que estas revistas fossem endereçadas a um público variado, que incluía a burguesia e a classe média, elas ainda eram impregnadas pelo elitismo cultural, marca da imprensa do século XIX”. E, assim, “o emprego de uma linguagem pesquisada, o cuidado com as ‘belas letras’, o conformismo moralizador, o interesse pelos acontecimentos mundanos dão seu estilo a essas revistas do entreguerras”. Para ele, trata-se de revistas que são profundamente vinculadas a uma sociedade burguesa segura de seus valores, de forma que “um leve esnobismo em relação à província e às classes populares, uma preocupação com os bons costumes, referências às discussões mundanas da época ou às intrigas dos gabinetes ministeriais, em suma, esses magazines indicavam tudo o que se devia saber para fazer parte da ‘boa sociedade’”. Já Velloso (2006, p. 329) interpreta essa questão a partir da perspectiva de que as revistas ilustradas se posicionavam como veículos operacionalizadores do moderno, como produções que buscavam, a partir dos diferentes textos, familiarizar o leitor com as rápidas mudanças sofridas pelo país na época. Enquanto “órgãos de ponta na construção, na veiculação e na difusão do ideário moderno” (VELLOSO, 2006, p. 316), esse posicionamento se refletia desde as temáticas escolhidas como pauta – “as revistas de críticas e de costumes que proliferavam pela cidade (...) abrem espaço para o footing na Avenida Central, para as festas na Beira

46

ELIZA BACHEGA CASADEI

Mar, para os torneios que reúnem as elites mundanas” (BARBOSA, 2007, p. 57) – até o acabamento gráfico da publicação e a finalização estética do texto – “lidando com público diverso daquele dos jornais, empenhavam-se em cooptar leitores para o sucesso de seu empreendimento, experimentando as modernas formas de comunicação técnica e visual, ensaiando novas estéticas literárias e representando grupos sociais e institucionais que buscavam sua representação” (MARTINS, 2001, p. 126). É a partir dessa ordem de coisas que Martins (2001, p. 127) comenta que, embora os relatos de censura e empastelamento de periódicos fossem bastante comuns no período, esses atos não atingiram as revistas de uma maneira geral. E isso porque “na sua maioria, as publicações consolidaram representações propagadoras dos valores do novo regime, quando o espetáculo republicano ocupou as páginas higienizadas daquele periodismo”. Suas imagens “confirmavam a utopia da Ordem e do Progresso configurada nas paradas militares e recepções a políticos ilustres, em cenas valorizadas pela arquitetura monumental que brotava na placidez das praças e jardins e na pujança da indústria ao retratar suas instalações e maquinário modernos”. Pautas como “os pic-nics bucólicos na Cantareira, as tardes elegantes no hipódromo da Mooca, os passeios pelo Triângulo, no rigor da moda, completavam o ‘passar em revista’ de uma cidade que desfilava sua prosperidade”. O auto-elogio das elites, nesse caso, exercem um papel moralizador na Revista da Semana, como uma espécie de manual das boas práticas e da boa educação, em um projeto afetivo-editorial que combina a exibição dos valores negativos a partir da sátira pictórica política e a exibição dos valores positivos a partir do colunismo social.

A tranformação em uma revista feminina

A partir de 1914, há uma mudança radical no projeto editorial da revista, que deixa se voltar para a sátira política e se torna uma revista feminina. A Revista da Semana deixa de ser uma revista para o público em geral e se dedicará de forma mais pormenorizada às mulheres. Em 1915, ela deixa de pertencer ao Jornal do Brasil e é vendida a Carlos Malheiro Dias, Aureliano Machado e Artur Brandão, que aprofundam essa readequação editorial. De acordo com Peixoto (2001, p. 12), a partir desse período, a publicação foi

47

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

pensada para “as senhoras e moças da sociedade, os frequentadores dos salões abertos para o five o’clock tea e do Municipal” (PEIXOTO, 2001, p. 12). Ou seja, embora fosse uma revista para o público geral e muitos homens, de fato, ainda consumissem a Revista da Semana (com textos destinados a eles), tratava-se de uma revista com um forte consumo feminino. Tal aspecto começa a aparecer nos aspectos composicionais de suas capas. Das 42 capas publicadas em 1914, 74% delas continham mulheres na capa, em contraste com a marcante presença masculina dos anos anteriores. Quanto a essa divisão, é interessante notar que a presença de homens só é expressiva nas capas que noticiam a guerra, de forma que, em todas as outras, a presença de mulheres é dominante. A divisão, aqui, não é apenas temática, mas se expressa também em certos aspectos composicionais. Das capas com mulheres, 64,5% são compostas por personalidades que podem ser identificadas pelo nome – muito embora seus nomes não apareçam necessariamente expostos. Nos outros 35,5%, as mulheres retratadas representam coletividades, processos ou instâncias sociais (as enfermeiras, por exemplo). Além disso, em 77% das capas com mulheres, elas aparecem sozinhas, de forma que é possível inferir que elas passam a ser valorizadas em suas individualidades e não a partir de suas relações no projeto editorial urdido. No que diz respeito às capas com homens, a composição é ligeiramente diferente. Entre estas, em apenas 36% das capas os homens são identificados pelos nomes, ao passo que, nas restantes (64%) eles são representados como uma coletividade ou metaforizações de processos – especialmente vinculados aos assuntos da guerra. Os homens estão em conjunto (acompanhados de outros homens) em 55% das capas (estando sozinhos em 44% delas). Quanto a outros dados da composição imagética, também é possível inferir algumas questões. Nas capas de ambos os sexos, há a totalidade de ângulos retos, porém, nas capas com mulheres, há a prevalência do plano médio (com 58% das incidências) e do plano geral (com 41%). Nas capas masculinas, há a prevalência do plano geral (com 90% das incidências). Isso conota uma valorização do personagem nas capas com mulheres, ao passo que as capas com homens valorizam uma situação (com a interação personagem e cenário).

48

ELIZA BACHEGA CASADEI

Além disso, nas capas com mulheres, há a prevalência do equilíbrio dinâmico (54,8%) em detrimento do estático (45,2%). Nas capas com homens, há a prevalência do equilíbrio estático (em 82% delas). Lembramos, aqui, que o equilíbrio dinâmico sugere uma ideia de movimento e de leveza, em comparação ao equilíbrio estático, reforçando lugares comuns a respeito da constituição da masculinidade e da feminilidade no período. Em 1915, as características descritas se aprofundam. Nesse ano, 88% das capas publicadas tinham mulheres na capa e em apenas 12% havia a presença masculina - e ainda restrita aos assuntos que versavam sobre a cobertura de guerra. Das capas com mulheres, 75% delas possuíam personalidades que podiam ser identificadas pelo nome, ao passo que, dentre as capas com homens, 66% eram relativas a personagens que figurativizavam processos ou instâncias sociais. Além disso, em 86% das capas as mulheres apareciam sozinhas – o que acontece em apenas 50% das capas com homens. Também nesse ano, portanto, há a valorização do feminino nas capas.

Capa da edição de 01/08/1914

Capa da edição de 31/08/1915

49

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

No que se refere às técnicas de composição, também há a predominância do ângulo reto em todas as capas e a maior frequência do plano médio (67%) e do equilíbrio dinâmico (52%) nas capas com mulheres e do plano geral (66%) e do equilíbrio estático (83%) para as capas com homens. Essa guinada para capas com personagens femininas indica um reposicionamento editorial por parte da Revista da Semana que, contudo, não se mostra de forma tão radical no conteúdo interno da publicação. Na edição de 05 de Junho de 1915, por exemplo, é possível observar as seguintes pautas: uma foto da Mme. Laurinda Santos Lobo, as festas das regatas de Botafogo, a soirée íntima do Club 24 de Maio, algumas fotos obtidas à porta do Cine Palais, “o cinema chic da avenida”, reportagem intitulada “Interiores elegantes: a casa de Madame Santos Lobo”, a cobertura social das movimentações políticas da semana, material literário, algumas crônicas de moda, a cobertura sobre submarinos ingleses na guerra, uma fotografia da imperatriz da Rússia, uma reportagem sobre engenhos explosivos, cobertura sobre personalidades brasileiras em Washington, reportagem sobre a companhia edificadora, “um estabelecimento que honra o Brasil”; cobertura fotográfica do “festival do Germânia, em benefício da Cruz Vermelha Alemã”, reportagem sobre reprodução de aves, além de diversas seções de aconselhamento. Como pode ser observado, as pautas não fogem do colunismo social exercido anteriormente, com a diferença de que as mulheres passam a obter um destaque um pouco maior. Uma das mudanças sensíveis pode se observada em relação às colunas, ligadas ao que, na época, se denominava “literatura de aconselhamento”, uma prática comum em várias revistas da época. As temáticas envolvidas nessa editoria iam desde conselhos médicos e de beleza até sugestões de comportamento e consultórios sentimentais. Uma parte importante da Revista da Semana passou a ser destinada, em um primeiro momento, às Cartas de Mulher – crônicas sobre fatos da atualidade assinadas por “Iracema”. Normalmente posta no início da revista, essa seção, segundo Buitoni (2009, p. 60) embora não se destinasse somente às mulheres, se caracteriza justamente por apontar os fatos do cotidiano sob um ponto de vista feminino. A autora destaca um texto, publicado em Novembro de 1918, que saudava o término da Primeira Guerra Mundial a partir do ponto de vista de uma narradora que soube da notícia em uma

50

ELIZA BACHEGA CASADEI

loja de chapéus: “eu me achava numa casa de chapéus, aonde acompanhava uma amiga. (...) Entre as vendeuses, havia uma mulher magra, loira, com vestígios de beleza e vestida de preto, com a aparência de idade em que já se pode ser a mamãe de jovem soldado”. Posteriormente, inaugura-se o Jornal das Famílias – que, segundo a sua própria linha fina, dedicava-se às “modas, costuras e bordados, a vida no lar, receitas e conselhos práticos, economia doméstica e alimentação”. Trata-se de uma seção destinada a dar conselhos práticos, de higiene e de cuidado com a família para as jovens moças. Entre os textos publicados ali, podemos encontrar, por exemplo, colunas sobre conselhos sociais – como em uma edição que anunciava que “os gestos, a maneira de andar e o som da voz revelam melhor e mais completamente o íntimo da personalidade humana do que a palavra, o olhar e o sorriso”. E assim, “duas senhoras da mesma idade, uma de educação fina, a outra de educação vulgar, tem um andar muito diferente e seria impossível confundi-las se estivessem elas igualmente vestidas e enchapeladas” (REVISTA DA SEMANA, 08/10/1921). Na mesma edição, a seção “Preceitos de Hygiene” aconselhava que “o riso é excelente para a saúde e dá um novo vigor a todo o nosso ser. Um riso bem sincero e bem franco dilata os nossos pulmões, ativa a circulação do sangue e dá um tom rosado à mulher que ri”. Além dos benefícios inegáveis à saúde, a revista relata as benesses sociais de um bom sorriso, vinculando o sorriso largo ao sucesso no casamento: muitas vezes um rapaz teme pedir em casamento uma moça cujos lábios finos e cerrados denotam um mau gênio. O homem é egoísta e deseja, sobretudo, o seu bem-estar, tanto físico quanto moral. Ele deseja sempre atingir a felicidade completa e não se cansa de a procurar, tendo a convicção íntima de que o acordo não pode reinar num casal quando a mulher tem mau gênio. A amabilidade, a mulher devia sabê-lo, é uma verdadeira força. Por seu bom humor e sua amabilidade, a mulher toma império sobre seu marido (REVISTA DA SEMANA, 08/10/1921).

As seções de aconselhamento eram mesmo bastante disciplinadoras e mostravam de forma evidente a ideologia conservadora da Revista da Semana. Na edição de 01/10/1921, a coluna Conselhos Sociais explicava

51

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

porque “o que se chama uma moça moderna não é mais que uma falsificação da verdadeira moça” que “perdeu o que fazia o encanto da sua primavera”. Criticando os novos costumes, a coluna dizia às “moças chamadas a seguir o caminho sagrado do casamento” que elas “devem saber em que grandes e magníficos deveres ela terá a honra de empenhar a sua vida. Mas ela pode, tomando consciência do estado de esposa e de mãe, ao qual ela aspira, guardar a sua candura, sobretudo não fazendo alarde de conhecer precocemente aquilo que, por tradição, uma donzela deve ignorar; tal sabedoria é aliás tão deplorável como perigosa”: Em grande parte, o nosso mal atual vem daí: sob o pretexto de desemburrar-se, a moça atira-se no campo da ciência completa do que, por falta de discernimento, resulta muitas vezes a perversão do espírito. Para guardar a alma pura das moças, não lhe deem senão gostos simples. Antes, a entrada na sociedade não se fazia tão cedo; as toaletes de baile eram modestamente decotadas; não usavam joias ricas antes do casamento, nada de meias de seda nem roupas de baixo de luxo, todo o vestuário era simples. Hoje o enxoval de uma menina comporta roupas de seda, em todos os coloridos, ricas rendas, bordados de fadas, joias riquíssimas. O vestido de baile de uma moça moderna só pode servir para afastar os pretendentes sérios. E, muitas vezes, esse luxo não corresponde ao dote nem ao que se chama abominavelmente as esperanças. Os costumes antigos tinham o seu lado bom e o casamento mais estabilidade (REVISTA DA SEMANA, 01/10/1921).

Na edição de 05 de Junho de 1915, é possível encontrar, por exemplo, a coluna Consultório da Mulher, composta por conselhos sobre itens de beleza que devem ser adquiridos, dados pela Mme. Selda Polocka, “a eminente especialista nos tratamentos de pele e de cabelo”. Segundo ela, A cabeça não deve lavar-se com sabão, nem tão pouco com preparados ácidos, que quebram o cabelo, nem com soluções de alcatrão. O Shampoo-Powder é o preparado ideal para uma perfeita higiene da cabeça. Limpa, desinfeta tonifica, remove a caspa, refresca o couro cabeludo. Toda mulher ciosa da conservação e saúde do seu cabelo deve lavar a cabeça de oito em oito dias. Nunca compreendi porque se esquecem tantas mulheres de prestar aos seus cabelos os

52

ELIZA BACHEGA CASADEI

cuidados que tem com o seu rosto. Por isso mesmo seus cabelos embranquecem e caem prematuramente. A limpeza é a vida do cabelo, não me cansarei de repetir. Quase todas as doenças se evitariam com cuidados de higiene (REVISTA DA SEMANA, 05/06/1915).

É possível encontrar, também, a seção “Momento Elegante”, que combinava conselhos práticos da vida (especialmente direcionado a mulheres) com cobertura de eventos importantes: “no domingo, houve uma regata na Bahia de Botafogo. Raras são as festas esportivas que conseguem ter um aspecto tão deslumbrante e tão prodigiosa magia. A tarde, o céu, os morros altos, a verdura, toda a maravilha dispersa da paisagem concorriam para a glória da festa”. Na sequência, o texto comenta o comportamento de mulheres no local: “procurei guardar nas raízes remotas do meu ser a imagem nítida daquela forma singular e perfeita que enchia de graça a festa e a tarde. Fixei-a e ouvi-a. Ela falava ciciante para o companheiro, comentando a tarde bela, a pureza do céu, a alegria da multidão, toda a radiosa mocidade que a cercava” (REVISTA DA SEMANA, 15/06/1915). Os signos da diferenciação e da elegância passam a ocupar grande parte das preocupações da revista, de forma que “a busca dos sinais de distinção estava na ordem do dia, traduzidos por práticas também estimuladas e assimiladas via periodismo. A começar pela vestimenta, seguida das relações de sociabilidade, a ida ao prado, aos recitais” (MARTINS, 2001, p. 382). A moda, por exemplo, ocupava grande parte das colunas de aconselhamento. Em um estudo sobre essa temática na Revista da Semana de 1915 a 1918, Czrnorski e Meyrer (2016, p. 250) apontam para o fato de que a moda aparece, na publicação, como um mecanismo de condecoração social, de forma que o vestir-se bem se configurava como um ato de significação demarcador de identidades e posicionamentos de classe que ultrapassava a mera vestimenta e se espalhava em direção a atos e comportamentos tomados como adequados. “Verifica-se, então, um costume, um comportamento consolidado pela moda vigente que propunha trajes para mulheres – manhã, tarde e noite – para bailes, passeios, visitas, chás, teatro, interior (para o lar), campo, recepções, e cada qual com seus respectivos ornamentos e detalhes”. E, assim, “para o público feminino elitista, consideravam-se certas maneiras de convívio em sociedade

53

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

como regras de etiqueta, cordialidade, saber conversar com as pessoas e ser agradável. O bom gosto da escolha da vestimenta era critério para ser, ou não, considerada distinta”. As seções de moda, portanto, eram acompanhadas por textos que versavam sobre comportamento, vida cotidiana, habilidades domésticas, decoração, cuidados com a beleza, entre outros. Uma certa Europa imaginada compunha o ponto nodal a partir do qual a Revista da Semana organizava seus aconselhamentos sobre moda e comportamento. “A combinação dos adornos, dos tecidos requintados, ter bom gosto na escolha do vestuário seguindo as tendências da moda etc., não bastava para as mulheres das elites cariocas” uma vez que “para ser considerada ‘chic’, distinta e elegante, era necessário ter os ‘trejeitos’ apropriados, saber se comportar em sociedade, frequentar bailes, teatros, os chás de caridade e ter o conhecimento das ‘prendas domésticas’” (CZRNORSKI e MEYRER, 2016, p. 256), em um complexo afetivo-editorial que enfatizava a beleza também como um conjunto de valores morais e habilidades específicas. Para Czrnorski e Meyrer (2016), a qualidade dos tecidos utilizados, tanto no vestuário quanto na decoração do lar, era um importante elemento de distinção nas reportagens da Revista da Semana, de forma que era constante a sua categorização em elegantes ou mais simples. A qualidade do material não raro era correlacionada também às atividades e papéis destinados às mulheres, ganhando um caráter moral. Os ornamentos também eram um fator de distinção relevante e, normalmente, eram acompanhados de descrições sobre os lugares e ocasiões adequados de uso. Os cuidados de beleza também eram importantes, nesse sentido, como fatores de diferenciação social, sendo a manutenção da juventude a principal temática tratada. Não raro, as mães eram tomadas como responsáveis pela manutenção da beleza de suas filhas, como responsáveis pelos cuidados que iriam mantê-las jovens por mais tempo a partir da adoção de um conjunto de práticas. “Esse comportamento pode ser entendido como mais um elemento de distinção entre as classes sociais, contribuindo na construção do arquétipo do chic”, uma vez que “a beleza fazia parte do ‘conjunto’ na construção da imagem das mulheres das classes mais abastadas, diferenciando-as daquelas que não tinham tempo nem capital para tal” (CZRNORSKI e MEYRER, 2016, p. 264).

54

ELIZA BACHEGA CASADEI

Complementarmente a esses aspectos, a revista também criava diferenciações a partir de uma espécie de manual de boas maneiras, que indicava quais eram as leituras adequadas, quais conhecimentos de mundo deveria-se ter, quais as vivências necessárias, os hábitos mais saudáveis, os modelos de educação, entre outros aspectos do comportamento social. “Nesse sentido, as mulheres descritas na revista como chics, elegantes e distintas frequentavam os salões, os bailes, os teatros, as cerimônias importantes, sendo que nesses ambientes, o cumprimento às normas de conduta, designadas para o público feminino, era rigorosamente observado” (CZRNORSKI e MEYRER, 2016, p. 267). Soma-se a essa questão, o ideal higienista da Primeira República. Um corpo limpo e saudável passa a ser valorizado como uma questão importante e é ligado às formas de beleza. É possível notar, aqui, um tensionamento entre a dificuldade de adaptar a moda europeia aos padrões climáticos nacionais (com seus tecidos grossos e pouco confortáveis às áreas tropicais), as dificuldades impostas pelas modas (com seus vestidos longos que se sujavam com facilidade) e tal ideal higienista. Não obstante isso, a ambição do Brasil moderno presente na Revista da Semana combinava certos preceitos de higiene á elegância e sofisticação, mesclando-os aos ideais de beleza. Um dos apelos mais importantes da publicidade do período e das colunas de aconselhamento voltava-se, justamente, à exploração da morte e da doença. “A concorrência entre os fabricantes de remédios fortaleceu a necessidade de recorrer a testemunhas ilustres e a exibir o nome de médicos, mesmo quando o produto anunciado era apenas um sabonete” (SANT’ANNA, 2014, p. 36). Não é por acaso que uma das editorias de aconselhamento da Revista da Semana se chamasse justamente “Consultório da Mulher”, embora pouco se falasse de saúde e muito de beleza nesse espaço. Acompanhado da simbiose entre os modelos de beleza e o ideal higienista, há também uma renovada valorização da aparência jovem. Ao contrário da valorização da tradição e dos laços de sangue que sustentavam parte do imaginário da elite monarquista, a República irá movimentar um trabalho simbólico de valorização do novo, de forma que o combate à velhice conquista um espaço importante da publicidade. “Gilberto Freyre reconheceu que o período imperial havia morrido ‘sob as barbas brancas

55

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

e nunca maculadas pela pintura do imperador D. Pedro II, ao passo que, em seu lugar, resplandeciam as barbas escuras dos jovens líderes republicanos, ávidos pelo poder” (SANT’ANNA, 2014, p. 25). A questão comportamental não vinha sozinha na Revista da Semana, estando associada de maneira orgânica a universos de consumo bastante determinados. Tal como exposto por Martins (2001), cabiam ás mulheres “muitas das decisões de gastos diários. Desde os fortificantes para a prole, dentifrícios para a família, produtos alimentícios, sabonetes de qualidade no apuramento higiênico aos remédios para a ‘saúde da mulher’, produtos largamente anunciados pelas revistas”, tanto na publicidade como nas colunas de aconselhamento. “A aquisição de figurinos era o primeiro passo para a produção dessa nova mulher, atenta aos ditames da moda, via Paris” (MARTINS, 2001, p. 379). Para tratarmos dessa questão, é interessante observar os circuitos de consumo na passagem do século XIX para o século XX. Conforme posto por Stillerman (2015, p. 111), as práticas de consumo sempre foram atravessadas pelas questões de gênero. Ao longo do século XIX, as práticas triviais de consumo eram muito mais associadas às mulheres do que aos homens, uma vez que a elas cabiam os cuidados domésticos e com a esfera do lar, ao passo que as atividades públicas, o trabalho e a liderança eram representados como esferas masculinizadas. O consumo vulgar, feito para o mantimento da casa, era considerado uma atividade menos prestigiada e, por isso, pensada como uma atividade tipicamente feminina. Assim, muito embora as mulheres fossem dependentes financeiramente de seus maridos (e fossem proibidas de uma gama de atividades financeiras como possuir uma conta bancária), elas ainda eram consideradas os principais actantes do mundo do consumo. “As mulheres de classe média compravam usando o crédito de seus maridos, e os comerciantes as encorajavam a gastar somas consideráveis, sabendo que seus maridos seriam obrigados a pagar a conta”. E, assim, estabelecia-se uma triangulação a partir da qual “os comerciantes se aliavam às mulheres contra os seus maridos” (STILLERMAN, 2015, p. 112). Os espaços de comércio eram um dos poucos lugares públicos que permitiam uma circulação feminina mais livre de restrições. Embora o protagonismo feminino no mundo do consumo continue ao longo do século XX, tal regência passa a ser urdida a partir de con-

56

ELIZA BACHEGA CASADEI

figurações diversas. Durante as primeiras décadas, as mulheres passam a ser representadas de uma maneira mais consistente como “especialistas em consumo”, principalmente a partir da ótica de um cuidado com a família e, especialmente, com as crianças. Apelava-se ao senso de responsabilidade das mulheres com a saúde de seus filhos e o bem estar do marido como uma estratégia central de marketing. Tratava-se de um consumo voltado para o outro, tanto no que se refere à satisfação de necessidades familiares quanto para a efetivação de hábitos sobre o que se esperava de uma mulher na época (tais como uma boa manutenção da casa e da higiene da família). Tal estruturação começa a ser esgarçada somente a partir dos anos 1960, com a emergência de maior autonomia financeira feminina. “Historicamente, o consumo feminino foi organizado em torno das necessidades do marido e dos filhos. Frequentemente, a mulher consumia em nome de terceiros em detrimento de si mesma” (STILLERMAN, 2015, p. 113). A partir desses parâmetros, é possível estabelecer que, no projeto afetivo-editorial da Revista da Semana, a mulher era projetada como responsável pelo consumo da casa e, portanto, como fiadora desse conjunto de valores ligados à distinção. O consumo das mulheres, nesse sentido, não estava restrito aos produtos que ela própria consumia, mas sim, ao consumo da família como um todo. Os significados que preenchiam simbolicamente os sentidos distintivos que tais produtos deveriam ter se encontravam na cobertura jornalística que, imaginariamente, preenchiam o que significava ser elegante e sofisticado naquele desenho social. Esse direcionamento do projeto afetivo-editorial da Revista da Semana se mantém até, pelo menos, meados da década de 1930, quando outros pressupostos editorias passam a ser dominantes no mercado de revistas brasileiro.

Relações de consumo e imagens da distinção

As relações de consumo nem sempre se deixam entrever nos lugares mais óbvios. Na Revista da Semana, elas estão mediadas não apenas pelos anúncios que são publicados em suas edições (como lugares em que a evocação ao consumo aparece de forma mais imediata), mas também nas reportagens jornalísticas – não necessariamente no nível dos seus

57

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

conteúdos específicos, mas sim, no complexo afetivo-editorial que é urdido pela publicação. Tal complexo afetivo-editorial é marcado tanto por um projeto editorial específico (comum às revistas ilustradas do período) em associação a mecanismos de convocação que são historicamente marcados. As revistas ilustradas do início do século XX constituíram-se como espaços privilegiados de representação de uma sociabilidade da época, “num momento em que a ascensão de uma classe média e a promoção da vida urbana, contribuía para o surgimento de novos espaços públicos e eventos sociais para atender a demanda desses novos grupos: eventos, recepções, óperas, teatros, dentre outros” (CZRNORSKI e MEYRER, 2016, p. 252), constituindo-se em um mediador importante das relações de consumo. O modelo afetivo-editorial da Revista da Semana está inserido em um contexto em que pautada pela “reestruturação das cidades e do perímetro urbano”, de forma que “os passeios, bailes, chás, eventos de caridade, dentre outros, eram uma forma de socialização. O aumento dos espaços e das redes de sociabilidade levaram à necessidade de um preparo específico para as novas atividades, passando, essa preparação, a integrar a educação formal e informal”. Tal modelo de educação implica em ideais de “civilidade, polidez, relacionado, neste contexto, aos manuais de boas-maneiras, aos protocolos que ‘devem’ ser seguidos conforme as regras da ‘boa educação’”. (CZRNORSKI e MEYRER, 2016, p. 266). Ele materializava-se em variados aspectos, desde a forma de agir (andar, conversar, socializar, vestir) até os conhecimentos de mundo necessários para a socialização nesse imaginário. Eram esses elementos que, de uma maneira geral, formavam o complexo afetivo-editorial da Revista da Semana, ao resumir todos esses aspectos sob o signo da elegância, materializado em imagens específicas. O conceito de complexo afetivo-editorial pode ser melhor delineado levando-se em consideração, tal como Lordon (2015), que as afeições não são características intrínsecas ao sujeito. “Existem, sim, indivíduos e eles experimentam afetos, mas esses afetos não são senão o efeito das estruturas nas quais os indivíduos estão mergulhados” (LORDON, 2015, p. 10). Para o autor, “existem estruturas, e nas estruturas existem homens passio-

58

ELIZA BACHEGA CASADEI

nais; em primeira instância, os homens são movidos por suas paixões; em última análise, suas paixões são amplamente determinadas pelas estruturas”. Para Lordon, os próprios regimes de acumulação do capitalismo, nesse sentido, se exprimem em certos desejos e afetos ou, de forma mais precisa, cada estruturação de acumulação de capital tem uma espécie de estrutura dual composta por um complexo de sentimentos que o sustenta e o reproduz. Para aprofundar essa ideia, o autor recorre à ideia espinosiana de conatus, entendida como uma energia genérica cuja determinação é dada por afecções exteriores, inscritas em estruturas sociais, que a orientam concretamente em direção a um objeto. A energia do conatus, dessa forma, investe em determinados objetos por meio de afecções que estão inscritas em sistemas mais amplos e são socialmente determinadas. “Ela só toma forma escorrendo pelas estruturas sociais, nas formas institucionais e nas relações sociais, que lhe oferecem suas condições concretas de exercício e, por isso mesmo, configuram seus investimentos possíveis, determinando-a para alguma coisa – salvação, glória, fortuna (ou qualquer outro objeto a almejar)”. Para citar alguns exemplos do que o autor chama de formações macrossociais do desejo, é possível evocar “as estruturas do capitalismo, em suas configurações históricas sucessivas, que dão aos homens da era capitalista os objetos em que suas energias conativas se investirão” como “os movimentos dos corpos assalariados, primeiramente, para lutar contra o perecimento, depois, pelas alegrias extrínsecas do consumo mercantil e, enfim, pelas alegrias intrínsecas da ‘vida preenchida’ ou ‘da vocação realizada no e pelo trabalho” (LORDON, 2015, p. 74). Estruturas sociais anteriores teriam oferecido outras estruturações duais de emoções, desejos e recompensas, tal como a glória do combate, as esperanças de salvação e o desejo por magnitude para um grupo social específico no regime feudal. Tais estruturações das emoções e do desejo podem ser mapeadas desde uma escala macrossocial (concernentes ao regime de acumulação capitalista, por exemplo) até circunscrições bem menores, específicas de grupos ou instituições sociais. Trata-se, como posto por Lordon, de uma releitura da noção de campo, de Bourdieu, que não são mais do que realizações concretas de lugares de desejos, imaginários e afetos organizados de forma estrutural

59

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

e compartilhados socialmente. As instituições, aqui, como é o caso da própria imprensa, são compreendidas como os mecanismos por meio dos quais o conatus intransitivo se torna transitivo, ou seja, direcionado a um objeto a partir de uma afeição. São as instituições que dão forma às emoções amorfas e, consequentemente, permitem certos tipos de afetos enquanto barram outros, fornecendo a partilha dos desejos validados e dos não legitimados. Cada instituição tem uma circunscrição e uma extensão próprias (o campo científico só afeta aos cientistas, por exemplo) e, por isso, diferentes capacidades de afecção. Em conjunto, as diversas instituições que atuam sobre um sujeito, em diferentes graus de influência e impacto, irão compor um complexo de afetos que irão se manifestar de maneiras diferentes em cada sujeito – mesmo que compostas a partir de uma base comum para um determinado grupo. Assim, “no plano de fundo de toda interação empregado/empregador particular, há justamente a integralidade das estruturas da relação salarial, com toda profundidade de seu desenvolvimento histórico”, porém, “todo esse desenvolvimento só se realiza na localidade das múltiplas interações concretas concebidas como encontros de objetos determinados” (LORDON, 2015, p. 78). Forma-se, assim, uma “aritmética das composições afetivas”. É esse jogo entre as diversas estruturações sociais da emoção que fornecem, para Lordon, o fundamento da mudança social. Crises institucionais são marcadas, justamente, por mudanças nos afetos, que podem levar a necessidade de reconfiguração dessas mesmas instituições ou, até mesmo, revoluções mais bruscas no sistema como um todo. “Afinal, qualquer instituição não passa de uma estabilização temporária de certa relação de potências”, posto que “o imperium da instituição nada mais é que o afeto comum que ela consegue produzir para determinar que os indivíduos vivam de acordo com sua norma”. Os sistemas são incapazes de estabilizações definitivas justamente porque o complexo de emoções que os sustentam também estão sujeitos a desestruturações, de forma que “o que um afeto comum sustenta, outro afeto comum, contrário e mais potente, pode desfazer”. É por isso que “um estruturalismo das paixões é, assim, necessariamente, um estruturalismo dinâmico” (LORDON, 2015, p. 83).

60

ELIZA BACHEGA CASADEI

Poderíamos, então, responder à pergunta, feita em maio de 1968, sobre se ‘são as estruturas que descem às ruas’. A resposta é: primeiramente os corpos individuais desejantes que descem, mas eles só descem por terem sido afetados de certa maneira na e pelas estruturas, isto é, sem paradoxo algum, eles descem para estarem presos às estruturas que o fizeram descer – e porque elas acabaram lhe parecendo odiosas (LORDON, 2015, p. 84).

Quando aludimos ao conceito de um complexo afetivo-editorial, portanto, estamos nos referindo justamente a uma estruturação de afetos, emoções e desejos que é mediada por um veículo jornalístico específico, a partir tanto da validação de afetos presentes em outras estruturações sociais, quanto a partir dos pressupostos intrínsecos de seu projeto editorial e de suas formas de convocação historicamente marcadas. O complexo afetivo-editorial da Revista da Semana é marcado, justamente, pela valorização dos signos da distinção social, evocando uma estrutura sentimental em que a convocação ao ser elegante era a linha mestra das estruturações do material jornalístico encontrado tanto em termos de escolha de assuntos quanto do enquadramento dado aos textos e às fotografias publicadas. A massificação da fotografia na imprensa brasileira acentuou a importância da aparência física (SANT’ANNA, 2014), mas não era apenas isso que estava em jogo na publicação: embelezar-se, para a Revista da Semana, é um signo de distinção (não é algo ao alcance de todos) e envolve um complexo afetivo-editorial que engloba comportamentos, habilidades e objetos demarcados. A distinção é uma marca constituinte das relações de consumo, tal como explorado por diversos autores clássicos. Para Bourdieu (2007), por exemplo, a constituição do gosto, que é um aspecto determinante em muitos níveis dos atos de consumo, não é aleatória – ela é socialmente determinada e está diretamente vinculada aos sistemas de classificação social hierarquicamente estruturados. O que chamamos de estilo de vida, assim, “é um conjunto unitário de preferências distintivas que exprimem, na lógica específica de cada um dos subespaços simbólicos” como mobília, vestimentas, linguagem etc., “a mesma intenção expressiva, princípio de unidade de estilo que se entrega diretamente à intuição e que a análise destrói ao recortá-lo em universos separados” (BOURDIEU, 1983, p.83).

61

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

Para Douglas e Isherwood (2004), os atos de consumo são muito pouco marcados pela utilidade que os objetos possuem, mas sim, pelo valor acordado socialmente que é atribuído a eles e, por conseguinte, demarca certas posições sociais para o sujeito. Também para Baudrillard (1996, p. 10), o consumo “é uma função social de prestígio e de distribuição hierárquica”, de forma que podemos “considerar os objetos em si próprios e a sua soma como índice de pertença social, mas é muito mais importante considerá-los, na sua escolha, organização e prática, como o suporte de uma estrutura global do ambiente circundante, que é simultaneamente uma estrutura ativa de comportamento”. Na Revista da Semana, contudo, a distinção articulava-se não apenas nesse nível, mas também, como marca constituinte de seu projeto afetivo-editorial, na articulação de uma espécie de manual de boas maneiras que, a partir de uma perspectiva bastante didática, mostra aos seus leitores quais preenchimentos deveriam ser dados ao signo genérico da distinção, guiando-os através dos caminhos do bom gosto. A elegância era uma palavra-chave da distinção no período da Primeira República, de forma que “o andar e a prosa das mulheres eram muito importantes” para os cronistas do período: “enfeava-as definitivamente ou, ao contrário, dava-lhes graça e formosura” (SANT’ANNA, 2014, p. 13). Trata-se de uma herança ainda do século XIX, de forma que “nos centros urbanos em desenvolvimento no começo da República, dizer que alguém era elegante figurava um elogio importantíssimo. A deselegância podia trazer sofrimentos atrozes, mesmo quando a sua definição permanecia vaga ou unicamente concentrada nas vestimentas e no porte físico” (SANT’ANNA, 2014, p. 30). Nesse sentido, manuais de comportamento, muitos deles importados da Europa, eram artigos comuns obtidos por mulheres do período. A Revista da Semana apresenta-se ela própria como um manual de comportamento, preenchendo progressivamente o signo vazio da elegância com um conjunto de características físicas e comportamentais que deveriam ser observados por seus leitores e estão materializados nas imagens e fotografias publicadas. Ao longo do período estudado, é possível notar que a elegância e a distinção são articuladas por diferentes tipos de materiais imagéticos. Em suas primeiras capas, há o topos viril do militar e dos homens de poder

62

ELIZA BACHEGA CASADEI

que, paradoxalmente, é complementado com a virilidade do criminoso, ambos com a função de demarcar certas características masculinas tidas como desejáveis e atraentes, perspassando desde um modelo comportamental específico até a delimitação de certo savoir faire – seja pela via do positivo (no militar) ou da negação (no criminoso). A partir do final da década de 1900, essas figuras não são mais as protagonistas nas capas e são substituídas pela sátira política gráfica. Essas charges, contudo, também estão imbuídas de um forte caráter moral, demarcando uma escala de valores positivos e negativos. Ao efetuar a partilha entre o que é considerado certo e errado, as capas da Revista da Semana, nesse período, fazem um elogio de seu próprio público, em uma auto apreciação de seus supostos valores. Em 1915, a revista se consolida como uma revista feminina, trazendo em suas capas pela primeira vez a figuração da mulher, complementada por uma escolha editorial que privilegia as colunas de aconselhamento. Nessa fase, os apelos à elegância e ao bom gosto ficam mais evidentes, contudo, é inegável que eles estiveram presentes em todo o período estudado, especialmente se for considerado o conteúdo das imagens internas da revista. Desde 1900, a Revista da Semana dava uma grande atenção aos eventos da grande sociedade e às imagens do progresso brasileiro, no esforço de construir um ethos para a elite da época. É possível considerar que o conteúdo das fotos internas da Revista da Semana davam materialidade para o ideal de elegância construído nos textos, constituindo-se como as exemplificações dessa espécie de guia ou manual de boas práticas de elegância que era construído pela publicação. Em relação às práticas de consumo que a fotografia urdia, nesse sentido, é possível afirmar que ela não se constituía tanto como uma facilitadora para a venda de produtos, mas sim, como a instância que urdia um certo “hábito hermenêutico” (LORDON, 2015) de preenchimento para o signo vazio da “elegância”. A partir da consideração, esmiuçada anteriormente, de que os afetos se organizam de acordo com estruturações sociais que são mediadas e reproduzidas pelas instituições de diversas ordens, Lordon (2015, p. 70) irá elaborar a noção de hábito hermenêutico para explicar um conjunto de pensamentos, associações e ajuntamentos simbólicos comuns presente em um determinado grupo em um momento histórico preciso. A partir

63

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

do pressuposto espinosiano de que “com efeito, um soldado, por exemplo, ao ver os rastros de um cavalo sobre a areia, passará imediatamente do pensamento do cavalo para o pensamento do cavaleiro e, depois, para o pensamento da guerra etc.” ao passo que “já um agricultor passará do pensamento do cavalo para o pensamento do arado do campo”, Lordon irá os grupos possuem constantes interpretativas (hábitos) que coordenam as ligações simbólicas em direções similares. Um hábito hermenêutico, portanto, é uma estrutura estratificada de esquemas concatenadores orientados, dos quais uma parte é comum em grande escala – todo mundo, por exemplo, associa o barulho do trovão à iminência da chuva –, uma parte é comum na escala de grupos mais restritos – as associações dos camponeses são as mesmas, mas diferem daquelas dos soldados –, uma parte mais idiossincrática, formada, por exemplo, de acordo com as fixações neuróticas de uma história pessoal (LORDON, 2015, p. 71).

É nesse sentido que experiências ou afecções em comum determinam redes simbólicas similares, produzindo associações de sentido e concatenações comuns – o que Lordon (2015) entende por hábitos hermenêuticos comuns. Ainda sobre isso, o autor pondera que se, por exemplo, as condições de existência material entram, para grande parte das pessoas, nas experiências vividas cotidianamente, então, a homogeneidade por grupos sociais dessas afecções vinculadas à vida material determina uma homegeneidade correspondente das ligações de ideias, portanto, das atribuições de sentido e das valorizações que as sucedem – e os ‘hábitos’, consequentemente, estruturam-se, para uma parte das pessoas, sob uma base de classe (LORDON, 2015, p. 71).

O signo da elegância, para A Revista da Semana, é enquadrado como uma instância intransitiva, ou seja, desejável em si, algo intrinsicamente almejável, em seu projeto afetivo-editorial. Tal “elegância”, contudo, tem um significado múltiplo e flutuante que é preenchido de diferentes formas pelas fotografias que são publicadas. As imagens, na Revista da Se-

64

ELIZA BACHEGA CASADEI

mana funcionam como suportes materiais dos afetos que dão conteúdo ao que significa ser distinto. Ao tratar da questão sobre como as imagens são capazes de condensar estados afetivos, Didi-Huberman (2016) chama a atenção para o fato de que, durante muito tempo, as emoções foram utilizadas pela filosofia apenas a partir de sua conotação negativa. Ele lembra que, em Aristóteles, por exemplo, a palavra páthos é deduzida a partir daquilo que, em gramática, é chamado de a voz passiva do verbo. “Eis o exemplo que ele dava: ‘eu corto, eu queimo’ ilustra a voz ativa ou em ação”, ao passo que “‘eu sou cortado’, ‘eu sou queimado’ ilustra a voz passiva ou em passividade, ou seja, em páthos (aliás o exemplo é interessante, pois se refere tanto a uma dor injusta, à tortura, por exemplo, como a uma dor benéfica, como quando o médico corta um tumor ou cauteriza uma ferida, queimando-a) (DIDI-HUBERMAN, 2016, p. 20). A paixão e os afetos, portanto, foram muitas vezes ligados à passividade, à impossibilidade de ação ou, em um outro aspecto, como um elemento contrário á razão. A emoção seria assim um impasse: impasse da linguagem (emocionado, fico mudo, não consigo achar as palavras); impasse do pensamento (emocionado, perco todas as referências); impasse de ação (emocionado, fico de braços moles, incapaz de me mexer, como se uma serpente me imobilizasse) (DIDI-HUBERMAN, 2016, p. 21).

O fim da oposição entre emoção, de um lado, e razão e ação de outro, na filosofia, se dará a partir do entendimento de que a vida sensível pode ser descrita a partir de sua energia passional, de forma que os afetos passam a ser encarados como gestos ativos, primeiramente a partir de Nietzsche e Bergson, com ecos em Freud, Merleau-Ponty e Sartre. Assim, “uma emoção não seria uma e-moção, quer dizer, uma moção, um movimento que consiste em nos pôr para fora (e-,ex) de nós mesmos?” (DIDI-HUBERMAN, 2016, p. 25). A emoção, então, passa a ser vista como um tipo de ação – ação esta que é ao mesmo tempo interior e exterior ao indivíduo. Interior na medida em que os sentimentos sempre afetam a um sujeito que os vivencia como experiência. Exterior, contudo, na medida em que “a emoção não diz eu”, ou seja, ela se manifesta a partir de gestos

65

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

que são exteriores ao indivíduo, fazem parte de uma memória coletiva e se reproduzem nele. Há, a partir disso, uma espécie de “expressão obrigatória dos sentimentos” que é culturalmente codificada e remete aos gestos de manifestação de emoções que são esperados nos grandes ritos públicos, por exemplo. “Trata-se de emoções verdadeiras, mas elas passam, elas precisam passar, por sinais corporais – gestos – reconhecíveis por todos” (DIDI-HUBERMAN, 2016, p. 33), estabelecendo uma linguagem passional. Se voltarmos à questão da imagem, veremos que as fotografias e gravuras “são como cristais que concentram muitas coisas, em particular esses gestos muito antigos, essas expressões coletivas das emoções que atravessam a história”. E, assim, “é como se a história das artes visuais – a pintura e a escultura, mas também a fotografia – pudesse ser lida como uma imensa história das emoções figuradas, dos gestos emotivos que Warburg denominava ‘fórmulas patéticas’” (DIDI-HUBERMAN, 2016, p. 35). As fórmulas patéticas (Pathosformel) dizem respeito à “intricação indissolúvel de uma carga afetiva e uma fórmula iconográfica” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 174). Tal fórmula iconográfica é um rebatimento de uma série de sedimentações e rearticulações de uma memória coletiva e, por esse motivo, Didi-Huberman entende-as como fósseis em movimento, como um convite à ação. A imagem assim entendida – como uma dialética da montagem de camadas de significações de tempos sobreviventes – está submetida a um regime duplo: “o pathos com a fórmula” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 173). A expressão “formas do pathos na imagem” (pathosformel), portanto, remete à ideia de um “traço significante, um traçado em ato das imagens (...), algo pelo qual ou por onde a imagem pulsa, move-se, debate-se na polaridade das coisas”. Remete, ainda, ao “combate de todos os instantes com a complexidade fervilhante das coisas do espaço e com a complexidade intervalar das coisas no tempo” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 173). As fotos da Revista da Semana podem ser entendidas como manifestações das fórmulas do pathos, ao empreender a união de uma carga afetiva com uma fórmula iconográfica que se expressa na concorrência de tempos heterogêneos, ligados à memória coletiva e às suas diversas reconfigurações, em uma mesma imagem.

66

ELIZA BACHEGA CASADEI

O consumo de produtos, bens e serviços, aqui, não é colocado de maneira direta: ele está articulado nas afetividades evocadas, que direcionam a um enquadramento minimamente comum do mundo – e, especialmente, do que é necessário consumir para habitar um recorte pautado pela elegância, sofisticação e distinção. Trata-se de um complexo afetivo-editorial que utiliza convocações para o consumo que são historicamente marcadas e que irão mudar ao longo do tempo, como mostraremos nos próximos capítulos.

67

CAPÍTULO 2

O consumo das vanguardas artísticas para a massa (de 1920 a meados da década de 1940): Trangressões estéticas esvaziadas de senso político e lastros de real baseados em acordos formais em O Cruzeiro e Revista da Semana

O signo da elegância, expresso em uma espécie de manual de bons costumes e de boas práticas, dá o tom do projeto afetivo-editorial da Revista da Semana até ao menos meados da década de 1930. O modo como isso se expressava imageticamente nas capas, contudo, muda de maneira considerável – a celebração dos valores da sofisticação e da distinção encontra contornos estéticos variáveis, materializados na evocação de técnicas de composição diversas nas imagens, e se coaduna a uma certa noção de “moderno” e de “reinvenção de si”. A partir da década de 1920, uma das características que podem ser notadas é o abandono progressivo das fotografias nas capas e a preferência por ilustrações – de forma que a maioria delas se configurava a partir de desenhos de mulheres que não podiam ser identificadas pelo nome (eram mulheres “genéricas”, não personagens do star system ou do staff político da época). A partir de 1928, a Revista da Semana passa, ainda, a dividir espaço no mercado editorial com a revista O Cruzeiro, que nasce como uma publicação inspirada na Revista da Semana, com os mesmos moldes editoriais – e que apenas posteriormente passa a adotar outros modelos jornalísticos, conforme trataremos na sequência. No final da dé-

69

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

cada de 1920, portanto, as duas revistas seguem parâmetros afetivo-editoriais bastante similares. A partir do final de 1930, há uma clivagem e a Revista da Semana volta a valorizar a fotografia instantânea na capa, especialmente a partir da exploração de paisagens e tipos humanos, conforme será detalhado a seguir. Já O Cruzeiro, aposta em uma estratégia diferente e há uma exploração cada vez mais sistemática do star system norte-americano como gatilho para o consumo de um modo específico de vida. Apesar da diversidade de abordagens fotográficas, há, no entanto, dois aspectos centrais que se destacam nesse período e que gostaríamos de detalhar neste capítulo: um tipo específico (e historicamente marcado) de convocação do consumidor pela imagem a partir do uso de estratégias estéticas próprias às vanguardas artísticas europeias e norte americanas da época (mesmo que destituídas de seu caráter político) e um novo modo de evocação das técnicas de referencialidade a partir do advento de outros parâmetros imagéticos (também relacionadas às vanguardas artísticas) que fornecem o lastro imaginário para o consumo do princípio de testemunha. O diálogo que tais publicações estabeleceram com as vanguardas artísticas, portanto, será o tema central da nossa discussão nesse capítulo, o que deixa entrever um modo bastante específico de consumo da arte a partir de imagens fotojornalísticas nas revistas ilustradas do período.

A convocação do consumidor pela imagem a partir das vanguardas artísticas

Ao discorrer sobre os parâmetros que regem os ideais do belo ao longo da história, Eco (2015, p. 414) aponta para o fato de que, se em épocas anteriores é possível mapear alguns padrões de beleza com características razoavelmente unitárias em suas diversas manifestações, o século XX é marcado por uma ambiguidade fundamental, sendo esse período “palco de uma luta dramática entre a Beleza da provocação e a Beleza de Consumo”. A beleza de provocação é entendida por ele como aquela proposta pelos movimentos de vanguarda artística do início do século XX, a partir da qual não é oferecido ao espectador o mero prazer pacificado da contemplação de formas harmônicas, mas sim, “deseja ensinar a interpretar o mundo com olhos diversos” (ECO, 2015, p. 415).

70

ELIZA BACHEGA CASADEI

A contradição fundamental do século XX, para o autor, está na tentativa de associação dos valores contestatórios das vanguardas às visualidades do consumo – duas esferas que, aparentemente, estão dissociadas justamente pelos valores de negação das vanguardas e do caráter de integração dos valores sociais do consumo, mas que são unidos na publicidade a partir de um rasuramento de suas incompatibilidades, em uma estrutura de visibilidade que a tudo suporta. A Revista da Semana e O Cruzeiro estarão sob o signo dessa contradição: ambas as revistas, no final da década de 1920, utilizarão estratégias de convocação do consumidor a partir de uma exploração das características das vanguardas artísticas que, embora esvaziadas de uma série de suas características normativas, se afirmam a partir da celebração de seus valores estéticos. A beleza de contestação coadunada à beleza de consumo expressa um modo bastante específico a partir do qual as duas publicações passam a dialogar com as vanguardas artísticas como signos de elegância e distinção. Para tanto, é necessário considerar que os meios de comunicação de massa, para Eco (2015), são definidos por duas caraterísticas centrais. Primeiro, por sua capacidade de engendrar ideais de beleza bastante contraditórios, afirmando, de forma irônica, que “eles são totalmente democráticos, oferecem um modelo de Beleza para quem já é dotado de graça aristotélica e outro para a proletária de formas opulentas”. Assim, “para quem não tem a Beleza máscula de Richard Gere, há o fascínio esguio de Al Pacino e a simpatia proletária de Robert De Niro”. Tal característica é desvelada também nos modos de consumo: “e, enfim, para quem nunca chegará a possuir a beleza de uma Maserati, há a conveniente beleza da Mini Morris” (ECO, 2015, p. 425). A pacificação do contraditório, portanto, é uma das chaves de leitura para entendermos o projeto afetivo-editorial das duas revistas no período. A segunda característica, derivada da primeira, é a de que “o espaço entre a arte de provocação e a arte do consumo se torna mais sutil”. Os meios de comunicação se apropriam das estéticas de vanguarda e de alguns de seus valores associados como estratégia de propulsão da beleza de consumo, em uma seleção pontual de suas características. Há, aqui, a encenação da “orgia de tolerância, de sincretismo total, de absoluto e irrefreável politeísmo da beleza” (ECO, 2015, p. 428).

71

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

As duas características apontadas por Eco podem ser observadas na Revista da Semana e em O Cruzeiro na época e isso pode ser notado de maneira bastante marcada nas características composicionais das capas das duas publicações. Em um processo que começa na década de 1920, mas se aprofunda até 1930, as capas da Revista da Semana deixam de representar personalidades identificáveis pelo nome e passa a dar primazia para imagens de mulheres não identificadas que representam processos, instâncias sociais ou, mais comumente, apenas a figura feminina, metaforizadas como ícones da beleza e da elegância. O tema das capas não possuía relevância jornalística nem uma conexão direta com o conteúdo interno do magazine. No ano de 1929, por exemplo, 73% das capas1 eram compostas por mulheres – além disso, 17% delas possuíam homens e mulheres e apenas 10% delas só com homens. Das capas exclusivamente com mulheres, em apenas 9% delas havia uma personalidade na capa que podia ser identificada pelo nome – os outros 91% eram compostos por desenhos genéricos de mulheres. Além disso, as mulheres aparecem sozinhas em 88% das imagens (e acompanhadas de outras mulheres em 12% delas), demonstrando um interesse maior no indivíduo do que em suas relações sociais. Se olharmos essas questões em relação às outras capas, notaremos que, das capas que contém homens e mulheres, em todas elas os personagens não são identificáveis pelo nome. No que se refere às capas exclusivamente com homens, o mesmo dado é observado – nenhum deles representa uma personalidade ou pessoa reconhecível do mundo (em contraste com as orientações editoriais anteriores da revista, mas sim, processos, instâncias sociais ou metaforizações de ideias abstratas). É interessante observar também que, em contraste com outros períodos da revista, tais imagens não constituíam charges ou anedotas gráficas, mas sim, estavam mais vinculadas aos parâmetros conceituais das artes plásticas. No que se refere ao campo da composição, se levarmos em consideração todas as capas deste ano, é possível notar um predomínio dos planos gerais (em 55,5% das ocorrências) e médios (em 38% deles). É possível observar alguns closes em 6,5% das imagens publicadas nas capas. O ângulo reto continua predominante em todas as imagens e há um acentuado 1  Não foram contabilizadas as capas que não possuíam pessoas na composição.

72

ELIZA BACHEGA CASADEI

Capas das edições de 05/08/1929, 28/09/1929 e 02/11/1929

predomínio do equilíbrio estático (em 65% das ocorrências) em relação ao equilíbrio dinâmico (em 35% das imagens). Tal orientação editorial não estava restrita a Revista da Semana – outro sucesso editorial do período, a revista O Cruzeiro, adotou orientações editoriais bastante similares para a composição de suas capas. Também nesse caso, as imagens ali publicadas não tinham um conteúdo jornalístico imediato, nem ao menos relação com o conteúdo interno da publicação. As capas com conteúdo mais notadamente jornalístico estavam relacionadas principalmente com o jornalismo comemorativo, como as capas de Natal ou Carnaval, por exemplo. Das capas de 1929 disponíveis para consulta, 87% era composta exclusivamente por mulheres na capa – 8% delas possuíam homens e mulheres e apenas 5% exclusivamente homens. Das capas com exclusivamente com mulheres, em 75% delas tratava-se de desenhos de mulheres genéricas (representativas de processos, instâncias sociais ou metaforizações) que não podiam ser identificadas pelo nome. Nas capas com mulheres e homens e as com exclusivamente homens, não há nenhuma capa cujos personagens possam ser identificadas pelo nome. Ainda em relação às capas que contém apenas mulheres, em todas elas as figurativizações humanas aparecem sozinhas (e não acompanhadas de outras mulheres). Quanto às características composicionais, alguns dados também se mantêm similares entre as duas publicações: há uma leve prevalência dos

73

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

Capa da edição de 01/08/1914

Capa da edição de 31/08/1915

planos médio (com 58% das ocorrências) e geral (com 33%) nas composições e o pouco uso dos planos em close (em 9% das imagens). Há também a totalidade de uso do ângulo reto e a prevalência do equilíbrio estático (54%) em relação ao dinâmico (46%), mesmo que de maneira menos acentuada. No que diz respeito ao conteúdo interno das publicações, poucas mudanças podem ser notadas: algumas notícias pontuais de política e economia são permeadas por uma grande quantidade de reportagens sobre os eventos da alta sociedade (colunismo social) e de um volume considerável de colunas de aconselhamento e moda, além do material literário (crônicas, contos, poesias) ainda abundante nas publicações. As questões que permeiam a moda e os cuidados com a beleza, a casa e os mais variados aspectos da vida cotidiana, a cobertura dos eventos esportivos e sociais dos clubes e a publicização dos eventos culturais de maior relevância ainda compõem o material jornalístico central das publicações. As mulheres presentes nas capas, contudo, mostram que as estratégias de convocação para os seus consumidores atendiam, agora, a novos imperativos. As revistas passam a participar das discussões das vanguardas

74

ELIZA BACHEGA CASADEI

artísticas, não de uma forma direta, mas a partir da incorporação de alguns de seus parâmetros estéticos na composição de suas capas. Apesar de não se filiar abertamente a nenhuma delas e, de fato, misturar características contraditórias de técnicas e composições entre si, o abandono da fotografia factual a favor de parâmetros que se aproximam das artes plásticas é uma característica importante do modo como os consumidores das revistas eram interpelados. De fato, vários artistas importantes participaram do corpo editorial de O Cruzeiro ao longo de sua história. Entre os seus colaboradores, podemos citar Portinari, Di Cavalcanti, Santa Rosa, Djanira, Ismael Nery, Enrico Bianco, Gilberto Trompowski, Anita Malfatti, entre outros. Para Serpa (2006), a revista expressava o pensamento intelectual da época, utilizando-se de pensadores renomados para divulgar a sua própria ideologia. A questão colocada por suas capas, contudo, não é aquela de viés artístico, mas sim, de caráter comercial, a partir de um modo específico de relacionamento com os valores de consumo. As capas indicam tanto um recorte de público-alvo quanto uma estratégia específica de convocação direcionada a ele. Quanto ao recorte, a interpelação se dá, obviamente, diretamente às mulheres como consumidoras centrais da publicação. Em relação à convocação, percebe-se que ela relaciona, tanto na Revista da Semana quanto em O Cruzeiro, o signo da elegância ao da modernidade – de forma que os ideais de afirmação discutidos na arte de vanguarda possam ser incorporados à linguagem publicitária da capa da revista. Tal como apontado por Serpa (2006), a linha editorial de O Cruzeiro afirmava constantemente suas claras pretensões de fazer do Brasil um país moderno.  A partir desses parâmetros, os signos do novo, do ideal, do inovador e do vanguardista eram intensamente divulgados, de forma que a transformação dos comportamentos, hábitos e costumes eram temas recorrentemente expostos pela revista, sobretudo para o público feminino. Dessa forma, a revista articulava suas narrativas em torno do mote dos “novos padrões de comportamentos através de uma infinidade de formas como moda, roupas, eletrodomésticos, maquiagens, cinema, concursos de beleza, esporte, registros das fabulosas festas sociais, mas, sobretudo, através das novidades em vários setores” (SERPA, 2006, s.p.).

75

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

A convocação para o moderno está expressa desde o seu primeiro editorial da revista que afirmava: Depomos nas mãos do leitor a mais moderna revista brasileira. Nossas irmãs mais velhas nasceram por entre as demolições do Rio colonial, através de cujos escombros a civilização traçou a reta da Avenida Rio Branco: uma reta entre o passado e o futuro. Cruzeiro encontra já, ao nascer, o arranha-céu, a radiotelefonia e o correio aéreo: o esboço de um mundo novo no Novo Mundo. Seu nome é o da constelação que, ha milhões incontáveis de anos, cintila, aparentemente imóvel, no céu austral, e o da nova moeda em que ressuscitará a circulação do ouro. Nome de luz e de opulência, idealista e realístico, sinônimo de Brasil na linguagem da poesia e dos símbolos (O CRUZEIRO, 10/11/1928).

É sob o imperativo do consumo que uma determinada imagem de moderno e um certo imaginário social sobre o feminino se coadunam. “Nos periódicos do século XX, a figura da mulher adquiriu importância como responsável pela introdução de valores modernizadores no espaço doméstico e na vida cotidiana da família, principalmente mediante a sugestão de novas práticas de consumo” (OLIVEIRA, 2014, p. 2). Assim, a conscientização das mulheres sobre a necessidade de acompanhamento das inovações, tanto de valores quanto de consumo, foi um dos aspectos centrais da política afetivo-editorial de O Cruzeiro em seus primeiros anos. O Cruzeiro “se antecipou em representar uma mulher que contava com as facilidades dos aparelhos eletrodomésticos, que consumia cosméticos e que se vestia segundo a moda europeia e norte-americana” sem, com isso, “deixar de corresponder às expectativas sociais em relação ao seu papel feminino. Assim, O Cruzeiro foi a responsável, em certa medida, por conceber um conceito de modernidade para a mulher” (OLIVEIRA, 2014, p. 5). A imagem da “nova mulher” da revista O Cruzeiro, portanto, estava relacionada ao consumo de novos produtos, de acordo com um ideário nacionalista que enxergava o país rumo à construção do moderno. “A discussão entre o que era e o que não era moderno estava presente em praticamente todas as colunas”, de forma que “mesmo naquelas em que o tema

76

ELIZA BACHEGA CASADEI

não estava explícito, há uma forte tendência a defender uma ou outra posição, sempre tendo em vista que a modernidade existia sem que, com isso, se alterasse a ordem social estabelecida” (OLIVEIRA, 2014, p. 12). O culto ao moderno, contudo, deve ser visto a partir de uma ótica bastante específica: a exaltação do signo da novidade servia muito mais a uma retórica publicitária e de incentivo ao consumo do que a uma panfletagem legítima a respeito da necessidade de mudanças nos costumes sociais. O Cruzeiro (e também A Revista da Semana) partiam do pressuposto de uma unidade nacional nos costumes, ignorando particularidades regionais importantes, bem como rejeitando os conflitos e fraturas sociais que fossem contraditórios aos interesses políticos das publicações. Assim, “o magazine que priorizou as mulheres belas não contribuiu com a luta por conquistas femininas que se levantavam naqueles anos” como “o clamor por igualdade de direitos, de espaços no mercado de trabalho, na própria família e nas decisões políticas do país” (SERPA, 2006, s.p.). O moderno, portanto, estava muito mais relacionado a um padrão de beleza, comportamento e consumo – e não a uma mudança efetiva nas estruturas sociais. Mesmo em reportagens em que a revista exaltava as mudanças comportamentais das mulheres, tal postura editorial estava muito mais vinculada a um aumento do público consumidor da publicação, sempre dentro de certos padrões socialmente aceitos de comportamento. “Isso significou espaços que enalteciam o imaginário feminino, sem levar em consideração o que de fato acontecia em todas as camadas sociais do país naquele momento, mas, sim, a formação de novas concepções e comportamentos que levassem a consumir” (SERPA, 2006, s.p.). No que se refere à participação política, por exemplo, Serpa (2006) menciona que, muitas vezes, a revista tratava a mulher como um personagem secundário e não como protagonista da ação social. Nesse sentido, a revista faz, por exemplo, uma extensa reportagem sobre a participação das esposas dos homens envolvidos na Revolução de 1930 a partir do fornecimento de remédios e comida para os soldados. No que se refere a participações políticas mais ativas como o voto, contudo, a posição da revista nesses anos sempre foi clara: “as mulheres são incapazes de escolher bem seus representantes, não há como conciliar a maternidade com a política.

77

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

São posições defendidas em artigos masculinos, mostrando que o perfil político feminino foi construído por homens” (SERPA, 2006). Era o potencial de consumo das mulheres (e não o seu potencial político) o eixo central do “moderno” explorado pela publicação. A importância de um ideal de moderno era acompanhado, ainda, pela ideia da busca pelo it que surge nesse período – algo que não se restringia à beleza física da mulher, mas um estado de espírito vinculado a um ideal de modernidade que ela deveria buscar. “O it ninguém sabia exatamente o que era, embora muitos concordassem com o quanto era importante exibi-lo, tê-lo, valorizá-lo. Parecia uma qualidade fugaz, com manifestação ligeira e aguda, algo entre o físico e o espírito, menos sóbrio do que a elegância, porém, mais discreto do que os dentes alvos, pele lisa ou cintura fina”. Ser it era ser moderno, de forma que “atribui-se esse conceito à escritora Elinor Glyn, mas sua difusão ocorreu graças ao filme intitulado it, de 1927”, (SANT’ANNA, 2014, p. 51) dando origem à expressão it girl. O uso das vanguardas artísticas na composição da capa ajudava a criar esse ethos de modernidade para as duas revistas, operando como um mecanismo de convocação pela imagem. A estética das vanguardas artísticas presentes nas capas de O Cruzeiro (e também na Revista da Semana) eram poderosos signos do moderno. Tal signo funcionava como um mecanismo de convocação para o consumo, associando à publicação uma série de valores relacionados a esse moderno. A contestação, a busca pelo novo, pelo consciente e pelo combativo eram valores associados às vanguardas artísticas que a revista tentava incorporar em sua estrutura ethópica, paradoxalmente, esvanziando-os de seus sentidos tradicionais e de seu potencial revolucionário: tratava-se da incorporação de termos vazios relacionados ao moderno voltados para uma estética do consumo. Há nessas capas a materialização da incorporação e da relação simbiótica da beleza de consumo com a beleza de contestação apontada por Eco (2015) a partir do engendramento do moderno da vanguarda como o gatilho central a partir do qual O Cruzeiro operacionalizava a sua retórica para o consumo. Tal mecanismo – de engendramento dos valores do moderno a partir da evocação das vanguardas artísticas para a construção discursiva de uma convocação para o consumo – não se restringia às capas. Mesmo nas

78

ELIZA BACHEGA CASADEI

fotografias internas da publicação e, especialmente, no conteúdo propriamente jornalístico, isso se mostrava de forma bastante acentuada. Para discutirmos tal questão, é necessária uma contextualização mais ampla, no que se refere aos moldes do projeto afetivo-editorial da revista O Cruzeiro. Há, no período do entre guerras, a modalização de um novo modelo de revista ilustrada, cujos marcos podem ser referenciados pelo surgimento da publicação francesa Vu, em 1928 e, posteriormente, da americana Life, em 1936 – o que vem acompanhado de todo um novo complexo afetivo-editorial também nas publicações brasileiras. A revista O Cruzeiro está inserida nesse contexto e seu projeto editorial é influenciado de maneira radical por essas novas orientações mercadológicas. Um primeiro aspecto que emerge desse novo complexo afetivo-editorial é o de que, pela primeira vez, a revista ilustrada se auto intitula como um catálogo do mundo, como um veículo cuja vocação seria oferecer “um inventário abrangente de todos os aspectos da natureza e da cultura passíveis de serem fotografados” (COSTA, 2012, p. 159). Uma outra questão está no advento do instantâneo como um novo padrão fotográfico de excelência a ser perseguido, em contraste com as fotografias estáticas do período anterior. É curioso, nesse aspecto, notar que, em um primeiro momento, a adoção do instantâneo demandou que o público se acostumasse a esse novo modo de consumo de imagens, de forma que a revista adotava certas práticas de pedagogização para as novas visualidades, como associar as imagens instantâneas sempre à ideia de movimento e utilizar exemplos para guiar os leitores. Em 1931, por exemplo, O Cruzeiro lança um concurso de instantâneos para os seus leitores e, na ocasião, publica imagens da revista Vu como exemplo para seus consumidores e como orientação para os fotógrafos competidores. “Uma análise de outros exemplares desse período aponta que não só o conceito de fotografia instantânea não era bem compreendido pelo público, como havia certa dificuldade na visualização desse tipo de imagem” (COSTA, 2012, p. 160). Além disso, podemos apontar também o fato de que a fotografia muda de função na página das revistas: até então, cabia a ela o papel de ilustração de uma reportagem; ela começa a se afirmar, contudo, de uma forma cada vez mais acentuada, como o resultado de uma elaboração conceitual.

79

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

A relação que esse novo modelo de revista ilustrada estabelece com as vanguardas artísticas é ambíguo e não livre de conflito, uma vez que coaduna aspectos do consumo popular com a convocação para outros modelos de visualidades sociais, conforme discutimos anteriormente. Isso também se mostra no conteúdo propriamente fotojornalístico da publicação. Para Costa (2012, p. 166), “as vanguardas surgiram no momento em que a fotografia estava ampliando o seu espaço social por meio de sua inserção na imprensa ilustrada” e, justamente por isso, “estabeleceram diálogos e contrapontos com as imagens corriqueiras de grande circulação, que consideravam documentos modernos por excelência”. A autora lembra ainda que a fotografia de vanguarda “não poderia ter existido sem a reprodução mecânica e a fotografia de imprensa e que escrever a história de uma é, de certa forma, escrever também a história da outra”. A relação entre a imprensa e a fotografia de vanguarda, portanto, é uma via de mão dupla, onde tanto artistas quanto fotojornalistas se auto referenciavam e encontravam um campo comum de trabalho nos meios de comunicação de massa como plataforma de divulgação. Mais do que uma mera questão econômica, portanto, tratava-se novas formas de consumo da imagem emergentes na sociedade. Embora diferentes vanguardas tenham contribuído para a estética das revistas ilustradas no período, as tendências e técnicas de duas delas se apresentam de maneira mais constante e agressiva: a vanguarda russa, a partir dos pressupostos popularizados por Alexandre Rodtchenko, e a Nova Visão, tal como estabelecida por Moholy-Nagy (COSTA, 2012). Ambas as vanguardas defendiam o uso de técnicas fotográficas pouco usuais (tal como o ângulo inusitado, a exploração do close exagerado ou do afastamento excessivo e a fragmentação imagética, por exemplo) como forma de escancarar o funcionamento ideológico da imagem (e, consequentemente, da realidade como um todo) e educar o leitor para o estranhamento do mundo e para um novo olhar sobre as coisas. A influência dessas vanguardas sobre a fotografia de O Cruzeiro pode ser expressa de diferentes maneiras, segundo Costa (2012, p. 160). Em primeiro lugar, é possível dizer que “a câmera fotográfica é apresentada como um instrumento poderoso, capaz de desvelar uma realidade que os olhos humanos não conseguem perceber”. Assim, as revistas ilustradas “costumavam desafiar

80

ELIZA BACHEGA CASADEI

a acuidade visual de seus leitores por meio de fotografias tomadas de ângulos inusitados, do uso de sombras e reflexos, da geometrização e de inúmeros outros recursos do gênero, que conferiam interesse visual a temas absolutamente banais” (COSTA, 2012, p. 162). Nesse sentido, O Cruzeiro tinha seções específicas com temáticas como “Aprenda a ver as coisas”, que prometia: “nestas páginas o leitor não encontrará truques fotográficos, fotomontagens, retoques ou quaisquer outros recursos enganadores. Apenas apresentamos realidades do mundo em que vivemos focadas sob prismas diferentes”. Ao leitor, era dado o desafio da adivinhação e a promessa de outros olhares sobre um mundo já bastante conhecido. Para Costa (2012, p. 168), não se trata de um fenômeno isolado, mas sim, de um modo de visibilidade historicamente marcado que privilegiava tanto a organização industrial e a profissionalização da imprensa do período com a sua busca continuada pelo novo quanto uma exploração das estratégias de estranhamento bastante específica. “Por meio de composições arrojadas, precisas e ordenadas, a Nova Fotografia estabeleceu uma linguagem objetiva e seriada para a imprensa, que favoreceu a racionalização da página impressa”. E, assim, “a materialização de sua visão mecânica promoveu o esquadrinhamento do mundo e a descoberta da beleza da máquina, tomada como modelo não só da cultura, como da própria natureza”. A busca pelo novo, por sua vez, encontrava refúgio na medida em que coisas absolutamente banais eram apresentadas a partir de visibilidades outras, diferentes daquela a que o público estava acostumado, em uma estratégia de transformar o habitual em extravagante, a partir de estratégias de estranhamento. A função do estranhamento, contudo, era desvirtuada daquela originalmente posta pelas vanguardas. Com o consumidor induzido a usufruir as imagens de forma lúdica e dispersa, “as imagens deixavam de fazer o observador pensar sobre o mundo e passavam a fazê-lo pensar sobre elas próprias”, de forma que “a função de (...) superação dos estados de alienação originalmente atribuída a esse tipo de imagem pela vanguarda soviética foi substituída pelo objetivo imediato de seduzir o público para o consumo das revistas e dos produtos por ela veiculados” (COSTA, 2012, p. 168). Para a autora, o culto persistente ao exótico engendra um sentido contraditório, de forma a favorecer o reforço da ordem que inicialmente ele parecia perturbar. E isso porque no desafio do deciframento há sem-

81

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

pre a promessa de obtenção de uma resposta que acaba por reestabelecer o conforto de um mundo conhecido. “É como se os textos buscassem uma ancoragem das imagens no real, tentando minimizar a sensação de dissolução e a perda de referenciais própria da vivência urbana da modernidade” e isso “sem deixar de enfatizar, contudo, o papel crucial das revistas como mediadoras entre o público e a realidade em transformação” (COSTA, 2012, p. 169). Isso fica bastante evidente em textos publicados na revista como: Truques fotográficos? Fotomontagens? Retoques? Nada disso. Apenas uma visão do mesmíssimo mundo em que vivemos focado sob ângulo diferente. (...) Você sabe ver as coisas? Sabe mesmo? Então experimente. (...) A finalidade desta reportagem não é confundir o leitor, mas apenas prestigiar mais uma vez aquele velho refrão que diz: as aparências enganam. E enganam mesmo, quase sempre (O CRUZEIRO apud COSTA, 2012, p. 169).

Os consumidores não são interpelados a partir do potencial crítico de reinterpretação da realidade social, mas sim, sob uma perspectiva infantilizada e esvaziada de conflitos sociais. A adoção de técnicas características das vanguardas artísticas na composição do material jornalístico é uma outra forma de materialização da associação entre a beleza de consumo e a beleza de provocação, aludida por Eco (2015), na revista O Cruzeiro. Tal ajuntamento, portanto, rebate também em direção a valores de consumo bem demarcados, uma vez que a perspectiva de desfiguração do mundo para a reafirmação de uma imagem familiar tem uma implicação no desenho de sujeito mediado pela publicação: tal como o mundo, o indivíduo também é convocado a refigurar-se para o moderno. Para discutirmos tal direcionamento afetivo-editorial, é necessário remeter à questão, apontada por Safatle (2012, p. 186), de que o universo midiático do consumo no século XX finalmente entendeu e incorporou a noção de que “os sujeitos estão presos a essa lógica de aceitar a norma e desejar, por sua vez, a transgressão” da mesma. A retórica do consumo própria do século XX, para Safatle (2012, p. 191) caracteriza-se justamente por enunciar (a partir de diferentes

82

ELIZA BACHEGA CASADEI

mecanismos discursivos) a regra e, ao mesmo tempo, a transposição da regra. Isso teria um efeito duplo: o discurso contraditório de aceitação e refutação das normas, por um lado, reforça a necessidade constante do indivíduo de reinventar-se (a partir da noção de que a construção do sujeito não é apenas responsabilidade ativa dele próprio, como também uma forma plástica que pode tomar diferentes formatos ao longo do tempo) ao mesmo tempo em que acaba por reforçar a própria norma (uma vez que eterniza estruturas narrativas e quadros de socialização, mesmo que diante do reconhecimento da ruptura desses quadros). Trata-se de uma das articulações do que ele chama de “capitalismo cínico”, pois “cinismo é o nome correto desta posição subjetiva que é capaz de sustentar identificações socialmente disponibilizadas ao mesmo tempo que ironiza, de forma absoluta, toda e qualquer determinação (por reconhecer o caráter descartável delas)” (SAFATLE, 2012, p. 192). O uso das estéticas das vanguardas artísticas era um dos mecanismos a partir dos quais tais valores de consumo se expressavam imageticamente em O Cruzeiro. Elas preenchem o significado sobre o que há de “moderno” no ethos da revista (uma vez que a vanguarda e a elegância passam a estar coadunadas) e, ao mesmo tempo, metaforiza a reconstrução ativa e plástica do sujeito em direção a esse moderno. Se, até a década de 1920, a Revista da Semana articulava seus mecanismos de convocação para o consumo a partir de uma “ética da convicção” (SAFATLE, 2012) em que o indivíduo era convocado a consumir para alcançar determinados modelos ideais e padrões de masculinidade e feminilidade que se materializavam em figuras sociais exemplares (nas capas e nas coberturas jornalísticas das páginas internas), em uma verdadeira celebração de valores comuns, O Cruzeiro articula suas estratégias de convocação de forma diversa em seus primeiros anos (assim como a própria Revista da Semana). A estratégia do uso das técnicas das vanguardas artísticas remete a uma ética em que a convicção passa a ser justamente aquela que prega a constante reinvenção de si mesmo – não mais a partir da seleção de figuras ideais, mas sim, para um suposto lugar mais “moderno” e uma forma “mais avançada” de existência que se afirma em produtos e objetos de consumo. A estética de vanguarda, esvaziada de seu conteúdo político, funciona como uma metaforização da reconstrução de

83

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

si que tem a contestação como valor esvaziado de conteúdo social, mas repleto de significado comercial. Se a elegância (o manual de boas condutas) era o eixo articulador dos valores centrais de convocação para o projeto afetivo-editorial da Revista da Semana até a década de 1920, esse espaço passa a ser ocupado pelo moderno em O Cruzeiro – acompanhado da constante necessidade de reinvenção do mundo e de si mesmo em direção a algo melhor que este conceito de moderno implicava. Isso é materializado tanto por meio de um valor ethópico (a revista é moderna, então, ela se constitui como um lugar de saber validado e é necessário consumi-la) como quanto um ideal a ser alcançado por meio do consumo daquilo que ela enuncia.

O star system

Embora o direcionamento afetivo-editorial aludido anteriormente ainda possa ser observado durante um longo período, com capas que ainda expressam a simbiose da beleza de consumo com a beleza de contestação apoiada no uso das estéticas de vanguarda, a partir de 1937 a revista O Cruzeiro passa a adotar outras estratégias de composição para as suas capas. De agora em diante, é possível observar a exploração de um star system, com capas em que figuram artistas (principalmente norte-americanas e europeias). Ainda é possível encontrar capas com mulheres “genéricas”, mas elas se tornam muito menos frequentes do que no período anterior. No ano de 1937, por exemplo, 92% das capas publicadas eram compostas por figuras de mulheres – em 4% delas havia apenas homens e nos outros 4% havia homens e mulheres. Das capas com homens ou com homens e mulheres, em nenhuma delas os personagens podiam ser identificados pelo nome, de forma que eles representavam processos ou instâncias sociais abstratas. Já nas capas apenas com mulheres, em 64% delas era possível identificar o personagem pelo nome – normalmente uma atriz americana ou europeia ou, menos frequentemente, uma modelo. Ao contrário do período anterior, em que a grande maioria das mulheres representava processos ou instâncias sociais, nesse período, isso acontece em apenas 36% das capas. Além disso, há uma grande predominância de mulheres que aparecem sozinhas (e não acompanhadas de outras mulheres), em um total de 97% das capas.

84

ELIZA BACHEGA CASADEI

Há, ainda, uma outra característica composicional de destaque no período: o uso mais frequente dos planos em close. Embora ainda possamos observar o uso predominante do ângulo reto e do equilíbrio estático (em 64% das ocorrências) em relação ao dinâmico (em 36%), tal como nas composições que foram observadas até então, o close surge como uma novidade composicional que era muito pouco utilizada no período anterior. Embora o plano médio ainda seja predominante (em 54% das imagens), o close passa a compor 44% das capas com mulheres, enquanto o plano geral é utilizado em apenas 2% delas. O uso mais frequente no plano em close e a queda expressiva no uso do plano geral sugerem que o personagem ganha destaque na composição da capa, em detrimento do contexto ou situação. A personalidade célebre é, portanto, cada vez mais valorizada em O Cruzeiro. As celebridades, para Serpa (2006), não eram mais do que uma estratégia de convocação para o consumo. Para a autora, O Cruzeiro mediava uma “realidade fantasiada a partir de informações vindas em abundância dos estúdios da capital do cinema mundial, que estimulavam, as moças e senhoras a se espelharem nas estrelas de Hollywood” que, por sua vez “usavam cosméticos, belas roupas, tinham novas ideias e conquistavam a fama e o prestígio social. Mas foi sobretudo através da propaganda de produtos que enalteciam a beleza e que reforçavam a ideia de uma nova mulher, agora mais consumista, que a revista vendia o sonho de mudanças” (SERPA, 2006, s.p.). Em um primeiro momento, havia a predominância de celebridades norte-americanas e europeias. A partir de 1941, é possível observar a inserção de algumas artistas brasileiras. A temática da celebridade era, de fato, importante para a revista, de forma que ela chegava a representar, em média, mais de dois terços das capas do período. A evocação às celebridades, como coloca Adamatti (2008, p. 70), não é um mecanismo de convocação que simplesmente faz com que os leitores queiram consumir produtos de uma maneira irracional. O mecanismo é bem mais sutil e diz respeito projeções de imaginários socialmente construídos. As atrizes medeiam “parâmetros comportamentais, lembrando que elas são mensageiras do mito da felicidade e também de parte dos ideais da sociedade”. Sobre isso, é interessante lembrar, ainda, que esta-

85

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

mos em um período anterior ao surgimento das celebridades rebeldes: até os anos 50, as estrelas representavam valores bons e positivos que se objetivavam nas notícias sobre suas vidas pessoais. “Assim, a partir de detalhes, como saber o perfume preferido da estrela, o seu novo penteado, ou a forma de lidar com a tríade carreira/casamento/filhos, o leitor se vê imbuído de informações úteis para lidar com o seu mundo, a partir de parâmetros de comportamento dos mitos”, ou seja, “daqueles que possuem talento, carreira, dinheiro e principalmente amor conjugal”. No mercado editorial brasileiro da época, é bastante mais comum que esse tipo de direcionamento afetivo-editorial – a partir do qual a celebridade é construída como um modelo de conduta – se direcione especialmente às mulheres (tanto a partir do elogio do modo de vida das celebridades quanto a partir de censuras feitas aos seus comportamentos desviantes). Normalmente, tais construções derivavam de uma visão de mundo bastante conservadora que estabelece um papel submisso e moralista às ações femininas. E é nesse ponto que o conservadorismo e o consumo são urdidos. Tal como apontado por Adamatti (2008, p. 77), no mercado editorial de revistas brasileiro “havia dois tipos de representação paralela da mulher nas revistas”: “no texto, havia a vinculação como esposa e mãe. Nas imagens, como consumidora para vender os produtos em voga”. A parte da propaganda direta dos produtos, existia nessas revistas um mecanismo mais sutil de convocação ao consumo feita a partir do material jornalístico, tanto a partir do comentário sobre os produtos preferidos das estrelas e dos seus hábitos de vida, quanto a partir de dicas de consumo (de moda, maquiagem, serviços e comportamentos). Assim, “os produtos de consumo são instigados no estágio dos temas imaginários de ordem prática, onde se exerce a pressão da indústria” (ADAMATTI, 2008, p. 78).

As vanguardas no consumo do princípio de testemunhas como elemento estético

O século XX, para Badiou (2017) foi o século da paixão pelo real. A busca pela legitimidade de uma experiência ou de uma interpretação genuína do mundo tomou a forma de uma coação, tanto mais quanto essa busca pelo real era invalidada como uma tarefa impossível. Tal paixão pelo real se expressou tanto pela busca filosófica por uma definição legítima do

86

ELIZA BACHEGA CASADEI

real quanto a partir de tentativas mais leigas, do mundo da cultura, de validação das experiências. Quanto ao primeiro termo, as Badiou identifica duas vertentes filosóficas que expressavam essa paixão pelo real mesmo diante de sua desacreditação: uma de vertente platônica (para quem o real está lá fora, mas momentaneamente inacessível ao mundo dos homens e sua definição se projeta em uma busca constante pelo seu encontro) e outra de vertente psicanalítica lacaniana (para quem o único real acessível se dá a partir do sofrimento, do pathos, daquilo que é vivenciado em primeira pessoa e não pode ainda ser nomeado). O mundo da cultura absorve tais vertentes a partir de uma paixão pelo testemunhal – articulação essa, aliás, bastante favorável ao registro fotográfico. A definição que Badiou confere para o real, contudo, não é a mesma do senso comum, como o que tem existência no mundo concreto ou o que é não é falso, ou o que existe de fato. O real, para ele, “é o que vem assombrar o semblante” (BADIOU, 2017, p. 22). Trata-se de uma ideia interessante na medida em que a noção de que o real se revela na ruína de um semblante implica a ideia de que só se pode chegar ao real desmascarando-o, porém, de uma forma que também se leve em consideração o real da própria máscara. Nos próprios termos de Badiou (2017, p. 28), “se o real só é acessível como arranchamento de seu semblante próprio, então há necessariamente certa dose de violência no acesso ao real”, porém, “a relação do semblante com o real faz parte do real”. Para o autor, o real está articulado, justamente, para além do ponto em que é possível sua formulação. Em uma analogia com a imagem, ele coloca que se poderia sustentar que “o real de uma imagem cinematográfica é aquilo que está fora de campo”. E isso porque “a imagem deve sua potência real ao fato de ser extraída de um mundo que não está na imagem, mas que constrói a sua força”. E, assim, “é na medida em que a imagem se constrói a partir do que está fora da imagem que ela tem chances de ser realmente bela e forte, embora o cinema só seja composto – calculado – de acordo com o que circunscreve a imagem num quadro” (BADIOU, 2017, p. 31). A partir dessa perspectiva, o real estaria fora do ponto de formalização, em um ato que faz a própria formalização desvanecer momentaneamente em direção a um outro tipo de formalização – que era impossível no estágio de formalização anterior.

87

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

A partir dessas premissas, Badiou (2017, p. 34) tira duas conclusões principais. A primeira delas é a de que “só há conquista do real ali onde há uma formalização – pois, se o real é o impasse da formalização, é preciso que haja uma formalização”. Assim, “não há esperança de conquistar o real fora da existência de uma formalização, de um arranjo, de uma forma. O real supõe que tenha sido pensada e construída a forma aparente daquilo de que um determinado real é o real oculto”. A segunda conclusão refere-se à questão de que “a afirmação do real como impasse dessa formalização vai ser em parte a destruição dessa formalização. Ou, digamos, sua divisão”. E isso porque “tudo vai começar por uma afirmação inaceitável do ponto de vista da própria formalização, que prescreve o que é possível, a saber, a afirmação de que o impossível existe”. O real, assim entendido, não é o que estrutura a nossa vida imediata, mas sim, o ponto em que essa estruturação se esgarça. Badiou irá derivar algumas consequências políticas e éticas de tal acepção do real. É possível, contudo, engendrar decorrências estéticas de tais premissas, baseadas na ideia de que o real – ou mais precisamente os efeitos de real – estão calcados em formalizações estéticas que mudam de tempos em tempos. A paixão pelo testemunhal, portanto, embora seja uma marca de todo o fotojornalismo do século XX – e um dos lastros de sua legitimidade social – demandou formalizações estéticas diversas que tinham a destruição dessas mesmas formas no próprio cerne de seu fazer e de seus processos de validação social. Ao passo que O Cruzeiro adotava o uso de celebridades para a composição de suas capas, a Revista da Semana apostava em outros tipos de técnicas em suas capas que insinuam novos parâmetros imagéticos para o consumo do princípio de testemunha. A partir de 1936, é notória a adoção de outros parâmetros efetivo-editoriais que se materializam nas composições das capas: nesse ano, 78% das capas publicadas possuíam fotografias de paisagens, sem pessoas na composição. Das capas que possuíam pessoas (22%), 27% delas eram com homens (todos eles não identificados pelo nome e acompanhados de outros homens) e 73% por mulheres (apenas 25% delas identificadas pelo nome, sendo metade delas sozinhas e metade acompanhada por outras mulheres). Mas, mesmo nessas composições com pessoas, elas figuravam muito mais como parte

88

ELIZA BACHEGA CASADEI

Capas das edições de 19/09/1936, 10/10/1936 e 12/06/1937

integrante do cenário (das paisagens) do que como personagens de destaque. As paisagens, portanto, passam a dominar as estratégias de convocação da Revista da Semana no período. As composições paisagísticas possuem também algumas características técnicas bastante demarcadas. Destas, 93% estão em plano geral e apenas 7% em plano médio (não há a presença de planos em close). Como no período anterior, há apenas o uso do ângulo reto e as composições são predominantemente estáticas (em 85% das ocorrências) em detrimento do equilíbrio dinâmico (em 15% delas). As técnicas de composição dessas capas da Revista da Semana, nesse período, se aproximam bastante da fotografia de raízes naturalistas, cujo um dos expoentes principais era o fotógrafo inglês Peter Henry Emerson. Para ele, a fotografia era uma arte independente (ou seja, que não precisa se apoiar em técnicas de composição presentes em outras artes) que expressa uma visão individual e cujo conteúdo emotivo reside apenas na imagem em si, sem a necessidade de manipulação de negativos. Nessa perspectiva, “o que, de fato, importa numa fotografia, não é o real em si, mas um real transformado em imagem pelo olho e captado como uma ‘impressão’ pelo sujeito” (FABRIS, 2011, p. 32). A fotografia, portanto, não é vista como uma descrição da natureza tal como ela se apresenta para o olho humano, mas sim, uma impressão captada. Por essa razão, para Emerson, era necessário aproximar a composição da visualidade da

89

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

máquina à visão humana a partir do uso do foco seletivo. Uma vez que a visão humana é sempre seletiva e a visão da máquina não (posto que o seu foco é muito mais aberto e tem a potencialidade de captar tudo), é necessário que essa aproximação se materialize nas técnicas de composição utilizadas pelo fotógrafo. Assim, Emerson aconselhava: “foco apenas no objeto principal e todo o resto sem nitidez; e mesmo o objeto principal não deve estar perfeitamente nítido como faria uma lente óptica normal” (apud FABRIS, 2011, p. 32). O foco seletivo era uma forma composicional de materialização da visão humana como próxima da visão da máquina. As fotografias publicadas pela Revista da Semana, nesse período, se aproximam dessa busca por uma impressão captada ligada a uma estratégia de referencialidade e de convocação testemunhal. Isso se dá não apenas quanto às semelhanças nas técnicas de composição (enquadramentos, ângulos de câmera etc.) e nas temáticas preferenciais (paisagens e a interrelação humana com o meio), mas principalmente, em relação a uma espécie de conteúdo programático dessas fotos. Em todas as edições, a capa era explicada, no conteúdo interno da revista, por pequenos textos que forneciam ao leitor o solo contextual sob o qual essas imagens se assentavam, por meio de informações indexadoras. Por meio desses textos, é possível perceber os engendramentos que articulavam certas decisões de publicação. Na edição de 18/04/1936, por exemplo, a revista explicava que “a capa de hoje é uma lembrança da excursão que há muito as professorandas do Instituto de Educação fizeram, sob a direção do dr. Raul Pontual, a varias estações mineiras. Um bonito aspecto colhido junto do lago de São Lourenço e que é uma excelente fotografia devida a professoranda Helena de Oliveira, que nos proporcionou o ensejo de oferecermos aos leitores da Revista da Semana mais uma linda capa” (REVISTA DA SEMANA, 18/04/1936). Na edição de 19/09/1936, dizia-se: Mais uma fotografia de Nicolau Barteiro ilumina a capa da Revista da Semana. O admirável artista colheu, com rara felicidade, um sugestivo instantâneo nas docas do Mercado Velho, na Praça 15 de novembro: um pescador, nos momentos de lazer, preparando a boia. Diante dos olhos do leitor ostenta-se um símile flutuante de quarto de estudante boêmio. Tudo desarrumado, atirado ao acaso: latas, linhas, barris, vassouras, baldes, caixotes, um mundo de coisas

90

ELIZA BACHEGA CASADEI

aparentemente inúteis, mas de imensa utilidade. Nicolau Barteiro Corredera colheu tudo isso no seu natural desmantelo e erigiu a sua soberba fotografia num quadro expressivo, num eloquente flagrante da vida humilde dos pescadores, proporcionando mais uma excelente capa (REVISTA DA SEMANA, 19/09/1936).

Na edição de 10/10/1936, a revista explicava a foto nos seguintes termos: estampamos nessa capa uma linda visão da Igreja N. S. da Penha, templo tradicional cujas origens remontam ao ano de 1635, isto é, há três séculos. O hábil artista da objetiva fixou um aspecto encantador da igreja, tomado da planície, e que permite que seja observada a altura em que foi colocado pelos fieis o templo altaneiro, que é uma das maravilhas do rio suburbano. No presente número, em que publicamos a reportagem fotográfica do 1º domingo da Penha, nenhuma capa conviria melhor à Revista da Semana do que essa – que é um verdadeiro quadro – em que se ressaltam a beleza e a imponência tradicional da igreja carioca (REVISTA DA SEMANA, 10/10/1936).

Por fim, na edição de 12/06/1937, a publicação coloca que: estampamos na capa deste número um trecho do Trampolim do Diabo, a hoje célebre pista onde, desde 1933, se vem disputando o Circuito da Gavea. Escolhemos propositalmente um aspecto dessa arriscada raia, onde tem figurado os mais notáveis volantes do mundo porque inserimos nesse número a vasta reportagem que as nossas objetivas colheram na grande prova de domingo último. A fotografia de J.A. Vieira (...) embora não traduza o mais árduo dos trechos da pista carioca, dá ideia das dificuldades com que se defrontam os azes do volante (...) que tem que vencer curvas fechadas, retas pequenas, subidas violentas e descidas mais violentas ainda, com uma perícia surpreendente (REVISTA DA SEMANA, 12/06/1937).

Há alguns pressupostos que se repetem nesses textos de apresentação. É possível destacar, por exemplo, a insistência na função artística da fotografia, mesmo daquela de cunho estritamente referencial, como a jornalística. Além disso, é recorrente o uso do termo “a fotografia mos-

91

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

tra um aspecto” de algo, indicando uma concepção de fotografia como metonímia do mundo, como o recorte de um universo a partir um olhar seletivo. O lastro do real está alicerçado, nesse sentido, não tanto na capacidade de a foto dizer a verdade na representação, mas sim, no seu poder de materializar uma impressão – o que, nos textos, é sugerido a partir da ênfase em uma autoria demarcada. As fotografias, para esses textos, são legitimadas por sua ligação a uma impressão autoral e por um recorte específico de mundo – que direciona o olhar do leitor para um foco específico da cena retratada. A questão do olhar seletivo, inclusive, é construída não apenas pela imagem, mas também pelo texto explicativo que a acompanha. Isso porque a revista, a partir dessa construção, não deixa espaços em branco na fotografia para a interpretação do leitor. Trata-se de um mecanismo de convocação que limita a polissemia ilimitada das imagens a partir de seu ancoramento em um texto que assume não apenas a função de legenda explicativa, mas também e principalmente, apossa-se da função de foco. Na capa de 12/06/1937, não basta que o leitor veja como o Trampolim do Diabo se parece, mas sim, que ele perceba as curvas fechadas e as subidas violentas, bem como a impressão que tais dificuldades causaram no fotógrafo J.A. Vieira. Na foto 10/10/1936, não basta olhar as características da igreja meramente, mas sim, seus aspectos encantadores e a impressão causada por eles no hábil artista com a câmera. A referencialidade na Revista da Semana, portanto, era articulada a partir de mecanismos de convocação diferentes nas páginas internas e nas capas da publicação nesse período. Ao passo que, no conteúdo fotográfico interno, ela se mantinha como meramente a ilustração de um aspecto noticiado (com fotos que mostravam os personagens da história e, como legenda, seus nomes e cargos), nas capas, o lastro de verdade das capas se alicerça em uma impressão captada a partir de um foco seletivo articulado na intersecção imagem-texto. Esse direcionamento nas imagens de capa da Revista da Semana dura até meados de 1941. Ao longo da década de 1940, as composições fotográficas da capa, embora ainda sejam majoritariamente paisagísticas, se tornam mais sofisticadas e passam a obedecer outros parâmetros de legitimação referencial, aproximando-se dos padrões do fotojornalismo

92

ELIZA BACHEGA CASADEI

Capas das edições de 07/03/1942, 23/05/1942, 20/06/1942 e 13/08/1942, respectivamente

norte-americano e europeu. Em 1942 tal projeto já se encontra completamente consolidado e as capas atendem a técnicas de composição mais complexas. A revista assume o projeto de mostrar “cenas e aspectos do Brasil” (slogan este colocado em algumas das capas desse período) e isso se materializa a partir de um tipo de imagem fotográfica mais geometrizada e com a adoção de técnicas composicionais até então raras. No que diz respeito aos assuntos retratados nas imagens, nota-se que há mesmo uma mudança editorial bastante acentuada. Em 1942, por exemplo, o retrato de paisagens (tanto naturais quanto urbanas) mantém-se como o elemento que se destaca do conjunto – com 40% das ocorrências. Se as “cenas” compõem os assuntos mais retratados, os “aspectos” se traduzem em imagens que mostram tipos e personagens brasileiros (como as lavadeiras do Bonfim, os barqueiros, os índios, os nordestinos etc.), em um total de 30,5% das capas. Assuntos como política ocupam apenas 18% das publicações (como o terceiro assunto mais retratado), ainda que bastante impulsionado, nesse ano, pela pauta da II Guerra Mundial. O jornalismo comemorativo, quarto assunto mais comum, ocupa 6% e a religião, na sequência, 4% das capas. Em relação a esses tipos humanos retratados, tratava-se de uma esfera majoritariamente masculina. As capas com imagens de homens exclusivamente perfazem 48% das ocorrências – enquanto aquelas com somente mulheres podem ser observadas em 4% delas. Capas com homens e mulheres compõem 7% das imagens. As demais dizem respeito às capas que possuem paisagens sem a presença humana. Os homens

93

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

retratados na capa, nesse período, não eram identificáveis pelo nome: em apenas 9% dos casos tratava-se de pessoas célebres nomeáveis. Nos demais casos (91%), tratava-se de personagens que representavam esses “tipos humanos” que a revista buscava, materializados não individualmente, mas como membros de uma coletividade. Exatamente por esse motivo, eram raras as pessoas que apareciam sozinhas nas capas, o que se dava em apenas 20% dos casos. Em 80% das capas, as pessoas estavam acompanhadas de outros parceiros. Tal configuração conota que o tipo social representado e suas relações eram mais importantes do que o indivíduo em sua singularidade. No que diz respeito às técnicas de composição, é possível observar também algumas características historicamente marcadas, que diferem essas capas das do período anterior. Ainda é possível notar uma prevalência dos planos gerais (ideais para paisagens e cenas) com 77% das ocorrências, ante 9% de planos médios. Os planos em close figuram de forma mais sistemática, em 14% das ocorrências, em um notável aumento em relação ao período anterior. A grande novidade, porém, refere-se aos ângulos de câmera utilizados. O ângulo reto deixa de ser o único utilizado, de forma que, embora ele ainda seja dominante nas composições – em 71% das capas – já é possível notar o uso de fotos em plongèe (com 25% das ocorrências) e contre-plongèe (em 4% delas). O equilíbrio dinâmico também volta a ser mais utilizado, em 58% das imagens, em relação ao estático, com 42%. As imagens da capa da Revista da Semana, portanto, estão mais atentas aos novos padrões fotojornalísticos do período, com a adoção de fotografias mais dinâmicas e geométricas, condizentes com os padrões das revistas ilustradas internacionais. Sobre esse assunto, é possível demarcar que tal questão também diz respeito à influência exercida pelas vanguardas internacionais na fotografia de imprensa brasileira no início do século XX. A corrente pictorialista de segunda geração, especialmente aquela representada pelos fotógrafos americanos membros do Photo-Secession, foram importantes para a consolidação de um certo imaginário estético da fotografia voltado para a valorização das formas geométricas no planejamento composicional de uma imagem fotográfica, a partir da valorização das linhas de forças, formatos,

94

ELIZA BACHEGA CASADEI

molduras, texturas e contrastes como parâmetro de julgamento para se uma fotografia deveria ser considerada boa ou não. Para contextualizarmos a questão, é necessário dizer que, “tomada de posição contra as concepções corriqueiras”, os membros desse grupo, encabeçado por Alfred Stieglitz, “tinham como objetivo o reconhecimento do pictorialismo não como ‘servo da arte, mas como um meio distinto de expressão individual” (FABRIS, 2011, p. 45). O termo secessão indicava, portanto, um afastamento dos modos como a fotografia vinha sendo entendida desde então. Inspirados pelo impressionismo e pelo simbolismo, as suas temáticas centrais eram inspiradas, principalmente, pelas experiências das vivências urbanas do início do século XX e do homem comum, afastando-se, portanto, dos temas da pintura acadêmica. Segundo Fabris (2011, p. 48), “imagem técnica e cena urbana caminham paralelas. O espírito que preside a construção do arranha-céu está também presente nas imagens de Stieglitz”, de forma que “alicerçada em valores nacionais, tais realizações alcançam uma expressão universal, pois demonstram ‘um intenso interesse pela vida’, que as torna parte do patrimônio comum da humanidade”. Das características centrais da fotografia pictorialista do início do século XX, destacam-se, principalmente, a submissão ao objeto e a utilização das características potenciais do meio, o que implica em uma ode à fotografia direta. Para fotógrafos como Paul Strand, por exemplo, isso implica que, graças a essas técnicas, “o fotógrafo pode expressar o ‘próprio sentimento a respeito do mundo’, não como uma descrição de ‘estados interiores do ser’, mas como transcendência da visão individual”. E isso significa que “ele deve subsumir no interesse que a humanidade tem pela vida da qual participa” (FABRIS, 2011, p. 49). O realismo proposto pelos pictorialistas, portanto, é o de uma empatia entre sujeito e objeto, bem como o de uma aceitação e aproveitamento das propriedades da câmera, de forma que as qualidades intrínsecas do meio fotográfico deveriam ser o fundamento de sua arte e da afirmação de sua autonomia em relação a outras artes. “O ato de fotografar requer do indivíduo ‘um verdadeiro respeito pela coisa à sua frente, expressa em termos de claro-escuro (cor e fotografia não têm nada em comum) por uma gama quase infinita de valores tonais que ultrapassam a habilidade da mão humana” (FABRIS, 2011, p. 57), conseguidos pelo método da fotografia direta, sem manipulações no negativo.

95

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

A câmera era um instrumento da objetividade para os pictorialistas da Photo-Secession – mas uma objetividade entendida a partir de parâmetros bastante específicos e bem pouco consensuais. Para eles, “a objetividade pode ser organizada de duas maneiras: os objetos tanto podem ‘expressar as causas de que são efeito’ quanto ‘ser usados como formas abstratas, para criar uma emoção que não se refere à objetividade como tal” (FABRIS, 2011, p. 57). A autora explica que a objetividade defendida por pictorialistas como Strand e Stieglitz implica na manipulação do mundo pelo aparelho fotográfico, mas sem que isso signifique uma deformação da realidade. Implica, sim, em um uso consciente das técnicas de composição (como a escolha dos ângulos de câmera, dos enquadramentos, da iluminação e dos recortes) como forma de buscar os objetos no mundo real e propor um realismo inerente ao aparato. Nesses trabalhos, há uma aceitação plena do objeto situado na frente da câmera, sem o uso de processos que o deformem (como lentes especiais ou intervenções manuais) e é justamente essa aceitação que suporta imaginariamente a objetividade aludida. Mais do que o próprio objeto retratado nas imagens, contudo, está em jogo nessas imagens a organização do espaço e a construção da mise-en-scène fotográfica a partir da exploração das formas do objeto e do modo como elas se conectam entre si. Sob forte inspiração do cubismo, “mesmo tratando-se de imagens realistas, o fotógrafo está empenhado em sublinhar formas retilíneas e curvilíneas, jogos de claro-escuro, corpos geométricos sólidos” (FABRIS, 2011, p. 60), com a valorização da geometrização dos objetos e do modo como os elementos formais da composição dialogam entre si, a partir de suas regularidades rítmicas das pessoas e formas. Os objetos retratados são valorizados a partir de suas formas estruturais e são elas as únicas que podem criar os efeitos emocionais implicados na imagem. “As texturas de suas superfícies são claramente evidenciadas; as repetições rítmicas das massas e das linhas luminosas constituem o cerne das imagens” (FABRIS, 2011, p. 62), utilizando-se de parâmetros de plasticidade e composição próximos da pintura, mas que não se confundiam com ela, uma vez que as linhas, formas, ritmos e tons são obtidos por meios propriamente fotográficos. “Assim como era fotográfica sua principal qualidade: uma objetividade (mesmo nas abstrações), impossível de ser encontrada nas outras formas de arte, que não excluía uma visão pessoal” do fotógrafo “e que

96

ELIZA BACHEGA CASADEI

a diferenciava daquela produção de um registro factual, quase sempre associada à fotografia não pictorialista” (FABRIS, 2011, p. 64). A importância da percepção geométrica da imagem fica evidente no comentário que Stieglitz faz de uma de suas fotografias preferidas, “O alojamento de terceira classe”, de 1907: A cena toda me fascinava (...). Um chapéu de palha redondo, a chaminé inclinada para a esquerda, a escada pendendo para a direita, a passarela branca com suas grades de correntes circulares – suspensórios brancos cruzando-se nas costas de um homem no alojamento de terceira classe lá embaixo, formas arredondadas do maquinário de ferro, um mastro cortando o céu, criando uma forma triangular. Fiquei fascinado por um momento, sem conseguir parar de olhar. (...) Via formas relacionadas umas com as outras (apud FABRIS, 2011, p. 70).

O lastro imaginário que garante a objetividade de uma fotografia, portanto, é dado pelos sentidos da composição, da forma como os cortes, os valores tonais, a geometria e a textura dialogam entre si em uma imagem objetiva. Stieglitz e os demais membros do Photo Secession influenciaram toda uma geração de fotojornalistas, de Erich Solomon a Cartier-Bresson, para quem os efeitos de verdade de uma fotografia não podem ser apartados de suas experiências técnicas compositivas. A Revista da Semana, nesse período, aproxima suas fotografias de capa desses novos parâmetros de julgamento estético para o fotojornalismo. Isso pode se dá a partir da valorização do objeto e da exploração da intersecção de suas formas geométricas com as do cenário, aliadas a um processo de profissionalização dos fotógrafos. O equilíbrio das formas em cena, a exploração dos contrastes tonais e das texturas e o destaque aos elementos geométricos começam a fazer parte do projeto afetivo-editorial gráfico da revista, de um modo que até então não havia sido explorado nas publicações brasileiras. O consumo do princípio de testemunha, portanto, articula-se acompanhado de um novo padrão estético, que será seguido pelas demais revistas do período. No que se refere à revista O Cruzeiro, ela irá manter um padrão imagético de capa voltado para a exploração do star system europeu e norte

97

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

americano ou por figuras femininas representativas de uma classe ainda por um bom período. Nesse sentido, a Revista da Semana modernizou-se antes mesmo de sua irmã mais bem vendida. No que diz respeito ao uso do star system em O Cruzeiro, é possível dizer que as personalidades do cinema, das artes e da televisão latino-americanas eram responsáveis por grande parte das fotografias publicadas em O Cruzeiro, tanto em fotorreportagens de perfil como em pequenas notas informativas. Para Mauad (2005), grande parte das imagens de O Cruzeiro eram marcadas pela “sexualização do espaço figurativo, com a escolha da mulher como objeto central na maioria das fotos”. A valorização do corpo feminino nas fotografias publicadas, para Serpa (2003), também está relacionada ao ethos de modernidade que a revista tentava construir. Tratava-se de “uma imagem relacionada às mudanças de um país que despia suas mulheres de saias longas e as urbanizava com biquínis, blush e pó-de-arroz, ou seja, que buscava moldar o comportamento feminino como novas formas de vestir e de se mostrar para a sociedade” (SERPA, 2003, p. 20). Um determinado imaginário sobre a estética dos corpos masculinos também se materializa em fotorreportagens específicas em O Cruzeiro a partir da ótica da valorização do consumo a partir da perspectiva dos ícones da modernidade trazidas pelo american way of life. Tal como apontado por Klanovicz (2009, p. 170), “essas imagens mostravam corpos peculiares, em relações específicas que configuravam e redimensionavam hábitos e atitudes públicas” que, de todo modo, eram “portadoras do desejo de ser moderno e de uma modernidade marcada por bens de consumo norte-americanos”, em uma espécie de “consumismo modernizador de espaços e costumes que promoveu um arsenal de imagens sedutoras”, conforme já detalhamos anteriormente. O conteúdo interno de O Cruzeiro, contudo, já abrigava padrões fotográficos mais sofisticados, em um processo que irá se consolidar na década de 1940, conforme detalharemos no próximo capítulo. Além disso, a influência das vanguardas artísticas revela apenas um dos aspectos marcantes implicados no contrato testemunhal das duas publicações analisadas. No próximo capítulo, exploraremos outros aspectos composicionais importantes quanto a essa discussão.

98

CAPÍTULO 3

O consumo do princípio de testemunha a partir de diferentes narrativos pela imagem: Mudanças formais entre as décadas de 1920 e 1950

Em trabalhos anteriores, mapeamos o modo como o texto da reportagem mudou ao longo do tempo, instaurando diferentes regimes padrões de narração nas revistas do século XX no Brasil (CASADEI, 2013). Curiosamente, os regimes padrões de narração textual foram acompanhados pela mudança nos regimes padrões de narração pela imagem, o mostra como a articulação da função testemunhal em um espectro mais amplo, abarcando a reportagem em seu conjunto. Nesse capítulo, iremos mapear as diferentes convocações para o consumo do princípio de testemunha não mais a partir de seus engendramentos estéticos, como no capítulo anterior, mas sim, a partir do modo como ele se articulou no plano narrativo. Quanto a esse aspecto, iremos nos focar não mais nas capas, mas sim, no arranjo formal dos conteúdos imagéticos internos das publicações, com foco na Revista da Semana e em O Cruzeiro. Entre as décadas de 1920 e 1950, houve mudanças significativas na forma de narração das imagens, implicando em modos diferentes de consumo do princípio de testemunha, conforme detalharemos a seguir.

Diferentes articulações do consumo do princípio de testemunhas no plano narrativo

Conforme discutido nos capítulos anteriores, a Revista da Semana e O Cruzeiro, até meados da década de 1940, possuíam projetos editoriais

99

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

bastante similares, de forma que, em suas páginas, comumente podemos encontrar “comemorações, paisagens, personagens, que iam mostrando caras e cenas posadas; um ou outro flagrante, numa estética bastante ufanista” (BUITONI, 2007, p. 18). No começo do século XX, tratava-se de fotos que, de uma maneira geral, eram ainda um tanto estáticas – o que, segundo Buitoni (2007, p. 19) mostra que a fotografia ainda conservava a linguagem de suas origens, calcada no desenho e na pintura – de forma que as inaugurações, as competições esportivas ou as visitas de personalidades ilustres e políticos ao Brasil eram documentadas a partir de fotos posadas e protocolares. Todas as ilustrações sempre vinham acompanhadas de uma legenda indicativa. Os textos que as compunham, contudo, se limitavam a desfilar os nomes dos presentes nas fotos ou, no máximo, a indicar o contexto a que se referiam, sem a pormenorização de nenhuma informação que pudesse acrescentar profundidade aos retratados. Em uma fotorreportagem acerca da posse do presidente Arthur Bernardes, por exemplo, as legendas das fotos que mostravam os líderes presentes na ocasião indicavam apenas coisas como: Ao alto: o secretário do Congresso Nacional lendo os artigos do regimento relativos à Cerimônia do Chefe de Estado. Ao centro: os senadores e deputados que assistiram à solenidade, reunidos no Recinto da Câmara Federal. Em baixo: os Srs. Presidente e Vice-presidente da República, depois de empossados nos respectivos mandatos, deixando o Congresso Nacional, provisoriamente instalado na Biblioteca do Rio de Janeiro (REVISTA DA SEMANA, 30/12/1922).

Trata-se de uma estrutura que se repetia em todas as fotorreportagens publicadas pela Revista da Semana e que supunha uma grande familiaridade dos leitores com as pessoas retratadas – uma vez que não eram fornecidas informações que ajudassem a posicioná-las no contexto cultural da época. De uma maneira geral, é possível dizer que a legenda fotográfica funcionava como uma forma de preenchimento pronominal e cumpria uma função de identificação e atualização do dêitico na constituição da imagem. Posto que os pronomes são categorias gramaticais cuja propriedade

100

ELIZA BACHEGA CASADEI

é a de permitir “que o enunciador se refira a si próprio e aos personagens do ato comunicativo, não como indivíduos, mas apenas como participantes do discurso” (AZEREDO, 2011, p. 174), é possível dizer que a legenda fotográfica tinha, justamente, a função de dotar esses elementos pronominais da imagem de um significado preciso, inserindo a individualidade no ato discursivo. Em outros termos, as legendas atualizavam os dêiticos fotográficos em acontecimento. Os dêiticos são expressões linguísticas que engendram a instauração do sujeito, do tempo e do espaço no discurso. Elas possuem a peculiaridade de “não remeterem à ‘realidade’ nem a posições ‘objetivas’ no espaço ou no tempo, mas à enunciação, cada vez única, que as contém, e reflitam assim seu próprio emprego” (BENVENISTE, 1995, p. 280). O âmbito espaço-temporal da enunciação, nesse sentido, é fundamental para a caracterização dos dêiticos, que podem ser traduzidos por expressões como “aqui”, “lá”, “ele”. Sob esse aspecto, os dêiticos possuem uma realidade puramente linguística, posto que só possuem significados vazios que são preenchidos quando atualizados no momento da enunciação. Para Benveniste: Estamos na presença de uma classe de palavras (...) que escapam ao status de todos os outros signos da linguagem. A que, então, se refere o ‘eu’? A algo muito singular, que é exclusivamente linguístico: ‘eu’ se refere ao ato de discurso individual no qual é pronunciado, e lhe designa o locutor. É um termo que não pode ser identificado a não ser dentro do que, noutro passo, chamamos uma instância de discurso, e que só tem referência atual (BENVENISTE, 1995, p. 288).

Ora, as legendas fotográficas presentes na Revista da Semana e em O Cruzeiro até meados da década de 1940 tinham como função, justamente, preencher os dêiticos do discurso fotográfico, instaurando um sentido preciso ao sujeito, ao tempo e ao espaço retratado na foto. A legenda, portanto, atualizava os “eles”, os “lás” e os “hojes” da fotografia em enunciações específicas que, eventualmente, não pudessem ser reconhecidas pelos leitores apenas com a imagem. A atualização do dêitico em acontecimento proposta pelas legendas da Revista da Semana indica que não havia uma estruturação propriamente narrativa em sua constituição discursiva, mas sim, uma função

101

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

Edições de 23/02/1929 e 20/10/1928, respectivamente

meramente indicativa. Elas funcionavam como preenchimento dos elementos de identificação dêitica da imagem, limitando-se à descrição dos personagens e lugares retratados. Algo similar pode ser dito a respeito da composição fotográfica. O movimento na fotografia será uma técnica adotada mais tarde, em torno da década de 1940, como pode ser observado nas fotografias da Revista da Semana colocadas abaixo: A fotografia estática é mesmo a marca da imprensa brasileira até, pelo menos, o final da década de 1930, com composições sem grande profundidade de campo, com equilíbrio estático e marcadas pelo olhar direto do retratado para a câmera. Havia, certamente, o fato de que os próprios recursos técnicos disponíveis acabavam por direcionar o trabalho do fotógrafo, fazendo com que ele preferisse realizar fotografias posadas em suas composições (especialmente de personalidades e ícones políticos) e de paisagens estáticas. Os aparelhos fotográficos eram ainda grandes e pesados o que, em grande medida, dificultava o movimento. Essa articulação composicional da fotografia, contudo, embora determinada por expedientes técnicos, acabava por engendrar um efeito de testemunho interessante a partir da articulação entre a fotografia e o texto. Conforme destacamos em outras ocasiões (CASADEI, 2013), a articulação da função testemunhal na parte escrita das reportagens da Revista da Semana estava toda engendrada a partir do explicitamento do repórter enquanto actante narrativo, em um texto em que o próprio trabalho da reportagem é descrito em detalhes, com uma proeminência

102

ELIZA BACHEGA CASADEI

bastante acentuada no papel do jornalista, nas suas impressões e nos seus métodos de apuração – marca de uma imprensa que adora remeter a si própria, para além do fato noticiado. Para além desta referência inicial ao trabalho da imprensa, todo o relato prossegue a partir da adoção do ponto de vista do lugar ocupado pelo repórter e suas impressões. Diferentemente do que estamos acostumados nas reportagens atuais, as marcas de objetividade se davam pela esfera testemunhal, de forma que toda a articulação do relato é dada pela fala do repórter que, no nível textual, se coloca como a principal testemunha e narrador em primeira pessoa. Em termos mais precisos, é possível dizer que, nas reportagens da Revista da Semana, é o repórter o actante narrativo que monopoliza a função testemunhal do narrado: é em torno de seu testemunho que se articula o modelo de verdade do relato tecido. Nas narrativas da Revista da Semana, o repórter funciona como um actante que não apenas organiza o espaço textual, mas sim, que monopoliza a função testemunhal enquanto prova de verdade imaginária. Se, ao longo do século XX, a narrativa jornalística em revista irá eleger outros actantes para cumprir essa função, neste momento, esta é função do personagem-repórter. Tal como apontado por Duccini (2013, p.26), essa articulação da função testemunhal trabalha com “uma qualidade estética (...) em que a legitimidade do relato não mais se atesta pela objetividade, mas pela ênfase no lugar de onde se enuncia: o espaço de uma experiência irredutível, particular, em oposição às categorias universalizantes”. E é nesse sentido que “as narrativas que se ordenam por um efeito de real deslizam então de um realismo de matiz histórico para um realismo dos afetos, das subjetividades”. Nesse jogo, é a realidade da inscrição que toma o primeiro plano da narrativa, em que se enfatiza o envolvimento e o engajamento do narrador com aquilo que é objeto de sua narração. “O realismo dos afetos”, portanto, “tem na ênfase da experiência subjetiva seu valor ético e estético”. É assim que “as dimensões do testemunho, da autorrepresentação, do envolvimento pessoal com aquilo que narra, do sofrimento (no sentido patético) que se experimenta ‘em primeira pessoa’ e, eventualmente, do amadorismo ganham compleição” (DUCCINI, 2013, p.83). Essa urdidura narrativa específica, típica das reportagens da Revista da Semana e de O Cruzeiro até meados da década de 1940, manifesta não

103

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

apenas uma característica do texto, mas sim, um espectro mais amplo do modo como a função testemunhal funcionava naquele modelo de jornalismo, de forma que ela se coaduna com a forma como a função testemunhal estava posta nas próprias fotografias. As fotografias publicadas na Revista da Semana e em O Cruzeiro até meados da década de 1940 partilhavam algumas características composicionais comuns, que podem ser observadas nas Imagens 1 e 2, acima. Em primeiro lugar, fica óbvia a formação de uma pose estática. A pose fotográfica, para Machado (1989, p. 44), é “uma tentativa de fixar a eternidade nesse instante fugaz em que o obturador dá a sua piscadela; é a luta para introjetar no momento aleatório da fotografia o momento ideal da pintura”. E é por isso que, “para reprimir o inconsciente que pulsa no obturador da câmera, nós nos petrificamos diante dele, como uma estátua grega ou renascentista, e forjamos no bronze de nosso corpo a imagem ideal que supomos ser ou que queremos ser”. Tal como uma “armadura arcaizante”, a pose é mesmo “uma espécie de vingança do referente: se for inevitável que a câmera roube alguma coisa de nós, que ela roube então uma ficção” (MACHADO, 1989, p. 45). Além de serem claramente posadas, é possível perceber que essa pose não era aleatória ou composta de qualquer forma: as suas características faziam com que o aparato fotográfico ficasse explícito a todo o momento na representação. A fotografia da Revista da Semana é composta a partir de um personagem que olha diretamente para a câmera e, ao fazê-lo, explicita não apenas o aparato, como também a presença ostensiva do repórter no local do fato, posicionando-o como um personagem pressuposto na fotografia. A esfera testemunhal, nas reportagens da Revista da Semana, está articulada justamente a partir desse efeito de real que se constrói a partir do investimento pessoal do repórter. No texto, isso se materializa a partir do repórter enquanto actante que monopoliza a função testemunhal; na imagem, isso se dá a partir do olhar do fotografado para o aparato que, a partir de um efeito de quebra da quarta parede, explicita a presença do repórter no local do fato noticiado. Para essa articulação narrativa específica da função testemunhal na fotorreportagem, é a corporalidade do repórter que garante o cumprimento da veracidade do relato. O repórter era o actante narrativo central

104

ELIZA BACHEGA CASADEI

que fornecia o lastro de veracidade do relato; era ele quem assumia o papel do fiador que supostamente garantiria não apenas que o acontecimento aconteceu, mas que ele se processou daquela maneira específica já que ele o viu. A fotografia, articulada dessa forma, com o olhar ostensivo do retratado para o repórter e para o aparato, garantia que o jornalista, de fato, estava lá. O consumo do testemunhal como um lastro de veracidade, portanto, estava inserido em uma estrutura que coadunava o texto da reportagem (a explicitação do repórter no lugar do fato e a exploração de suas técnicas de apuração como recurso narrativo), a legenda (como dêiticos que identificavam os demais personagens para além do repórter) e a fotografia (com suas imagens posadas que explicitavam a presença do repórter no local do evento retratado) em uma mesma estrutura. Os três elementos estão inter-relacionados em um mesmo modelo para obtenção de um efeito de real a partir de um martírio do repórter – na medida em que todo o relato é articulado a partir da figura de linguagem chamada pelos gregos de martyria (μαρτυρία), que consiste na figura de estilo que “confirma algo pela própria experiência de alguém” (LANHAM, 1991, p. 188). O regime narrativo formado pelos códigos padrões que compõem as estórias contadas pela Revista da Semana em articulação com as fotografias e legendas publicadas pode ser articulado, portanto, a partir da inserção do código autorreferencial como matriz da narrativa – e enquanto elemento que articula tanto os elementos organizadores do texto quanto a matriz de verdade presumida do relato – que atuam tanto no reforço da função testemunhal do repórter quanto em determinados procedimentos estéticos ligados à semantização do acontecimento. Para além das fotografias posadas, é possível encontrar, nas páginas da Revista da Semana, uma outra série de fotografias que enfatizam o próprio trabalho do repórter, mostrando a sua presença in loco. Nessas imagens, o repórter/fotógrafo aparece não somente como personagem pressuposto na imagem, mas como um actante visível na composição fotográfica. Essa configuração narrativa da função testemunhal no fotojornalismo será rearticulada a partir dos anos 1940. Essa mudança será fruto de inovações tecnológicas (como a adoção das câmeras de formato 135, que

105

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

Edições de 24/02/1923 e 12/07/1941, respectivamente

permitiam uma melhor mobilidade do fotógrafo, e os filmes que dispensavam o uso de flash), mas acaba por engendrar uma nova formulação da função testemunhal na fotografia e em sua relação com o texto mais amplo da reportagem. A fotografia jornalística brasileira passa a adotar padrões europeus e norte-americanos a partir dos anos 50, com o abandono das antigas fotos posadas. Nesse quesito, O Cruzeiro encabeça os novos padrões no imaginário da visualidade nacional na década de 1940, acompanhado pela Revista da Semana. Segundo Lacerda (1994, p. 119), “os nossos primeiros repórteres fotográficos eram provenientes das classes populares, pessoas sem formação e com instrumental técnico inadequado à sua atividade”. Esse é um retrato das primeiras quatro décadas de fotografia nas revistas brasileiras. “A situação só se modificou a partir da reformulação da revista O Cruzeiro na década de 1940, o que modificou definitivamente o estatuto social do fotógrafo de reportagem”. Até o final dos anos 30, no Edifício dos Diários Associados na Rua 13 de Maio, as vendas de O Cruzeiro não andaram muito bem. Foi no começo da década de 40 que a situação começou a mudar. Frederico Chateaubriand, sobrinho de Chatô, passou a ocupar a direção da revista. Freddy, como era mais conhecido, montou uma equipe jovem com repórteres e fotógrafos profissionais e promoveu a especialização de serviços em vários departamentos da revista. Da nova equipe, Jean Manzon foi um dos principais vetores da atualização de O Cruzeiro. Fernando Morais (1994) conta que Manzon, acostumado

106

ELIZA BACHEGA CASADEI

ao padrão de qualidade das publicações internacionais, ao folhear pela primeira vez algumas edições antigas de O Cruzeiro, afirma para Freddy que a ilustrada não podia ser considerada uma revista, pois mais parecia “um catálogo, uma galeria de retratos parados, idênticos”. Com a chegada do fotógrafo francês à redação da revista em 1943, dá-se início uma reformulação gráfica e editorial em O Cruzeiro, com base nas maiores revistas internacionais de atualidades. Incorporam-se grandes reportagens e fotorreportagens. Conta Morais (1994, p. 429) que, no momento de sua contratação, Manzon, folheando ao lado de Freddy uma coleção de números antigos de O Cruzeiro, o sofisticado fotógrafo habituado à qualidade e ao requinte de Paris Match se espanta: (...) dezenas de fotos minúsculas são estampadas uma ao lado da outra, como se fossem uma coleção de selos. Tudo isso sobre um papel tão ruim que, mesmo com máquinas de boa qualidade, para aquele europeu habituado ao requintado papel couchê de Paris Match a impressão sugeria que as fotos fossem manchas de tinta (o que levaria Millôr Fernandes a dizer debochadamente, anos depois, que aquela parecia ‘uma revista impressa com cocô’). O francês estava desanimando quando Freddy fez-lhe um desafio: - Manzon, a partir de hoje a capa da revista e mais dez páginas internas são responsabilidade sua. Eu lhe dou carta branca para trabalhar, você faz o que quiser.

Manzon implementa um programa editorial orientado ao modelo da Match (revista francesa em que trabalhou nos anos 30, antes de chegar ao Brasil), que privilegiava o uso da foto posada, do truque e do sensacionalismo (COSTA, 2012). Na redação de O Cruzeiro, com o hábito da imprensa europeia de parear repórter e fotógrafo, Jean Manzon começa a trabalhar com David Nasser. Uma das primeiras reportagens da dupla, publicada em 27 de novembro de 1943, chamada “Os loucos serão felizes?”, retrata uma visita ao Hospital Nacional de Alienados, na Praia Vermelha. Na publicação do texto e das fotos, Luiz Maklouf Carvalho (2001) descreve o resultado: Essa matéria estabelece um novo padrão de concepção gráfica, no mesmo estilo das revistas Life e Match: abertura em página dupla;

107

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

prioridade absoluta para a imagem, com foto sangrada na página ímpar; titulação de impacto no tamanho e no conteúdo, geralmente sensacionalista. Os chamados ‘boxes’ – textos de apoio à matéria principal – aparecem pela primeira vez. Subtítulos e linhas finas completam as novidades. O resultado é a integração do trabalho de repórter e fotógrafo num terceiro produto padronizado pela edição.

O clima de concorrência em relação às revistas estrangeiras foi também o que motivou, em grande medida, a vinda de Jean Manzon, posto que ele que já tinha vasta experiência em outras revistas estrangeiras, a trabalhar em O Cruzeiro. Posteriormente, ele se tornaria um dos fotojornalistas pertencentes ao grupo que fundou a Paris Match. Morais (1994, p. 428), conta a história da conversa que o Manzon teve com Freddy Chateaubriand ao contratá-lo: Ao primeiro contato com aquele aventureiro francês, Freddy percebeu que estava diante de um repórter nato, e convidou-o a deixar o DIP e ir para O Cruzeiro. Manzon topava, mas o salário que ele pedia era tão alto que só o tio dono podia decidir. Chateaubriand quis conhecer o fotógrafo, e, ao entrar naquela sala desarrumada, Manzon, que havia coberto tantas guerras, fica surpreendido pela inesperada visão do que está sobre a mesa do jornalista: um cinturão recheado de balas e com dois revólveres carregados. Chateaubriand repara no olhar dele e comenta: — Tenho muitos inimigos. Em certas horas só posso contar comigo mesmo para me defender. Sem rodeios, emenda com uma pergunta que o francês não esperava tão cedo: — Quanto é que o senhor ganha no DIP? — Dois contos de réis. — Meu Deus, é uma fortuna! Só o governo mesmo pode pagar um salário desses! Manzon não queria conversa fiada: — Muito bem. Então nosso encontro está encerrado. Passe bem. — Ora, não fique bravo. É que O Cruzeiro precisa de alguém com sua experiência, é uma revista muito feia, precisa vender mais... — Pois bem. Seu sobrinho Freddy me disse que o senhor quer que eu transforme e levante a revista. Isso vai lhe custar quatro contos de réis por mês.

108

ELIZA BACHEGA CASADEI

— O senhor deve estar louco, quer a minha ruína. Mas, como eu também não bato bem da cabeça, aceito experimentar, por amor a O Cruzeiro. Sabendo que estava pagando um salário milionário ao fotógrafo, assustou-o com uma exagerada frase de efeito: — Trate de conseguir resultados rapidamente, senão é a falência, seu Manzon.

De acordo com um relato de Morais (1994, p. 427), Manzon teria se apaixonado pelo Brasil logo de imediato: “ele tinha vontade de beijar as pessoas na rua”. Sobre sua entrada no DIP, Morais conta que Alberto Cavalcante, que já havia trabalhado com Manzon no serviço cinematográfico de guerra inglês anteriormente, “o havia recomendado à poetisa e jornalista Adalgisa Nery, que era casada com Lourival Fontes, homem forte de Getúlio e diretor do DIP”. E, assim, “convidado a montar o departamento de fotografia e cinema do DIP - e já amigo de gente como os jornalistas Antonio Callado e Egídio Squeff, e de escritores como Clarice Lispector e Lúcio Cardoso -, Manzon logo percebeu que não sairia mais do Brasil”. A mudança no padrão estético e informativo da revista leva a tiragem da semanal a subir de 48 mil exemplares em 1942, para 300 mil em menos de 10 anos, com alto faturamento publicitário e bem à frente das concorrentes. A formação de uma cultura de massa no Brasil e atualização da revista a leva ao seu período de maior prestígio e relevância social. Accioly Netto (1998) afirma que, já na Rua do Livramento, “O Cruzeiro viveria a melhor de suas fases, tornando-se ao longo da década de 40 a maior revista de toda a América Latina, até viver seu apogeu absoluto no início dos anos 50”. Em 1954 na cobertura da morte do presidente Getúlio Vargas, dez anos após a entrada de Manzon, a revista alcançou sua maior tiragem: 720 mil exemplares. As novidades na forma e conteúdo foram em muito influenciadas pela revista francesa Paris Match e pela revista Life, fundada em 1936, que eleva a fotografia a uma linguagem específica, e não mais como mera ilustração. Com base na fotografia autoral e em novas experiências visuais estéticas, a narração dos fatos dentro das revistas segue uma linha dinâmica, quase que cinematográfica. As fotos coloridas em grande formato renovam a linguagem da semanal, e segundo Mauad (2005) “a revista O

109

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

Cruzeiro promoveria uma reformulação geral no padrão das publicações ilustradas, que tiveram de reordenar toda sua linha editorial para concorrer com o novo padrão estético imposto”. Quando O Cruzeiro atingiu sua fase de maior sucesso, era uma revista essencialmente eclética, destinada a ser lida por um público diversificado, de todas as classes sociais, incluindo homens e mulheres. Num país com milhões de analfabetos, o apogeu da revista foi o que se chamou de ‘milagre editorial’: com tiragem de cerca de 850 mil exemplares circulando em território nacional, calculava-se – imaginando que cada exemplar seria lido por cinco pessoas – que O Cruzeiro passaria pelas mãos de nada menos que quatro milhões de leitores a cada semana, espalhados por oito milhões de quilômetros quadrados. Estes números são ainda mais impressionantes se pensarmos que nos anos 50, apogeu da revista, a população do Brasil mal passava dos 50 milhões de habitantes (NETTO, 1998).

Para Leite (2011), é possível identificar duas linhas distintas de composição e linguagem fotográfica na revista: em um primeiro grupo, encontravam-se fotógrafos que se preocupavam com a construção da cena fotografada (como Jean Manzon, Indalécio Wanderley, Peter Sheir e Ed Keffel), em imagens elaboradas e com a utilização de máquinas de grande formato. No outro grupo, pode-se posicionar fotógrafos que preferiam a utilização de máquinas mais compactas e leves, de pequeno formato, mais ligados a um jornalismo de acontecimentos, mais contemporâneo, com representantes como José Medeiros, Flávio Damm e Eugênio Silva. “A chegada do fotógrafo francês Jean Manzon, da revista Paris Match, em 1944” à revista O Cruzeiro, “coincidiu com a formação de um grupo de fotógrafos brasileiros, influenciados pelas revistas ilustradas estrangeiras e sintonizados com o movimento fotográfico internacional” (FERNANDES JUNIOR, 2003). Nesse sentido, O Cruzeiro é uma publicação pioneira, na medida em que lidera essas novas formas do olhar fotográfico no jornalismo em revista. Com nova e aprimorada concepção gráfico-editorial, a revista de cerca de 100 páginas, reserva de 20 a 30 por cento do espaço a publicidade. Retratando iconograficamente o Brasil, o fotojornalismo na revista,

110

ELIZA BACHEGA CASADEI

posteriormente, passa por uma renovação, contrapondo os métodos de trabalho e o estilo sensacionalista, de veracidade um pouco duvidosa, de Jean Manzon a um modelo de fotojornalismo mais humanista. O advento do jornalismo mais ágil e participativo, em contraposição ao fotojornalismo encenado praticado por Jean Manzon, ganharia força na revista a partir de então pelo empenho de fotógrafos como José Medeiros, Luciano Carneiro, Flávio Damm, Luiz Carlos Barreto e Eugênio Silva. A saída de Jean Manzon da revista, em 1951, iria contribuir para consolidar essa nova orientação. Não se tratava de desavenças de ordem pessoal, mas do confronto de visões de mundo antagônicas. No lugar de uma fotografia posada e essencialmente simbólica que se afirmava pela verossimilhança, impunha-se agora uma fotografia que buscava ser, ou ao menos parecer, espontânea, visando legitimar-se segundo os princípios da veracidade (COSTA, 2012).

Os repórteres de grande nome compunham parte fundamental da sustentação da revista. Trata-se de uma mudança temática também bastante acentuada. Uma das características apontadas por Mauad (2005) a respeito das fotografias publicadas em O Cruzeiro diz respeito ao grande número de fotografias que retratavam ambientes estrangeiros, com destaque para a Europa Ocidental e Hollywood, conforme também mapeamos nos capítulos anteriores. “Da Europa Ocidental chegavam notícias das guerras e dos grandes fatos que marcaram a história contemporânea da humanidade”. Além disso, “era com Hollywood que o carioca se reciclava e assimilava o padrão burguês de comportamento como uma norma de atitude” (MAUAD, 2005). Para a autora, isso pode ser explicado a partir do próprio projeto editorial da revista, que se pretendia mais cosmopolita do que as suas concorrentes e, por causa disso, mantinha contato direto com as agências internacionais de notícias (como a Schert de Berlim, ABC de Lisboa e o Consórcio Internacional de Imprensa de Paris) e possuía uma série de correspondentes internacionais. Uma amostra do dinamismo da revista é dada por Morais (1994, p. 486) quando ele comenta que, em um exemplar de 1946, colhido ao

111

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

acaso, é possível encontrar “na mesma semana em que Wainer enviava reportagens especiais de Caracas sobre a exploração de petróleo em território venezuelano, Carlos Lacerda escrevia de Paris sobre o bairro de Montmartre, e a dupla Nasser-Manzon mandava do Cairo matérias sobre arqueologia no Egito”. Esse amplo espectro internacionalizante, contudo, também engendrava uma série de ausências. Tal como apontado por Mauad (2005), “o Leste Europeu e o Oriente surgem”, na edição nacional da revista, “somente como paisagens exóticas”, assim como as áreas mais pobres do Brasil e da América Latina, que “são apagados da imagem dominante como uma realidade inexistente por serem equiparados à condição de periferia na configuração da geopolítica ocidental burguesa”. É possível entrever que havia um claro projeto nacionalista nas fotorreportagens de O Cruzeiro. Havia, no projeto editorial da revista, uma tentativa de mostrar que a cultura brasileira estava afinada com as ideias de desenvolvimento econômico, material e cultural das civilizações do primeiro mundo. Por isso, não eram incomuns fotorreportagens que destacavam o crescimento urbano, industrial, científico e tecnológico do país. Nesse sentido, era comum encontrarmos fotos de indústrias, máquinas e laboratórios, que representavam ícones do desenvolvimento e da tecnologia. Como destaca Meyrer (2010, p. 200) “para O Cruzeiro, o desenvolvimento se constituía num projeto civilizatório”, de forma que o objetivo de Assis Chateaubriand era mesmo inserir a região em um imaginário de “mundo civilizado”. Para a autora, ”para pôr em prática tal objetivo, a revista empenhou-se em difundir padrões de comportamento e cultura mais adequados ao modelo de desenvolvimento que defendia, participando, assim, da luta simbólica pela imposição de uma determinada visão do Brasil”. A concorrência com as revistas ilustradas estrangeiras também se torna mais acirrada na década de 1940. Tacca (2009, p. 19) chama a atenção para o fato de que “os enfrentamentos com revistas estrangeiras eram um ponto importante de afirmação para O Cruzeiro como produto de um jornalismo autêntico e nacional”. As mudanças no conteúdo da imagem são acompanhadas por outras formas de urdiduras textuais, de forma que outros códigos padrões de

112

ELIZA BACHEGA CASADEI

narração assumem o primeiro plano do relato, com consequências para a materialização da função testemunhal na reportagem. Em O Cruzeiro, embora o testemunho do repórter continue a exercer um papel essencial enquanto matriz de verdade presumida no jornalismo de revista, outras figuras testemunhantes passam a dividir o espaço com o repórter (não enquanto sujeito empírico, mas sim, em sua posicionalidade como personagem atuante na narrativa), rearticulando, com isso, a própria função testemunhal no jornalismo. Ao contrário do período anterior, o repórter passa a dividir a sua experiência com outros atores participantes do evento. Ele passa a dividir a função testemunhal com outras testemunhas (CASADEI, 2013). Mesmo que o texto ainda seja escrito em primeira pessoa, a partir da década de 1940, O Cruzeiro passa a adotar novas formas estéticas de materialização da voz da fonte no nível da narrativa da reportagem – um procedimento que, mesmo nesta época, era pouco usado pela Revista da Semana. A voz da fonte, finalmente, se autonomiza da voz do repórter, sem que a voz do jornalista tenha que falar por elas, servindo-lhes como fiador. Nas reportagens de O Cruzeiro, portanto, não é mais o repórter que tem os privilégios exclusivos da função testemunhal: a partir deste momento, outras vozes são ouvidas na narrativa e outros atores passam a exercer o testemunho enquanto ato, ou seja, a confiabilidade do relato não depende mais da exclusividade da corporalidade do repórter enquanto instância fiadora do relato. Tais rearticulações narrativas textuais são também materializadas no uso das legendas e nos aspectos composicionais das fotografias. No que se refere às legendas, há o surgimento do que podemos chamar de legenda narrativa. A mudança na estruturação narrativa da legenda é evidente nesse período, como pode ser notado a partir dos exemplos descritos a seguir. Em março de 1958, O Cruzeiro publica uma reportagem sobre um historiador que afirmava, categoricamente, que Getúlio Vargas teria sido assassinado. As fotos que ilustram as reportagens recebem legendas como: “o historiador Augusto de Lima Jr. exibe ao repórter um dos documentos em que firma sua tese” ou “Esta era a cama de Getúlio Vargas no Palácio do Catete. Aí o presidente foi encontrado deitado em sentido transversal, com a perna pendente” (O CRUZEIRO, 15/03/1958). A

113

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

narrativa exposta pela reportagem e ilustrada pela fotografia é reforçada, portanto, a partir do uso das legendas. Em uma reportagem sobre Juscelino Kubitschek publicada na edição de 27/01/1951, há uma sequência de fotos com as seguintes legendas: “O Sr. Kubitschek recebe o diploma e os cumprimentos dos membros do TRE”, “A esposa do novo governador, Sra. Sara Kubitschek, assiste à diplomação do marido”, “D. Julia Kubitschek, mãe de Juscelino, também compareceu à diplomação do filho”, “O Vice-governador, Dr. Clóvis Salgado. É médico, como Dr. Juscelino Kubitschek”. A partir desses exemplos, fica claro o modo como a legenda deixa de assumir meramente uma função de preenchimento pronominal no discurso fotográfico e passa a incorporar uma série de outras informações, principalmente a partir da articulação de um embrião narrativo. A definição clássica de narrativa posiciona esse conceito como uma forma de estruturação discursiva a partir da qual há “a passagem de um estado inicial para o final” (GOMES 2009). Assim, se narrar é contar uma história, “os discursos possuem, dessa maneira, uma forma narrativa, ou seja, são definidos por funções a serem desempenhadas pelos sujeitos no desenrolar da história contada, imprimindo transformações por meio de ações movidas pelo desejo de seus atuantes” (SOARES, 2010, p. 58-59). Para Claude Bremond, um texto deve obedecer a algumas condições prévias para que possa ser considerado uma narrativa. Primeiramente, “onde não há sucessão, não há narrativa”, uma vez que se os objetos do discurso são associados apenas por uma contiguidade espacial, estaremos diante de uma mera descrição. Além disso, “onde não há integração na unidade de uma ação, não há narrativa, mas somente cronologia”, ou seja, apenas uma “enunciação de uma sucessão de fatos não coordenados”. Por fim, não existe narrativa quando o interesse humano não está posto, uma vez que “é somente por relação com um projeto humano que os acontecimentos tomam significação e se organizam em uma série temporal estruturada” (BREMOND, 1976, p. 114). Nas legendas da revista O Cruzeiro é possível notar que há mais meramente o preenchimento e atualização dos dêiticos da imagem, mas sim, já há a pressuposição de instituição de uma narrativa, na medida em que conta uma estória em que há a passagem de uma situação inicial para uma

114

ELIZA BACHEGA CASADEI

situação final movida por pressuposições acerca dos desejos e ações dos actantes presentes nas imagens. As legendas fotográficas, a partir desse momento, não são meramente descritivas, mas sim, passam a incorporar esses elementos que a posicionam do lado do discurso narrativo. Obviamente, isso tem implicações importantes para o próprio entendimento das imagens e para os possíveis direcionamentos de sentido. A legenda enquanto narrativa opera a passagem entre uma mera sucessão e descrição de eventos para uma sucessividade orientada de acontecimentos, de forma que há a suavização de determinados elementos e o realce de outros considerados de maior importância para a argumentação proposta. A inserção da ação narrativa na legenda complexifica os mecanismos de atribuição de sentido, na medida em que chama a atenção para determinados detalhes da foto e insere, frequentemente, sentidos que não poderiam ser entendidos caso a legenda não estivesse presente. A legenda narrativa, desta forma, não apenas descreve a foto, mas instaura um comentário acerca do que deve ser percebido nas ações dos personagens que são ali retratados. A legenda narrativa institui uma urdidura de enredo para a foto, propondo entendimentos outros acerca da imagem a que faz referência. É interessante notar como essa rearticulação da função testemunhal na reportagem como um todo também se coaduna aos novos regimes de imagem praticados por O Cruzeiro. As fotografias posadas, com o retrata-

Edições de 24/02/1923 e 12/07/1941, respectivamente

115

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

do que olha diretamente para a câmera são substituídas por imagens que valorizam o acontecimento e escondem o aparato. As fotografias de O Cruzeiro, para Jaguaribe e Lissovsky (2006, p. 90), “pretendiam ser bem mais do que meras ilustrações. Conformam um gigantesco empreendimento pedagógico e publicitário autônomo, que faz uso de várias estéticas modernas para representar ‘a invenção do futuro no presente’”, no intuito de tornar visível a modernização brasileira. Ainda no que concerne à fotografia, a incorporação de outras linguagens midiáticas à estrutura da revista se fazia sentir por toda a sua elaboração. Nesse sentido, é bastante claro o modo como o personagem é valorizado na ação, de forma que o surgimento da autonomização da fonte na narrativa escrita é acompanhado pelo engrandecimento da fonte na composição imagética. Nesse novo modelo de composição fotográfica, o fotógrafo some do relato – em contraposição ao que era comumente feito antes da década de 1940. O aparato não é mais explicitado, em função de uma valorização do personagem. Novamente, aqui, a legenda, o texto da reportagem e a fotografia compõe uma estrutura única do consumo do testemunho na publicação, estando coadunadas a um lastro de veracidade a partir do testemunho em terceira pessoa. Se preferirmos os termos de Gombrich (2012), a mudança na composição imagética entre as décadas de 1920 e 1940 representa uma passagem no modo como era representada a ação narrativa: se, na primeira, havia uma valorização de o quê na fotografia, a partir de meados de 1940 passa-se a retratar o como da ação na imagem, em uma solução visual que propõe uma dramatização do ato retratado no texto. Ao valorizar o como da ação, a fotografia se descola da proeminência dada ao repórter no primeiro período: enquanto mais um dos actantes narrativos presentes na narração do acontecimento, a ênfase da ação fotográfica se desloca para os outros personagens envolvidos na ação e para a forma de seu envolvimento dramático.

Enquanto isso, nas capa

Ao passo que podemos observar essas mudanças em termos do conteúdo interno das revistas, as capas da Revista da Semana e de O Cruzeiro

116

ELIZA BACHEGA CASADEI

adotam estratégias bem mais tradicionais. O uso do star system da época como principal modo de convocação urde as estratégias de O Cruzeiro ao longo das décadas de 1940 e 1950. Após alguns anos enfatizando as paisagens naturais e os tipos brasileiros, a própria Revista da Semana se reaproxima da concorrente e passa a adotar as mesmas estratégias de composição de utilizar mulheres bonitas e famosas na capa – o que pode ser observado até os anos finais de existência da publicação. No ano de 1958, por exemplo, das capas da Revista da Semana, 74,5% possuíam apenas mulheres na capa, 10% apenas homens e 8% homens e mulheres (os demais 7,5% não possuíam pessoas na capa, apenas paisagens naturais). Afirma-se, portanto, o delineamento de um público-alvo majoritariamente feminino. Os personagens eram compostos majoritariamente por artistas (atores, modelos e cantores), sendo que poucas edições remetem a acontecimentos quentes – como, por exemplo, a foto de um foguete que representa a corrida espacial norte americana, a cobertura da Copa do Mundo ou a morte do papa Pio XII. Assim sendo, 94% das personalidades podem ser identificados pelo nome (apenas 6% não o são). Há, nessas capas, ainda, a forte valorização do indivíduo (em detrimento de suas relações pessoais), o que se manifesta em algumas das características de composição. Em 87% das capas, por exemplo, as pessoas aparecem sozinhas. Há também, em relação ao período anterior, um uso mais acentuado dos planos em close (em 25% das capas) e médios (60%) e uma queda no uso dos planos gerais (presente em 15% delas). Esteticamente, as capas passam a valorizar mais o movimento, com um uso mais acentuado do equilíbrio dinâmico (63%) em detrimento do estático (37%). No mesmo período, O Cruzeiro irá adotar estratégias bem semelhantes a essa. Tomando-se como referência o ano de 1958, nota-se também uma forte presença do star system feminino nas capas: 86% delas é composta unicamente por mulheres, 6% unicamente por homens e 6% por homens e mulheres (os 2% restantes são formados por capas sem a presença de pessoas em sua composição). Das capas com pessoas, 96% delas são compostas por celebridades que podem ser identificadas pelo nome (em detrimento de personagens que representam instâncias ou processos sociais) e em 82% dos casos elas aparecem sozinhas (conotando a valorização do indivíduo em detrimento de suas relações pessoais).

117

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

Em termos das estratégias técnicas de composição, as semelhanças também se mantêm. Quanto aos enquadramentos, os closes se tornam mais importantes do que no período anterior (com 28% das incidências) e há uma predominância dos planos médios (em 50% das capas). Os planos gerais perfazem apenas 22% das capas, indicando uma prevalência do indivíduo em relação ao contexto em que eles está inserido. As imagens também exibem maior movimento, com um uso mais acentuado, em relação ao período anterior dos ângulos em plongèe (4%) e contre-plongèe (28%), embora o ângulo reto continue predominante (68%). O equilíbrio dinâmico também é mais utilizado, em 56% das capas, em detrimento do estático (em 44% delas). A partir dos dados apresentados, é possível destacar que, em termos de estratégias de convocação para o consumo, as técnicas imagéticas utilizadas se mantém constantes nas capas da Revista da Semana e de O Cruzeiro até o final de suas publicações. Estratégias convocacionais radicalmente diferentes poderão ser observadas em um período posterior, a partir do estudo das capas da revista Realidade, conforme analisaremos a seguir.

118

CAPÍTULO 4

A convocação pela justaposição de imagens na revista Realidade: Ênfase no processo e um novo lugar de autoridade para o jornalismo

Ao colocar a pergunta “O que as imagens realmente querem?”, Mitchell (2015) desloca a perspectiva a partir da qual elas são normalmente interrogadas. Posto que a ênfase dada pelas correntes teóricas vinculadas às questões interpretativas, retóricas e hermenêuticas está no desvendamento do desejo do produtor ou no entendimento de que a imagem é um mecanismo que suscita desejos no espectador, Mitchell propõe inverter a perspectiva e olhar a própria imagem como um dispositivo desejante. E, ora, a quem deseja, sempre falta algo. O que falta então à imagem? A resposta dada por Mitchell a essa pergunta é categórica: à imagem falta poder. Para chegar a tal conclusão, Mitchell faz uma crítica a abordagens teóricas que expõem a imagem como um agente poderoso de manipulação ideológica. “Certamente, as imagens não são desprovidas de poder, mas podem ser muito mais frágeis do que supomos” (MITCHELL, 2015, p. 171). Para isso, a persona que ele dota a imagem desejante não é aquela vinculada à figura do dominador, do hegemônico ou do prevalente. A persona da imagem desejante estaria mais próxima das figuras subalternas ou das minorias, no sentido de corporificações que lutam

119

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

(e desejam) por um poder que não têm. As imagens, “acima de tudo, gostariam de exercer alguma maestria (maistrye) sobre o espectador”. Em outros termos, “Fried resume a ‘convenção primordial’ da pintura nos seguintes termos: ‘uma pintura deve, primeiramente, atrair o espectador, depois prender seu olhar e finalmente encantá-lo” (MITCHELL, 2015, p. 173). As imagens, para o autor, portanto, desejam um poder que é manifestado como falta e não como possessão. Seu poder persuasivo se estrutura mais como desejo do que como efetividade (o que explica porque certas imagens propagandísticas não possuem eficácia alguma). A despeito de seu desejo persuasivo, tal vontade nada diz sobre seu poder real, de forma que a única coisa que podemos inferir sobre as imagens é a construção desse desejo em relação a fantasias de poder. A imagem é um dispositivo afônico, uma vez que, “para ser claro, as fotografias não dizem nada (...) permanecem mudas”. No entanto, “qualificá-las de ‘silenciosas’ seria talvez mais apropriado na medida em que esse epíteto designa um estado (o silêncio) mais do que uma ausência” (MARESCA, 2012, p. 37). Isso significa dizer que a quietude das imagens se dá não necessariamente pela ausência de voz, mas sim, porque essa voz é sempre delegada a outrem, que diz o que a imagem supostamente quereria dizer. Assim, para Mitchell, “acima de tudo”, portanto, a imagem “quer ser escutada” (MITCHELL, 2015, p. 184). Marcada pelos pressupostos que regem certos aspectos da inteligibilidade ocidental, a imagem se apresenta como um cadáver mudo exposto a um olhar de deciframento (CERTEAU, 2008). Assim como o subalterno, que não pode falar por si só posto que está desprovido de um lugar legitimado de fala, a imagem também está dentro desse campo de inteligibilidade que marca o lugar de saber como um saber sobre o outro – e, mais do que isso, um saber a respeito daquilo que o outro cala. Trata-se de uma heterologia “(discursos sobre o outro) que se constituíram em função da separação entre o saber que contém o discurso e o corpo mudo que o sustenta” (CERTEAU, 2008, p. 15). A imagem, afinal, “deseja uma alteridade” (NANCY, 2015, p. 60). É por isso que, para Mitchell (2015, p. 185), é importante “considerar as imagens não como sujeitos soberanos ou espíritos desencarnados, mas como subalternos cujos corpos são marcados pelos estigmas da diferença,

120

ELIZA BACHEGA CASADEI

que funcionam tanto como mediuns quanto como bodes expiatórios no campo social da visualidade humana”. Se aceitarmos as considerações de Mitchell sobre as articulações da imagem como um dispositivo desejante e aplicarmos tais reflexões para o estudo das capas de revista brasileiras, é possível considerar que, embora desde sempre elas tenham se articulado em torno do desejo de poder de convencimento, as estratégias convocacionais urdidas para essa finalidade variaram consideravelmente ao longo do tempo. O final da década de 1960 é um período especialmente interessante, nesse sentido, uma vez que, nessa época, surgiram uma série de revistas (como Realidade e Veja, por exemplo) que apostaram em estratégias de convocação para o consumo a partir da imagem bastante diferentes daquelas utilizadas no período anterior. A aposta afetiva-editorial implicada na estruturação dessas capas era distinta daquelas descritas nos períodos anteriores, especialmente em Revista da Semana, O Cruzeiro ou Manchete. O objetivo do presente capítulo é, justamente, mapear alguns dos dispositivos de convocação para o consumo nas capas da revista Realidade, em contraste com aqueles utilizados pelas principais publicações brasileiras do período anterior. Ao analisarmos a revista Realidade podemos adotar a mesma pergunta feita por Mitchell: o que desejavam as capas da revista Realidade? Isso implica em observá-las a partir de sua perspectiva desejante e, principalmente, a partir de como é articulado, na composição, os seus mecanismos convocacionais. Nesse sentido, mapearemos as estratégias de construção de sentido de suas capas a partir da esquematização das estratégias convocacionais urdidas. Na revista Realidade, como esmiuçaremos a seguir, a justaposição é a principal estratégia composicional utilizada na maior parte das capas. Isso implica na estruturação de um mecanismo de convocação que constrói um novo lugar para o consumidor na imagem: ao invés de imaginá-lo como uma entidade que projeta suas fantasias aspiracionais em figuras exemplares, como no período anterior, Realidade convoca-o a partir de um convite para o deciframento de um sentido conotado, explicitando os processos de feitura da imagem e sua arbitrariedade sígnica. Além disso, é possível notar que a justaposição, do ponto de vista temático, não é aleatória, mas atende a certos imaginários sobre como

121

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

o jornalismo deve se estruturar, emergentes a partir da década de 1960 no cenário brasileiro.

O projeto afetivo-editorial da revista Realidade

As modificações na linguagem imagética presentes na revista Realidade (e as consequências que isso acarretou em termos de convocações para o consumo) já haviam sido preparadas pelos padrões fotográficos adotados pela Revista da Semana e por O Cruzeiro no período anterior. Trata-se, portanto, de um processo que já estava em curso e que está relacionado aos momentos de profissionalização do fotojornalismo no país. Desde o final da década de 1940, por exemplo, as revistas já haviam abandonado “velhos clichês que preconizavam o uso da fotografia como mero recurso de ilustração” (MAGALHÃES, PEREGRINO, 2004, p. 54). Na historiografia sobre o tema, é notória a ênfase dada ao maior caráter autoral dado às fotografias, de forma que eram frequentes imagens com carga grande subjetiva (tanto do ponto de vista temático quanto na perspectiva estética). A periodicidade da publicação, que era mensal, também é apontada como um fator relevante para a obtenção de uma maior profundidade nas coberturas fotográficas (LEITE, 2015). Para Leite (2015), é possível posicionar a revista Realidade em um entremeio entre as publicações que enfatizavam a fotografia documental (ou seja, que se relaciona com a realidade a partir de uma intencionalidade comprovatória, de testemunho e autoridade em relação ao que aconteceu) e a fotografia expressão (que possibilita outras formas do discurso imagético ao deslocar a fotografia de seu caráter utilitário em direção ao seu uso interpretativo). Há, portanto, uma ruptura com certos padrões ligados à objetividade jornalística e a busca por uma imagem em que a subjetividade, a sensorialidade e a leitura pessoal de um fato emerjam para o primeiro plano. Em geral, a revista Realidade privilegiava “fotógrafos que, ao desenvolverem suas pautas, não o fizeram presos à intenção de gerar uma simples prova visual dos fatos, eliminando possíveis dúvidas do leitor”. Assim, “a intenção deles foi, realmente, imprimir uma interpretação particular da realidade, fazendo uso de uma linguagem pessoal” (LEITE, 2015, p. 9). As estratégias de convocação para o consumo presentes nas capas de Realidade também se articulam a partir desse pressuposto, em uma

122

ELIZA BACHEGA CASADEI

abordagem bastante diferente daquela articulada no período anterior. Conforme detalhamos nos outros capítulos, uma das características centrais das capas de revista dos anos 1940 e 1950 era o uso do star system da época (e, muito especialmente, das atrizes hollywoodianas) para a composição das capas de revista – predicado que pode ser observado nas principais publicações semanais da época como O Cruzeiro e Revista da Semana. Do ponto de vista temático, destaca-se em Realidade a variedade de temas presentes nas capas. Aqui, já estamos em um contexto editorial em que as capas dialogam de forma mais óbvia com o conteúdo jornalístico interno da publicação e os temas são mais diversificados do que apenas a presença de uma celebridade. Em 1966, primeiro ano da publicação de Realidade¸ por exemplo, as capas que traziam temáticas relacionadas a comportamentos sociais perfazem 33% das capas; temas de cultura ocuparam 33% e esportes 22%. As celebridades perfizeram apenas 12% das capas. Em 1967, comportamento ocupa 83% das capas, seguido por política, em 17% delas. Mesmo nas capas que continham personalidades famosas, contudo, os modos de articulação das técnicas de composição e das estratégias de convocação eram bastante distintos daqueles utilizados no período anterior, conforme detalharemos a seguir. O lançamento da revista Realidade pode ser inserido em um contexto mais geral, que abarcava outras publicações da mesma época, que dizia respeito à busca por novos modos de se fazer reportagem. A inspiração para Realidade estava nas experiências realizadas pelo Jornal da Tarde, lançado também em 1966. Nesse veículo, já é possível observar preceitos que serão largamente adotados em Realidade, como o delineamento de pautas diferenciadas (em relação aos demais veículos noticiosos da época), que investiam na humanização do relato, com textos atraentes e com toques literários, além de uma apresentação visual agradável e estimulante. A criação da Realidade foi debitária de toda uma cena cultual formada nos anos anteriores por publicações alternativas consumidas pela classe média intelectualizada. A revista – assim como outros veículos noticiosos como Correio da Manhã, Zero Hora, Jornal da Tarde e Folha da Tarde – incorporou esse clima de denúncia, de contestação e de oposição

123

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

já fomentado pelas experiências em jornalismo alternativo e que foram incorporadas por veículos da grande imprensa (KUCINSKI, 1991). Faro (1999, p. 15) identifica que “no período posterior a 1964, a imprensa brasileira (...), especificamente sob o gênero jornalístico da reportagem, pautou parte significativa de sua produção em relação ao movimento pelo qual se norteavam as demais manifestações artístico-culturais promovidas no país”. Nesse movimento, “é possível identificar um discurso libertário e contestador”. Em um contexto mais amplo, tratava-se de um período em que era possível observar o florescimento de uma série de veículos ligados a uma imprensa engajada e que buscava um outro tipo de visada em relação aos problemas sociais. O engajamento da imprensa nesse período, segundo Faro (1999, p.14) podia ser sentido tanto na imprensa alternativa dos anos 70 (que levava a cabo o jornalismo investigativo que estava fora do alcance dos grandes jornais do período devido à ação da censura) quanto na própria grande imprensa, para além das dificuldades impostas pelo regime militar que vigorava no país naquela época. Realidade seria uma das expressões mais notáveis desse segundo movimento, onde “aflorava uma produção jornalística que dava à reportagem uma dimensão reveladora, além de padrões da objetividade informativa”. O autor coloca que “por força da mobilização política que a classe média viveu em meados dos anos 60, mobilização marcada, especialmente nos segmentos ligados à cultura universitária, por sentimento de oposição ao Estado autoritário que então se esboçava”, o cenário brasileiro foi permeado por uma série de manifestações culturais de contestação e, nesse contexto, a revista Realidade conseguiu um feito: ela canalizou esse sentimento de desgosto da classe média, tornando-se o correspondente, na área do jornalismo impresso, dessa cultura da negação. Neste ponto, é interessante lembrar que vários dos jornalistas que trabalharam na redação de Realidade eram membros de células políticas de esquerda e participaram desses veículos jornalísticos alternativos. É importante ressaltar, contudo, que o seu caráter inovador nunca ultrapassava determinados limites ligados a esse público-alvo. Também para Faro (1999, p. 6), Realidade foi criada para um público de classe média e conseguiu vincular a produção do texto jornalístico ao conjunto das

124

ELIZA BACHEGA CASADEI

manifestações políticas e culturais de seu período, mas também soube se manter dentro das fronteiras que eram tidas como aceitáveis pelo público médio geral, não muito simpático aos movimentos da esquerda. Nesse sentido, ela abarcou, em um mesmo movimento, o discurso transgressor dos anos 60 com a adoção dos “valores burgueses conservadores, a ordem do Estado e a ordem da estrutura social”, o que explicaria em grande medida o sucesso obtido pela publicação. Essa sintonia com os interesses de uma época também não foi obtida por acaso. O jornalismo praticado nos anos 60 no Brasil já demandava uma estrutura empresarial muito mais sofisticada do que nas décadas anteriores, de forma que a editora Abril, como forma de garantir os seus investimentos, empreendeu uma vasta pesquisa de opinião antes de decidir como a sua nova revista se posicionaria no mercado. Antes do lançamento oficial da revista, a Abril lançou um número zero de Realidade e encomendou, com base nele, uma pesquisa ao Instituto de Estudos Sociais e Econômicos (INESE) para definir quais eram as demandas que a revista deveria atender. Desde o início, foi definido que a revista deveria atender a um público adulto (entre 18 e 44 anos), com escolaridade elevada (equivalente ou acima do 2 o grau) e com alto poder aquisitivo (59% dos leitores situados entre a classe A e B). De acordo com Faro (1999, p. 95), os resultados da pesquisa foram os seguintes: São de interesse mais geral – disse o INESE – matérias sobre Ciência e Progresso, Grandes Problemas Brasileiros e Assuntos relativos ao Sexo e Educação Sexual. Em relação ao número zero, que havia servido de base para a pesquisa, o artigo mais apreciado foi, de longe, ‘A virada antes de nascer’ (70%). Outros artigos muito apreciados foram ‘Desgraçado é o goleiro’ (23%) e ‘Este é o Humberto’ (29%). Ao comparar Realidade com outras revistas, a maioria dos entrevistados considerou-a melhor ou muito melhor que as demais. Cerca de 65% dos entrevistados gostariam de ler regularmente a revista.

Eram esses, de fato, os temas que predominavam na revista, baseados nessa pesquisa inicialmente feita. Isso explica, em grande medida, a adoção de novos padrões afetivo-editoriais para as capas, com uma variedade

125

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

maior de conteúdos temáticos e a ênfase em assuntos ligados à editoria de comportamento. Além disso, o sucesso da revista também pode ser atribuído à equipe que foi contratada para a sua condução. “Para formar o corpo editorial, foram chamados jornalistas experientes que já trabalhavam na redação da revista Quatro Rodas” que, na época, era dirigida por Mino Carta. “Dessa equipe, vieram para Realidade: Paulo Patarra, que seria o redator-chefe; Sérgio de Souza; Mylton Severiano da Silva, Woile Guimarães, Carlos Azevedo; Eurico Andrade; José Hamilton Ribeiro e Narciso Kalili” (ROSA, 2006, p. 67). A qualidade das reportagens feitas por Realidade é atestada pelos oito prêmios Esso que a publicação ganhou em seus dez anos de existência. A saber, os prêmios foram dados às seguintes reportagens: “Brasileiros go home” (1966); “Os meninos do Recife” (1967); “A vida por um rim” (1967); “Eles estão com fome” (1968); “De que morre o Brasil” (1968); “Marcinha tem salvação: amor” (1969); “Amazônia” (1972); “Seu corpo pede um bom presente” (1973). Já quanto às imagens de capa, algumas coisas podem ser destacadas. Não apenas as celebridades deixaram de ser prioritariamente representadas, como a maior parte das imagens passa a remeter não a pessoas identificadas pelo nome, mas sim, a instâncias e/ou processos sociais. Nesse sentido, em 1966, por exemplo, as capas sem pessoas (compostas por figuras abstratas ou por objetos) perfizeram 45% das edições. Mesmo nas capas com pessoas retratadas (sendo 11% delas com mulheres, 22% com homens e 22% com homens e mulheres), apenas em 33% delas era possível identificar o personagem retratado pelo nome – no restante, eles performavam figurativizações de processos, instâncias ou atores sociais. Em 1967, a mesma tendência é mantida. Embora as capas com figuras abstratas ou objetos perfaçam 25% das edições, nas capas que possuem pessoas (sendo 25% com mulheres; 50% com homens; e 25% com homens e mulheres), em apenas 10% delas essas personalidades podem ser identificadas pelo nome. Nas demais, elas são representativas de processos sociais. Quanto às estratégias técnicas da fotografia, o destaque a ser feito é sobre a quantidade expressiva de closes – o que aumenta a dramaticidade da imagem. Em 1966, 60% das imagens com pessoas apresentam esse

126

ELIZA BACHEGA CASADEI

enquadramento (diante de 20% de uso de planos médios e 20% de uso de planos gerais) e, em 1967, 45% delas usam esse recurso (diante de 22% de uso de planos médios e 33% de planos gerais). Do restante, há a prevalência do ângulo reto (87% em 1966 e 90% em 1967) e um uso equivalente dos equilíbrios dinâmicos e estáticos. Tais expedientes técnicos, contudo, encerram outros modos de convocação pela imagem nas capas de Realidade, pouco usuais nas revistas até então, conforme discutiremos a seguir.

A justaposição como técnica de composição: A ênfase no processo como mecanismo convocacional A justaposição como mecanismo de produção de sentido:

Toda imagem sempre remete a algo além dela própria. É nesse sentido que Boehm (2015, p. 25) coloca que “de fato, a maior parte das imagens, as imagens de uso, cotidianas e típicas, visam ser lidas para além da imagem”. Isso significa que o seu estatuto iconológico está sempre presente, pautando o jogo das conotações instaladas nos processos de produção de sentido pela imagem, de forma que “pouco importa, aliás, se se trata de fotografias banais ou de pinturas ditas exigentes: a imagem representa um caso de figura cujo espaço de significação precede, a título de pré-texto, toda significação”. Há na imagem, portanto, a articulação interna de significações externas. É por isso que uma imagem é sempre menos do que ela representa – na medida em que depende dessas significações externas – e mais que seu objeto físico – posto que sua apresentação sempre encerra certa opacidade (ALLOA, 2015, p. 12). É também nesse sentido que Samain (2012, p. 22) coloca que há uma relação privilegiada entre aquilo que a imagem mostra e o que ela dá a pensar, na medida em que ela realiza um trabalho “ao se associar, notadamente, a outras imagens (visíveis/exteriores; mentais/interiores) e a outras memórias” e arcabouços culturais. As imagens são, portanto, “formas que, entre si, se comunicam e dialogam”. As estratégias mais comumente utilizadas nas capas da Revista da Semana e de O Cruzeiro para fazer a imagem significar e remeter a algo externo a ela própria, conforme detalhamos em capítulos anteriores, es-

127

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

tava bastante relacionada à mostração de figuras exemplares (algumas vezes, políticas, mas, mais comumente, vinculadas às celebridades hollywoodianas) que, no plano conotativo, remetiam a certos modos de vida validados e convocavam ao consumo ao efetuar a partilha entre os valores que deveriam ser celebrados e aqueles que estavam fora de um campo autenticado de visibilidade. O projeto afetivo-editorial dessas publicações, embora tenham variado bastante ao longo do tempo, estruturou frequentemente as suas estratégias de convocação para o consumo na personificação de valores a partir dessas figuras exemplares. Até a década de 1960, a maior parte das estratégias convocacionais das revistas brasileiras estavam articulados em torno de seu potencial dêitico que se coadunava a uma competência metafórica. E isso no sentido de que, por um lado, as imagens de capa fundavam e estruturavam um campo mostrativo da linguagem, ao exibir as personalidades que supostamente deveriam ser reconhecidas e estimadas, por outro, tais personalidades estavam impregnadas de valores associados que produziam sentidos figurados a partir de associações metafóricas implícitas. As capas de Realidade não se atêm a esses princípios, de forma que é possível observar, ali, um desenvolvimento da questão da mostração como tema em direção à mostração como princípio operador (BOEHM, 2015, p. 34). Os dois conjuntos de estratégias convocacionais articulam regimes diferentes entre o visível e o dizível, de forma que as catarses afetivas se estruturam de maneiras distintas nas estratégias de convocação para o consumo. As estratégias de convocação nas capas de Realidade estão articuladas a partir de um mecanismo de produção de sentido pela imagem que combina: (1) uma técnica composicional específica (a saber, a justaposição), elaborada a partir de um (2) acordo profissional específico sobre as novas formas de jornalismo que emergem a partir da década de 1960 (a partir de reposicionamentos da relação entre fato narrado e personagem) que se materializam no conteúdo da imagem e que engendram (3) um outro modo de construção discursiva do lugar do consumidor e sua consequente interpelação em termos convocacionais (que interpela o sujeito a partir do explicitamento do processo de significação da imagem e da destituição da primeira pessoa como articuladora do fato na narrativa). Esses termos serão detalhados a seguir.

128

ELIZA BACHEGA CASADEI

Desde a primeira capa da revista, a da famosa foto de Pelé com um chapéu da guarda real inglesa, publicada em abril de 1966, a combinação dessas três estratégias composicionais pode ser notada. Em primeiro lugar, destaca-se que, embora frequentemente Realidade também se valesse da representação de celebridades em suas capas, elas não eram apresentadas a partir de uma simples mostração. O uso da técnica da justaposição sobressai como eixo articulador da composição imagética das capas de Realidade, sejam elas com celebridades ou não. A justaposição é uma técnica de composição caracterizada pela junção de duas figuras que pertencem, normalmente, a universos semânticos distintos, de forma que a junção das duas estabelece um terceiro campo semântico a ser evocado na interpretação. Ela opera uma montagem – que pode se dar durante a própria feitura da fotografia ou ser acrescentada posteriormente na edição – entre figuras de naturezas diferentes. No caso da revista Realidade, normalmente, uma das imagens pode ser considerada como a principal – no sentido de que ela pauta o tema que está sendo veiculado como a “notícia mais importante” na capa. A outra imagem faz as vezes de adjetivação da primeira, na medida em que caracteriza ou modifica a leitura simples dessa primeira imagem e afeta de forma decisiva a leitura global da imagem. Na capa com a imagem de Pelé, por exemplo, a justaposição é articulada a partir da junção do ídolo do esporte (como personagem principal da história contada) e o chapéu da guarda inglesa, como imagem

Capas das edições de Abril de 1966, Janeiro de 1967 e Abril de 1967, respectivamente

129

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

secundária, que completa a justaposição e qualifica a história contada; no caso da capa de janeiro de 1967, a justaposição é composta pela mulher (imagem primária) e a lupa, como modificadora da primeira; na capa do Tio Sam, a imagem central é composta pelo ícone norte-americano e a adjetivadora pela justaposição do soco no olho. Há, portanto, nessas justaposições, a inserção de um material significante em outro. A trucagem de figuras feita na justaposição “afeta a grafismo da obra e esse grafismo, por sua vez, modifica a realidade dos fragmentos colados, absorvendo-os na linguagem metafórica da descrição visual”. O fragmento colado, assim, adquire uma capacidade de significação para além daquilo que ele é, de forma que “o pedaço de colagem afirma sua existência enquanto objeto real e, ao mesmo tempo, sua capacidade de representar, significar, substituir algo mais” (KRAUSS, 2013, p. 165). A justaposição, portanto, como mecanismo de composição principal que estrutura a capa da revista, opera a partir da junção de elementos pertencentes a campos semânticos distintos, em uma estrutura única que convida o consumidor ao deciframento de um terceiro sentido implicado a partir dessa junção.

A justaposição do ponto de vista do conteúdo:

Há, no entanto, uma outra questão que deve ser posta: em termos de conteúdo, as duas imagens que formavam a justaposição das capas de Realidade não eram aleatórias. Elas sempre diziam respeito a dois campos semânticos bem específicos (a saber, um deles do personagem e o outro referente ao social, conforme detalharemos a seguir) e que estavam relacionados a acordos profissionais específicos acerca do modo como o jornalismo passou a ser pensado a partir da década de 1960. Há, portanto, uma rearticulação da própria função do jornalismo que redefinem os parâmetros convocacionais de suas estratégias imagéticas. As estratégias de convocação da Revista da Semana e de O Cruzeiro estavam articuladas em torno da ideia de que os acontecimentos e fatos referem-se, primordialmente, a um sujeito (designado por um nome próprio). A partir da década de 1960 emerge uma noção que revoga “o primado dos acontecimentos e dos nomes próprios em benefício (...) da vida dos anônimos” (RANCIÈRE, 2014, p. 2). A imagem acompanha um

130

ELIZA BACHEGA CASADEI

movimento que já se dava na narrativa jornalística escrita, em que a história escrita em primeira pessoa perde espaço e cede espaço a personagens mais amplos. Os sujeitos da escrita jornalística mudam de forma acentuada a partir de meados da década de 1950, de maneira que maneira que se prefere falar da vida das mulheres, do que da vida de uma mulher em específico. A descrição da vida doméstica de uma celebridade específica, por exemplo, cede espaço a um retrato mais amplo das brasileiras hoje. O modo de convocação é redirecionado para os grandes fenômenos sociais, aqueles “que não se atribuem mais a um sujeito particular, mas que se observam em sua repetição, se deixam classificar de acordo com suas propriedades e se correlacionam com outros fatos do mesmo tipo ou com outros tipos de fatos” (RANCIÈRE, 2014, p. 3). Tal redirecionamento, contudo, não se esgota nesse ponto, já que o personagem individual não é totalmente abandonado na narrativa (muito embora ele seja engendrado em outros termos). Tal como formulado por Rancière (2014, p. 3), “nem por isso deixaremos de enfrentar o salto no vazio (...): é preciso nomear sujeitos, é preciso atribuir-lhes estados, feições, acontecimentos”. Apesar de um redirecionamento das pautas para aspectos sociais brasileiros mais amplos, o jornalismo não se desfez completamente da primazia do personagem, embora tenha-o incorporado de uma maneira diferente, tanto na narrativa textual quanto em suas esquematizações imagéticas. Há, sim, um reengendramento da articulação entre os nomes e os acontecimentos, de forma que é reconciliado um interesse jornalístico novo (as histórias sociais de grande espectro, não relacionadas a um personagem específico, mas a camadas sociais mais amplas) e um velho modo de contar histórias (que não larga de todo a personalização dos acontecimentos e ainda usa uma figura individual para exemplificar esses processos sociais mais amplos). Há, a partir da década de 1960, uma “elaboração poética do objeto” (RANCIÈRE, 2014, p. 10) jornalístico nova que conjuga a figura particular (o personagem) com um movimento social de amplo espectro. São esses os dois termos que regem as justaposições implicadas nas capas da revista Realidade, de forma que sempre os dois elementos considerados dizem respeito a esses dois eixos. O primeiro elemento corresponde, as-

131

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

sim, ao personagem e o segundo diz respeito ao enquadramento desse personagem em um movimento social mais amplo. Do ponto de vista temático, portanto, o uso da justaposição como técnica composicional atende a esses rearranjos do jornalismo em geral, que assume uma nova forma de narrar o fato. A justaposição, nesses termos, é a expressão imagética de um movimento que já se articulava no texto (a partir de outros mecanismos semânticos e narrativos) desde ao menos meados da década de 1950.

A justaposição do ponto de vista da construção de um lugar de consumidor:

A destituição da primeira pessoa do relato engendra, ainda, um modo distinto de construção discursiva do lugar do consumidor, de forma que a sua interpelação em termos convocacionais se dá a partir do explicitamento do processo na construção da imagem a partir da justaposição como técnica composicional estruturante. O uso da justaposição como técnica de composição evoca um campo convocacional diferente daquele estruturado em torno de potencial dêitico e metafórico da linguagem imagética (como presente nas capas de O Cruzeiro e Revista da Semana). E isso porque há uma outra lógica de mostração implicada na evocação desse tipo de técnica de composição. Na justaposição, “a lógica da mostração só pode ser processual”, de forma que a imagem deve ser concebida como “uma equação energética”. Ou, em outros termos, “o que mostra – a imagem, em sua ocorrência – nos mostra como alguma coisa se mostra. E, ao nos dar a perceber, a imagem gera um sentido” (BOEHM, 2015, p. 38). Em outros termos, o consumidor é convocado a participar da resolução de uma espécie de enigma para a atribuição de sentidos e, ao fazê-lo, a própria imagem se apresenta do ponto de vista de um processo a ser percorrido – aquele ligado às transferências de sentido em operação para a composição da imagem. Isso porque, na justaposição, o que “constitui a imagem é a operação que transforma uma corporeidade em outra” (RANCIÈRE, 2015b, p. 200), a partir da junção de elementos que pertencem a campos semânticos distintos. Há na lógica composicional da justaposição sempre a pressuposição do desvendamento de um engodo: aquele da própria ilusão

132

ELIZA BACHEGA CASADEI

referencial da fotografia. Tal técnica de composição “revela a natureza puramente convencional da marca gráfica, graças a um sobrelanço no contraste ontológico”, ao explicitar para o espectador a ilusão referencial da expressão fotográfica. A justaposição, ao associar dois elementos que não pertencem necessariamente a uma mesma ordem, “chama a atenção para essa qualidade de ausência, torna a própria ausência presente, por assim dizer, e revela a verdadeira natureza da representação, que não passa de aparência, redução, substituta, signo” (KRAUSS, 2013, p. 167). A justaposição age, assim, contra toda pretensão de uma imagem autorreferente, autônoma e total, na medida em que opera um questionamento do estatuto indiciário da fotografia a partir de um ponto de vista metafórico: trata-se de um modo de mobilizar, na própria composição, a noção de uma realidade percebida como arbitrária, “que necessariamente obriga toda representação a não ser mais que uma coleção de fragmentos”. E, assim, “no próprio centro de seu poder de representação reside essa mensagem da ausência (do real), que é a primeira condição de qualquer representação” (KRAUSS, 2013, p. 168). Na justaposição, portanto, “a imagem não se identifica com o visível e os seus poderes de fala são aqueles de suas condensações e deslocamentos, que fazem ver uma coisa em outra ou por uma outra” (RANCIÈRE, 2015b, p. 193). A linguagem imagética, nesse sentido, cede o seu potencial dêitico para a valorização de seu estatuto processual, ao escancarar para o consumidor a construção de sentido enquanto um processo. A trucagem, nesse sentido, é um mecanismo convocacional que impõem um pensamento “que forma, formata, põe em forma” (SAMAIN, 2012, p. 24). Ela põe em jogo um processo que traspõe a imagem para além dos objetos representados isoladamente e, ao fazê-lo, torna a imagem “o lugar de um processo vivo”, participante de “um sistema de pensamento”. Assim, podemos dizer que a imagem é pensante (SAMAIN, 2012, p. 31) nas capas da revista Realidade. Mais do que isso, elas convidam o consumidor a participar do processo justamente ao mostrar-se enquanto tal. O mecanismo de convocação se dá, então, a partir das imagens cruzadas, que “por pertencerem a um sistema, participam não apenas de um tempo e de um contexto singulares, mas sobremaneira de um sistema de pensamentos” (SAMAIN, 2012, p. 32).

133

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

Tal estratégia convocacional, tal como já pontuado por Rancière (2015a, p. 28) impõe uma guinada da ideia de que a imagem deve ser lida a partir do deciframento de seus significados misteriosos articulados, mas sim, “contrapõe-lhe uma nova hermenêutica que relaciona a imagem não a um sentido oculto, mas às condições de sua produção”. É justamente ao explicitar as condições de sua produção que a justaposição utilizada na revista Realidade convida o consumidor a participar da produção de sentido, não como algo imposto, mas como um desafio ao olhar. Tais injunções convocacionais, obviamente, não são uma invenção de Realidade. “Trata-se propriamente de uma posição no interior do sistema de possíveis definido por uma determinada ideia” de imagem e uma determina ideia de jornalismo (RANCIÈREa, 2015, p. 33). Para Rancière (2015a, p. 38) trata-se da emergência de um registro estético em que tudo na imagem fala. “A casa ou o esgoto falam, trazem consigo rastros do verdadeiro, como farão o sonho ou o ato falho – mas também a mercadoria marxiana -, desde que sejam primeiro transformados em elementos de uma mitologia ou de uma fantasmagoria”. Trata-se de fazer falar para além do fato, para além da mostração imediata, a partir de um trabalho onde a significação do fato é dado a partir de um trabalho de reescrita dos fatos. A imagem convoca, em Realidade, portanto, não a partir da articulação aspiracional de um consumidor imaginado (tal como em revistas do período anterior); mas sim, a partir da estruturação de um consumidor modelo que é pensado como um ator na produção de sentido de suas capas, que é chamado a fazer parte do processo de composição de sentidos a partir de um trabalho de deciframento e decodificação dos acontecimentos apresentados pela publicação.

A convocação como remontagem de mundo

A partir do esmiuçamento dos processos de produção de sentido implicados na justaposição enquanto técnica composicional e suas implicações em termos de estratégias composicionais, é possível retomar a pergunta que motivou a presente investigação: o que, afinal, desejam as capas da revista Realidade? Uma das premissas do fotojornalismo, ao menos do modo como ele vem sendo praticado desde a década de 1950, é o fato de que as imagens

134

ELIZA BACHEGA CASADEI

constituem um bem comum. Ao menos em seu caráter ethópico e deontológico, portanto, a função da imprensa seria restituir à sociedade as imagens que lhe é de direito, a despeito das instituições e dos jogos de poder específicos. Para Didi-Huberman (2015, p. 212), é por isso que tal restituição não se dá sem efeito transgressor, posto que tem relação com o que Giorgio Agamben nomeia uma profanação, no sentido de que a imprensa restitui as imagens para o livre uso dos homens. As imagens, assim, não devem ser entendidas “como lugares-comuns – que suas remontagens desmontam ou constroem – mas como o lugar do comum” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 223). Se retomarmos os pressupostos de Mitchell (2015) de que toda imagem deseja estruturar um apelo para que seus consumidores a ouçam a partir da estruturação de mecanismos convocacionais, é possível dizer que existem dois tipos de restituição diferentes implicados nos dois períodos estudados. Quando pensamos nas estratégias convocacionais pressupostas na Revista da Semana e em O Cruzeiro, trata-se de uma ideia de restituição a partir da qual “um objeto do corpo privado (o rosto daquele cuja imagem é fabricada) retorna à esfera do direito público” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 206). A convocação pela imagem se estrutura, assim, por seu potencial dêitico – o de nomear uma pessoa ou situação – associado a um potencial metafórico que se coloca nas pressuposições aspiracionais de um consumidor modelo. Às imagens jornalísticas de capa, cabia o desejo de restituir os acontecimentos ao mundo (mesmo que isso se estruture mesmo como desejo imaginário e não como efetividade). Não é o mesmo mecanismo que opera nas capas do jornalismo noticioso pós-década de 1960. O gesto de restituição de Realidade está vinculado à ideia de apropriação, ou seja, de um modo em que restituir signifique anexar, ou seja, “possuir, segundo o antigo valor do manicipium romano, como quando se compra alguma coisa – ou alguém – para dele dispor a sua maneira, segundo seu direito privado”. No caso do fotojornalismo, “se dando ao direito de recontar uma história” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 208), de tornar visíveis certos aspectos do enredo a partir de uma ótica de reinterpretação. Didi-Huberman irá aproximar esse tipo de restituição ao mecanismo de profanação exposto por Agamben (2007). Segundo o autor, se as coi-

135

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

sas sagradas são definidas justamente por não serem de uso comum dos homens (e, portanto, o sacrilégio estaria ligado a todo o ato que violasse ou transgredisse essa indisponibilidade premente do sagrado), profanar significaria, justamente, restituir as coisas ao livre uso dos homens. Aos espaços que se constituem como esferas separadas do uso comum, “profanar significa abrir a possibilidade de uma forma especial de negligência, que ignora a separação, ou melhor, faz dela um uso particular” (AGAMBEN, 2007, p. 65). A profanação envolve um lugar de poder, mas posto sob uma outra ótica. Para Agamben (2007, p. 68), “a profanação implica uma neutralização daquilo que profana”. E isso porque “depois de ter sido profanado, o que estava indisponível e separado perde a sua aura e acaba restituído ao uso”. Embora ambas as operações sejam políticas, “a primeira tem a ver com o exercício do poder, o que é assegurado remetendo-o a um modelo sagrado; a segunda desativa os dispositivos de poder e devolve ao uso comum os espaços que ele havia confiscado”. O caráter de profanação posto em jogo por Realidade se mostra na medida em que opera por “remontagens interpostas, não simplesmente para abolir e cancelar as separações, mas aprender a fazer delas um novo uso, a brincar com elas” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 213), de forma a extrair a metáfora moral de um acontecimento por meio dessa mesma montagem. A imagem, nesse sentido, não é meramente contemplativa, mas sim, processual, ao “justapor as coisas inesperadas, fazendo derivar do movimento uma correspondência, uma semelhança” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 219). Tais imagens solicitam uma posição outra por parte do sujeito consumidor ao propor um novo jogo entre as formas tradicionalmente expostas pelo fotojornalismo. “Inventar um campo novo de formas”, como coloca Didi-Huberman (2015, p. 220), “é inventar um campo de forças capaz de ‘criar o real’, de determinar uma nova realidade por meio de uma forma óptica nova”. A demanda por uma outra posição-sujeito do consumidor para um outro tipo de experiência, nesse sentido, se processa porque tais imagens decompostas não “tem que representar, mas (...) trabalhar” em um processo de problematização – um trabalho que se faz “na incessante dialética de uma decomposição fecunda e de uma produção que nunca encontra descanso nem resultado fixo, justamente porque sua força reside na abertura inquieta, na

136

ELIZA BACHEGA CASADEI

capacidade de insurreição perpétua e de autodecomposição da forma” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 220). O gesto de restituição posto em operação pelas imagens de Realidade, portanto, a partir do uso da justaposição como técnica composicional estruturante, se funda no jogo com as imagens e no convite ao consumidor para participar do processo de remontagem do mundo. O que desejam então as imagens da revista Realidade? Ao se estruturar um mecanismo de sentido a partir do qual a justaposição é a técnica composicional estruturante e funda um jogo entre imagens de campos semânticos diferentes e um convite ao consumidor para participar do processo de remontagem do mundo, as imagens de capa de Realidade conjuram um tipo de jornalismo que se coloca no lugar de interpretador legítimo dos fatos do cotidiano – a ponto de poder remonta-lo. Trata-se da materialização imagética de uma reestruturação jornalística mais ampla, que diz respeito à vinculação da revista Realidade a um projeto de jornalismo que recebeu a alcunha de interpretativo – que será detalhado nos próximos capítulos. Se, do ponto de vista textual, isso se materializa em códigos de narração específicos, do ponto de vista imagético, a justaposição se apresenta como elemento central de convocação. A imagem, portanto, deseja tanto convencer o consumidor que ela pode, inclusive, justapor os elementos do mundo em favor de sua fábula moral específica.

137

CAPÍTULO 5

As imagens sem conflito de Manchete e Fatos e Fotos: O culto à vida privada a ao Brasil desenvolvimentista

Técnicas de composição similares, muitas vezes, engendram mecanismos de convocação um tanto dessemelhantes. Manchete e Fatos e Fotos são duas revistas que irão se utilizar de uma linguagem imagética de capa bem próxima àquela articulada pela Revista da Semana e por O Cruzeiro no período anterior, mas com algumas nuances quanto à interpelação ao consumidor. Entre eles, destacam-se mudanças no apelo publicitário das capas que, para Silva (2003, p. 38), é um dos articuladores centrais das revistas a partir do final da década de 1950. Em um primeiro aspecto, isso se manifesta na narrativização de um “mundo harmônico que a publicidade - fundamental nas bastante procuradas revistas ilustradas – apregoa” a partir de uma urdidura de enredo que “não deixa espaço ao conflito” (SILVA, 2003, p. 39). Ao contrário de publicações posteriores como Realidade, por exemplo, tratada no capítulo anterior, em que o enfrentamento entre significantes dissonantes era o motor de seus processos de produção de sentido pela imagem na capa, Manchete e Fatos e Fotos irão apostar na articulação de um mundo desprovido de interesses incompatíveis, heterogêneos ou em conflito. Além disso, ao passo que Veja ou Realidade, por exemplo, constantemente se

139

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

manifestavam contra o governo, Manchete adota sempre uma postura mais alinhada ou neutra em relação às pautas políticas – especialmente aquelas que estão em suas capas. Durante um período, “o outro, que recolocará o importante papel do contraponto, é o estranho mundo comunista” e não os conflitos internos do país. Assim, “o comunismo é associado à ausência de liberdade de consumo. Ocorre, assim, uma distorção do conceito de democracia, associada à possibilidade de acesso, acúmulo e ostentação de bens de consumo” (SILVA, 2003, p. 38). Em um segundo aspecto, é possível notar também que “da década de cinquenta à década de sessenta, a publicidade passa de um discurso que atinge a todos, de um bem que seria coletivo - como o progresso e a modernidade - a um discurso que atinge a intimidade, o dia a dia do consumidor”. Os projetos afetivo-editoriais de Manchete e Fatos e Fotos estão alinhados a esses novos pressupostos publicitários, conforme detalharemos a seguir, em que os valores universais passam a ser associados a histórias de vida específicas. Tais engajamentos podem ser notados ao longo de toda a trajetória das duas revistas (Manchete encerra suas atividades em 2000) mostrando que diferentes formas de convocação ao consumidor conviviam na variada ecologia do jornalismo de revista brasileiro, especialmente nas décadas de 1960 e 1970.

O projeto afetivo-editorial de Manchete e Fatos e Fotos:

“O mercado de revistas tem, nas décadas de sessenta e setenta, uma grande expansão de produção e distribuição. Se, em 1960, 104 milhões de exemplares eram produzidos, em 1970 esse número chega a 193 milhões, e em 1985, a 500 milhões” (SILVA, 2003, p. 45). Manchete e Fatos e Fotos estão inseridas nesse contexto editorial, em que diferentes projetos afetivo-editoriais estão sendo alinhavados. Formada por gráficos de origem russa, a família Bloch se estabelece no Brasil no início do século XX por ocasião da revolução comunista. Segundo Louzada (2003, p. 6), “eles logo adquirem uma pequena máquina de cortar papel e com ela fabricam blocos e sacos que os irmãos Boris, Arnaldo e Adolpho vendem nas ruas do Rio de Janeiro”. Pouco tempo depois, em 1939, eles “adquirem uma impressora usada, nascendo assim a empresa ‘Gráficos Bloch’ que imprime cartazes, folhetos, embalagens e revistas”. Os

140

ELIZA BACHEGA CASADEI

negócios crescem ao longo da década de 1940, principalmente devido aos contratos estabelecidos com a editora Brasil-América, de Adolpho Aizen, e com a Rio Gráfica, de Roberto Marinho. Em 1951, eles já imprimiam mais de 30 revistas infantis. Nesse mesmo ano, eles adquirem a primeira rotativa offset do Brasil – o que representa um avanço tecnológico significativo, devido ao seu custo notadamente mais baixo e ao aumento na capacidade de produção – “uma Webendorfer, que lhes possibilitará ter sua própria revista, Manchete, que seria rodada nos três dias de folga nas máquinas: sábado, domingo e segunda-feira, e teria como característica o zelo extremado com a qualidade da impressão” (LOUZADA, 2003, p. 6). Fundada em 26 de Abril de 1952, a revista Manchete surge como a principal concorrente de O Cruzeiro no cenário editorial brasileiro dessa época. No texto de apresentação do primeiro número, ela anunciava que “depois de trinta anos de trabalho como gráficos, resolvemos condensar numa revista semanal os resultados da nossa experiência técnica, convocando, para aproveitá-la, uma equipe de escritores, jornalistas, fotógrafos e ilustradores de primeira ordem”. De fato, a revista Manchete era conhecida por seu aspecto visual, de forma que algo em torno de 2/3 de suas páginas eram normalmente ocupadas por fotografias e, por isso, “podemos dizer que a Manchete é uma revista mais ‘olhada’ do que ‘lida’” (NASCIMENTO, 2002, p. 22), dado o tamanho enfoque destinado às ilustrações. Em comparação com as demais revistas do período, a qualidade do papel, da impressão e do acabamento gráfico era, de fato, bastante superior às demais. Em depoimento, Henrique Pongetti, primeiro editor da revista, afirma que: (Os Bloch) eram todos maníacos de perfeição. Amavam apaixonadamente seu ofício. Muitas vezes flagrei o Boris, o Arnaldo, o Adolpho e o Oscar bolinando o papel extra destinado a um trabalho de luxo, acariciando-o com a mão espalmada como se fosse a pele da mulher eleita. Atingiam o orgasmo profissional diante de uma prova perfeita de impressão. Inutilizavam pilhas de papel impresso se um pequeno defeito invisível aos olhos do cliente ferisse sua retina, onde se tornava um ácido corrosivo, um vitríolo (PONGETTI apud LOUZADA, 2004, p. 58).

141

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

Além do esmero no cuidado gráfico, havia também na revista uma clara proposta em fazer frente ao sucesso editorial alcançado por O Cruzeiro. No editorial citado, propunha-se também que “o Brasil cresceu muito, suas mil faces reclamam muitas revistas, como a nossa, para espelhá-las. Manchete será o espelho escrupuloso das suas faces positivas, assim como do mundo trepidante em que vivemos e da hora assombrosa que atravessamos”. Em seus primeiros anos, contudo, os recursos da revista estavam longe de alcançar o império construído pela O Cruzeiro. Nessa época, era bastante comum a compra do refugo fotográfico de agências de notícia de segunda linha e a publicação de matérias frias, embora a revista pudesse contar, muitas vezes, com grandes nomes da intelectualidade nacional. Nesses primeiros anos, participaram da Manchete nomes como os de “Antônio Callado, Carlos Drummond de Andrade, Ciro dos Anjos, Fernando Sabino, Guilherme Figueiredo, Joel Silveira, Lígia Fagundes Teles, Orígenes Lessa, Otto Maria Carpeaux, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga”, entre outros (LOUZADA, 2004, p. 60). Segundo Pongetti (apud LOUZADA, 2004, p. 59), “os Bloch lançaram Manchete na raça, sem uma equipe jornalística capaz de atender à voracidade de textos e de fotos de um semanário e sem uma reserva monetária disponível para o período inevitavelmente deficitário da conquista dos leitores assíduos e dos assinantes habituais”. Tanto assim que as primeiras edições de Manchete são lançadas com uma média de 40 páginas – número bastante inferior a O Cruzeiro que tinha em torno de 130 páginas por edição, dependendo do volume de publicidade. Segundo depoimento de Nahum Sirotsky (apud LOUZADA, 2004, p. 61), diretor da revista entre 1957 e 1959, “a nossa redação media, no total, menos do que uma sala de diretor da revista do Chatô. Só contando os fotógrafos, dispunham eles de três vezes mais gente do que eu de fotógrafos, redatores, paginadores e revisores”, contando, ainda, com o apoio de toda a cadeia de jornais, rádios e emissoras de televisão pertencentes aos Diários Associados. Era esse complexo que garantia que O Cruzeiro pudesse financiar as longas viagens dos repórteres, bem como boa parte dos profissionais que ali figuravam.

142

ELIZA BACHEGA CASADEI

A situação começa a mudar a partir de 1958, momento que marca o início da decadência de O Cruzeiro no cenário editorial. Vários autores (LOUZADA, 2004; ARAGÃO, 2006; BLOCH, 2008) apontam as relações amistosas estabelecidas entre o governo de Juscelino Kubitschek e Adolpho Bloch como fatores decisivos para o sucesso editorial da publicação. De fato, a Manchete deu ampla cobertura para a fundação de Brasília, tornando-se, em grande medida, uma das responsáveis por sua construção imagética – no duplo sentido de imagem e de imaginário. É nesse período que as vendas crescem de uma maneira bastante acentuada, marcadamente pela parca cobertura que O Cruzeiro dá a esse fato. As relações políticas estabelecidas pela família Bloch a partir dessa publicação são mesmo extensas e se ramificam nos governos seguintes, mesmo durante a Ditadura Militar. Um episódio narrado por Werneck Sodré (1998, p. 418), acontecido no início dos anos 60, em um contexto de aumento da pressão governamental sobre a imprensa e de demissão em massa de diversos jornalistas ligados ao movimento sindical, é bastante exemplar do posicionamento que a revista adotava em sua linha editorial: A revista Manchete estava em máquina, trazendo reportagem de seu editor-chefe sobre a União Soviética, que viera a visitar: brutal intimidação de órgão de publicidade forçou a retirada do papel das máquinas: a revista era asperamente compelida a suprimir aquela reportagem sob a pena de perder grande parcela da publicidade que lhe era distribuída. Obedeceu, tranquilamente, e tudo continuou como dantes.

As temáticas tratadas pela revista eram bastante variadas e, segundo Muniz Sodré (1989, p. 93), marcadas por uma construção otimista do país que era bastante adequada aos interesses governamentais, mantendo-se, de uma maneira ostensiva, longe da crítica política e social. “Manchete era o medium adequado para o otimismo das elites desejosas de ver o mundo em imagens coloridas – ou seja, o mundo fabricado pelo mercado de bens de luxo – e com textos de irrefreável entusiasmo bandeirante”.

143

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

Ao relatar uma reportagem publicada na revista acerca de um vidente, Carlos Heitor Cony (2008, p. 64) comenta que “uma revista do tipo de Manchete permitia certas incursões ao maravilhoso, desde que não prejudicasse nenhuma pessoa, grupo social ou político”. E completa, “na realidade, a revista não falava mal de ninguém, não acusava ninguém, era otimista ao desvario, procurava ver o lado bom de tudo, o lado bonito e positivo”. O outro grande empreendimento dos irmãos Bloch, a revista Fatos e Fotos segue o mesmo pressuposto afetivo-editorial de engendramento de afetos positivos e consensuais. A publicação existiu de 1961 a 1985. Conta Alberto Dines (2003, p. 84) que a revista surgiu a partir de uma homenagem que Adolpho Bloch queria fazer a Juscelino Kubitschek na ocasião de sua saída da presidência da República: “Juscelino entregou o governo ao Jânio em 31 de Janeiro, o Adolpho Bloch, maluco, em homenagem ao Juscelino, que deixava o governo, quis fazer uma revista em Brasília, e então criou uma coisa chamada Fatos e Fotos. O primeiro número ele fez sozinho, com o Justino Martins”. Segundo ele, Bloch “pegou as fotografias da posse do Jânio e da saída do Juscelino, arrumou uma revista só de fotografias e botou nas bancas. Vendeu muito”. Apesar do sucesso dessa edição inicial, contudo, não havia ainda um projeto que pudesse sustentar o segundo número da revista. Segundo depoimento de Dines (2003, p. 85), “eu estava demitido do Diário da Noite e ele me telefonou pedindo pelo amor de Deus se eu não podia ajuda-los em dois, três números, até botar a revista nos eixos”. Aceito o convite, “fui e resolvi fazer a revista em rotogravura, com máquinas espetaculares, em preto e branco – isso que nós estávamos fazendo em jornal diário”. Ainda segundo Dines (2003, p. 85), “em pouco tempo, Fatos e Fotos estava vendendo mais do que a Manchete”. A relação entre as duas revistas eram mesmo um tanto próxima no sentido de que Fatos e Fotos, sem uma equipe de fotógrafos própria, trabalhava com as fotos que “sobravam” da Manchete. Mesmo diante de tantas precariedades, a revista conseguiu se consolidar no mercado editorial nacional, contando com uma equipe de bons repórteres. “Passou pela redação de Fatos e Fotos uma plêiade de jornalistas da maior importância: Carlos Leonam, Paulo Henrique Amorim, Itamar de Freitas... Eram pessoas que estavam começando, trabalhando cada um em um jornal, mas que se entusiasmaram pelo espírito da revista” (DINES, 2003, p. 85).

144

ELIZA BACHEGA CASADEI

Ainda de acordo com Dines (2003, p. 85), “a revista fascinava a garotada. Muita gente passou pela Fatos e Fotos, vibrando com aquela experiência de fazer uma espécie de jornal semanal, só em preto e branco, muito bonito. De 1961 a 1962, fiquei fazendo isso. Deu certo, o Adolpho pediu ‘fica, fica’, e fui ficando. Mas sabendo que não ia ser por muito tempo”. A revista dedicava-se à publicação de reportagens fotográficas sobre personalidades da época, principalmente artistas e políticos, além de algumas matérias de interesse geral. Como o próprio nome sugere, a ênfase no material publicado estava mais nas imagens que compunham a revista do que nos textos que as acompanhavam. Não obstante isso, é possível encontrar algumas coberturas mais extensas e detalhadas. Fatos e Fotos se insere, portanto, dentro de uma tradição brasileira de fotorreportagem em revista que estava no cerne da produção revisteira desde o final do século XIX, mas que já dava mostras de esgotamento na década de 1960. Em seus primeiros anos, é possível notar que eram poucas as reportagens que ocupavam mais de uma página de texto, o que era considerado diminuto mesmo para os padrões da Manchete, que era uma revista que também valorizava a fotografia como forma de passar informação. Ao longo da década, é possível notar que a revista vai progressivamente aumentando o número de páginas destinadas ao texto e passa a fazer também grandes reportagens. Em 1969, a Fatos e Fotos era a terceira revista mais lida do país. Ela correspondia a 9% da divisão de circulação de mercado, perdendo apenas para as revistas Manchete e O Cruzeiro (ambas com 16%). Nessa época, a revista Veja era responsável por 3% da circulação. Quanto às revistas quinzenais, Capricho liderava o mercado (com 20%) e, nas revistas mensais, a revista Realidade ocupava a 6a posição, com 6% do mercado de revistas (MIRA, 2001).

Estratégias convocacionais jornalísticas em consonância com a publicidade: Ausência de conflitos e personalização de valores universais

Embora Manchete fosse uma revista de assuntos gerais e trouxesse eventualmente alguns assuntos políticos em sua capa, ela não se afastava muito das estratégias de composição imagética já presentes em O Cruzeiro,

145

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

a partir do qual a exploração do star system se estrutura como principal estratégia de convocação de suas capas. Na ocasião da promulgação do Ato Institucional n. 5, em 1968, por exemplo, Manchete estampa a sua capa com uma foto da modelo internacional alemã Veruschka von Lehndorff, de forma que a pauta política fica em segundo plano. Em um levantamento sobre a revista, Silva (2003) destaca que, das 140 capas da revista Manchete em 1968 e 1969, a maior parte poderia ser classificada como “pessoas famosas”. Na revista, “o modelo de vida de pessoas famosas e as lideranças governamentais são eixos possíveis de compreensão do mundo. Aparecem como alternativa de explicação e de organização para as vidas”. Os símbolos associados a essas personalidades, ainda, são bastante específicos, vinculados a ideais de alegria, potência e otimismo. Entre essas personalidades, a grande maioria é composta de mulheres, em fotos que mobilizam dois tipos de estereótipos que convivem: o primeiro deles, como cônjuge e/ou mãe; o segundo, como personagem bela, sedutora e sensual. A vida dos casais é um dos grandes destaques das pautas. Como exemplo desse direcionamento, a autora cita o fato de que, em 1968, Jacqueline Kennedy foi capa tanto de Veja quanto de Manchete. Na primeira revista, ela aprece sozinha na capa; já na segunda, a composição valoriza cenas de seu casamento com Aristóteles Onassis (SILVA, 2003). Os homens apareceram em relativamente poucas capas na revista Manchete, mas também a partir desse direcionamento para a vida pessoal e conjugal. “Os homens de Manchete parecem sair dos estereótipos clássicos dos romances para moças (...): bonito, rico, mais velho, às vezes distante. Mas, ao final, seria terno, dedicado, doce a amaria a heroína até que a morte os separasse” (SILVA, 2003, p. 76). O romance e as relações pessoais, portanto, são primordiais nas narrativas de Manchete e de Fatos e Fotos: mais do que o estilo de vida da celebridade em si, o que importa, em suas capas, é a narrativização das relações estabelecidas por essas celebridades em suas vidas pessoais. A diferença com outras revistas do período é acentuada: “Manchete utiliza o brilho e a aura da fama de uma pessoa em prol da divulgação da revista”. Em Veja ou em Realidade, por exemplo, a imagem da pessoa famosa, quando utilizada, está associada à discussão primordial de um determinado tema (SILVA, 2003, p. 80).

146

ELIZA BACHEGA CASADEI

Nesse sentido, Manchete e Fatos e Fotos aproximam-se bastante das estratégias convocacionais utilizadas por O Cruzeiro e Revista da Semana, no sentido de que apelava ao consumidor ao exibir as personalidades impregnadas de valores e sentidos figurados para estilos de vida que deveriam ser validados ou reprovados a partir de associações metafóricas implícitas. Há, contudo, algumas particularidades interessantes que podem ser pontuadas nas duas publicações. Conforme já detalhamos anteriormente, a publicidade brasileira, a partir da década de 1950, passa a adotar de forma mais acentuada a ausência de conflitos como motor narrativo e a personalização de conteúdos, que se desvincula sua retórica da ode a valores universais em direção à associação desses valores à vida cotidiana do consumidor. Sobre essa questão, e especialmente em relação à ausência de exploração de conflitos na publicidade, Hoff e Carrascoza (2015, p. 41) enfatizam que um dos ditos mais frequentes da retórica publicitária do período afirmava que “o consumo havia se disseminado a um tal ponto no país – graças ao aumento da nossa produção industrial e ao acesso aos bens importados – que, em qualquer região do território nacional, o cidadão brasileiro poderia encontrar e adquirir produtos representativos da vida moderna”. Afirmava-se que “as novas práticas de consumo, que então surgiam, estariam ao alcance não só dos habitantes da cidade de São Paulo, que se transformara no grande polo de industrialização, mas de outras capitais do Brasil e, também, de cidades menores”. Além desses, outros ditos, igualmente relevantes encontrados pelos autores foram: “1) a diversidade de produtos industriais que traziam novas práticas de consumo para a sociedade brasileira (incluindo aqui o consumo dos primeiros programas televisivos)” e “2) o apoio das agências de propaganda ao ímpeto desenvolvimentista do governo” (HOFF e CARRASCOZA, 2015, p. 42). Manchete e Fatos e Fotos, de forma mais acentuada do que as outras revistas do período estudadas, incorporou tal discurso otimista, com a omissão dos variados conflitos econômicos e sociais do Brasil, especialmente no período que se estende da década de 1950 a 1980. A confluência de interesses entre a esfera publicitária e a jornalística justifica-se, afinal, pelo fato de que assim como as agências publicitárias, Manchete e Fatos e Fotos eram

147

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

publicações sustentadas financeiramente pelos anúncios de empresas estatais e de indústrias estrangeiras com fábricas inauguradas no país. A adesão ao discurso desenvolvimentista e a divulgação de aspectos divulgados pelo governo quanto ao crescimento do país eram, portanto, formas estratégicas para obtenção de financiamento. O país construído pela retórica publicitária do período (e também por Manchete e Fatos e Fotos) “consubstancia-se na experiência urbana, que faz emergir uma cenografia moderna, marcada pelos ambientes construídos e pelos espaços repletos de transeuntes” assim como “na visualidade promovida pelas fábricas, grandes edificações que delimitam a paisagem natural, imprimindo novos ritmos e novos rituais de vida cotidiana; bem como na racionalização da produção que enfatiza a importância da industrialização e da mercadoria” (HOFF e CARRASCOZA, 2015, p. 44). Em Manchete e Fatos e Fotos isso se materializava de algumas formas específicas na narrativa jornalística. Na trajetória das duas revistas “podem-se distinguir temas que marcaram época, como a corrida espacial e os concursos de misses; de temas que permaneceram como organizadores das narrativas sobre o país: a política nacional e internacional, as questões da ciência”. O que as une e “o que as mantém enquanto imagem e produto de empresas bem-sucedidas é o ritmo que impõem, a informação condensada que propagandeam, a promessa da ordenação de um mundo que se tem que dominar - excluindo dele, em regra, as diferenças, que não cabem nas sínteses das imagens”. Assim, “em conjunto com outras imagens publicitárias, as imagens de capa vendem revistas, vendem a imagem do meio a que pertencem, organizam o tempo de um olhar que se perdeu do mundo ao tentar dominá-lo” (SILVA, 2003, p. 111). Do ponto de vista do conteúdo, portanto, as imagens condensavam, em seus processos de conotação, signos sempre vinculados a valores positivos em imagens-síntese. O discurso desenvolvimentista, em Manchete e Fatos e Fotos, se esparrama para além das pautas propriamente políticas. No caso das celebridades, obviamente, elas representam modelos de sucesso que engendram metaforicamente a partilha entre os padrões de vida e de sucesso que devem ser seguidos. Para além do apelo à intimidade das celebridades – e a consequente triangulação para a vida do consumidor –, contudo, o mecanismo de convocação também se articulava em outras pautas rela-

148

ELIZA BACHEGA CASADEI

cionadas, por exemplo, à saúde e bem estar. O desenvolvimento nacional também era atestado por essas matérias que apontavam avanços nessas áreas de atuação. Não é por acaso que, nesse período, o dado numérico assume uma importância bastante acentuada nas construções textuais das duas publicações. É recorrente a remissão a estatísticas e cálculos que servem tanto para confirmar um posicionamento acerca de determinado acontecimento quanto para tentar fornecer proporções e padrões para os assuntos tratados, um procedimento que era pouco usual nas revistas do período anterior. Não obstante o caráter essencialmente subjetivo nas interpretações dos números, eles funcionam como ancoramentos referenciais e provas imaginárias de verdade para o narrado. As reportagens em Manchete sempre trazem ao leitor algum tipo de quantificação da realidade: para além de um narrador impessoal que engendra o relato, há a voz impessoal dos números (provenientes de diversas fontes) que ancoram o real em um universo que pode ser contado e, exatamente por causa disso, apreendido (CASADEI, 2015). Os números confirmavam essa imagem de um Brasil otimista, livre de conflitos ou contradições internas. Há outros elementos composicionais na esfera das imagens, contudo, que podem ser destacados e que também corroboram para a construção de uma imagem que não comporta conflitos. Um outro elemento técnico de composição imagética importante do período é a utilização das cores: embora as cores já fossem amplamente utilizadas no período anterior, é a partir da década de 1960 que as revistas se tornam predominantemente coloridas. Silva (2003, p. 129) aponta para a articulação de um excesso de cores em Manchete, com pouca exploração de contrastes e sempre de forma a utilizar os códigos existentes e operantes para tentar não desacomodar o seu leitor. “Essas capas, na medida em que não ousam, em que raramente procuram perverter tais códigos para gerar maior ambiguidade, representam forças conservadoras” (SILVA, 2003, p. 130). Assim, as cores são sempre utilizadas de forma a não gerar ambiguidades e a reforçar os códigos já compartilhados com o leitor, sem que haja qualquer forma de provocação do olhar. Não foi notada pela autora, por exemplo, recorrências cromáticas importantes criadas pela revista. Em Veja, por exemplo, há um uso de cores,

149

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

no período, que se mostra mais sofisticada no sentido de desafiar o olhar dos leitores a partir de recorrências cromáticas construídas pela e na publicação. Guimarães (2000) aponta que o vermelho, por exemplo, está sempre associado a temas como: violência; esquerda e comunismo; rebeliões, rebeldes e protestos; medicina; proibição, negação e controle; crises; sedução e sexo; terrorismo, tortura, guerra e tragédias. Em comum, essas pautas apontam a “ruptura da ordem social”, criando um campo semântico próprio evocado pela publicação. Em Manchete, tais recorrências não são observadas, de forma que a cor é também um elemento de coesão que não demanda um esforço interpretativo por parte do leitor. Outra característica marcante do discurso publicitário do período incorporado por Manchete, como já citamos anteriormente, é o apelo maior a uma personalização do conteúdo, através da vinculação de valores universais à cotidianidade da vida dos leitores. Embora isso se mostre de maneira mais óbvia em pautas que exploram a vida das celebridades (apostando na projeção do próprio leitor na narrativa), as reportagens sobre ciência e tecnologia, por exemplo, sempre apontavam para descobertas incríveis cujo conhecimento reverteria em um grande bem estar para o consumidor da revista. As temáticas são sempre “associadas diretamente à vida e à morte, ou traduzidas, no otimismo dos anos sessenta, em maior longevidade à espécie humana” (SILVA, 2003, p. 110). E, mesmo nesses casos, frequentemente a vida pessoal se associava à personalidade pública do cientista retratado. Em uma reportagem sobre transplantes, por exemplo, Manchete trata o Dr. Zerbini, responsável pela técnica, como “pai exemplar, homem exemplar”. No que se refere ao plano fotográfico, os retratos, em Manchete, são estratégias imagéticas fundamentais utilizadas para conectar temas universais a histórias específicas de vida, para uma maior identificação do leitor. Não é por acaso que, nesse período, nota-se uma quantidade mais acentuada do uso dos planos em close. Os retratos, para Miscelli (1996, p. 18) são imagens negociadas fundadas em um compartilhamento de códigos verbais e corporais socialmente difundidos. Segundo Silva (2003, p. 144), “em 1968 e 1969, de 173 capas de Manchete e Veja, 165 utilizam o corpo humano como parte da mensagem composta”, de forma que o uso do corpo se mostra como uma

150

ELIZA BACHEGA CASADEI

importante técnica convocatória através da composição. Há um dado, contudo, que se destaca no uso dessa estratégia: entre 1968 e 1969, “todas as capas com enquadramento que privilegia o rosto são com mulheres jovens – amplo predomínio das loiras (...). Em Veja, todas as capas desta natureza são com homens” (SILVA, 2003, p. 145). As expressões de homens e mulheres nas duas revistas, contudo, variam bastante: ao passo que os homens estão sempre com expressões sérias que conotam seriedade, nas mulheres exploram-se olhares e expressões faciais que sugerem sensualidade, reforçando estereótipos de gênero. “Mulheres famosas constituem uma identidade pública com base na confecção de uma máscara que as coloca como modelo de feminilidade, sensualidade, beleza”, de forma que “cada uma delas traz uma sensualidade calculadamente casual, unida com alguma característica de sua personagem pública” (SILVA, 2003, p. 147). Trata-se de revistas que reforçam estereótipos de gênero e apostam na mostração sensual do corpo feminino como uma estratégia de convocação importante. Há uma exploração da sensualidade feminina que não é observada nos homens fotografados. Nas imagens de Manchete, eles “são mais velhos e mais sérios. Posam de jaleco e óculos preto, (...) terno e gravata pretos, testas franzidas (...); são controlados, reservados, circunspectos” (SILVA, 2003, p. 146). A eles, são muito mais articulados os signos de poder, de forma que o apelo para o consumo é articulado a partir da disponibilidade do corpo feminino como objeto de desejo e do corpo masculino como ethos de autoridade. Na esfera textual, uma outra forma de articular temas universais a vidas singulares se manifesta também em Manchete a partir de uma evocação maior ao leitor como actante narrativo. É comum, no texto de Manchete, uma constante inserção de perguntas retóricas na narrativa. Trata-se de manifestações textuais que inserem o leitor na construção textual – uma vez que abre uma expectativa de resposta a essa pergunta – mas apenas no nível pragmático, sem implicações para a significação geral do texto. A quantidade de perguntas retóricas presentes nas reportagens de Manchete é realmente marcante. Frequentemente, elas tomavam a forma de uma provocação da curiosidade do leitor através da inserção de uma

151

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

pausa dramática no relato tecido. Na reportagem sobre o assassinato de Teresa de Oliveira Sachini, encontrada morta no armário de sua casa, o repórter Leon Eliachar se pergunta (e pergunta ao leitor) o tempo todo: “pensou-se em latrocínio. Mas impôs-se essa pergunta: por onde teria entrado o ladrão assassino?”; “Estrangulamento?”; “Quem teria passado em sua companhia a última noite?” (MANCHETE, 23/04/1960). Na reportagem sobre Brasília, as perguntas eram: “Estaria o famoso arquiteto satisfeito com a obra com que seu amigo Juscelino sonhou?”; “Quem fez tudo isso? Como foi possível?”; “Então, fica ou não fica pronta para o dia 21?” ou “o clima é salubre?” (MANCHETE, 23/04/1960). Os efeitos de sentido articulados em torno dessa estratégia textual são diversos e podem ser analisados caso a caso. Desde a estimulação da curiosidade do leitor até a adoção de uma postura didática para narrar o acontecimento, tal construção discursiva é interessante na medida em que instaura uma pausa no fluxo do relato. Em todos os seus usos fica patente a evocação do leitor na narrativa (em uma encenação de um estabelecimento de um vínculo entre a esfera da produção e a esfera da recepção) e do próprio repórter – que, embora não necessariamente se assuma como um eu que toma a palavra, deixa transbordar as suas impressões o tempo todo no relato. Um outro dado digno de nota refere-se às interações entre fotografia e legenda em Manchete e Fatos e Fotos. Em uma reportagem sobre a AIDS, a revista Manchete colocava a seguinte legenda, abaixo de uma série de retratos: “Kimberly Bergalis: contaminada acidentalmente na cadeira do dentista. Para a prevenção da transmissão sexual, só há um remédio: camisinha. Para Carlos A. Moraes, Richard Parker e Mauro Romero, o contágio do homem pela mulher é raro, mas possível” (MANCHETE, 30/11/1991). Em uma reportagem fotográfica sobre os campos gerais, as legendas fotográficas também não se detêm apenas nas informações situacionais da foto e medeiam uma série de outros dados como “o solo pobre exige modernas técnicas de plantio para que permaneça vivo. No rio Iapó, a correnteza torna a prática da canoagem ainda mais arriscada e emocionante” (MANCHETE, 30/11/1991). Nas revistas dos períodos anteriores é possível notar que, embora houvesse o predomínio da legenda narrativa, a legenda não abandonava

152

ELIZA BACHEGA CASADEI

a sua função pronominal e de preenchimento do dêitico fotográfico. As descrições das fotos ainda estavam bastante ligadas aos elementos que eram retratados na cena e sua narrativa tinha como ponto de partida esses mesmos elementos. A partir da década de 1960, a legenda fotojornalística se emancipa da própria fotografia. Mesmo revistas como O Cruzeiro alongam a legenda e a transformam em uma extensão da reportagem e não da foto apresentada, de forma que outros dados, externos à representação passam a ser incorporados. É a época em que a própria legenda passa a incorporar alguns códigos padrões de narração que estavam começando a ganhar espaço nos textos e que eram raros nas reportagens no período anterior como estatísticas, fatos da ciência e análises mais detalhadas que buscam embasamento em dados desvinculados da esfera testemunhal. Além do caráter narrativo que se mantém, a legenda fotojornalística em revista passa a incorporar uma função de análise, ao incorporar novos códigos padrões de narração que dizem respeito à adoção do jornalismo interpretativo nas revistas de informação. A partir de 1958, Manchete dá início a uma mudança editorial, alicerçando-se em novos modelos de reportagem. Ao invés de investir no estilo de matéria exploratória praticada pela O Cruzeiro, Manchete (que, inicialmente, havia sido inspirada pela Paris-Match) começa a importar um modelo inspirado nas revistas Time e Life – um desenho de jornalismo interpretativo que, embora não tenha se realizado completamente em Manchete, irá se consolidar na década seguinte com a criação da revista Veja. Nesses novos termos, o investimento de uma reportagem não está tanto na vivência de um repórter, mas sim, em um jornalismo que busca uma informação devidamente interpretada, de forma a tornar o significado de um determinado acontecimento bastante evidente para o leitor. Esse modelo, ao longo da década de 1960, começa a se impor sobre o jornalismo brasileiro e a própria O Cruzeiro passa a adotá-lo, abandonando o velho estilo de reportagem que a tornara famosa. Manchete consegue, nesse período, alcançar a marca de 500 mil exemplares, consolidando a sua importância no mercado editorial de revistas. A questão que se impõe, contudo, é o fato de que a esse modelo de revista interpretativa, sobreveio outro conjunto de valores e hierarquias

153

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

a partir dos quais os jornalistas julgavam que uma boa estória deveria ser contada. No mesmo rastro, vieram outros códigos padrões de narração que estetizavam esses valores, tais como um uso mais sofisticado de estatísticas, dados científicos, falas de especialistas, analogias históricas, entre outros mecanismos. As legendas fotográficas passam a se tornar textos mais extensos que se libertam da mera descrição ou da mera narração da fotografia e passam a incorporar os códigos padrões de narração que estavam sendo utilizados no próprio texto da reportagem.

154

CAPÍTULO 6

A afirmação de um espaço de autoridade de um saber sobre o mundo: As imagens-síntese da revista Veja

A construção performativa de um saber sobre

Para entender as estratégias de convocação das produções midiáticas, para Prado (2005, p. 41), é necessário entender o performativo. Posto que tal termo designa aquilo que efetiva uma ação na medida em que a enuncia (como, por exemplo, o verbo “jurar” que performa um juramento no próprio ato de enunciação), “o dizer midiático dirige ao leitor uma carga pragmática a partir de contratos específicos de enunciação ou de leitura”, de forma que o jornalismo se apresenta como uma atividade “conformadora, criadora, que põe e repõe as identidades do leitor”. No caso da revista Veja, trata-se de um performativo bastante específico: embora as revistas semanais pareçam falar sobre todos os assuntos (e este é, de fato, um dos pontos centrais da articulação de sua auto-imagem ou, de forma mais precisa, de seu atrativo enquanto produto para venda), esse tudo se constrói em torno de estratégias discursivas de convocação bastante específicas, ligadas à construção performativa de um lugar de um suposto compartilhamento de valores e de um locus de autoridade. Os valores que Veja elege como centrais, para Prado, embora aludam a gatilhos emocionais e ideológicos dos mais diversos, se estruturam em

155

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

torno de um eixo comum bastante demarcado: o sucesso ou, mais especificamente, os caminhos para alcança-lo. Ele é construído performativamente como um valor compartilhado entre a revista e seu consumidor, na medida em que se comporta, ao mesmo tempo, a construção discursiva de um campo de entendimento comum sobre o mundo e a constatação ethópica da autoridade da revista para traçá-lo. As reportagens sobre comportamento ou saúde, por exemplo, tem um mote em comum que se repete: como o consumidor pode agir para ter êxito em um mundo globalizado e severo, com modos exigíveis de ação para conseguir ficar acima da média das outras pessoas. “As posições de sujeito (...) são construídas por Veja de modo utilitário, como se pudéssemos simplesmente decidir assumir uma posição de sujeito que nos levasse ao sucesso, bastando, para tanto, ler a revista e ter boa vontade” (PRADO, 2005, p. 42). A própria revista se outorga o papel de instância de autoridade para falar do tema, supostamente vendendo um mapa de sucesso que o consumidor não tem, mas pode adquirir a partir da leitura de suas reportagens. Trata-se, portanto, de uma urdidura narrativa que coloca a própria revista Veja como uma autoridade complacente que está em uma conjuração harmônica com os interesses do consumidor. Os textos de Veja, assim, “ultrapassam o nível do texto informativo e se coloca na posição de indicar os passos e as ações necessárias (o deve fazer) do consumidor que, uma vez informado sobre a novidade do mundo globalizado, pretende buscar o sucesso”. É nesse sentido que “Veja mapeia onde estão as pessoas de sucesso e dinheiro (em termos de milhões e bilhões acumulados, como fazem as revistas norte-americanas como Fortune), indica o caminho do bem viver, de chegar ao sucesso, à vitória” (PRADO, 2005, p. 42), de forma que seus textos, performativamente, urdem pacotes simbólicos sobre o que significa ter sucesso (bem como as formas de alcançá-lo) e que comportam a autoridade da revista para dizê-lo. A descrição dos fatos é posta somente nos termos em que ela serve a uma prescrição, a um modo de agir no mundo. As histórias de sucesso, a supersimplificação da realidade, a projeção de um enunciatário com íntima relação com o mundo do mercado, o emprego de palavras de ordem e a popularização de clichês da literatura de auto-ajuda e de negócios são algumas das formas discursivas a partir

156

ELIZA BACHEGA CASADEI

das quais tais estratégias de convocação de materializam. O antagonismo social raramente é considerado e, quando citado, muitas vezes serve a um discurso maniqueísta, construído em termos de bom ou ruim. “O reino mágico de Veja algumas vezes pacifica o leitor (use seu cérebro e serás feliz), outras alerta-o para os perigos do mundo (veja o crescimento urbano, da violência, do crime), outras o localiza (as novas tendências das ações das mulheres, do governo, da globalização)” (PRADO, 2005, p. 45), criando um modelo de sucesso empresarial para os seus consumidores, tanto em suas vidas pessoais quanto em termos de conhecimentos necessários para se movimentar no mundo. O consumidor da revista, nesse caso, é constituído discursivamente como o outro-paciente que depende do conhecimento do enunciador. Há mesmo um espelhamento desse suposto discurso do vitorioso nos mais variados tipos de reportagens, desde as de comportamento e consumo (onde isso se mostra de maneira mais óbvia) até as de política ou de economia. Em reportagens sobre o bolsa-família, por exemplo, a oposição “emancipação versus assistencialismo” é um dos eixos discursivos a partir dos quais o projeto é invalidado. As reportagens de Veja sobre o tema “afirmam majoritariamente que o programa é assistencialista por natureza, quer dizer, ele não leva os beneficiários a se emancipar e a sair da pobreza”, sem que seja feita uma elaboração mais sofisticada sobre o que significa o termo emancipação. O jornalismo de Veja, assim, está atado a esses processos biopolíticos que fornecem “as receitas para cada leitor agenciar seu caminho rumo à vitória segundo o princípio do desempenho ligado ao capital globalizado. Nessa direção a única diferença que importa ao jornalismo hegemônico é a que impulsiona o capital” (PRADO e MOASSAB, 2011, p. 10). Em um estudo sobre a imagem de Luiz Inácio Lula da Silva na revista Veja, Prado e Ramaldes (2008) destacam que, ao passo que a imagem de um político como Serra, por exemplo, incorpora traços do técnico competente, Lula assumiu historicamente três variantes: a) a do agitador em porta de fábrica, ou seja, o ser perigoso que poria em risco as instituições políticas e econômicas brasileiras, o Gêngis Khan do capitalismo; b) a do que está por baixo, não preparado, não

157

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

capaz de governar porque não tem o saber (Lula sob os gráficos do mercado), além de estar ligado a radicais que poderiam dominá-lo e, finalmente, c) a do Lula Light da fase 2001-2002, o cristão-novo do capitalismo (PRADO e RAMALDES, 2008, p. 170).

Em comum, há a construção de uma macroestrutura discursiva de oposição semântica Mesmo-Outro “que coloca no lugar do Mesmo aquele que é competente para preservar a Ordem, cujo corpo-simulacro encarna não a força social transformadora, mas a força da conservação” e, no lugar do Outro, tudo o que se distancia desse modelo – no caso, Lula. Há, no entanto, mais do que isso: nas construções imagéticas, Lula incorpora tudo o que se afasta do modelo de sucesso apregoado por Veja: “a estratégia (...) está em colocar Lula como figura-do-Outro, meio gordo, baixinho, como um homem comum, de padrões ‘modestos’, com um corpo marcado pela falta ou excesso, sem competência para resolver os problemas brasileiros”. E, assim, “o enunciador sugere que a dificuldade está em convencer (demonstrar para) o eleitor de que esse Outro é mesmo capaz de ocupar a posição do presidente competente dos Mesmos” (PRADO e RAMALDES, 2008, p. 171-172). Frequentemente, em Veja, “o enunciador figurativiza essa falta/incompetência de Lula no desvio corporal, apontando ironicamente os defeitos: língua presa, gordura, desproporção corporal (caracterizada no termo ‘enfados’) e pobreza”. Aqui, a caracterização corporal é oposta a de outros líderes legitimados pela revista como Collor (em seus tempos áureos, quando representava uma esperança nacional pela ótica da revista), Serra ou Fernando Henrique Cardoso. “Lula é corporalmente desviante, sendo esse desvio homólogo à falta de competência para resolver os problemas dos eleitores e do país. Esse desvio corporal é complementado pelo desvio de coerência; o enunciador aponta incoerências políticas e gostos duvidosos” (PRADO e RAMALDES, 2008, p. 178). Para falar sobre políticos de oposição, portanto, a estratégia discursiva do enunciador é a de atuar no eixo de oposição Mesmo-Outro: deve-se ter medo do perigo (incendiário) do Outro, deve-se rir dessa desproporção do corpo do pobre metido a ocupar um lugar que não é seu, do trabalhador, pois não se deve

158

ELIZA BACHEGA CASADEI

colocar no poder o homem comum; para governar o homem comum, é preciso alguém para além desse universo ironizável, com o qual o mesmo leitor não se identifica em termos de valores e costumes; é preciso alteridade em relação a essa “comunidade”, a essa quase ignorância, despreparo e ridículo do homem comum (PRADO e RAMALDES, 2008, p. 178).

O consumidor, narrativamente, não é posicionado nesse terreno do “homem comum”, mas sim, como o agente de sucesso que intervém no mundo para ter sucesso. A estratégia de convocação opera, justamente, ao conjurar a ideia de que, a partir da leitura da revista e de seus mapas de sucesso, esse consumidor pode alcançar uma posição superior de sucesso, vinculada à imagem do Mesmo. Disso é possível depreender também que, ao menos na esfera do desejo, o Mesmo e o Outro também são articulados em termos de riqueza (Mesmo) e pobreza (Outro), de forma a ignorar importantes conflitos sociais. Há algumas estratégias de convocação, portanto, que se diferenciam daquelas utilizadas no período anterior – de forma que isso se manifesta na forma como a própria imagem é posta em composição na capa. Para citarmos um exemplo, o uso de celebridades, uma constante em outros períodos históricos, obedece a outros imperativos daqueles mostrados até o momento na presente pesquisa: as figuras relacionadas ao showbusiness não servem apenas como ilustrações para modelos exemplares de vida; elas são, sim, utilizadas como detentoras de um saber compartilhado pela revista, ou seja, elas reforçam, em sua construção imagética, o lugar de saber pleiteado por Veja em seus mapas modalizadores de mundo. Tal articulação de um lugar de autoridade a partir de um suposto compartilhamento de valores comuns não é uma exclusividade de Veja. Há uma rearticulação do cenário editorial de revistas brasileiro a partir do final da década de 1960 que explica, em grande medida, o uso desse tipo de estratégia linguística, vinculado ao fortalecimento do jornalismo interpretativo. É necessário, portanto, olharmos com um pouco mais de cuidado o projeto afetivo-editorial de Veja, em comparação com aqueles presentes em outros momentos do jornalismo em revista brasileiro.

159

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

O interpretativo como eixo de um projeto afetivo-editorial

A articulação performativa de um lugar de autoridade para a revista está calcada em um projeto afetivo-editorial bastante específico, que pouco mudou ao longo da história de Veja. Em um editorial publicado no número de 02 de Março de 2011, por exemplo, a publicação colocava que “a missão primordial de uma revista semanal de informação é organizar os fatos de modo que o leitor possa entender a realidade de forma coerente, contextualizada e útil para a vida dele”. A missão da revista seria “o de filtrar, classificar, verificar e hierarquizar as informações”, de forma que “o mundo é complicado e, a cada semana, Veja se esmera em descomplicá-lo para você”. Ao afirmar que a função de uma revista informativa semanal é a de contextualizar os acontecimentos, de forma a torná-los compreensíveis e coerentes, esse editorial explicita um posicionamento afeitvo-editorial que estava pressuposto desde o início das atividades da revista Veja no país e, especialmente, à sua vinculação a um projeto de jornalismo que recebeu a alcunha de interpretativo. De uma forma geral, podemos notar que é esse o modelo de narração que está sendo adotado pelas revistas informativas até os dias atuais. Surgida em 11 de Setembro de 1968 (com o título Veja e Leia), o projeto editorial da revista Veja é inspirado na publicação norte-americana Time. Enquanto a maior parte das revistas brasileiras do período anterior buscava inspiração em periódicos como a Paris-Match ou a Life, o modelo adotado pela Time era ligeiramente diferente e se caracterizava por ser uma proposta de jornalismo altamente contextualizadora e argumentativa que, posteriormente, seria chamada de reportagem interpretativa. A Time, fundada em Março de 1923 por Henry Luce e Briton Hadden, além de ter sido a primeira revista semanal internacional, tinha como projeto editorial a escrita de um jornalismo cujos textos não se limitassem a descrever um acontecimento, mas que pudessem fornecer dados ligados a uma organização e delimitação de seu valor simbólico. Esse modelo inspirou diversas outras publicações como, por exemplo, a Life, a Newsweek e a U.S.News & World Report que, juntas, dominaram durante um grande período o setor de revistas semanais do mercado norte-americano.

160

ELIZA BACHEGA CASADEI

À linguagem mais tradicional e imparcial do jornalismo diário, a Time contrapõe um modelo de revista “a favor de uma voz que pretende estabelecer sua autoridade como um líder nacional e forjar uma ligação pessoal com seus leitores, e interpretar bem como informar” (KITCH, 2005, p. 17). Na comemoração do 75o aniversário da revista, o editor da Time, Lance Morrow, dizia que: “a História pode ser complicada, como a vida é complicada, mas o trabalho de contar estórias é simples... Arrumar o mundo em estórias e conduzi-los (fatos, personalidades, ideias, imagens, dramas, peculiaridades, fofocas, os detalhes e a energia da vida) de Lá Longe, aonde as coisas acontecem, para Aqui Perto, dentro da consciência do leitor, onde as estórias se transformam em espanto, entretenimento, experiência preventiva, memória útil” (MORROW, 2008). O elemento interpretativo dentro desse modelo de revista informativa, portanto, não é só uma característica de seu conteúdo, como também o elemento que o diferencia de outros tipos de jornalismo e que confere legitimidade à sua prática. Embora o termo jornalismo interpretativo possa parecer redundante, ele diz respeito a uma terminologia já consolidada na área de estudos em comunicação e com características bastante demarcadas. Segundo Erbolato (1991, p. 27), o seu surgimento, no Brasil, está diretamente vinculado a uma mudança na ecologia dos meios de comunicação de massa que, sob a influência da popularização da televisão, teve que encontrar novas vocações para os veículos impressos. Muito do material que, antes, chegava aos leitores por meio das revistas, era agora veiculado na TV com recursos técnicos mais atraentes e com um acesso mais fácil e imediato. Era necessário encontrar novos modelos para a reportagem impressa. A estratégia adotada, então, foi a de “dar ao leitor reportagens que fossem um complemento do que foi ouvido no rádio e na televisão. Adotou-se, para isso, a pesquisa, tendo como fonte os arquivos dos jornais e as bibliotecas e, ao lado deles, a obtida através da movimentação de equipes de repórteres” (ERBOLATO, 1991, p. 31). À rapidez de cobertura que a televisão oferecia, os impressos tentaram contrapor uma análise mais pormenorizada e detida dos acontecimentos que já eram de conhecimento geral. Seguindo a historiografia do jornalismo, é possível dizer que o marco oficial adotado como o início do jornalismo interpretativo no Brasil é a

161

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

criação do Departamento de Pesquisa e Documentação do Jornal do Brasil, na década de 1960 (LEANDRO e MEDINA, 1973, BELTRÃO, 1976). Nesse sentido, é possível ver que Veja se insere em um contexto mais amplo da imprensa escrita dessa época que estava tentando rearticular o seu papel na economia informativa do período. Antes de seu lançamento, foram editados 14 números pilotos (números zero) da revista Veja para que o modelo fosse adotado definitivamente. Inicialmente, a editora Abril queria fazer concorrência aos semanários ilustrados e a revista foi pensada nos moldes da revista Manchete. É por esse motivo que o nome inicial da revista era Veja e Leia. Além disso, essa também foi uma estratégia para a editora contornar o registro internacional da revista Look (o complemento foi excluído na edição de número 216, época em que a Look já havia deixado de circular). Esse modelo, contudo, já estava em decadência no mundo todo e, antes mesmo do seu lançamento, ele foi alterado. Segundo Dines (1997, p. 73), “o fechamento das três principais revistas americanas (Colliers, Look e Life) e o declínio de Paris-Match são os fatos mais expressivos do panorama. Em todo o mundo, o mercado das ilustradas foi grandemente atingido. No Brasil, depois do florescimento dos anos 1960, o gênero inclinou-se sensivelmente para baixo”. O novo cenário editorial apontava claramente para um crescimento das revistas interpretativas e especializadas e foi, portanto, esse o modelo adotado pela revista desde o seu primeiro número. As características apresentadas por Veja nesse primeiro número eram pouco comuns nas revistas ilustradas. Entre elas, é possível apontar a tentativa de lidar, ao mesmo tempo, com a apresentação das notícias da semana e com a interpretação de seu significado, a partir de um modelo de jornalismo que busca alinhavar conjecturas acerca do que um fato exprime em relação a um contexto mais amplo. Além disso, Veja também apresentava um outro padrão de projeto gráfico. Ao contrário das revistas ilustradas que apostavam na fotografia como um meio privilegiado para a transmissão das informações, Veja relega-a a um segundo plano. Embora a fotografia ainda seja um aspecto importante da produção noticiosa, não há o cuidado estético característico das publicações dos anos anteriores.

162

ELIZA BACHEGA CASADEI

A assunção do termo “jornalismo interpretativo” pode parecer redundante à primeira vista, mas possui uma lógica evidente se tomarmos como pressuposto o fato de que a sua função não é mais a de captar o acontecimento em movimento, como nas revistas anteriores, mas sim, a de tentar articular um significado para um acontecimento que já está dado, que já aconteceu. Estamos diante mesmo de duas concepções diferentes de acontecimento: do acontecimento em acontecendo do início do século XX em direção a um acontecimento já acontecido que começa a emergir nas reportagens (como efeito de sentido) a partir dos anos 60. O movimento que caracterizava as narrativas de reportagens do início do século se perde porque o que motiva a pauta não é mais a duração do acontecimento – cujo movimento não mais importa porque já está tido como dado – e sim o significado do acontecimento. À narração de um evento que estava em acontecendo contrapõe-se a narração de um acontecimento que carece de significação – mostrando duas concepções bastante distintas de reportagem. Se a falta que motiva a narrativa pesava antes para o lado do desenrolar, ela passa a equilibrar-se em direção ao lado do traduzir. A partir do pressuposto que a matéria-prima da narrativa é um acontecimento já acontecido, no sentido de que o desenrolar do acontecimento (ou sua duração) já é de conhecimento prévio do consumidor (adquirido pelo contato com outras mídias), a narrativa irá se ocupar em traduzir o significado desse acontecimento, convocando, para isso, elementos externos ao próprio acontecimento. Posto que as principais estratégias convocacionais de Veja se estruturam nessa construção performativa de um lugar de um suposto compartilhamento de valores entre a revista e o consumidor no alicerçamento (também performativo) de um locus de autoridade para a publicação, cabe-nos a seguinte pergunta: como tais estratégias de convocação são construídas a partir da imagem nas capas da revista?

Convocaçãoes de autoridades na composição imagéticas

As imagens de capa de Veja nunca são meramente ilustrativas ou referenciais. São imagens que tomam posição. Para Didi-Huberman (2013, p. 9), tomar posição é situar-se sempre em duas frentes posto que se trata

163

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

de afrontar algo. Assim, ao lado de todos os valores que concordamos ao tomar posição, fixam-se todos aqueles aos quais nos opomos, aquele “fora de campo que existe por detrás de nós, que até mesmo negamos, mas que, em grande parte, condiciona os nossos movimentos e, portanto, a nossa posição”. Além disso, trata-se de situar-se também em duas temporalidades: “tomar posição é desejar, é exigir algo, é situar-se no presente e aspirar um futuro”. Tomar posição é, portanto, desenhar o campo das possibilidades, efetuando a partilha entre o que se aspira e o que se denega e, ao mesmo tempo, alinhar um campo em que o diagnóstico do presente se combina a projetos de futuro. Em termos imagéticos, essas questões se materializam nas capas de Veja a partir de uma estratégia de composição que parte da associação de três espaços heterogêneos: a saber, a montagem de uma imagem-síntese forte, a interação entre a imagem-síntese e o texto e a utilização de códigos de conotação socialmente marcados. Tais estratégias composicionais servem para, performativamente, marcar um campo simbólico de valores comuns entre a revista e o seu consumidor ao mesmo tempo em que afirma a própria autoridade da revista como instância legítima de interpretação do mundo. Vejamos essas questões com maior detalhamento. Assim como Realidade, Veja calca as suas capas na técnica da montagem, porém com parâmetros diversos daqueles utilizados por ela. As capas de Veja operam por uma recomposição formal do acontecimento noticiado, que se efetua a partir de uma linguagem que combina a estratégia documental alinhada com uma reinterpretação dos fatos propostos. Nesse sentido, a revista Veja opera a montagem de imagens-síntese, que resumem ou explicam uma dada situação noticiada a partir da condensação de elementos imagéticos relacionados a ela. A construção da autoridade da revista coloca-se performativamente, portanto, ao anunciar uma realidade reconfigurada, para além da evidência mais premente e óbvia – de forma que a própria revista se posiciona como uma instância capaz de remontar o mundo ao compreendê-lo. A elaboração de uma imagem síntese não é mais do que uma tomada de posição tanto no plano das formas quanto no plano dos conteúdos. Ela opera ao “tratar os elementos do real no sentido de um ajuste experimental” por meio do qual uma imagem “não reproduz o estado de coisas, mas

164

ELIZA BACHEGA CASADEI

sim, o descobre” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 57). É nesse sentido que a apresentação de uma imagem síntese reafirma o lugar de autoridade da revista, posto que ela é a própria materialização de seus atos performativos: a revista se outorga o papel de remontar a realidade para melhor compreendê-la a partir dessa imagem-síntese composta. Se olharmos para alguns exemplos específicos, o mecanismo composicional se mostra com clareza. Na edição de 04/12/1986, por exemplo, a capa da revista mostra uma foto do Congresso Nacional por detrás de um vidro quebrado, conotando as fraturas nas instituições políticas brasileiras; na edição de 10/10/1978, há uma foto simples de Figueiredo e, a seu lado, um alvo de dardos, levando o leitor a uma leitura cruzada das duas figuras; na edição de 28/12/2017, mostra-se o presidente Temer usando um terno muito maior do que ele, com a manchete “O presidente encolheu”. Em todas essas capas, a imagem possui uma função além de denotar ou ilustrar a notícia da semana: ela compõe uma imagem-síntese que é interpretativa dos dados propostos. A imagem-síntese, em Veja, utiliza como um dos elementos centrais a própria memória do fato noticiado na mente do consumidor. Posto que no próprio projeto afetivo-editorial da revista está implicado o pressuposto de que a publicação fará uma intepretação ou comentário de notícias que já são de conhecimento público, as montagens propostas por ela em suas capas frequentemente se valem de reminiscências estilísticas em relação a outras imagens já consumidas pelos leitores em outros veículos.

Edições de 04/12/1986, 10/10/1978 e 28/12/2017, respectivamente

165

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

A imagem-síntese possui, nesse sentido, as descontinuidades próprias dos processos memorialísticos. Ao passo que a narrativa da reportagem opera por uma ordem a partir da qual os acontecimentos se sucedem linearmente, a narrativa da montagem imagética “expõe as transformações em curvas”, revelando “as descontinuidades que operam dentro de todo acontecimento histórico” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 56). Nesse espectro, a imagem-síntese se constrói dialeticamente por meio de recortes, enquadramentos e junções de elementos heterogêneos. É nesse sentido que, para Didi-Huberman (2013) não é por acaso que a montagem se torna um mecanismo de produção de sentido comum no pós-guerra em uma série de produções culturais das mais diferentes categorias: ela nasce da percepção da desordem do mundo e da consequente tentativa de alinhá-lo em uma imagem-síntese significativa. Tal junção, contudo, não é um mecanismo discursivo simples. Ela implica, antes de tudo, renunciar a um aspecto ethópico bastante central no fotojornalismo brasileiro em revista praticado até então: o seu caráter documental. A abdicação da imagem-fato em direção à imagem-síntese, enquanto conteúdo programático nas capas de Veja, contudo, não é aleatória. Ela serve para marcar um outro conteúdo ethópico que se afirma, vinculado a uma posição diante dos acontecimentos do mundo. A cessão do caráter documental da imagem visa destituí-la de “tudo o que ela tem de evidente, de conhecido, de patente, e fazer nascer a respeito disso assombro e curiosidade”. Trata-se de uma imagem que visa “criar intervalos onde só se via unidade” operada por uma “desarticulação da nossa percepção habitual da relação entre as coisas ou as situações” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 63) a que estamos acostumados. A junção desses heterogêneos é o que permite que, nas capas de Veja, a carga de referencialidade esteja atravessada por uma proposta de ficcionalização de mundo. Nesse sentido, são capas cujas imagens operam um mecanismo discursivo a partir dos quais são criadas “fábulas que interrompem e remontam por conta própria o curso da história” uma vez que “servem para criar uma montagem de historicidade imanente cujos elementos tirados do real induzem, por sua proposta formal, um efeito de conhecimento novo que não é encontrado nem na intemporal ficção, nem na factualidade cronológica dos fatos da realidade (DIDI-HUBER-

166

ELIZA BACHEGA CASADEI

MAN, 2013, p. 58). Tais imagens não se fiam nem em sua ilusão de referencialidade (uma vez que não estão calcadas meramente em seu valor documental que é, inclusive, muitas vezes negligenciado) nem em uma metamorfose em direção à imaginação absoluta (uma vez que elas estão alicerçadas em um ethos que ainda privilegia a interpretação dos fatos): são imagens que se apoiam em um contrato de leitura, pressuposto no projeto afetivo-editorial da publicação, que cria condições de experimentação para a sua feitura. Ao apoiar-se em tal mecanismo discursivo, a própria revista cria seu lugar de autoridade a medida que o enuncia na criação das suas imagens-síntese. Embora a maior parte das capas seja composta por montagens, também é possível observar capas formadas por imagens únicas. O mecanismo de sentido aludido, contudo, se mantém. Isso porque, mesmo nas imagens únicas, Veja também renuncia ao caráter documental da imagem ao escolher fotografias que possuem sentidos conotados bem demarcados socialmente que conferem à capa um sentido ideologicamente marcado – que é mostrado a todo o momento para o consumidor como uma tomada de posição transparente. Edição de 03/03/1988 O explicitamento do posicionamento ideológico da revista através de uso das conotações é também uma forma de reafirmar a autoridade da revista por meio de uma intervenção no mundo, uma vez que aqui, entra em cena o explicitamento das escolhas do fotógrafo (no enquadramento, no ângulo de câmera, na tomada de posição etc.) e do editor (na escolha da foto, da pose do personagem, da feição da pessoa retratada, entre outros). Há no explicitamento do posicionamento ideológico da revista através da imagem

167

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

conotada a afirmação de que a revista é uma instância legitimada para interpretar a realidade. Há, portanto, duas estratégias de sentido que se combinam na produção das imagens-síntese da revista Veja: em um primeiro aspecto, é necessário destituir as imagens jornalísticas de seu estatuto meramente documental ao injetar, explicitamente e como conteúdo programático, os elementos ficcionais necessários para a sua composição. Em um segundo aspecto, é necessário mostrar que se reconstrói a realidade, mostrar que se mostra a imagem em seu processo de feitura. Como lembra Didi-Huberman (2013, p. 61), “mostrar que se mostra não é mentir sobre o status epistêmico da representação: é fazer da imagem uma questão de conhecimento e não de ilusão”. É esse o lugar reivindicado performativamente pela imagem-síntese de Veja: um lugar de conhecimento legitimado sobre o mundo. E ela o faz não a partir do questionamento do sistema de signos imagéticos compartilhado pelos consumidores, mas sim, justamente, a partir da reafirmação de imagens cliché (que estão em montagem). Trata-se de “representar as coisas nem como evidentes (encontrando aprovação sentimental), nem como incompreensíveis, mas sim, como compreensíveis, mas todavia não compreendidas” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 64). Ora, é a própria revista Veja que, a partir da produção de sua imagem-síntese constrói performativamente o seu lugar de autoridade na junção de signos compartilhados que, em montagem, mostram o não-evidente (mas compreensível) da realidade para o seu consumidor em sua projeção ethópica. Nesse sentido, é necessário considerar que a imagem-síntese é um mecanismo linguístico autoritário: ela implica a “rejeição da polissemia e uma tomada de posição unilateral” do sujeito que a compõe. A representação, na imagem-síntese, remete à articulação de um “sentido ideal” que seja “significativo, legível, em resumo, inepto a toda polissemia” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 74). As imagens conotadas de Veja não abrem margem para interpretações muito desviantes – um mecanismo que era mais comumente utilizado em revistas como Realidade, por exemplo. Seus processos de conotação estão calcados em signos cujo sentido são amplamente compartilhados, construindo performativamente um campo de valores comuns entre a revista e o seu consumidor no campo imagético.

168

ELIZA BACHEGA CASADEI

Para isso, contribui um dos aspectos centrais que devem ser considerados nas análises das capas de Veja: a interação entre o texto da manchete anunciada e a imagem. O texto que acompanha as fotografias atua como uma ferramenta de auxílio ao consumidor para o entendimento do significado da montagem proposta na imagem síntese, de forma a não deixar espaço para ambiguidades. A manchete, em Veja instaura, performativamente, a forma como o consumidor deve olhar e interpretar as figuras de capa, indo muito além da função de apresentar a pauta. Ela própria coloca-se no lugar de autoridade de interpretação da imagem, colocando o consumidor em uma posição de passividade frente à interpretação desses signos imagéticos. A manchete, frequentemente, impõe mesmo uma sentença moral sobre o noticiado, que possui não apenas uma síntese interpretativa sobre um fato, mas também uma “força de concentração” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 41) simbólica que reforça a imagem-síntese. O consumo aludido nas imagens jornalísticas de Veja, portanto, reforçam os performativos alinhavados no texto, a partir da evocação de valores comuns que aludem a mapas de sucesso (a partir de uma narrativa imagética que urde conotações facilmente entendíveis porque socialmente demarcadas) e a afirmação performática da revista enquanto instância de autoridade para entendimento do mundo (a partir de uma intervenção explícita na imagem que se mostra ao leitor como conteúdo programático).

169

Últimas considerações

Na década de 1960, havia no jornal Diário de Notícias uma coluna intitulada “Escolhendo e Comprando com Helena Brazil”. Nela, era possível encontrar dicas sobre os melhores produtos combinadas com o aconselhamento sobre as melhores práticas para serem adotadas diante de situações comerciais diversas, bem como o desenho de uma linha demarcatória sobre o que era elegante de se consumir ou não. Em 02/04/1963, por exemplo, tal guru do consumo publicou uma coluna em que expunha uma espécie de receituário de mandamentos para ser adotado por suas leitoras, um conjunto de “regras básicas da arte de comprar”, tais como 1 o Analise bem o motivo da compra antes de a efetuar; (...) 7 o Tenha cuidado: nem sempre o mais anunciado é o melhor (...) 10 o Compre no melhor estabelecimento mais próximo da sua casa; 11 o Exija do comerciante um estabelecimento amplo, claro, higiênico, bem decorado; (...) 13 o Guarde seu dinheiro em bancos. Habitue-se a pagar em cheque (...) 18º Defenda-se do consumismo. Não transforme seu lar num depósito de compras. 19º O testemunho da estrela, da cantora, da Dama, do técnico, da moça da propaganda

171

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

vale menos do que sua experiência. (...) 22º Não seja uma eterna concorrente de suas amigas e vizinhas.

Nesses aconselhamentos, é possível notar que uma determinada ideia de consumo está coadunada a um olhar específico sobre o que significa bem viver, de forma que o próprio consumo é colocado em uma linha contínua às ações e à moral do indivíduo. Também se constrói uma imagem ethópica específica de enunciador e de um tipo de consumidor imaginado, de forma que a articulação estratégica do texto obedece a esses imperativos em sua articulação discursiva. Nem sempre o jornalismo foi tão explícito em suas colocações sobre o consumo. Não obstante isso, ao longo de sua história é possível notar que as notícias engendraram diferentes visualidades para ele, mesmo em seu material informativo, convocando uma espécie de consumidor típico a partir de estratégias discursivas demarcadas, que estavam estabelecidas nos projetos afetivo-editoriais das diferentes publicações, em suas especificidades históricas. Ao longo desse trabalho, tentamos mapear alguns dos aspectos dessa questão a partir do fotografável de cada uma das revistas analisadas, buscando os actantes narrativos mais recorrentes, as estratégias retóricas mais utilizadas e as formas de composição mais comumente articuladas na imagem. Em alguns momentos, é possível notar que alguns atores sociais específicos ganham primazia nas narrativas sobre os modos validados de vida e de consumo (como, por exemplo, os militares e sua virilidade casta nos primeiros anos da Revista da Semana, que depois cedem espaço para as estrelas hollywoodianas de O Cruzeiro, em um outro momento). Alguns pressupostos estéticos são também bastante demarcados historicamente (como quando foi possível observar nos anos em que as vanguardas artísticas eram referências importantes nas composições de capa e, posteriormente, são abandonadas para a utilização de imagens referenciais que, por sua vez, também irão perder espaço para fotografias que enfatizam a montagem e o jogo), cada uma delas com seus efeitos de sentido e discursividades específicas em relação ao consumo. Os modos de articulação discursiva do consumidor (como um actante narrativo) nas imagens também varia bastante, desde posições que conferem a ele uma postura mais

172

ELIZA BACHEGA CASADEI

ativa em relação à informação recebida, até conjunções que instauram um lugar de apaziguamento da polissemia dos sentidos. A partir dessas variações, é possível observar que há um consumidor imaginado nas práticas midiáticas que irá sustentar todas as decisões que são tomadas no momento em que uma revista é composta (e que pode ou não funcionar quando atinge o consumidor empírico final). Mas há ainda algo além disso. Estudar o consumo em suas intercorrelações com a imagem jornalística é observar um lugar em que afetividades são urdidas – e tais afetividades são desde sempre moventes e contraditórias. Tais imagens, portanto, mobilizam também efeitos de pathos, a partir de uma montagem dialética de sentidos. A expressão “formas do pathos na imagem” (pathosformel), popularizada por Didi-Huberman (2013), é adequada nesse sentido porque remete à ideia de um “traço significante, um traçado em ato das imagens (...), algo pelo qual ou por onde a imagem pulsa, move-se, debate-se na polaridade das coisas”. Trata-se da união de uma carga afetiva com uma fórmula iconográfica que se expressa na concorrência de tempos heterogêneos em uma mesma imagem. Tal perspectiva implica reconhecer que os significados dos objetos não são estáticos e mudam ao longo do tempo. Implica, ainda, assumir que a imagem é um objeto impuro e complexo, de forma que os diferentes estratos temporais dos sistemas de significação se acumulam e se entrelaçam nas composições imagéticas. E é justamente esse o desafio que se coloca para quem se aventura nesse campo de estudos: tanto o consumo quanto a imagem jornalística são objetos impuros, que remetem a sistemas de significação contraditórios, que nos causam ao mesmo tempo desejo e repulsa, fascinação e estranhamento. Ambos estão relacionados aos nossos processos identitários, mas ao mesmo tempo não os determinam nem são indiferentes a eles. Tanto o consumo quanto a imagem jornalística são objetos moventes, que não comportam teorias fechadas ou metodologias estanques. Para contar uma história (das várias possíveis) dos modos e estratégias de convocação para o consumo mediados pela imagem no jornalismo em revista ao longo do século XX é necessário reconhecer as contraditoriedades que os abarcam e adotar a própria antinomia como mecanismo central da urdidura dos processos de atribuição de sentido.

173

Referências bibliográficas

ADAMATTI, Margarida Maria. A crítica cinematográfica e o star system nas revistas de fãs: A Cena Muda e Cinelândia (1952-1955). Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação da Universidade de São Paulo. São Paulo: ECA-USP, 2008. AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. ALLOA, Emmanuel. “Entre a transparência e a opacidade: o que a imagem dá a pensar”. In ALLOA, Emmanuel (org.). Pensar a Imagem. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. ARAGÃO, Georgy Pontes Vieira de. Meios de Comunicação como construtores de uma imagem pública: Juscelino Kubitschek através das revistas Manchete e O Cruzeiro. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. Rio de Janeiro: CEDOC, 2006. AUDOIN-ROUZEAU, Stéphane. “Exércitos e guerras: uma brecha no coração do modelo viril?”. In COURTINE, Jean-Jacques. História da Virilidade: a virilidade em crise? Séculos XX-XXI. Petrópolis: Vozes, 2013.

175

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

AZEREDO, José Carlos de. Gramática Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Publifolha, 2011. BADIOU, Alain. Em busca do real perdido. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007. BAUDRILLARD, Jean. Para uma Crítica da Economia Política dos Signos. São Paulo: Martins Fontes, 1996. BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. Voltolino e as raízes do modernismo. São Paulo: Marco Zero, 1992. BELTRÃO, Luiz. Jornalismo interpretativo: filosofia e técnica. Porto Alegre: Sulina, 1976. BENVENISTE, Émile. Problemas de Linguística Geral. Campinas: Pontes, 1995. BLOCH, Arnaldo. Os Irmãos Karamabloch: ascensão e queda de um império. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. BOEHM, Gottfried. “Aquilo que se mostra: sobre a diferença icônica”. In ALLOA, Emmanuel (org.). Pensar a Imagem. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. BOURDIEU, Pierre. “Gostos de classe e estilos de vida”. ORTIZ, Renato (org). Pierre Bourdieu: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983. BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, 2007. BREMOND, Claude. “A Lógica dos Possíveis Narrativos”. In Análise Estrutural da Narrativa. Rio de Janeiro: Vozes, 1976. BUITONI, Dulcília Helena Schroeder. “Fotografia e Jornalismo: da prata ao pixel – discussões sobre o real”. Líbero, ano X, n. 20, 2007, p. 103-112. BUITONI, Dulcília Helena Schroeder. Mulher de papel: a representação da mulher pela imprensa feminina brasileira. São Paulo: Summus, 2009.

176

ELIZA BACHEGA CASADEI

CARVALHO, Luiz Maklouf. Cobras Criadas: David Nasser e O Cruzeiro. São Paulo: Editora Senac, 2001. CASADEI, Eliza Bachega. Os Códigos Padrões de Narração e a Reportagem: por uma história do jornalismo de revista no século XX. Tese de Doutorado apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. São Paulo: ECA-USP, 2013. CASADEI, Eliza Bachega. Como contar os fatos: a história da narrativa do jornalismo e revista no século XX. São Paulo: Alameda, 2015. CASTRO, Sílvio Rogério Rocha de. “História da Fotografia Impressa: produção e leitura da imagem fotográfica jornalística”. Cambiassu, v. XVII, n. 03, 2007, p. 34-59. CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. CONY, Carlos Heitor. “A linha da revista”. In GONÇALVES, José Esmeraldo e BARROS, J.A. Aconteceu na Manchete: as histórias que ninguém contou. Rio de Janeiro: Desidrata, 2008. COSTA, Helouise. “Surpresas da objetiva: novos modos de ver nas revistas ilustradas modernas”. In SAMAIN, Etienne. Como pensam as imagens. Campinas: Editora da UNICAMP, 2012. COSTA, Helouise. “Entre o local e o global: A invenção da revista O Cruzeiro”. In: As Origens do Fotojornalismo no Brasil - Um Olhar Sobre o Cruzeiro 1940-1960. Rio de Janeiro: IMS, 2012. COURTINE, Jean-Jacques. “Impossível virilidade”. In COURTINE, Jean-Jacques. História da Virilidade: a virilidade em crise? Séculos XXXXI. Petrópolis: Vozes, 2013. CZRNORSKI, Sediana Rizzo; MEYRER, Marlise Regina. “Chics, elegantes e distintas: a moda na seção Jornal das famílias da Revista da Semana (1915-1918)”. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, v. 8, n. 15, 2016, p. 247-271. DES HONS, Andre de Seguin. Le Brésil, presse et histoire 1930-1985. Paris: L’Harmattan, 1987.

177

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

DIDI-HUBERMAN, Georges. Cuando las Imágenes Toman Posición. Madrid: A. Machado Libros, 2013. DIDI-HUBERMAN, Georges. “Devolver uma imagem”. In ALLOA, Emmanuel (org.). Pensar a Imagem. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. DIDI-HUBERMAN, Georges. Que emoção! Que emoção? São Paulo: Editora 34, 2016. DINES, Alberto. “Alberto Dines”. In ABREU, Alzira Alves, LATTMANWELTMAN, Fernando, ROCHA, Dora. Eles Mudaram a Imprensa: depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2003. DOUGLAS, Mary; ISHERWOOD, Baron. O Mundo dos Bens: para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004. DUCCINI, Mariana. Ponto de Vista A(u)torizado: composições da autoria no documentário brasileiro contemporâneo. Tese de Doutorado (Ciências da Comunicação). São Paulo: ECA-USP, 2013. ECO, Umberto. História da Beleza. Rio de Janeiro: Record, 2015. ERBOLATO, Mário. Técnicas de Codificação em Jornalismo. São Paulo: Ática, 1991. FABRIS, Annateresa. O desafio do olhar: fotografia e artes visuais no período das vanguardas históricas. São Paulo: Martins Fontes, 2011. FARO, José Salvador. Revista Realidade: tempo da reportagem na imprensa brasileira (1966-1968). Canoas: Ulbra, 1999. FERNANDES JÚNIOR, Rubens. Labirinto e identidades/Panorama da fotografía no Brasil [1946-98]. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. GOMBRICH, Ernest. Os usos das imagens. Porto Alegre: Bookman, 2012. GOMES, Mayra Rodrigues. Jornalismo e Ciências da Linguagem. São Paulo: Hacker, 2000. GUIMARÃES, Luciano. A cor como informação. São Paulo: Annablume, 2000.

178

ELIZA BACHEGA CASADEI

HOFF, Tânia; CARRASCOZA, João Anzanello. “Ditos e não-ditos: o Brasil e as práticas de consumo nos autoanúncios das agências de publicidade nos anos 1950”. Organicom, ano 12, n. 22, 2015, p. 38-45. KALIFA, Dominique. “Virilidades criminosas?”. In COURTINE, JeanJacques. História da Virilidade: a virilidade em crise? Séculos XX-XXI. Petrópolis: Vozes, 2013. KITCH, Carolyn. Pages from the Past: history & memory in american magazines. North Carolina: The University of North Carolina Press, 2005. KRAUSS, R. O Fotográfico. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2013. KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e Revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa. São Paulo: Scritta Editorial, 1991. LANHAM, Richard A. A Handlist of Rhetorical Terms. Berkeley: UCP, 1991. LEANDRO, Paulo Roberto e MEDINA, Cremilda. A arte de tecer o presente. São Paulo: Media, 1973. LEITE, Marcelo Eduardo. “O fotojornalismo na O Cruzeiro: uma aproximação”. Anais do 9o Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo. Rio de Janeiro, novembro de 2011. LEITE, Marcelo Eduardo. “Desconstruindo fronteiras: alguns apontamentos sobre a revista Realidade”. Anais do 10o Encontro da ALCAR. Porto Alegre: ALCAR, 2015. LIMA, Herman. História da caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963. LOPES, Dirceu Fernandes, SOBRINHO, José Coelho, PROENÇA, José Luiz. A Evolução do Jornalismo em São Paulo. São Paulo: Edicon, NJC, 1996. LORDON, Frédéric. A sociedade dos afetos: por um estruturalismo das paixões. Campinas: Papirus, 2015. LOUZADA, Silvana. Fotojornalismo em revista: o fotojornalismo em O Cruzeiro e Manchete nos governos Juscelino Kubitschek e João Goulart.

179

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade Federal Fluminense. Niterói: UFF, 2004. LUCA, Tania Regina de. “História dos, nos e por meio dos periódicos”. In: PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2006. MACHADO, Arlindo. A ilusão especular. São Paulo: Brasiliense, 1989. MAGALHÃES, Angela, PEREGRINO, Nadja Fonseca. Fotografia no Brasil – Um olhar das origens ao contemporâneo. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2004. MARESCA, Sylvain. “O silêncio das imagens”. In SAMAIN, Etienne (org.). Como pensam as imagens. Campinas: Editora da Unicamp, 2012. MARTINS, Ana Luiza. Revistas em Revista: imprensa e práticas culturais em tempos de república, São Paulo (1890-1922). São Paulo: Edusp, 2001. MAUAD, Ana Maria. “Na mira do olhar: um exercício de análise da fotografia nas revistas ilustradas cariocas, na primeira metade do século XX”. Anais do museu paulista, v. 13, n. 1, junho de 2005. MEYRER, Marlise. “Revista O Cruzeiro: um projeto civilizador através das fotorreportagens”. História Unisinos, n. 13, v. 2, maio-agosto de 2009, p. 197-212. MIANI, Rozinaldo Antonio. “Charge: uma prática discursiva e ideológica”. Nona Arte, v. 1, n. 1, 2012, p. 37-48. MICELI, S. Imagens negociadas: retratos da elite brasileira (1920-40). São Paulo: Companhia das Letras, 1996. MIRA, Maria Celeste. O Leitor e a Banca de Revistas: a segmentação da cultura no século XX. São Paulo: Olho d’água, 2001. MITCHELL, W.J.T. “O que as imagens realmente querem?”. In ALLOA, Emmanuel (org.). Pensar a Imagem. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. MORAIS, Fernando. Chatô: o rei do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

180

ELIZA BACHEGA CASADEI

MORROW, Lance. “The time of our lives”. Time On-Line, 09/03/1988. Disponível em http://www.time.com/time/magazine/ article/0,9171,987916-1,00.html. Acesso em 16/10/2008. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Jango e o Golpe de 1964 na caricatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. NANCY, Jean-Luc. “Imagem, mímesis e méthexis”. In ALLOA, Emmanuel (org.). Pensar a Imagem. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. NASCIMENTO, Patrícia Ceolin. Jornalismo em Revistas no Brasil: um estudo das construções discursivas em Veja e Manchete. São Paulo: Annablume, 2002. OLIVEIRA, Amanda da Fonseca de. “Imagens da mulher moderna: um estudo da Revista O Cruzeiro e o consumo feminino (1930/1950)”. Relatório final de pesquisa Iniciação Científica apresentado Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: PUC-RJ, 2014. OLIVEIRA, Cláudia. “A iconografia do moderno: a representação da vida urbana”. In: OLIVEIRA, Cláudia de; VELLOSO, Monica Pimenta; LINS, Vera. O moderno em revistas: representações do Rio de Janeiro de 1890 a 1930. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. ORTIZ, Renato. A Moderna Tradição Brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 1988. PATROCLO, Luciana Borges et alii. “Verdadeiras glórias nacionais: a memória acerca das primeiras gerações de professores do Colégio de Pedro II através das páginas da Revista da Semana”. Revista brasileira de história da educação, v. 15, n. 3, p. 173-200, setembro/dezembro 2015. PEIXOTO, Níobe Abreu. “Na Revista da Semana, Paulo Barreto”. In BARRETO, Paulo. Crônicas Efêmeras: João do Rio na Revista da Semana. São Paulo: Ateliê, 2001. PRADO, José Luiz Aidar. “O leitor infiel diante dos mapas da mídia semanal performativa”. Fronteiras, v. II, n. 1, janeiro-abril de 2005, p. 39-46. PRADO, José Luiz Aidar. “Convocação nas revistas e construção do a mais nos dispositivos midiáticos”. Matrizes, v. 3, n. 2, jan-jun de 2010, p. 63-78.

181

CONSUMO, JORNALISMO E IMAGEM

PRADO, José Luiz Aidar. Convocações biopolíticas dos dispositivos comunicacionais. São Paulo: EDUC/Fapesp, 2013. PRADO, José Luiz Aidar; MOASSAB, Andréia. “O Programa BolsaFamília na revista Veja: assistencialismo governamental ou ressentimento midiático?”. E-compós, Brasília, v.14, n.1, jan./abr. 2011, p. 1-19. PRADO, José Luiz Aidar; RAMALDES, Dalva. “O corpo do poder: estudo semiótico da figura de Lula na campanha presidencial de 1989 nas revistas semanais Veja e IstoÉ”. Brazilian Journalism Research, v. 1, n. 1, 2008, p. 167-189. RANCIÉRE, Jacques. Os nomes da história. São Paulo: Editora da UNESP, 2014. RANCIÈRE, Jacques. O inconsciente estético. São Paulo: Editora 34, 2015a. RANCIÈRE, Jacques. “As imagens querem realmente viver?”. In ALLOA, Emmanuel (org.). Pensar a Imagem. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. ROSA, Márcia Eliane. Os sentidos pluralistas do cotidiano da cultura nas reportagens da revista Realidade dos anos de 1966 a 1968. Tese de doutorado apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. São Paulo: ECA/USP, 2006. SAFATLE, Vladimir. “Cuerpos flexibles y praticas disciplinarias”. BACCEGA, Maria Aparecida (org). Comunicación y culturas del consumo. Zamora: Comunicación Social, 2012. SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. SAMAIN, Etienne. “As imagens não são bolas de sinuca”. In SAMAIN, Etienne (org.). Como pensam as imagens. Campinas: Editora da Unicamp, 2012. SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. História da beleza no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014. SERPA, Leoní. “A mulher na revista O Cruzeiro (1928-1945)”. PJ:BR, v. 1, n. 07, Julho-Dezembro de 2006.

182

ELIZA BACHEGA CASADEI

SILVA, Ana Cristina Teodoro da. O tempo e as imagens de mídia: capas de revista como signos de um olhar contemporâneo. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Assis: UNESP, 2003. SOARES, Rosana de Lima. “Pequeno inventário de narrativas midiáticas: verdade e ficção em discursos audiovisuais”. Significação, n. 34, 2010, p. 54-73. SODRÉ, Muniz. O monopólio da fala: função e linguagem da televisão no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1989. SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999. STILLERMAN, Joel. The Sociology of Consumption: a global approach. Cambridge: Polity Press, 2015. TACCA, Fernando de. Imagens do Sagrado. Campinas: Editora da Unicamp, 2009. VELLOSO, Mônica Pimenta. “Percepções do moderno: as revistas do Rio de Janeiro”. In NEVES, Lucia Maria Bastos, MOREL, Mario e FERREIRA, Tania Maria Bresson (org.). História e Imprensa: representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. VILLALTA, Daniella. “O surgimento da revista Veja no contexto da modernização brasileira”. Anais do XXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Salvador: Intercom, 2002. VIRGILI, Fabrice. “Virilidades inquietas, virilidades violentas”. In COURTINE, Jean-Jacques. História da Virilidade: a virilidade em crise? Séculos XX-XXI. Petrópolis: Vozes, 2013.

183

Título

Formato Tipografia títulos Tipografia miolo Diagramação

Consumo, jornalismo e imagem: Uma história do consumo nas revistas brasileiras no século XX

16x23cm Minion Pro bold Minion Pro Israel Dias de Oliveira

EDITORA CASA FLUTUANTE Rua Manuel Ramos Paiva, 429 - São Paulo - SP Fone: (11) 2936-1706 www.editoraflutuante.com.br

More Documents from "Karine Anabel Moraes"

Thesis Final Draft2.docx
April 2020 11
May 2020 10
Im111k.pdf
May 2020 10