COMO NOSSOS PAIS… ainda somos os mesmos?
Enquanto os tiros anunciavam a vitória da extrema-direita no Brasil, logo vi, entre stories e posts nas redes (anti) sociais, memes evocando minha queridíssima e maior cantora do universo (eleita por mim mesmo, obrigado, de nada) Elis Regina. “Por isso cuidado meu bem há perigo na esquina! Eles venceram e o sinal está fechado para nós que somos jovens”!
A canção de Belchior “Como nossos pais”, sucesso de Elis nos anos 70, é um primor estético-político, tanto pelo lirismo de sua poesia, quanto pela beleza das interpretações de Belchior e, mais especialmente, de Elis. Em plena ditadura, no contexto de recrudescimento da violência política do regime contra opositores, Elis cantava essa canção com os arranjos explosivos e revolucionários do Rock and Roll de Bob Dylan, Beatles e Pink Floyd pesando na guitarra elétrica e na bateria. Olhos abertos, exageradamente abertos, Elis enfrentava a objetiva da câmera sem amenos, forçava seus belting’s fazendo ecoar sua voz na fronteira do grito e do canto. A mensagem corporal era clara: veias da garganta pulsando, quase a estourar, braços firmes, apontando e revelando caminhos, e a articulação hegemônica do corpo a dizer: tenho raiva e estou ferido! Vista nesses termos, a performance de Elis sugere uma denúncia corajosa contra regime ditatorial imposto ao país pelos militares e civis envolvidos no golpe de 1964. E é compreensível que, nesse contexto tão dramático em que temos um longo passado pela frente, essa música seja lembrada como um monumento de resistência. No entanto, gostaria de lembrar algumas coisas. Primeiro, o verso seguinte àquele que viralizou nas redes (anti) sociais:
“Para abraçar seu irmão e beijar sua menina é que se fez o seu braço, o seu lábio e a sua voz”. Não há outro verso para ser agora lembrado senão este! É preciso estar atento e forte contra as bombas semióticas que viralizam o núcleo do funcionamento da ideologia contemporânea: a denúncia cínica! Lembrar que o sinal está fechado para nós e reforçar que há perigo na esquina coloca-nos em um – falso - lugar crítico e de “resistência”. A mensagem ideológica, portanto, é: essa é a nossa “realidade” doravante, aceitemo-las, pois, o “perigo” é “real”, já muito próximo, ali na “esquina”. Assim, assombrados pela ideia de um “perigo real”, somos forçados, pela mensagem, a aceitar heroicamente a derrota. Afinal, “viver é melhor que sonhar”. A mensagem da “resistência”, contudo, pode guardar uma armadilha, qual seja, de nos colocar em um lugar subjetivo que se restringe a negar o avanço do inimigo (aqui falo da cultura autoritária neofascista) ou, no limite, de posterga-la. Precisamos evitar essa armadilha e converter a resistência negativa em insistência, positivando nossa critica da realidade social a partir de projetos de transformação radical do mundo. Veja, não digo com isso que não há perigos. Óbvio, eles sempre estiveram aí e agora mais autorizados do que nunca. E, talvez, seja legitimo afirmar: ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais. Mas será essa a única maneira de ler a mensagem raivosa de Elis e Belchior? A canção seria apenas um panfleto contra o regime ao denunciar os medos pelos quais gerações sofreram (e sofrem) ao longo da história do país? Na contramão dessa constatação, a música de Belchior pode ser lida como uma ácida crítica não necessariamente contra a direita brasileira – extremada e truculenta-, que, aquela época, arbitrariamente interrompeu as reformas estruturais do governo popular de João Goulart; mas, sim, contra o denuncismo cínico de parte da esquerda daquela conjuntura - e, desnecessário dizer, da nossa também. “Já faz tempo eu vi você na rua, cabelo ao vento, gente jovem reunida”. A referência aqui é cristalina. Estamos em maio de 1968, nossos pais viviam a utopia de mudar o mundo, de ver a flor vencer o canhão, de revolucionar a sociedade capitalista e patriarcal através de novos comportamentos e costumes. A liberdade sexual, de gênero, de consciência, entre outros tropicalismos, revolucionaria o mundo, fosse ele capitalista ocidental, ou socialista soviético. A “voz ativa” dos jovens irradiava-se em marchas, em ruas tomadas pelo mundo. Porém, diz Belchior, tudo isso foi parar em uma moldura, um quadro, um retrato (uma selfie?), “na parede da memória essa lembrança é o quadro que dói mais”. Outra dor foi perceber, anos mais tarde, que apesar de terem feito tudo isso, a geração de 1968, mais velha, acomodou-se, aceitou a “realidade” da “democracia burguesa” do “capitalismo liberal, com face humana”. Embora denuncie aqui e ali – com um distanciamento seguro – as mazelas sociais, oferecendo às novas gerações “a ideia de uma nova consciência e juventude”, a geração de maio de 1968 agora “está em casa guardada por Deus, contando vil metal”.
É impossível não lembrar a canção “Panis et circences”, dos Mutantes: “Mas as pessoas na sala de jantar estão ocupadas em nascer, ocupadas em morrer”. Nesses termos, Como nossos pais é uma crítica a nós mesmos, que nos colocamos no campo progressista, de centro-esquerda, liberais, democratas: “ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”. Por outro lado, devemos recusar a leitura cínica de Como nossos pais que nos impõe, sutilmente, voltar para a sala de jantar, protegidos por “Deus” dos “perigos da esquina”, e seguir nossas vidas, acomodados. Afinal, já dizia outra canção do repertório crítico de Elis: “Deus está conosco... até o pescoço!”. Entre a cadeia – no ambiente doméstico – e o exílio – de nós mesmos e de nossos princípios de liberdade, igualdade e justiça social -, sigamos para a esquina, reinventemo-las, pois, o verdadeiro significado de utopia é inventar caminhos quando não parece haver mais alternativas. Agora, portanto, nossa urgente tarefa é abrir os olhos, exageradamente, encarar frontalmente os perigos e ameaças, usar nossos braços, nossos lábios, nossa voz, e construir uma nova estação, iluminada de sol, para além do sinal fechado.