Comentários de Nildo Viana sobre os filmes “A Nós a liberdade” (René Clair, França, 1931) e Wind – A Força dos Ventos (Carrol Ballard, EUA, 1992), extraído do livro: VIANA, Nildo. Os Valores na sociedade moderna. Brasília: Thesaurus, 2007 (extrato do capítulo 02, “Axiologia e Axionomia”).
Um filme axionômico é A Nós a Liberdade, de René Clair (França, 1931). Claro que a percepção disto é mais fácil assistindo ao filme. O filme mostra uma perspectiva crítica em relação aos valores dominantes, o que pressupõe outros valores. Ao criticar o dinheiro, trabalho alienado, o amor romântico, tal como no filme, há uma refutação de determinados valores e uma apresentação de outros, tal como a amizade, a liberdade (o trabalho não como alienação e sim como objetivação), o amor sexual como parte e não como objetivo da vida. Mas além desta crítica e dos valores antagônicos implícitos nela, o filme apresenta explicitamente outros valores, antagônicos aos valores dominantes. O filme ressalta a amizade como valor (acima dos interesses financeiros), tal como se pode observar no reencontro entre os dois amigos fugitivos da prisão. A cena apresenta o ex-prisioneiro que se tornou um capitalista oferecendo dinheiro ao outro ex-presidiário. Este último recusa o dinheiro e um acidente que provoca um ferimento gera uma situação que faz com que o capitalista realize um ato de solidariedade. Isto permite o rompimento com a desconfiança e a retomada da amizade. A canção principal do filme (dos prisioneiros que se libertam) manifesta diversos valores e desvalores, tal como se pode notar: Na vida, a liberdade é tudo o que conta Mas o homem inventou a prisão, Códigos e leis, fazer e não fazer. Trabalho, escritórios e casas também. Você não concorda... O que a vida pode ser? Meu velho amigo, a vida é incrível Quando se está livre para ser você mesmo. Então vamos, vamos nos libertar
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Ar fresco é bom para a saúde. Em qualquer lugar, se tiver uma chance, Em qualquer lugar, a vida é uma melodia. Em qualquer lugar, é vinho e romance Então aqui estamos, nós dois e a liberdade! Você nunca deveria ter pensado em casamento Quando se nasceu para viver viajando Enquanto espera que a idade da sabedoria o possa trazer Pense no amor como um mero episódio É o nosso destino Velho companheiro Meu velho amigo, a terra é redonda. Haverá mulheres onde for Quando finalmente chegarmos ao fim Será a hora de ir mais devagar Em qualquer lugar, se você tiver a chance Em qualquer lugar, a vida é uma melodia Em qualquer lugar, é vinho e romance Então aqui estamos, nós e a liberdade!
Esta canção apresenta determinados desvalores, que trazem, em si, determinados valores implícitos. Os valores explícitos são os da liberdade (“a liberdade é tudo o que conta”), a vida (“a vida é incrível”), a autenticidade (a vida é incrível “quando se está livre para ser você mesmo”), a melodia (se a vida é um valor e depois se diz que “a vida é melodia”, então esta última também é um valor), o romance, etc. No entanto, também apresenta desvalores, que implicitamente carregam valores. Os desvalores são determinadas invenções dos seres humanos: a prisão, códigos, leis, casamento. Por detrás de todos estes desvalores há um valor implícito, o da liberdade. Assim, o filme A Nós a Liberdade é axionômico. Um filme que podemos citar como axiológico é Wind - A Força dos Ventos, dirigido por Carrol Ballard (EUA, 1992) e produzido por Francis Ford Copolla. O filme apresenta como valor fundamental a competição e tudo gira em torno dela. Trata-se de uma competição que envolve um iatista na luta para conquistar a Copa América de Iatismo, considerada a maior regata oceânica do mundo (America’s Cup). Bill Parker, personagem central, coloca tal competição como o centro de sua 2
vida, e justifica até o abandono da mulher que gosta por estar participando de “um grande sonho”, algo que não poderia “fazer sozinho” e por isso deveria se submeter à decisão de que ela teria que abandonar a equipe. Após a derrota dos americanos para os australianos, Bill Parker acaba indo disputar e ganhar a copa do ano seguinte. Ao lado da competição, o nacionalismo é outro valor bastante presente no filme. A bandeira norte-americana tremula e a derrota de um ano é esquecida com a vitória no ano seguinte. Os americanos, vencedores cinco anos seguidos, perdem um ano, mas se recuperam no ano seguinte. Os valores objetivados no filme, além da competição e do nacionalismo, ainda apontam para o iatismo como algo digno de receber um filme e por isso se justifica. Uma cena, quando os “heróicos americanos” tentam buscar financiamento para sua nova empreitada, e percebem que é difícil convencer empresários investir em tal futilidade, a justificativa para buscar o apoio financeiro é que é um “esporte limpo”. A futilidade da justificativa é igual a futilidade do objetivo. Assim, a vitória na competição é o objetivo central de todos os americanos envolvidos no filme, alguns por dinheiro, outros por amor ao iatismo e nenhum valor autêntico é expresso em toda a história. Sem dúvida, o filme é, no geral, bastante ruim, mas é uma manifestação axiológica e isto fica claro. A temática, o foco central da ação, os valores da competição, nacionalismo, busca do sucesso (vitória) e fama, são os valores burgueses que perpassam todo o filme. A competição é tão intensa que se manifesta até entre a equipe norte-americana, do início ao fim. Na primeira disputa, o diálogo de Bill Parker e seu treinador, esclarece isso: tem muitos “egos” atrás de você, ou lidera ou sai do caminho. Na segunda disputa, a posição de Charley querendo substituir Parker é outro exemplo. A única mensagem do filme é a competição, daí sua pobreza geral. Desta forma, A Nós a Liberdade é um filme axionômico e Wind – A Força dos Ventos é um filme axiológico. Sem dúvida, estas observações a respeito dos dois filmes possuem o objetivo de destacar apenas os valores 3
objetivados em tais manifestações artísticas e não uma análise global dos mesmos. Caso o objetivo fosse uma análise mais ampla, seria necessário abordar vários outros aspectos, inclusive a questão da consciência manifesta no filme. Assim, as obras de arte, tal como objetos, mercadorias, brinquedos, produções culturais, etc., são valores objetivados e, por isso, podem ser axiológicos ou axionômicos, além das manifestações contraditórias e ambíguas que mesclam traços de ambos.
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