17º Curso de Formação Ecológica oferecido pelo Defensores da Terra A Mata Atlântica e os Povos Tradicionais – "Estudo de casos do Saco de Mamanguá" Msc. Paulo J.N.Nogara Biólogo, secretario executivo da AMAM e pesquisador associado do NUPAUB/USP
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Resumo. No extremo sudeste do estado do Rio de Janeiro, pertencendo ao município de Paraty, localiza-se um dos últimos redutos de uma população tradicional de pescadores artesanais e agricultores e artesãos, o Saco do Mamanguá. A região não possui acesso rodoviário, sendo acessível somente por barco e/ou por longas caminhadas a partir de Paraty-Mirim. O Saco do Mamanguá é uma reentrância do mar, inserida no domínio da Mata Atlântica, que possui aproximadamente 8 km de comprimento e 1 km de largura e que se encerra em um vasto sistema de manguezal. Esta região apresentar uma grande biodiversidade característica da Mata Atlântica e sua zona aquática é tida como uma das mais importante áreas de criação e reprodução de organismos marinhos da Baia da Ilha Grande. O Mamanguá também abriga uma comunidade caiçara de 120 famílias que dependem dos recursos naturais do local para a sua subsistência. A singularidade da relação existente entre a população local e o meio ambiente foi determinante à criação, em 1992, da Reserva Ecológica da Juatinga – R.E.J, sob administração do Instituto Estadual de Florestas (IEF) do Rio de Janeiro. Logo após criação da REJ a Universidade de São Paulo, representada pelo NUPAUB/USP1 começou a realizar uma série de estudos na região objetivando um melhor conhecimento do Saco do Mamanguá. Parte dos estudos foram publicados no livro “O nosso lugar virou parque: Estudo Sócio-Ambiental do Saco de Mamanguá-Paraty-RJ” (Diegues e Nogara, 1999. NUPAUB-USP, São Paulo). A obra enfatizou o conhecimento e a dependência da população local com relação ao meio ambiente, apoiando seu direito de permanecer na terra e a contribuição que poderia dar para o plano de manejo da Reserva Ecológica da Juatinga. Eis o cenário da época: 119 famílias caiçaras com 527 habitantes (218 crianças), 26 propriedades de veranistas, quatro igrejas, três escolas, e um posto de saúde. Entre os chefes de família, 36,75% trabalhavam com pesca; 25,7% com atividades agricolas; 11,4% faziam artesanato e 25,6 % prestavam serviços. Mais de 60 % dos chefes de família indicaram a pesca ilegal de arrasto no fundo do mar como o maior problema, queixando-se também do posto de saúde, educação precária, acúmulo de lixo, falta de comunicação e transporte e de trabalho.
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Núcleo de Apoio à Pesquisas sobre Populações Humanas e Áreas Úmidas Brasileiras
Já que o poder público não se fazia presente, moradores e donos de sítios se mobilizaram em torno da AMAM - Associação de Moradores e Amigos do Mamangua. Em janeiro de 1998, começou o Projeto de Gestão Integrada do Saco do Mamanguá, seguindo as diretrizes recomendadas em conferências e convenções sobre ambientes costeiro-marinhos que procuram integrar questões sociais e ambientais em busca de um desenvolvimento comunitário sustentável. Dentre os resultados alcançados cabe citar o projeto de Proteção dos recursos pesqueiros do Saco do Mamangua, as ações de manejo florestal participativo por populações tradicionais e o projeto Fazeres de Paraty, o processo de instauração de ação civil publica para conter a construção de infraestrutura de apoio náutico e o projeto de engorda de ostras nativas. As ações desenvolvidas no Saco do Mamangua, tem grande valor ilustrativo e metodológico enquanto ferramenta de conservação sócio-ambiental podendo servir como modelo para a gestão ambiental de outras regiões brasileiras que apresentam características semelhantes. Projetos e ações. Cortando o mal pela raiz Já que o arrasto era o principal problema da pesca artesanal no Mamanguá, em 1998 começou a mobilização contra ele. Junto com pesquisadores, os pescadores desenvolveram Dispositivos de Exclusão de Arrasto (DEAs) que danificam as redes dos barcos, uma iniciativa pioneira, uma das primeiras deste tipo no Brasil a ter êxito. O projeto “Proteção dos recursos pesqueiros do Saco do Mamanguá” começou em 1999 e 40 estruturas já foram fundeadas e a pesca de arrasto está sendo contida. Os poucos barcos que ainda se aventuram limitam-se à parte inicial do saco e o fundo, de maior importância ecológica, está protegido. O manejo do caixetal Em 1998, também foi criada a disciplina “Manejo florestal participativo por populações tradicionais” pelo Laboratório de Silvicultura Tropical do Departamento de Ciências Florestais da Escola de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ). Em 1999, por meio de uma parceria Ibama/ESALQ/USP/AMAM, foi dado um curso de manejo comunitário de caixeta para quase 70% dos artesãos do Mamanguá e feito um diagnóstico que apontou as áreas e a intensidade de exploração, além da necessidade de envolver os artesãos na discussão sobre o manejo: sabendo usar, não vai faltar. Da cooperação entre saber tradicional e conhecimento científico sobre a biologia e ecologia da caixeta, surgiu um sistema sustentável adequado à pequena escala de produção, procurando reduzir o desperdício, evitar a morte das árvores no período mais chuvoso e facilitar a colheita.
Navegar é preciso: barcos do Mamanguá A semente plantada pelo manejo dos caixetais serviu de base para o “Fazeres de Paraty”, parceria entre a Associação de Amigos do Museu de Folclore Edison Carneiro e a AMAM, em 2002. O artista Luís Pontual, radicado em Paraty, deu cursos de pintura de artesanato em caixeta e foi realizada a exposição "Navegar é preciso: barcos do Mamanguá", na Sala do Artista Popular no Museu de Folclore Édison Carneiro, no Rio de Janeiro. Algumas famílias de artesãos passaram a vender diretamente para lojas de São Paulo e Rio de Janeiro, evitando os atravessadores e valorizando seus produtos através da pintura. O perigo mora ao lado No início do ano de 2000, uma nova ameaça perturbou o estado de equilíbrio ambiental recém-conquistado. Uma estrada abandonada há mais de 20 anos começou a ser limpa e seu traçado refeito para viabilizar a construção de infra-estrutura de apoio náutico no fundo do Saco do Mamanguá. Preocupados, a população local e alguns proprietários de sítios se uniram novamente, prepararam um documento analisando os prejuízos e pesquisaram a legislação ambiental restritiva a este tipo de empreendimento. Esse documento, acompanhado de um abaixo assinado, deu origem a uma ação civil pública com pedido de liminar cautelar proposto pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro através da Promotoria Regional de Meio Ambiente, Consumidor, Patrimônio e Direitos do Cidadão. Esta ação civil requer tutela jurisdicional no sentido de obstar todos os atos tendentes à implantação de qualquer estrutura de apoio náutico, fixo ou flutuante na localidade do Saco do Mamanguá por causa dos irreparáveis danos ambientais que podem ocorrer. Em 2002, após a instauração desse processo administrativo, diversos profissionais do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo participaram da elaboração do relatório técnico “Potenciais Impactos Negativos da Instalação de Empreendimentos no Santuário Marinho do Saco do Mamanguá-Paraty, RJ”, apresentado à disciplina “Avaliação e Controle de Impactos Ambientais”. Essa atividade teve como objetivo auxiliar as autoridades em ações que venham a garantir a conservação do Saco do Mamanguá como santuário ecológico e provedor de serviços cujo valor não se pode medir apenas monetariamente. Além disso, foi produzido o folheto “Manifesto Pró-Mamanguá” com três mil exemplares distribuídos para sensibilizar a sociedade civil, e jornais e programas de TV deram cobertura e se envolveram na campanha. Ostras: cultivando esperanças O cultivo de moluscos bivalves como ostras e mexilhões – organismos filtradores que não contaminam o ambiente – é uma alternativa para o pescador
que hoje tem de lidar com a diminuição dos estoques pesqueiros. A abundância de ostras nativas no fundo do Mamanguá motivou a AMAM a iniciar a engorda perto do manguezal. O maricultor Francisco Mandira – com mais de 20 anos de experiência em Cananéia (SP) onde preside a Cooperostra que atua na Reserva Extrativista Marinha de Ostra de Mandira – ensinou a alguns moradores do Mamanguá os primeiros passos. Três viveiros experimentais estão sendo avaliados e as ostras têm crescido em média 0,50 cm por mês, o que pode representar uma nova atividade econômica no Mamanguá. Mamanguá: criadouro marinho O Saco do Mamanguá tem uma costa bastante recortada, formando 33 pequenas praias de areia interligadas por costões rochosos, cinco pequenos parcéis de pedras (Andorinhas, Flores, Paca, Cruzeiro e Curupira) e duas ilhas (Ilha Grande e Ilha Pequena). Os morros e montanhas que circundam o Mamanguá são ocupados pela Floresta Tropical Atlântica em diferentes estágios de desenvolvimento e por pequenas áreas de lavoura e capoeira próximas aos núcleos caiçaras. Os rios de pequeno porte que ali se formam desaguam diretamente sobre as praias ou nas pequenas planícies do fundo, determinando a formação de áreas alagadas onde se desenvolvem um taboal, 11 caixetais e um bem conservado sistema de manguezais. Estes manguezais encontram-se associados com áreas de intenso acúmulo de lama e areia, formando os baixios de lodo. Este ambiente costeiro pertence ao domínio da Mata Atlântica e é constituído pela integração de diferentes ecossistemas florestais, do manguezal e de uma ria tropical. Os elementos nele presentes dependem um dos outros, formando uma delicada e eficiente cadeia, uma rede fértil de interações. Todo o sistema desempenha a importante função ecológica de criadouro marinho. Aqui, dezenas de seres que vivem todos ou parte de seus ciclos de vida em águas doces, salobras e salgadas, vêm se alimentar, se reproduzir e se desenvolver. O Mamanguá é uma área de transição entre o continente e o oceano. Do continente, ele recebe a matéria orgânica vinda das florestas através de rios, riachos e manguezais, sendo que estes agem como um filtro natural, retendo sedimentos e matéria orgânica e contribuindo para manter a qualidade das águas da Baía da Ilha Grande. Como chove muito na região, esta contribuição é bastante significativa e faz com que as águas sejam turvas e nelas proliferem organismos que contêm clorofila, responsáveis por sua coloração esverdeada. O Mamanguá sofre também influência das águas oceânicas que entram pelo canal entre a Ponta da Juatinga e a Ilha Grande e que, no verão, afloram perto da costa e penetram na Baía de Paraty carregando nutrientes das águas profundas. Os caiçaras do Mamangua. Os caiçaras do Mamanguá são o resultado da mescla de portugueses, índios e descendentes de escravos. A proporção destes últimos é mais elevada do que na maioria das comunidades caiçaras do Litoral Sudeste devido à importância dos escravos africanos na região de Paraty, onde foram a mão-de-
obra principal em diversos ciclos econômicos, particularmente na monocultura da cana-de-açúcar. Apesar de os caiçaras terem coexistido com esses ciclos que empregavam a mão-de-obra escrava, muitas dessas comunidades litorâneas foram formadas a partir de meados do século XIX, com o final da escravatura, a libertação dos escravos, a dissolução de muitas grandes propriedades e o aparecimento da produção em pequena escala, própria das comunidades tradicionais, como a caiçara. O Saco do Mamanguá conta hoje com cerca de 120 famílias, em torno de 600 pessoas espalhadas por praias ou pequenas aglomerações como o Baixio e Cruzeiro, com mais de 100 moradores cada, seguidas por Ponta da Romana, Curupira, Regato, Pontal, Praia Grande, Ponta do Leão, além de outras praias com pequeno número de moradores. A partir de 1990, o Saco do Mamanguá sofreu uma série de mudanças, sendo uma das mais importantes à diminuição drástica das atividades agrícolas que desapareceram na maioria dos povoados e praias, circunscrevendo-se a lugares mais distantes no interior do Saco, onde ainda alguns caiçaras cultivam a mandioca e produzem farinha. A venda das posses aos turistas, aliada às dificuldades impostas pela legislação ambiental, fez com que as roças ficassem cada vez mais distantes dos locais de moradia. Ao abandono gradativo da lavoura correspondeu um aumento das atividades pesqueiras, sobretudo a pesca artesanal do camarão branco, de alto valor de mercado, o incremento da renda gerada pelo transporte de turistas e a intensificação do artesanato feito de caixeta. Essas novas atividades, principalmente o turismo e o artesanato, são sazonais, exercidas principalmente nos poucos meses de verão e durante os feriados, gerando alguma renda que acaba quando termina a estação dos turistas ou a construção da casa do veranista. Mesmo com tantas mudanças, os moradores de Mamanguá continuam sendo membros de comunidades, em grande parte dependentes do conhecimento que mantêm sobre a grande biodiversidade da mata e do mar. Podem ser considerados parte de uma natureza que, como sua cultura, está em constante transformação e cuja continuidade também depende de seu interesse e empenho em conservá-la. O futuro O futuro da comunidade caiçara do Mamanguá tem como pano de fundo a sobrevivência das populações tradicionais em todo o mundo. Nos países pobres ou ricos, nos trópicos ou na imensidão gelada das estepes, povos que sempre estiveram por ali, ligados à terra, às árvores, cultivando o solo árido e cultuando os rios, são massacrados a partir da chegada de representantes de uma sociedade mais estruturada tecnológica, ambiental e militarmente. Os recém-chegados disputam com os moradores tradicionais os recursos naturais, as terras e a paisagem. Hoje, a maioria das pessoas concorda que é preciso conservar a natureza, mas não será a diversidade cultural tão importante quanto a
biodiversidade? Cada homem que morre é uma biblioteca que se vai, diz um provérbio africano. Cada caiçara que se descaracteriza deixa também uma lacuna na própria sociedade nacional. Quem defende esse raciocínio, acredita que, enquanto houver famílias morando no Mamanguá, independentemente do nível de modernidade em que vivam, a cultura local sobreviverá. “O caiçara tem um conhecimento “anfíbio” sobre recursos e ciclos naturais das florestas e do mar que determina sua vida e serve para transmitir saberes tradicionais. Enquanto houver peixes, caixeta, árvores do mangue para serem usados em pesca, artesanato, construção de casas, este conhecimento será transmitido e perpetuado”. Algumas atividades vão mesmo ser substituídas, o que faz parte de um processo natural de co-evolução. Conservar a cultura caiçara, depende de manter as casas, as localidades e bairros, que sempre demandarão uma tecnologia própria para o cotidiano, para ir até a cidade (que exige conhecimento do tempo e do mar) para pescar e fazer extrativismo vegetal e animal, ou para o lazer. E, as funções e serviços ecológicos, que muitas vezes são até mais importantes dos que os interesses particulares da comunidade deverão ser protegidas e o uso dos recursos naturais renováveis regulados caso a caso.