DESENVOLVENDO A
COMPETÊNCIA I
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DOS PROFISSIONAIS 3"edição revista e ampliada
Guy Le Boterf
~ a c t e u dr h t em Letras e Ciências Humanas. Diretor Geral de Le Boterf Conseils. Especialista reconhecido em gerenciamento e desenvolvimento das competências, também é autor de inúmeras obras e artigos. Recebeu a mençáo especial do Prixdo livro de gerenciamento e estratégia.
L433d Le Boterf, Guy Desenvolvendo a competência dos profissionais / Guy Le Boterf; trad. Pam'cia Chittoni Ramos Reuillard. - Porto Alegre : Artrned, 2003. 1. Educação - capacitação profissional. I. Título.
Tradução: Patrícia Chittoni Ramos Reuillard
Consultoria, supervisão e revisão técnica desta edição: I
Cláudia Bitencourt Doutora e m Administraçáo pela UFRGS. Membro do Grupo de Estudos e m Aprendizagem Organizacional na UFRGS. I
CDU 377.354 Catalogação na publicação: Mônica Ballejo Canto - CRB 10/1023 ISBN 85-363-0129-5
3 . d ~ -4
,) Obra originalmente publicada sob o título Compétence et navigation professionnelle
O Éditions d'organisation, 1997, 1999, 2000 ISBN 2-7081-2445-5
Design de capa FZávio Wild Assistente de design Gustavo Demarchi Ilsutração da capa Atlas Slave 1519-1530,de Michelangelo, Museu da Academia de Florença Preparação do original Maria Lúcia Barbará Leitura Final Osvaldo Arthur Menezes Vieira Supervisão editorial Mônica Ballejo Canto Projeto e editoração Armazém Digital Editoraçáo Eletrônica
- Roberto
Vieira
Reservados todos os direitos de publicação, em língua portuguesa, à ARTMEDQEDITORA S.A. Av. Jerônimo de Omelas, 670 - Santana 90040-340 Porto Alegre RS Fone: (51) 3330-3444 Fax: (51) 3330-2378
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A memória de Sylvain Lourié
Saber-fazer ou capacidades operacionais .......................................... 101 Os saber-fazer formalizados ................................................. ....... 101 Os saber-fazer empíricos ...............................................................102 Os saber-fazer cognitivos ...............................................................114 Modos de manifestação dos saberes ..................................................123 Aptidões ou qualidades pessoais ........................................................ 124 Recursos emocionais ..........................................................................126 Os recursos d o meio ..........................................................................127 Três níveis a distinguir: recursos, competências, profissionalismo.........131
Implantar um dispositivo e regras de reconhecimento e de validação dos conhecimentos de .formaçãoadquiridos e dos conhecimentos profissionais adquiridos .......................................208 Aoministrar os instrumentos de representação. de comunicação e de simulação das competências ..........................................................208 Garantir a qualidade do dispositivo de profissionalizaçáo .........................213 Raciocinar em termos de utilidade antes de raciocinar em termos de eficácia .................................................................. ........ 213 .' I Reconhecer que os efeitos em termos de profissionalismo são o resultado de uma co-produção .........i......;................................ 214 Velar pela qualidade dos.fatores que devem contribuir para i as dinâmicas de profissionalização .................................................... 216 Ad condições sob controle ...................................................................... 218 1 A elaboração das metas de profissionalização ...................................218 A elaboração, o conteúdo e a condução dos projetos de percurso ..... 218 Os dispositivos de reconhecimento e de validação dos conhecimentos adquiridos ........................................................... 219 O mapa das oportunidades ............................................................219 A reunião das condições favoráveis i aos projetos de profissionalização. ..-..............;.................................... 219 I A qualidade do plano de formasão..................................................... 220 O dispositivo de avaliação dos efeitos 1 e dos custos da profissionalização i ....................................................222
4 . A orientaçáo e as condiçóes de mobilizaçio dos recursos .........................133 A construção das representações operatórias ........................................133 O papel da auto-imagem e os metaconhecimentos.................................149 O querer agir: uma necessidade de sentido ......................................... 153 Rumo a uma abordagem confiável ........................................................ 155 A competência: uma resultante .............................................................158 Os níveis do profissionalismo ................................................................161
5.
Rumo a navegaçáo profissional .............................................................. 165 A evolução da formação continua ..........................................................165 Rumo a um modelo de navegação profissional: apresentação sintética ...........................................................................168 Os componentes do modelo .................................................................. 1.74 As metas de profissionalização: um rumo a perseguir ....................... 174 Fazer avaliações: a prática dos balanços de posicionamento ............. 178 O mapa das oportunidades: o espaço de profissionalização representado ........................................................ 180 A elaboração e a pilotagem dos projetos ........................................... 185 Um itinerário negociado ....................................................................189 O diário de bordo: relatos e portfólio ................................................190 As condições favoráveis de navegação: o esquema diretor para o ambiente das competências ................................................... 192
6 . O gerenciamento do dispositivo de profissionalizaçáo ..............................201 Garantir a formalização e a atualização dos referenciais de competências .................................................................................... 201 Promover a reunião das condições favoráveis aos efeitos de profissionalização das situações e enriquecer o mapa das oportunidades ..............................................................................203 Elaborar e implementar um plano de formação capaz de contribuir especificamente para os processos de profissionalização .......................204
8.
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competência individual a competência coletiva ...................................229 Uoia prioridade emergente ....................................................................229 Uxpa preocupação crescente .................................................................. 231 O conteúdo da competência coletiva ..................................................... 234 As condições de emergência da competência coletiva ........................... 242 I
Investir em pesquisa: uma prioridade para agir .................................................255 Referências bibliográficas ................................................................................. 259
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Em 1994, propus um ensaio: "De la compétence. Essai sur un attracteur étrange". A grande difusão dessa obra, os múltiplos encontros e as várias conferências-debates que ela originou, além dos projetos operacionais aos quais conduziu, levaram-me a aprofundar e modificar o curso dessa reflexão e... a corneçd a transformar o ensaio. Esta nova obra define tal evolução. Ela mostra principalmente: A necessidade de raciocinar não somente em termos de competências, mas em termos de profissionalismo. Essa abordagem mais global permite reencontrar o sujeito portador e produtor de competências. A bconomia das competências não se reduz à economia dos saberes, e as kompetências nada são sem as pessoas. A competência não tem existênc* material independente da pessoa que a coloca em ação. b que o mercado de trabalho vai solicitar são profissionais que fazem uso dos recursos de sua personalidade. O que buscam os assalariados é uma nova identidade profissional, que dê sentido aos saberes e às kompetências que adquirem e que aumente suas chances de bmpregabilidade. A competência individual ou coletiva é uma abstra@O, certamente útil, mas uma abstração. Somente as pessoas exis!em. Refletir sobre o que deve caracterizar o profissional dos anos vindouros é não apenas considerar a necessidade de retorno do sujeito, mas também contribuir para ela. I
l0 interesse defazer a distinção entre a ação-competência e os recursos pecessários para sua realização. O profissional reconhecido como com,petenteé aquele que sabe agir com competência. Há, portanto, interesse em distinguir o conjunto dos recursos e a ação que mobiliza tais recursos. Esse conjunto é duplo: o conjunto incorporado à pessoa (co-
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nhecimentos, habilidades, qualidades, experiências, capacidades cognitivas, recursos emocionais, etc.) e o conjunto de seu meio (bancos de dados, redes de especialistas, redes documentares, etc.). As competências produzidas por meio dos recursos convertem-se em atividades e condutas profissionais adaptadas a contextos singulares. O saber agir deve ser distinguido do saber-fazer.' A importância da abordagem combinatória. 'X' competência do profissional está no saber combinatório. "As" ações competentes são o resultado disso. Cada ação competente é produto de uma combinação de recursos. Se é no saber combinar que residem a riqueza do profissional e sua autonomia, também é isso que pode tornar-se o "ponto cego" ou a "caixa-preta", pois o processo combinatório escapa à visibilidade e não corresponde a uma programação seqüencial. O sistema cognitivo não funciona como um computador numérico, e pensar não se reduz ao encadeamento de um conjunto de operações lógicas. A metáfora e a analogia também têm seu lugar, visto que o ser humano reage a sinais cuja significação não está definitivamente fixada apriori e cujo número é ilimitado. Os computadores não podem funcionar senão em relação a símbolos, cuja significação é desprovida de ambigüidade e cujo número é finito. Eles reagem ao que foi fixado pelo programador e ao que podem ler no processador. Só pode-se agir sobre as condições que favorecem o saber combinar e seria ilusório querer controlá-lo. E é bom assim! O saber combinar é inalienável, e a sombra que o protege é propícia à sua criatividade. As competências reais dos profissionais não podem ser objeto senão de antecipações probabilísticas. Não há apenas uma única maneira de ser competente em relação a um problema ou a uma situação, nem há somente um comportamento observável correto. Várias condutas são possíveis. Poder-se-ia dizer que existe uma "assinatura fractal" da competência. Em 1969, o matemático Benoit Mandelbrot definira deste modo o termo fractal: "toda forma que permanece semelhante a si mesma, seja qual for o nível do qual é observada". A competência é reconhecida por uma estrutura de base análoga, mesmo quando observada no nível de uma competência individual, do profissionalismo de uma pessoa, da competência de uma equipe, de uma competência-chave de determinada organização. Essa estruturafiactd comum é a combinafão: uma competência é uma combinação de recursos (saber-fazer,
'N. de R. As competências geralmente são reconhecidas por meio de saber (conhecimento), saber-fazer (habilidades) e saber ser (atitudes).
aptidões, experiências, etc.); o profissiondismo é reconhecido por uma combinação singular de competências; a competência coletiva de uma equipe emerge da combinação das competências e do profissionalismo de seus membros; a competência-chave de uma empresa é O resultado da combinação das competências dos indivíduos, de seu profis; sionalismo e das competências coletivas das unidades e das equipes. E do êxito da combinafúo que depende a emergência de uma competência em um outro nível. O saber combinatório está no centro de todas as competências. Se a competência é reconhecida por uma arquitetura combinatória, ela não poderia reduzir-se a um mero acúmulo de elementos constitutivos. Esse é o interesse dos sofhuares - tal como a árvore das competências de trívio - que permitem fazer emergirem imagens e dar, assim, a possibilidade de interpretar seu sentido. Quanto mais a imagem se reduz a um acúmulo elementar de competências, menos pobre é a competência da comunidade humana representada; quanto mais diversificada for a imagem, maior a riqueza de sua complexidade. Quanto mais a pessoa ou a unidade sabe e pode combinar, mais aumenta sua competência. A perspectiva de uma gestão da profissionalização em termos de navegafão profissional. Um dos desafios maiores para a empresa será saber conjugar seus projetos e suas imposições com os projetos dos profissionais. Em contextos de instabilidade permanente, essa conjugação não pode mais depender da programação. Já que o planejamento das carreiras falhou, e a formação contínua mostrou sua importância, mas também seus limites, pode-se afirmar que a profissionalização não se reduz à formação. É preciso criar, portanto, um maior número de novos espafos de profissionalizafão e reunir as condições necessárias para que cada um possa neles navegar. O planejamento deve, então, dar lugar a um novo modelo. Um novo "saber viajar" deve ser inventado para que se saia dos itinerários predeterminados sem, todavia, cair na errância, que leva a naufrágios e margeia a exclusão. Torna-se urgente saber tomar direções, traçar percursos, fazer desvios, encontrar escalas, precisar a situação, tomar bifurcações. Enfim, é necessária uma navegação profissional em que estejam presentes tanto o prazer de aprender como a tenacidade. A pertinência de um novo tipo de gerenciamento. Se a profissionalização não pode ser imposta e se a construção das competências está no centro da subjetividade, é necessário guiar e não apenas controlar. O gerenciamento da profissionalização é um gerenciamento que dá sentido e age por influência, auxilia a fixar uma meta aceita de comum acordo e cria as condições propícias aos percursos e às dinâmi-
cas de profissionalização. Esse é o gerenciamento que deve ser inventado e experimentado para além dos modos e dos discursos encantatórios. Devem ser criados instrumentos de orientação, e novas regras do jogo devem ser experimentadas. A prioridade a ser dada ao tratamento da competência coletiva. Esta não é uma entidade, é uma propriedade que emerge da articulação e da sinergia entre as competências individuais e as redes híbridas de competências (pessoas, equipamentos, sinais, etc.). reside o verdaMais uma vez, é no saber ou na arte combinatória deiro valor da empresa. Não há substituibilidade da aprendizagem cobtiva. Tudo deve ser inventado nesse campo. O trabalho e a experimentação devem prosseguir, pois algumas condições de emergência de tal competência coletiva já se tornam evidentes. Eis, então, algumas linhas mestras desta obra. A apresentação que acaba de ser feita não é exaustiva. O leitor, de qualquer modo, saberá traçar outras de acordo com suas preocupações e sua experiência. Mesmo que esta obra não seja um hipertexto, pode-se nela naveg ar...
A Razão d e Ser do Profissionalismo
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I
Por que o apelo crescente à noção de profissionalismo? Quais as razões que levam, atualmente, os responsáveis das empresas e das organizações a buscarem profissionais e a implementarem dispositivos de profissionaUzação? Como explicar o desaparecimento progressivo da figura do operário qualificado ou do homem de mão-de-obra em proveito do profissional? Essa mudança de linguagem se deve a efeitos de moda passageiros ou responde a novas exigências das situações e das organizações do trabalho? Parece que essa mudança de termo não seja uma mera operação de lifting nos discursos gerenciais. Tampouco se trata de um acontecimento imprevisto, repentino e que provoque surpresa. A busca do profissionalismo confirma uma longa evolução que marcou a história da formação contínua na França. O questionamento progressivo da formação como gasto social e sua substituição por uma abordagem em termos de investimento teve conseqüências. A lógica dos processos de produção, de manutenção e de desenvolvimento das competências tendem a prevalecer sobre aqueles voltados à formação. Da competência profissional ao profissionalismo há apenas um passo, que, todavia, está longe de ser insignificante. Os debates que o termo provoca sobre suas implicações sociais e principalmente sobre o questionamento da noção de qualificação estão aí para lembrar isso, já que abre igualmente o campo para a definição necessária de novas identidades profissionais. A noção de profissionalismo se desenvolveu na França em um contexto de crise do desemprego e de busca crescente de competitividade. Tal noção adquiriu importância sob o efeito de uma convergência de interesses: o dos assalariados, tomando consciência de que têm interesse em revelar seu conjunto de competências em um contexto de mobilidade profissional e de busca de emprego, e o dos empregadores, dando-se conta do fator de competitividade que a competência pode representar.
O conceito de competência, que acompanha o profissionalismo, só ganhou importância no decorrer,dos anos 80. Na década de 70, era a noção de "qualificação" que dominava. E interessante constatar que o termo competência não aparecia no Vocabulário de Psicologia, publicado por Pieron em 1973. As noções de competência e de profissionalismo parecem mais adaptadas à gestão da mobilidade profissional do que àquela de qualificação, mais apropriada a um contexto de estabilidade das profissões. Por outro lado, as trágicas vagas de demissões coletivas e os planos de aposentadoria antecipada confrontaram as empresas com o problema da perda do saber e do saber-fazer de sua memória profissional. Não é por acaso que as normas ISO 9000 insistem sobre a formalização dos saberes da empresa. A incerteza torna-se uma companheira fiel da economia e das empresas francesas. O retorno a um contexto de crescimento constante e previsível é pouco provável. Essa situação leva os diretores de empresa a apostar mais nas competências dos empregados, na sua capacidade de adaptação e de iniciativa e na sua capacidade de aprender do que em uma previsão fina das evoluções do conteúdo dos empregos. O profissionalismo está mais ligado à capacidade de enfrentar a incerteza do que à definição estrita e totalizadora de um posto de trabalho. Não pode haver flexibilidade e reatividade sem uma boa gestão de um capital de competências. É preciso apostar mais nas inteligências e nas competências locais do que se fiar em um planejamento central. Em inúmeras empresas, os dispositivos sofisticados de gestão previsional e preventiva dos empregos estão sendo deixados "de lado" ou em lista de espera. Outros, estão em tratamento de emagrecimento. Mais uma tendência: a necessidade de construir a empresa de amanhã com os homens de hoje. O recrutamento externo perde importância em relação à gestão da mobilidade interna. Conhecer e gerir de modo evolutivo as competências tornam-se um imperativo de primeira linha. A emergência da noção de profissionalismo não se deve, portanto, ao acaso, assim como não é produto de um fenômeno de moda. Vários fatores socioeconÔmicos estão em sua origem.
A produção não é mais ou não será mais o que era. Ela deverá incorporar uma parcela crescente de inteligência para fazer frente às exigências de renovação, de reatividade, de flexibilidade e de complexidade. Para ser competitivo, deve-se investir na inteligência. Cada vez mais, são os serviços e a inteligência que fazem a diferença entre as empresas. As normas de custo e de qualidade tornam-se comparáveis graças à automatização, e é o investimento nas competências que permite manter uma vantagem competitiva duradoura. Em 1991, o Conselho Econômico e Social confiava a Hubert Bouchet um estudo sobre "as alavancas imateriais da atividade econômica".
O diferencial de competitividade não depende mais apenas da boa gestão do capital financeiro ou tecnológico da empresa. O gerenciamento do capital dos recursos humanos assume nele um lugar preponderante. São os serviços e a inteligência que fazem a diferença entre as empresas, as restrições de custo e as exigências de qualidade, tornando-se próximas sob o efeito da automatização. A capacidade de inovação não reside mais prioritariamente no potencial industrial ou nas despesas de pesquisa-desenvolvimento, mas no investimento nos recursos raros que são as competências. E preciso saber investir eficientemente em inteligência. As empresas que apresentam um "saber-fazer" estático estão fadadas a desaparecer. A evolução do contexto de trabalho (novas tecnologias, novas organizações de trabalho, gestão dos fluxos, transversalidade, etc.) induz uma elevação do nível de profissionalismo e uma recomposição das funções e dos ofícios. Na área industrial, as exigências de qualificação tornam-se prioritárias. De acordo com o recenseamento do INSEE', em 1982,50% dos operários qualificados na França tinham, no mínimo, os diplomas CEP ou BEPC:" esse número é de apenas 10% na Alemanha. Se fizermos uma projeção para o início do século XXI, os trabalhos do BIPE***(1985) concluem que haverá um aumento das necessidades em pessoal- de vigilâncidmanutenção das máquinas automáticas e uma diminuição das necessidades em pessoal de transformação direta dos materiais. Se os operários não-qualificados estão fadados a diminuir, prevê-se, entretanto, nesse horizonte uma certa estabilidade no segmento de operários qualificados. A polivalência, a multifuncionalidade e a capacidade de cooperar adquirem importância. O desenvolvimento dos processos de concepção ou de enge, grupo Ford, e Twingo, na nharia simultânea - dos quais os projetos ~ a u r u sno Renault, são aplicações significativas - supõe que se considere de modo coordenado a gestão das competências em relação às outras dimensões (equipamento, marketing, seguros). O desempenho desses projetos provém, sobretudo, da gestão adequada das interfaces, da qualidade das interoperaçóes, da contribuição das unidades elementares à produtividade global. Essas exigências são, por vezes, vivenciadas de modo ameaçador e não são desprovidas de riscos de reações de retorno ao que já existe. Agentes de manutenção poderão temer "não estar mais à altura", ao perder sua atividade tradicional de reparo e serem responsabilizados pela confiabilidade das instalações. Uma "economia da variedade" está desenvolvendo-se. Diante das exigências incessantes de renovação e de adaptação dos produtos e dos serviços, e da necessidade de inovar, torna-se indispensável renovar os conhecimentos e as competências, colocando-se em situação de aprendizagem permanente.
"N. de T. INSEE: Institut National de la Statistique et des Études Éconorniques. "51.de ' I Certificados que sancionam estudos de primeiro ciclo dos estudos secundários. *** N. de T. BIPE: Bureau d'Infomations et de Prévisions Econorniques.
O desenvolvimento de um novo significado para as atividades de concepção não se limita mais à área acadêmica, mas tende a implicar os atores dos processos de produção e os fornecedores. Essa nova concepção levanta questões sobre o desenvolvimento e o domínio das competências coletivas. As conseqüências das diminuições maciças de efetivos (demissões, aposentarias, etc.) revelaram os efeitos negativos de uma perda de conhecimentos e de competências, principalmente por ocasião de incidentes, de contingências ou de problemas que o pessoal em exercício não sabia mais tratar. As, vezes, é preciso ir atrás dos aposentados para que venham ajudar na solução de problemas complexos que ninguém mais sabe resolver!! A consideração das competências deve ser introduzida desde o início das estratégias de mudança e dos projetos, isto é,. desde o momento em que são feitas as principais escolhas tecnológicas, operacionais, econômicas ou comerciais. Os projetos de automatização que não vierem acompanhados de uma mudança correspondente das estruturas das qualificações terão grandes perdas de competitividade: atrasos, custos de investimentos em materiais ultrapassados, período mais longo de formação, aumento dos efetivos (apelo a operários ou a técnicos de conservação ou de manutenção), elevação dos tempos de interrupção das máquinas, aumento dos estoques em curso, dificuldades crescentes para diminuir os refugos, etc. A valorização e o desenvolvimento dos recursos humanos constituem variáveis estratégicas de desenvolvimento, e não apenas variáveis de ajuste. Em relação a concorrentes, como o Japão ou a Alemanha, a França deve recuperar um considerável atraso no tratamento da "dimensão de competências" de seus investimentos. A herança da teoria neoclássica da empresa foi pesada: os recursos humanos figuravam nela apenas'como um custo de produção. Considerados como um ativo entre outros, nenhuma especificidade ou autonomia lhes era reconhecida; o único verdadeiro recurso humano que contava era o empresário. Somente ele não era substituível; a totalidade do pessoal podia ser substituída no mercado. Ainda existe uma grande contradição entre o discurso oficial dos dirigentes de empresas e a realidade de sua gestão. Embora a maioria dos dirigentes de empresas e dos chefes de pessoal julgue que a contribuição dos assalariados à realização dos desempenhos é mais determinante do que os fatores materiais ou financeiros, quantos dentre eles incluem um segmento de recursos humanos na constituição de seus dossiês de investimento, acompanhado de um plano de formação? Mesmo que a maioria dos dirigentes de empresas estime que o desenvolvimento das competências é uma prioridade, quantos julgam indispensável a implantação de um controle da gestão social? Apenas uma minoria harmoniza sua política com o discurso sobre a prioridade dos recursos humanos. A verdade, porém, é que essa minoria pode ter um efeito motivador. O investimento material só pode funcionar se for acompanhado ou até mesmo precedido de sólidos investimentos imateriais, em particular nas
competências. A parcela do "duron*tende a decrescer relativamente nas despesas de investimento das empresas. Os conhecimentos e as habilidades são uma fonte de valor agregado. Peter Drucker toma posição sem hesitar: "Hoje em dia, o saber é o único recurso que conta. Os fatores de produção tradicionais, a terra (isto é, os recursos naturais), o trabalho e o capital não desapareceram, mas passaram para o segundo plano. Pode-se consegui-los, e facilmente, desde que se tenha i' o saber. E o saber, nesse novo sentido, tornou-se uma utilidade econômica como meio de obter resultados nas áreas econômica e social". Em sua criação, em 1992, no Quebec, a fábrica de alumínio Lauralco contava com 560 empregados, dos quais apenas 5 tinham experiência em alumínio. Seis anos mais tarde, essa empresa batia todos os recordes de rentabilidade do Grupo Alurnax: a produtividade por empregado era 30% superior à média do grupo, a quantidade de eletricidade consumida por tonelada de alumínio era a mais baixa do mundo, o índice de acidentes de trabalho era três vezes menor do que a média quebequense, e a empresa tinha o certificado ISO 14001 pela gestão de seu ambiente. Todos esses desempenhos não se devem ao acaso. A empresa apostou na construção das competências de seus empregados, graças, principalmente, a uma formação intensiva de 100 horas de formação por empregado e por ano nos últimos cinco anos; uma responsabilidade dos empregados:"" cada operador de equipe assume durante um ano uma missão, um "mandato" além de seu trabalho diário; controle da aplicação das normas sobre o meio ambiente, controle de produção, etc. O exemplo da Chrysler é significativo. Quando estava em plena crise, no final dos anos 80, a direção decidiu remobilizar a empresa, dando pleno poder às equipes e aceitando que assumissem riscos. Foi aprendendo a confiar nas equipes e congregando esforços em um conjunto de melhorias (reestruturação da distribuição, racionalização das fabricações, aperfeiçoamento dos produtos, etc.) que uma recuperação espetacular pôde produzir-se, e o ciclo de fabricação de um novo carro, que era de 55 meses, em 1987, pôde ser reduzido a 26 meses 1 0 anos depois. O exemplo da Motorola lembra o da Chrysler. Mais apegada a questão do "saber-fazer" do que aos produtos, a firma de Chicago soube desenvolver permanentemente novas atividades. Em uma entrevista ao jornal Les Échos, em 1997, Bob Galvin, que dirigiu a empresa durante 30 anos, a f i a que "para conseguir
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*N. de R. Recursos tangíveis ou fatores de produção tradicionais. *'N.de R. A questão de responsabilidade dos empregados remete à noção do autodesenI
volvimento, ou seja, o desenvolvimento de competências deve ser responsabilidade do próprio indivíduo e não exclusivamente da chefia ou da empresa. No Brasil, algumas organizações começam a repensar as competências com base no autodesenvolvimento apesar das dificuldades em romper com a visão tradicional e paternalista que tende a gerenciar ou controlar o desenvolvimento das pessoas.
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inovar, é preciso considerar a tomada de risco e o direito ao erro". Deve-se apostar nas competênciasdo pessoal. A Motorola criou, para isso, sua própria universidade. Estamos entrando em uma economia que exige uma nova concepção da produtividade. Tal concepção tende a assumir a significação de "desempenho global". A produtividade da mão-de-obra deve dar lugar à "produtividade global". Nessa concepção ampliada, a produtividade não pode mais se referir apenas à redução de custos. Se a inovação se encontra no coração da competitividade, convém tanto criar valor quanto reduzir os custos. Esse ponto de vista leva a considerar a empresa não mais como uma simples carteira de negócios a gerir, mas como uma carteira de competêncic~sa valorizar e a desenvolver. A noção de competência profissional passa a ser mais pertinente para tratar das questões de confiabilidade de um sistema sociotécnico de produção do que a de tarefa, que corresponde melhor à segrnentação tayloriana dos processos de trabalho. A empresa deverá consagrar-se a desenvolver o profissionalismo de seus assalariados mais do que se desgastar querendo vigiar ou controlar a execução de suas tarefas. Sinal dos tempos: o prêmio McKinsey Award recompensou, em 1988, a obra A Empresa Viva (The living company), do professor Arie de Geus, que concluiu que as empresas perenes são e serão aquelas que valorizam os homens, e não aquelas que buscam valorizar a curto prazo seu capital financeiro. Quatro critérios caracterizam as empresas duradouras:' controle dos riscos financeiros, forte identidade, forte abertura à novidade, prioridade ao homem. A otimização do capital é considerada por elas como "uma necessidade complementar à otimização das pessoas". E interessante constatar que os McKinsey recompensam "trabalhos excepcionais que deveriam ter uma influência maior sobre as ações dos dirigentes7'.Peter Lorange, presidente do Institut du Management, de Lausanne, comentava assim esse prêmio no jornal Le Monde, de 1 7 de fevereiro de 1998: '%credito que vai haver uma tomada de consciência das empresas. Entretanto, não sei quando isso acontecerá, nem qual a extensão dessa mudança. Mas prevejo uma morte rápida a todas as sociedades que buscarem apenas uma valorização de seu capital financeiro". Em um contexto de incerteza e de inovação permanentes, o empregador compra menos uma força de trabalho do que competências ou do que um potencial de competências. PROFISSIONAIS PARA ADMINISTRAR A COMPLEXIDADE
Confrontadas com a complexidade e com a incerteza, organizadas em estruturas heterogêneas e flexíveis, as empresas e as organizações devem dispor de homens e de mulheres capazes de enfrentar o inédito e a mudança 'N. de R.T. Para Arie de Geus, a empresa duradoura é aquela que parece anular o fluxo de um no e, por isso, denomina-se "empresa no".
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permanente. O desempenho de uma empresa, de uma de suas unidades ou de um projeto depende do conjunt0,das microdecisões de ação tomadas pela competência de seus profissionais. E preciso saber enfrentar situações profissionais evolutivas e pouco definidas. Isso leva, evidentemente, a interrogar a distinção clássica operada entre as noções de qualificação, de profissão, de emprego e de profissionalismo. A noção de qualificação remete a um julgamento oficial e legitimado, que reconhece em uma ou em várias pessoas capacidades requeridas para exercer uma profissão, um emprego ou uma função. A aceitação social dos critérios de qualificação resulta de uma negociação e depende das relações de força existentes entre os parceiros sociais. A qualificação se reveste de um caráter convenaonal. Quando a qualificação se reduz a diplomas de formação inicial, isso não significa que a pessoa saiba agir com competência. Significa, antes, que ela dispõe de certos recursos com os quais pode construir competências. Entretanto, não se deve opor qualificação e competência nem querer substituir a qualificação pelas competências. O desenvolvimento dos "recursoscompetência" deve permitir o enriquecimento da noção de qualificação mais do que suprimi-la. Por que as competências construídas em situação de trabalho não se inscreveriam em uma qualificação considerada evolutiva? Não se deve buscar conjugar a necessidade de dispor de pontos de referência coleti- r vos e o reconhecimento das competências individuais? A qualificação é uma construção social e resulta de negociações que levam a convenções coletivas e a sistemas de classificação. A noção de profissão tem sua origem nas ordens profissionais em que o profissional presta juramento (profes) de respeitar um conjunto de regras, dentre as quais a do segredo profissional, ou seja, não revelar informações que ele tem o direito de possuir sobre seus clientes. Tal noção se refere às figuras típicas do médico, do tabelião, do advogado. Essa definição dizia respeito, na Idade Média, aos saberes intelectuais. Desde então, estendeu-se sobretudo às profissões liberais. Existe tradicionalmente uma relação estreita, na profissão, entre a ética e os saberes. A profissão é uma comunhão de valores e de vida. Instâncias legitimadas estabelecem regras e são encarregadas de velar por sua boa aplicação: a ordem dos médicos ou a dos arquitetos é uma ilustração disso. O profissional é habilitado a exercer atividades que outros não podem pôr em prática. Para isso, ele obtém uma licença. Pode-se, igualmente, levantar a hipótese de que a noção de profissão tende a se distinguir daquela de ofício pela relação de negociação comercial que ela supõe com um cliente. Exercer uma profissão supõe uma relação de serviço. Exercer um ofício faz mais referência à operacionalização de um "saber-fazer" ou de uma especialização. Se a profissão supõe o ofício, a relação inversa nem sempre pode ser afirmada. As "ordens" dos profissionais (ordem dos advogados, ordem dos médicos, etc.) produzem regulamentos e normas. Uma de suas finalidades
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essenciais é exatamente dar confiança aos clientes, que podem, então, confiarse a profissionais. Exatamente como a profissão, o ofício refere-se a regras profissionais, mas ele não comporta ordem. Referente, na Idade Média, aos saberes manuais, ele se estendeu desde então aos diversos tipos de saberes. Aquele que domina um ofício possui um conjunto de conhecimentos e habilidades específicos, provados pela experiência. O conjunto dos saberes funda a identidade profissional, e o futuro de quem domina um ofício se inscreve na perspectiva de uma orientação profissional à qual ele aspira progredir. Enquanto o ofício é independente de uma organização particular, o emprego resulta da organização e da divisão do trabalho. Saberes e competências requeridos referem-se a um emprego, mas esse emprego é específico a uma organização particular (empresa, administração, coletividade territorial, associação, etc.). Um ofício se encarna em empregos distintos. Do ponto de vista das políticas nacionais do emprego, a referência aos ofícios constitui um ponto de referência, um "terreno" para formular hipóteses previsionais que seria impossível avançar seriamente no nível dos empregos. No âmbito de seu Observatório dos Ofícios, a Renault define o ofício como "um campo de competências que pode reagrupar vários empregos e que se articula em torno de um produto ou de um processo no âmbito de uma organização definida do trabalho". Desde o início dos anos 90, arreferência ao profissionalismo e ao profissional tende a assumir a dianteira. E significativo que certas grandes empresas tenham manifestado sua vontade de passar do planejamento e gestão de empregos ao planejamento e gestão de competências. Uma nova aceitação desse termo parece estar surgindo:
- O profissional não pode mais definir sua identidade referindo-se uni-
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camente ao "saber-fazer" de um ofício. Ele deve mobilizar o conjunto dos recursos de sua personalidade para encontrar uma solução para o problema de seu cliente. O profissional se compromete a tudo fazer para resolver um problema ou reagir a uma situação. A esse respeito, gostaríamos de salientar que a economia das competências não é a economia dos saberes nem a da informação. Cada indivíduo competente é único e não é intercambiável. Sua competência é subjetiva e não pode ser informatizada. Ora, contrariamente às representações mais difundidas, não é na automatização que se dará a economia de amanhã. Ela funcionará naquilo que Pierre Lévy chama de "o irredutível à automatização: ou seja, o laço social, o relacional", a implicação subjetiva das pessoas. O profissionalismo e as competências estão ligados às pessoas: jamais há total substituibilidade. - Diferentemente da noção teórica de profissão, o profissional não pertence necessariamente a uma ordem. Entretanto, espera-se dele que se refira não somente a uma moral (regras deontológicas), mas tam-
bém a uma ética. O profissional dá um sentido à sua ação confrontando seus valores com a realidade das situações nas quais intervém. Ele saberá questionar-se. A ética é uma busca: ela é ponto de partida e está sempre além de um regimento. O profissional é capaz de uma reflexão ética. Os valores, os compromissos, os princípios diretivos são apenas um pretexto para essa reflexão. A conduta do profissional não é ditada de antemão: sua orientação na vida diária está sempre se definindo. Os valores permanecem abstratos e não têm caráter operatório. Definidos prévia e independentemente de toda ação concreta, eles não permitem escolher entre diferentes alternativas. Estas resultarão, de modo provisório, do confronto dos valores e da situação. - O profissional não possui somente um ofício, mas um certo nível de excelência no exercício desse ofício. Ele ultrapassou o estágio do noviço ou do iniciante, atingiu um grau suficiente de autonomia na condução de suas atividades profissionais e'na gestão de situações complexas. Procurar um profissional é procurar um sujeito que alcançou um certo domínio do ofício, é referir-se a uma escala de exigência. Fazer a apreciação "este mecânico é um profissional" significa distinguir o ofício (mecânico) e seu nível de domínio (profissionalismo). - O profissional se encontra na situação de definir sua identidade não somente em relação a um campo de competências, mas também pelo que é capaz de realizar. A identidade do profissional é construída em relação a um projeto, a um produto, a um resultado esperado ou a um serviço para um cliente. O profissional é solicitado a contribuir para processos interofícios, a não mais se limitar a um posto de trabalho, mas intervir em processos e ser eficiente em interoperações. As etapas de sua carreira não são fixadas de antemão: resultam dos percursos a definir progressivamente, dentro ou fora da empresa. Um excelente profissional, mesmo que tenha "sido instruído" em uma determinada empresa, saberá "vender-se" no mercado de trabalho graças ao conjunto de competências que possui. O profissionalismo náo deve excluir a referência a um ofício de origem. O ofício é fonte de identidade. É uma comunidade de origem e de competências. O profissional se caracteriza por uma forte "empregabilidadey'.Possui a dupla característica de dominar bem suas competências e de ter suficiente recuo em relação a elas para poder adaptar-se a mudanças de empregos ou de setores de atividade. Ele sabe "manter-se preparado" para estar pronto para mudar. A imagem dos esportistas, "mantém-se em forma para". Seu potencial torna-o disponível para evoluir, para ser "reempregável" em outra empresa. A situação profissional constitui, portanto, o ponto de referência em relação ao qual deve definir-se o profissionalismo. Mas o que se deve entender por situação profissional? E, mais especificamente, pela complexidade crescente que a caracteriza?
Uma situação profissional é constituída por um conjunto de missões, funções e tarefas que o sujeito deve assegurar não somente em seu emprego, mas em relação com os outros atores, os outros empregos e a empresa ou organização em seu conjunto. As tarefas profissionais requeridas não são necessariamente tarefas precisas, particulares, mas também papéis e funções almejados. A adoção de uma abordagem sistêmica do ofício no grupo PECHINEY ("o ofício completo") possibilitou sair da lógica estreita de postos de trabalho. O operador deve ser capaz não apenas de efetuar as operações constitutivas de um posto, mas de intervir na gestão de processos recorrentes ou não-recorrentes (ou seja, projetos). Como o trabalho se reveste de um caráter cada vez mais coletivo, seu desempenho dependerá largamente de sua capacidade de se comunicar e de cooperar. Sob o termo genérico de "requisito", serão designadas tanto as atividades prescritas quanto as atividades almejadas, mesmo não sendo designadas antecipadamente. As tarefas requeridas são as que devem ser realizadas para que se alcance um objetivo, em condições dadas e com meios determinados. O requisito se define como o que deve ser feito. Uma situação profissional é um posto que estabelece correlações e é, também, um posto em evolução: a situação profissional se modifica sob a infiuência de fatores de evolução (tecnológicos, econômicos, organizacionais, evolução das demandas dos clientes e parceiros, etc.). O quadro a segiiir ilustra o conceito de situação profissional.
Quadro 1.1 Seta simbolizando a evolução do posto no tempo Seta simbolizando a evolução da carreira dos pesquisadores engenheiros no tempo
b A pessoa (o pesquisador-engenheiro)
b O posto
Essas situações profissionais são situações profissionais "reais": corres-
pendem a postos de trabalho efetivamente ocupados em um dado momento. É possível identificar, a partir da análise dessas situações profissionais reais, uma cartografia de situações profissionais tipicas. Tais situações constituem famílias de situações profissionais reais próximas por suas missões e atividades e pelas competências que requerem. Essa cartografia permite determinar apriori as situações típicas no seio das quais uma pessoa pode exercer seu ofício. Um conjunto de situações profissionais típicas pode constituir um segmento de evolução. A distinção das situações profissionais típicas deve favorecer as evoluções, e não levar à imobilização do indivíduo em uma divisão taylorista do trabalho. As situações profissionais típicas constituem "alvos" de competências requeridos que as pessoas devem adquirir. Essa definição leva a distinguir o requesito e o prescrito: passou a ser trivial a constatação de que o modelo de gestão taylorista tende a ser ultrapassado, mesmo que numerosas empresas o conservem ou, às vezes, até mesmo retornem a ele. Embora esse sistema tenha demonstrado sua eficácia no contexto industrial do nascimento da grande indústria, revela-se inadaptado para ' o início do século XXI, visto que os critérios de desempenho e as condições de eficácia do trabalho mudaram. Em uma empresa de química pesada, quando os procedimentos eram essencialmente manuais, o operador devia efetuar operações correspondentes à ordem das tarefas estabelecida pelo modo operacional. A experiência repetida garantia sua competência. Aimplantação da automatização mudou radicalmente o que se espera do operador. Nessa nova situação, ele deve sobretudo tomar as instalações fiáveis, evitar a deriva de um procedimento e realizar ações preventivas. Sua competência supõe capacidade de análise e de diagnóstico, um bom conhecimento dos procedimentos e das aparelhagens, capacidades de interpretação de informações e de tomada de decisões. Ele deve saber administrar uma situação complexa e agir conforme a situação. Os saberes a mobilizar são heterogêneos: eletricidade, regulação, mecânica, sistema técnico utilizado. A escalada da complexidade dos problemas a tratar, o caráter incerto do meio, as possibilidades oferecidas pelas novas tecnologias e pela organização do trabalho, a evolução dos sistemas de valor e as aspirações dos indivíduos levam ao questionamento da noção de posto de trabalho. A eficácia do trabalho supõe que o sujeito não se limite a executar as instruções transmitidas. Espera-se que o trabalhador exerça sua qualificação para realizar um trabalho; espera-se que o profissional operacionalize competências para administrar uma situação profissional.
b O meio (econ6mic0, social, organizacional, etc.) com o qual a pessoa e o posto se relacionam O Le Boterf, Viallet
A noção de "emprego-padrão" foi introduzida no início dos anos 1970 pelos pesquisadores do CEREQ (Centro de Estudos e de Pesquisas sobre as
Qualificações). Ela designa "o conjunto de situações de trabalho que apresentam suficientes características comuns para que um mesmo indivíduo delas se ocupe". Essa definição revela um importante progresso em relação à noção de posto de trabalho. Um emprego-padrão representa uma família de postos de trabalho similares ou próximos por suas atividades ou pelas competências que eles requerem. Tal definição tem seus limites justamente porque parte da noção de posto, mesmo que se trate de superá-la. Essa abordagem não responde às necessidades das empresas que escolheram mudar radicalmente sua organização de trabalho. Tomar como base de raciocínio o posto de trabalho é reforçar a inércia da divisão do trabalho a ele associada. A busca de uma adequação estreita entre formação e posto de trabalho é superada em proveito de uma identificação das competências operacionalizadas em ação. Esse é principalmente o caso do novo ROME. Podemos distinguir vários tipos de situações: As empresas ou os setores de empresa em que a divisão do trabalho permanece fortemente estruturada. Nesse caso, a noção clássica de emprego-padrão (designando uma família de postos de trabalho) continua pertinente. A partir da análise dos postos, serão efetuados os agrupamentos em famílias e, então, identificados os empregos-padrão. As empresas ou os setpres de empresa cujas curvas de empregos estão destinados a evoluir. E o caso das empresas de grande evolução e que fazem apelo a estruturas por projetos ou por missões. O emprego corresponde, então, mais a uma função ou a uma "situação profissional" cujo conteúdo será ampla e progressivamente definido por seu titular, que pode ampliar as fronteiras de seu emprego e praticar novas atividades. Esses empregos "de geometria variável" se encontram nas organizações caracterizadas por sua flexibilidade. Há interação entre o homem e o emprego. O termo modelo "schumpeteriano" será às vezes utilizado em oposição ao modelo "taylorista", fazendo assim referência à capacidade do operador de modelar seu emprego. As empresas ou os setores de empresa em que a organização dá lugar a trabalhos coletivos e polivalentes que dispõem de uma margem apreciável de autonomia e têm a possibilidade de se auto-organizar. A situação coletiva de trabalho não pode ser definida a partir de uma análise dos postos: estes não constituem mais uma unidade elementar de análise. Os membros do grupo revezam entre si um conjunto de missões, de atividades e de papéis.
Se o requisito é definido como o que deve ser feito, é importante que sejam determinados: Os critérios de desempenho do objetivo, da missão ou do papel almejados. Parâmetros de exploração poderão ser utilizados. Eles serão ex-
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pressos em diversas quantidades (quilogramas, toneladas, quilowatts, horas, etc.), efetivos, índices (de refugos, de acidentes de trabalho, de produtividade, de produtos de primeira qualidade, etc.,), prazos (de entrega, de constituição de dossiês, de intervenção do serviço pósvenda, etc.). Poderão ser indicadores (exprimindo limiares) ou indícios de tendência (em alta, em estabilidade, em baixa). Os critérios de êxito das atividades. Indica se a atividade foi corretamente realizada. Margens de tolerância poderão ser fixadas. As condições nas quais devem ser alcançados os objetivos e realizadas as atividades: condições organizacionais, técnicas, socioeconômicas, ambientais (ambiente sonoro, meios térmicos, restrições diversas, etc.), temporais. Trata-se de condições que não concernem apenas ao posto de trabalho considerado isoladamente, mas que intervêm no conjunto da situação profissional ou em um processo. Os meios ou recursos à disposição. Podem ser de ordens diferentes: materiais, humanos, financeiros, logísticos, temporais. O zelo exacerbado dos procedimentos pode ser paralisante. A autonomia e a margem de manobra dos operadores tornam-se necessárias para que possam completar, até mesmo corrigir, as obrigações prescritas. Dois níveis devem ser considerados no trabalho: o das obrigações explícitas e escritas e o das obrigações implícitas. Não pode haver exaustividade das tarefas prescritas. Os operadores devem verificar as informações recebidas, avaliar os dados do contexto, reagir a eventualidades, reagir em situação perturbadora de trabalho, fazer diagnósticos, reagir às falhas e às oscilações do processo de fabricação, tomar iniciativas, mudar procedimentos. Os métodos d e análise dos incidentes críticos (behavioral events) encontram aqui seu lugar: as competências serão identificadas em função dos incidentes aos quais o pessoal qualificado da empresa terá ou não reagido.
Serão então distinguidas: As tarefas explicitamente prescritivas, isto é, que correspondem às prescrições definidas por um grupo externo ao operador e que dizem respeito ao que deve ser feito. Elas figuram nos guias de utilização, nos manuais de instrução e nos manuais de procedimentos. As tarefas esperadas, mas não explicitamente prescritas. Elas correspondem a obrigações implícitas de produção e de resultado mais do que a obrigações de procedimentos. Dizem mais respeito à definição das missões e dos papéis do que à das tarefas. Estão destinadas a assumir importância em contextos de trabalho em que é mais importante saber tomar as iniciativas necessárias para assegurar a continuidade da produção do que respeitar instruções.
Essa distinção é necessária pela complexidade crescente que caracteriza as situações profissionais, marcadas pela irrupção do imprevisto e do factual, pela coexistência de lógicas de gestão diversas e às vezes contraditórias, pela incerteza sobre seu futuro e pela instabilidade permanente que caracteriza suas fronteiras. O operador deve realizar incessantemente atividades de equilíbrio ou de arbitragem entre lógicas diferentes, decidir sobre sua compatibilidade e estabelecer acordos entre uma pluralidade de exigências ou de critérios (segurança das instalações, proteção das pessoas, produtividade, qualidade, etc.). O saber agir reside na busca permanente de equilíbrio. A utilização com engenhosidade dos recursos do entorno imediato e a experimentação não estão excluídos do agir profissional. Quer trate-se da atividade prescritiva ou da competência requerida, jamais se poderá descrevê-la em termos exaustivos. Isso não seria, aliás, desejável: a declinação analítica iria tornar-se logo inadministrável e poderia levar à estagnação. Vários fatores contribuem para essa complexidade:
A intemacionalizaçáo crescente da economia. Afixação dos preços, a concorrência, as inovações, os processos de pesquisa-desenvolvimentonão podem mais ser apreendidos e tratados no universo protegido dos limites da empresa, do distrito empregador ou do horizonte nacional. O aparecimento de novas tecnologias da informação (informática, automação de escritórios). Elas contribuem para transformar os modos de organização e de distribuição do trabalho. O desenvolvimento de uma concorrência impiedosa e o aumento das exigências do cliente. A evolução do quadro legislativo e regulamentar (abertura bancária, desregulamentação, etc.), a tendência de aumento de oferta do mercado, a abertura do mercado europeu, a evolução da clientela, que dispõe de cada vez mais meios, e de uma cultura que permite comparar os produtos e os serviços, concorrem para um movimento acelerado de surgimento de novos produtos ou serviços que modificam os dados da concorrência; por isso a reatividade das situações profissionais é mais solicitada. Aos produtos padronizados e de longa duração sucedem produtos diversificados que se caracterizam por durações de vida curtas e componentes padronizados. O desenvolvimento das interaçóes entre a empresa e seu entorno. A fronteira que supostamente os distingue se torna vaga ou permeável. A empresa precisa do desenvolvimento regional ou local e vice-versa. Os recursos mobilizáveis pela empresa não ficam circunscritos ao seu recinto ou à organização que a delimita. Toda situação profissional sofre o contragolpe dessa evolução: as cadeias de atores aumentam, as cooperações põem em jogo ou em confronto lógicas que não são todas vinculadas à empresa de origem e o cliente surge na própria situação
profissional. O grau de interdependência entre produtores e consumidores tende a crescer. O contexto das situações profissionais tende, pois, a se definir menos em termos de conjuntura rotineira e mais em termos de conjunturafluida. Passa a ser ilusão querer domesticar o imprevisível. As conjunturas fluidas se caracterizam por situações complexas em que interferem múltiplas lógicas de atores, em que se dá uma grande mobilidade do que está em jogo, nas quais os critérios de definição dos problemas são instáveis e os confrontos atravessam as fronteiras habituais dos conflitos. Porém a complexidade se deve igualmente à flexibilidade permanente e à heterogeneidade da organização do trabalho. O contexto das situações de trabalho continua evoluindo. As fusões em andamento, as liberações de atividades, as reorganizações, as redistribuições de funções, as modelações das redes de exploração ou de distribuição influem permanentemente na configuração das situações profissionais. Estruturas periféricas flexíveis, sensíveis às oportunidades conjunturais, podem aproximarse dos "núcleos duros", que visam aos aumentos de produtividade por economia de escala. O gerenciamento comercial pode levar à necessidade da coexistência de estruturas simples de comunicação formal com estruturas mais flexíveis, até mesmo efêmeras, cujas fronteiras são mais reativas aos acontecimentos. A organização de uma mesma empresa deve evoluir frequentemente a fim de se adaptar às mudanças de tecnologias e da koncorrência. As estruturas em pirâmides hierárquicas clássicas, em projetos transversais, em formas matriciais sucedem-se e às vezes coexistem. Estruturas cruzadas correlacionam funções especializadas (marketing, contabilidade, finanças, pesquisa-desenvolvimento) com grupos que têm projetos e atividades e cuja natureza e distribuição só podem ser transitórias. Essa complexidade e essas exigências permanentes de mudança tornam inelutáveis e mesmo necessárias as margens de manobra entre o prescrito e a atividade real. A confiabilidade dos sistemas sociotécnicos supõe que o que é posto em prática nem sempre corresponde ao que era preconizado. .. Com efeito, pode-se constatar:
Variações da atividade real em relação à atividade requerida. O operador raramente é passivo diante da atividade prescrita ou esperada. Colocar uma instalação em andamento quase nunca se reduz a pô-la em funcionamento. O mito do operador que apenas aperta um botão está desaparecendo. Em um trabalho de digitação, as operadoras não se limitam a copiar passivamente as informações dos documentos de base. Competências são permanentemente acionadas para controlar e verificar a qualidade das informações, determinar e corrigir os erros detectados, relacionar diversas informações, tomar decisões, tratar erros de compatibilidade lógica que o computador não detecta, etc.
Essas "competências mascaradas" são operatórias, mas frequentemente desconhecidas. Um trabalho monótono pode ser complexo. O trabalho de pura execução não existe, visto que a variabilidade das situações acarreta, necessariamente, a superação da prescrição. Em graus diversos, o operador se apropria das diretrizes e as interpreta. Entre a atividade requerida e a atividade real instala-se a atividade redefinida ... É a definição que o indivíduo estabelece para si no que tange à atividade a efetuar. Ela resulta de sua interpretação das missões e das atividades em função de suas próprias representações. O preconizado (uma lista de instruções, um programa informático, uma gama, um desenho técnico...) não é o utilizado. O trabalho redefinido é recomposto. Essa reapropriação do prescrito não significa, de saída, que se trate de erros. A redefinição pode consistir em completar operações ou tarefas estabelecidas, em operacionalizar uma capacidade de iniciativa necessária para afrontar os acontecimentos imprevisíveis. A margem de autonomia dos operadores permite encarar as incertezas. Em uma prescrição flexível, cabe ao operador construir seus próprios modos operatórios, que não são dados como em um dispositivo de procedimentos bem-padronizados. Podem existir, então, variações da atividade redefinida em relação à atividade requerida. Pode ser uma variação compatível com os objetivos a atingir (Ooperador completa as atividades a realizar, toma as iniciativas pertinentes, escolhe uma estratégia apropriada às circunstâncias, etc.). Isso é frequente nas indústrias de transformação. A aplicação estrita dos procedimentos nem sempre é eficaz. Um procedimento de formatação de um aparelho corre o risco de sobrecarregar o usuário. A variação constatada pode ser inadequada em relação aos resultados a alcançar (o operador deforma as instruções, interpreta-as erroneamente, etc.) e pode também ultrapassar os limites de tolerância aceitáveis. Nesse caso, a deriva é fonte de disfunções. As diretrizes ou os planos não são recebidos tais quais pelos operadores: são considerados como um material a transformar e do qual são capazes de se apropriar mediante o exercício de uma análise crítica. Entre as atividades usuais e as prescrições há, com frequência, uma variação. O que é "recebido" é incorporado à estratégia dos atores que o modificam conforme sua interpretação. A empresa não pode funcionar sem esses ajustes, essas reordenações e essas improvisações. O repertório das ações e das reações previsíveis estará sempre defasado em relação ao incerto e ao imprevisto. Quanto mais detalhados são os procedimentos, menos capazes serão de afrontar novos problemas. As margens de segurança que os operadores estabelecem para si não devem ser interpretadas somente como a busca de tempo livre, mas como espaços potenciais de reação e de adaptação necessários. O prescrito é sempre lacunar. Jamais pode dar conta totalmente da realidade do trabalho. As atividades são sempre realizadas de maneira diferente do que haviam imaginado seus criadores. Se há sempre uma variação entre o
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prescrito e o real, também existem duas maneiras de reagir a isso. A variação pode ser considerada negativamente: a avaliação levará, então, a medidas corretivas. É a filosofia da avaliação-controle. Ela também pode ser juigada positivamepte: a avaliação consistirá em buscar o valor da interpretação do prescrito. E evidente que a segunda opção exige muito mais do que a primeira em termos de gerenciamento, pois é mais simples controlar do que avaliar. Com efeito, todo texto é suscetível de interpretação. Para Vincent Descombes, "nas ciências humanas, o dado se apresenta como um texto, e suaaplicação como uma tradução ou uma interpretação no sentido exegético da palavra. Tendo o dado algo de textual, estamos em wha ciência hermenêutica". Essa evolução da prescrição não deve levar ao. estabelecimento de um quadro idealista das situações de trabalho emergentes. Do ponto de vista do operador, elai certamente representam um "progresso", visto que ele pode investir seus recursos mais na gestão de uma situação profissional do que na execução limitada de um gesto ou de uma operação. Pode-se observar, simuitaneamente, a pressão crescente das restrições de tempo para fazer frente a exigências, múltiplas e contraditórias. As tensões e os sofrimentos psíquicos não devem ser excluídos desse quadro. Variações da atividade real em relação à atividade redefinida. Elas não podem ser excluídas. Podem ser uma variação proveniente da irrupção de acontecimentos imprevistos, de uma diminuição da vigilância, de erros de interpretação ou de interações com o grupo de origem. Em uma organização de geometria variável e centrada na qualidade total a seMço do cliente, as competências não podem limitar-se à aplicação de instruç6es: a iniciativa e a responsabilidade são requeridas e caracterizam as novas exigências profissionais. A intervenção humana - saber agir e reagir - permanece essencial para encarar as eventualidades e as falhas. O mito da empresa em que apenas se apertam botões, dispensando operários, parece ultrapassado. A "redundânciahumana" é necessária para enfrentar os defeitos e as contingências das instalações, mesmo das mais aperfeiçoadas. A fragilidade dos sistemas técnicos é tal que a falha de um elemento corre o risco de colocar em perigo a totalidade do sistema, e a necessidade de reagir em tempo real põe em questão os procedimentos tradicionais do controle hierárquico. Apostar no profissionalismo se toma necessário para evitar perdas econômicas consideráveis: 10 minutos de interrupção na fábrica Gervais-Danone em Saint-Just-Chaleyssin significam mil potes de iogurte perdidos; 1hora de pausa em Sochaux são centenas de automóveis a menos. O crescimento da técnica aumenta a fragilidade do sistema socioeconômico. Tornando-se altamente integrados, os sistemas técnicos passam a ser vulneráveis e, sendo mais descentralizados, os sistemas organizacionais aumentam os riscos de disfunção e de incoerência. A "transferência de poder" (empowerment) para os níveis O'
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DESENVOLVENDO A COMPETÊNCIA DOS PROFISSIONAIS
periféricos da empresa supõe que a confiança seja amplamente considerada e garantida. A responsabilidade supõe o profissionalismo. Em L'impasse i n d u ~ ~ e l l e (O Impasse Industrial), Granstedt escreve: "multiplicando as variáveis, tendese a acelerar o ritmo dos acontecimentos aos quais se deve responder... A partir de uma certa proposta de ferramentas integradas na aparelhagem total do mundo, aparece um limiar além do qual as variáveis entram em sinergia e vão aumentando de volume". Em junho de 1993, a pane dos circuitos informáticos dos distribuidores bancários automáticos na França tornava inutilizáveis durante 24 horas os 19 milhões de cartões de débito em uso, os cartões de crédito. Se um robô pode ser considerado relativamente confiável, as dificuldades aumentam com o acúmulo de vários robôs em uma linha de fabricação: a ocorrência de uma disfunção é tanto mais frequente quanto maior for a linha. Pode-se, aliás, observar um certo movimento de desrobotização. Na Renault, o índice de robotização, que atingia 98% para o automóvel R19 e para o Clio, passou a 82% para o Twingo e para 75% para o Laguna em Sandouvilie. Em contrapartida, assiste-se a um recurso crescente ao profissionalismo nessas linhas de produção. A automatização não significa a perda de competências. A era dos robôs não deve levar a crer que o desempenho não precisa das competências: os empregados devem compreender o funcionamento das novas máquinas para poder evitar as panes, diagnosticá-las e remediá-las. O profissionalismo é o melhor meio para evitar que as panes demorem muito tempo para ser resolvidas. A confiabilidade dos robôs supõe uma profissionalização crescente dos operadores, que se traduz por uma maior autonomia de sua parte. Suas capacidades de diagnóstico e de interpretação devem estar à altura das múltiplas variáveis a seguir e da diversidade dos acontecimentos que podem sobrevir. Com as tecnologias mais sofisticadas, os cosmonautas devem ser capazes de intervir e de reagir com um altíssimo nível de competência.
A centralizafão de atividades metaoperacionais e meta$uncionais. Esses tipos de atividades foram evidenciados pelos trabalhos de Falzon. As atividades metaoperacionais não visam à realização propriamente dita da tarefa, mas contribuem para sua realização: deslocar-se ou falar com seus colaboradores pode auxiliar a reduzir o estresse ou a manter a vigilância, ou romper a monotonia darepetitividade, etc. As atividades metafuncionais contribuem para conservar ou para desenvolver os saberes (confecção de cadernetas para registrar maneiras de fazer ou reescrever manuais de uso, reuniões informaispara ampliar experiências, etc.). A perarnbulação observada por Taylor nem sempre sena, portanto, uma atividade de vadiagem ... Quanto mais automatizada for a produção, maior a influência do investimento nos serviços e na inteligência sobre o valor agregado ao produto. Disso resulta um aumento dos custos de produção e uma perda de competitividade nos mercados. A diminuição dos custos de produção supõe que uma parte das
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funções indiretas (manutenção, conservação, qualidade, etc.) seja transfenda para os operários de produção. No caso de um projeto de automatização, várias relações podem ser evidenciadas entre a elevação necessária das competências e suas repercussões sobre os modos operatórios, como por exemplo:
Quadro 1.2
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Conhecimento do modo de ação das máquinas.
-b
Capacidade de interpretar as panes. Redução do tempo de diagnóstico.
Conhecimentos do modo de transformação de materiais utilizados.
-*
Melhor domínio dos refugos na gestão (mais abstrata) da qualidade.
Conhecimento do conjunto do processo.
-b
Ampliação da margem de autonomia dos operadores sobre a cadeia: possibilidade de decisão de interrupções parciais.
-b
Orientação mais rápida dos técnicos de manutenção.
-b
Diminuição dos estoques de reserva.
O Le Boted
Os efeitos econômicos do profissionalismo são, pois, consideráveis. Podese levantar a hipótese de que a empresa de sucesso será aquela que, na base de seu projeto específico, souber atrair e desenvolver os melhores profissionais. Em 1985, François Viallet, em um texto prospectivo, e com a compreensão das situações que o caracterizava, anunciou: "quando os negócios eram fáceis, quando a maioria dos bens faltava crucialmente, quando bastava produzir para que a mercadoria fosse comprada, quando os estados podiam estabelecer monopólios quase inexpugnáveis, não se tinha compreendido a fragilidade das empresas. Agora, está claro que uma empresa que não concentra o máximo de seus investimentos nas pessoas que nela trabalham comete um grande erro estratégico... Sem recorrer à inteligência de todos os membros da empresa, sem desenvolver essa inteligência, a empresa ficará reduzida a utilizar apenas aquela de seu escalão superior, que não bastará mais, que já não basta mais".
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GUY LE BOTERF
O PROFISSIONALISMO COMO GARANTIA INDIVIDUAL
O profissional possui um wrpus de conhecimentos e habilidades reconhecido e valorizado no mercado de trabalho. Graças a esse reconhecimento, ele dispõe de uma vantagem para administrar a promoção interna ou sua mobilidade externa. Aquele que é ,reconhecido como um profissional competente possui uma identidade social que vai além do emprego que ocupa. O emprego é, necessariamente, um "emprego doméstico". Está ligado às características específicas da empresa. Ele "vale" porque vale a empresa. Nem sempre ele solicita a totalidade dos corpora de saberes que o profissional possui. Em uma conjuntura econômica incerta e difícil, ser reconhecido pelo profissionalismo se torna uma forma de garantia contra os riscos de mudança e, um trunfo para administrar sua mobilidade social e, portanto, sua empregabilidade. Encontra-se, aqui, uma outra razão para o apelo crescente à noção de profissionalismo. De acordo com os trabalhos do INSEE sobre a mobilidade profissional, um quarto dos 17 milhões de ativos na França tinha mudado, ao menos uma vez, de empresa em cinco anos. No início dos anos 80, essa cifra não passava de um quinto. Os jovens que ingressaram no mercado de trabalho no final dos anos 90 provavelmente terão de mudar de ocupação de três a cinco vezes ao longo de sua carreira. A responsabilidade de cada pessoa em desenvolver sua ernpregabilidade se torna uma exigência crescente. A escalada do trabalho independente nas sociedades européias constitui uma explicação para isso. Na Grã-Bretanha em 1998, 27% da população ativa estava sob estatuto de self employment. Na Itália, ela é de 30%. O que está em jogo é o que Francis Kramarz chama apropriadamente de "espaço de validade das competências". Esse "espaço" varia ao longo da história conforme os setores. Pode estar circunscrito ao uso de uma máquina ou de um dispositivo técnico ("condutor de forno", "operário sobre máquina de comando numérico", "secretária Word 3") ou a uma função ("agente comercial", "responsável financeiro", etc.). Ele pode estar ligado a uma organização particular ("engenheiro da EDF [Eletricidade da França]", "empregado da Michelin") . No caso do profissional, a competência faz parte de sua pessoa. O espaço de validade tende a coincidir com o potencial profissional pessoal e a definir, assim, a possibilidade de ernpregabilidade. A ernpregabilidade não se reduz à adaptabilidade a um posto de trabalho. Ela se define menos em relação a um emprego determinado do que em relação à capacidade interna que a pessoa tem para construir competências pertinentes em relação a novos empregos. Isso não significa que a empregabilidade seja responsabilidade apenas da pessoa. A organização na qual ela se situa e age deve, igualmente, favorecer essa empregabilidade. A baixa empregabilidade que caracteriza os empregados das empresas tayloristas se deve, em grande parte, à execução repetitiva, à duração da vida
profissional, aos trabalhos parcelares e não-qualificados. A organização do trabalho é indutora do grau de empregabilidade. A ernpregabilidadenão passará de um termo na moda se um certo número de condições não for reunido nas empresas. Desenvolver ou encorajar a ernpregabilidade supõe que se facilite a transversalidade, favorecendo a variedade das situações de aprendizagem, treinando para a reflexividade sobre as práticas profissionais, recrutando não somente pela busca de competências similares, mas também pela capacidade de criar novas competências, tratando a avaliação não como uma operação de controle, mas como uma oportunidade para criar ciclos de aprendizagem. De uma maneira mais geral, o desenvolvimento da ernpregabilidade supõe que as'questões de organização e de redução do tempo de trabalho sejam tratadas simultaneamente. O tempo ganho com a redução do tempo de trabalho não deve ser consagrado, ao menos em parte, ao desenvolvimento da ernpregabilidade?
Saber Administrar uma Situação Profissional Complexa
O que é um profissional? Por meio de que se reconhece o profissionalismo de uma pessoa? De que ele é constituído? Existem traços comuns aos profissionais das diversas especialidades? O que há de comparável entre o profissionalismo de um agente comercial e o de um fabricante? Tentemos uma resposta comum a essas múltiplas questões: o profissional é aquele que sabe administrar uma situação profissional complexa. A definição é curta e merece ser desenvolvida. Em todo caso, está longe de ser neutra e acarreta conseqüências práticas que não podem ser negligenciadas. ..
SABER ADMINISTRAR A COMPLEXIDADE
Diante do aumento da complexidade nas situações profissionais - que acabamos de lembrar -, o que se pede ao profissional é que ele saiba administrar tal complexidade. Quantas vezes a expressão "cabe a mim, agora, administrar essa situação" não é ouvida nas empresas! Não se pede mais ao operador que faça consertos, mas que saiba "administrar panes", acontecimentos, contigências e processos. O operador não sabe de antemão o que é preciso fazer e de que maneira fazer. Ele deve criar, reconstruir e inovar. Ele deve compor na hora e no próprio local o que é preciso decidir, e não apelar para uma combinação preestabelecida. Ele está centrado na "administração" das operações e das interoperações. O trabalhador se definia em relação ao traba-
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lho e às tarefas a realizar. O profissional se define mais pela atividade de "administrar". Com Amalberti, distinguiremos as noções de "complexidade" e de "dificuldade". A complexidade remete às características objetivas de uma situação ou de um problema. O nível de complexidade se impõe aos sujeitos. A dificuldade se refere às capacidades do sujeito para enfrentar uma situação, que estará relacionada com os recursos de que dispõe um sujeito e com sua capacidade de mobilizá-los em ações pertinentes. A emergência e a difusão desse vocabulário são significativas. Não se trata, é claro, de gestão administrativa ou financeira. O termo se refere mais à pilotagem ou à navegação. Pede-se ao profissional que saiba navegar na complexidade. Estando estabelecida uma "meta" (missão, resultado almejado, objetiVOS,etc.) e "regras de navegação" (eficiência, qualidade total, desempenho global, etc.), resta-lhe saber "navegar de um a outro" (elaborar e conduzir um projeto), levando em conta o campo de forças e as imposições diversas e, às vezes, opostas que constituem a complexidade. O profissional sabe navegar mais em função de balizas do que executar um plano preestabelecido. De nada adianta obstinar-se em uma linha reta, enfrentando ventos contrários. O profissional é um bom navegador. Essa pilotagem ou "administração" deve inventar o caminho a traçar e a seguir. Cada etapa cria uma nova situação, que requer uma avaliação para que se comece um novo percurso. Se algumas sequências podem ser deixadas ao piloto automático, outias necessitam a retomada dos comandos e a iniciativa. Esse saber administrar pode ser declinado como segue: saber agir com pertinência; saber mobilizar saberes e conhecimentos em um contexto profissional; saber integrar ou combinar saberes múltiplos e heterogêneos; saber transpor; saber aprender e aprender a aprender; saber envolver-se. ..
O saber agir não se reduz ao savoir-faire ou ao saber operar. O profissional deve não somente saber executar o que é prescrito, mas deve saber ir além do prescrito. Se a competência se revela mais no saber agir do que no "saberfazer", é porque ela existe verdadeiramente quando sabe encarar o acontecimento, o imprevisto. Em última análise, não é necessário ser competente para executar o que é prescrito, para aplicar o que é conhecido. O "saberfazer" referente à execução não é senão o grau mais elementar da competência. Diante dos imprevistos e das contingências, diante da complexidade dos sistemas e das lógicas de ação, o profissional sabe tomar iniciativas e decisões,
negociar e arbitrar, fazer escolhas, assumir riscos, reagir a contingências, a panes ou a avarias, inovar no dia-a-dia e assumir responsabilidades. O saber agir não consiste somente em saber tratar um incidente, mas, igualmente, em saber antecipá-lo. O profissional sabe estimar a rapidez de deterioração de um conjunto de indicadores e prever suas conseqüências. Pede-se que tenha as competências outrora reservadas ao empresário. O profissional não é aquele que sabe empreender? Essa capacidade de adaptação a situações inconstantes e complexas, a meios turbulentos e ao inédito resgata o que os gregos chamam de métis. Marcel Detieme e Jean-Pierre Vernant analisaram isso muito bem em sua obra Les ruses de l'intelligence, la métis des grecs (As artimanhas da inteligência, métis dos gregos). Essa inteligência utiliza mais a artimanha do que a força. A imagem do piloto que guia sua embarcação na tempestade, a métis sabe que o caminho mais curto frequentemente é o desvio, e não a linha reta. Caracteriza-se pela vivacidade e pela acuidade. A escuta, sabe detectar a tempo os sinais precursores e reagir a eles na hora certa sem se deixar levar, entretanto, pelas facilidades da impulsividade. Além disso, é guiada pela precisão da obsemação (eustochia). A métis sabe adaptar-se permanentemente, modificar seus modos de agir, mover-se em função dos movimentos e dos contextos. Ela sabe aproveitar as ocasiões. Segundo a tradição grega, três tipos de homem devem saber encarnar essa inteligência prática e astuciosa: o piloto, o médico e o sofista. Os três devem brilhar na arte de conjecturar (tekrnairesthai), isto é, saber adivinhar e abrir um caminho por meio de balizas, mantendo, ao mesmo tempo, os olhos fixados no objetivo a alcançar. Esse "conhecimento oblíquo", esse "saber conjecturai" convém tanto ao piloto, que segura o leme de direção, ao médico, que ausculta sintomas proteiformes, como ao sofista, mergulhado no fervor da discussão. O e "o homem d a situação". Ele sabe não apenas escolher, mas sabe escolher na urgência, na instabilidade e na efemeridade. Esse enfrentamento das situações imprevistas e indeterminadas supõe a regularidade. O profissionalismo se prova na operacionalização regular e não-acidental. O mesmo acontece com a incompetência. Não é porque uma pessoa fracassa excepcionalmente que pode ser taxada de incompetente. Assim como as demandas são necessárias, o requerente pode ser nefasto. Quantas empresas começam a afrouxar a qualidade depois de receberem um certificado! Os procedimentos não podem prever todas as variedades das situações de trabalho. A complexidade crescente dos sistemas integrados torna ilusórias as "panes zero", quando se deveria esperar por uma multiplicação maior destas. Yves Lasfargues resumiu isso muito bem: "passamos de uma civilização da pena à civilização da pane". O profissional deve saber enfrentar a vulnerabilidade e a fragilidade. A fiabilidade ou a qualidade dependem fortemente das competências do profissional, de sua capacidade para operacionalizar objetivos e de sua faculdade de antecipação e de reação. Elas podem
definir "papéis" ou fixar limites, mas não poderiam inventariar com precisão todas as precauções a prever todas as possibilidades de acontecimentos. O prescrito é preenchido por enunciados lacunares. A análise dos procedimentos mostra que eles levam pouco em consideração as especificidades "humanas" (clima social, relações de confiança, temores, suspeitas, etc.) que são o dia-adia do trabalho. Se o procedimento pode reduzir a incerteza, não poderia suprimi-la. A variabilidade das instalações industriais torna dificilmente previsíveis a frequência de aparecimento e a forma de um evento. Este depende de microvariações (desgaste de instrumentos, obstrução, desregulação das máquinas, microfugas, higrometria, contingências climáticas, índice de absenteísmo, atraso das equipes notumas, etc.) que fazem a singularidade da situação. É mais o saber inovar do que o saber que se tornou rotina que caracteriza o profissional. Não se pede a ele que se limite a executar modos operatórios que correspondem às gamas de métodos. Ele deve saber tomar iniciativas para antecipar e resolver disfunções, e isso em tempo oportuno para evitar a sus- ' pensão das instalações. Pede-se a ele que participe da documentação concernente às panes ou aos incidentes para torná-los fiáveis. Adam Smith, que enumera as 18 operações necessárias para fazer um alfinete, provavelmente não representa o futuro dos sistemas sociotécnicos! O profissional sabe administrar uma situação profissional não somente em contexto normal, mas também em contexto excepcional, deteriorado e de crise. Saber agir é saber interpretar. As atividades do profissional não poderiam ser automatizadas, pois sua competência é reconhecida por sua inteligência prática das situações, por sua capacidade não somente de fazer, mas de compreender. O saber agir é o "saber o quefazer''. Em situaçõesinauditas, no decorrer de atividades de concepção nas quais o resultado esperado não é conhecido de antemão e o caminho a seguir não é predefinido, o profissional sabe reconhecer o que é preciso fazer, para onde deve dirigir sua ação. Ele sabe desenvolver atos pertinentes, isto é, atos capazes de influenciar a resolução dos problemas a tratar ou a realização da atividade a executar: atos que fazem sentido. Essa singularidade da resposta é característica do ser vivo. Deve-se reler Ganguilhem: "o homem pode dar várias soluções a um problema criado pelo meio. O meio propõe sem jamais impor uma solução". A competência é uma disposição para agir de modo pertinente em relação a uma situação específica. Tomemos alguns exemplos precisos que revelam a administração da complexidade:
O cobrador da rede ferroviária, se for um bom profissional, deve saber arbitrar entre uma lógica repressiva e uma lógica comercial. Ele deve envolver-se em escolhas a fazer. Pede-se a ele que saiba julgar como passar de um registro a outro e qual o momento oportuno para fazê-lo.
Em um canteiro de obras, o profissional da construção civil sabe administrar permanentemente eventualidades. Quanto mais as administra, mais é valorizado. Um canteiro de obras onde nada acontece é um canteiro sombrio. Após ter examinado um indivíduo de acordo com vános registros de exploração, o médico deve saber concluir seu diagnóstico assumindo o risco de um julgamento. Mesmo que possa apoiar-se em um sistema de balizas codificadas (protocolos, pistas epidemiológicas, itens de exame médico, quadros clínicos, quadros nosográficos, etc.), ele deve envolver-se de modo pessoal. Em uma oficina de carroceria de automóveis, a automatização de operações cognitivas complexas vai multiplicar as causas de disfunções, as panes e as contingências. A parcela de tarefas prescritas tende a diminuir em proveito do engajamento subjetivo dos operadores, que deverão arbitrar e decidir. O piloto de avião se acha confrontado com situações que apresentam graus diversos de complexidade. Em regime de cruzeiro, ele se limita ao controle dos parâmetros de v60 (velocidade, altura, direção, etc.), cuja variação geralmente é pequena. A administração do v60 se efetua por meio de check-Zist. Em situação de aproximação, a parcela de saber agir e reagir aumenta. A medida que o avião se aproxima, o piloto deve agir sobre os parâmetros que evoluem rapidamente e se comunicar imediata e rapidamente com os controladores. Esses dois tipos de situações são comparáveis aos contextos de situação de controle dos processos e das mudanças rápidas em uma unidade de produção. Uma cirurgia tão delicada quanto a cardíaca vai supor uma operacionalização de procedimentos dos modos operatórios. A equipe cirúrgica deverá, entretanto, estar pronta para enfrentar o inesperado que o "caso" particular de um paciente sempre representa. Essa formalização visa, na verdade, a gerar tempo livre, a criar margens de manobra para enfrentar o imprevisto. A padronização busca, aqui, a produção de disponibilidade para intervir. Na Renault, o plano de profissionalização "optim'hommes" ["optimyhomens"], lançado no âmbito do acordo social assinado em 1989 pela direção e pelos sindicatos, levou os operadores a se tornarem capazes de tomar a iniciativa de chamar seus fornecedores quando faltava uma peça em um posto, em vez de fazer as encomendas de escalão em escalão. Um agente de serviço administrativo deverá, com bastante frequência, arbitrar entre as Iógicas regulamentares, as Iógicas de produtividade (número de relatórios a processar) e as lógicas de qualidade de serviço aos clientes.
Em uma linha de embalagem, as contingências são permanentes, e os incidentes ditos "normais" ocorrem com freqiiênaa. Os operadores devem tomar decisões de regulação, de religação e de apoio. Devem fazer escolhas e proceder a ajustes. Nessa linha, o profissionalismo dos operadores vai bem além do domínio operatório das máquinas. O condutor de uma instalação robotizada é levado a exercer compromissos, arbitrando entre os imperativos de produção, as exigências de qualidade e as normas de segurança. Ele deve navegar entre os critérios de reatividade (reduzir os lotes para responder à demanda) e os de produtividade (estender os lotes para reduzir o tempo de carregamento). Para enfrentar as múltiplas eventualidades possíveis - não-qualidade dos metais, desgaste das ferramentas, anomalias de temperatura, falha dos captadores, quebra de ferramentas, obstrução da circulação... -, os operadores ou reguladores devem corrigir permanentemente o algoritmo teórico. Eles apelam para procedimentos mais flexíveis, menos restritivos, mas mais eficazes. Isso não poder ser uma mera vigilância passiva. A profissão de professor evolui para uma profissionalização certa. A lei de orientação do sistema educacional francês, de julho de 1989, buscou implantar uma verdadeira formação profissional do ensino por meio dos Institutos Universitários de Formação dos Professores. O relatório Bancel, do mesmo ano, preconiza claramente uma "profissionalização" do professor, que não se define mais em relação a uma simples difusão do conhecimento, mas como tendo de administrar situações complexas de aprendizagem: o professor deve tornar-se um profissional capaz de refletir sobre suas práticas, de resolver problemas, de escolher e de elaborar estratégias pedagógicas. De uma maneira mais geral, o profissional deve saber administrar dois tipos de critérios para operacionalizar práticas profissionais aceitáveis:
O critério das ~rescrifões"que dizem respeito ao referencialprofissional da ocupafão. Ele delimita o domínio dentro do qual a realização das atividades e dos desempenhos é aceitável do ponto de vista da especialização da ocupação: normas de segurança, respeito às exigências profissionais da ocupação, exigência do instrumento. O prestador de serviços pode beneficiar-se de uma "renda informacional" diante do comprador. E o caso do advogado ou do pesquisador, cujas atividades podem ser totalmente observadas pelo cliente. Os critérios de qualidade da prestação são variáveis, e seu grau de previsibilidade depende daquele contexto: não se pode especificar de antemão tudo o que o advogado deverá fazer.
Os critérios de "especificafóes".São as características das atividades e dos produtos que são esperadas pelos clientes (especificidades técnicas do produto, especificidades relacionais, garantia de qualidade, etc.). Inspirando-nos nos trabalhos de Nicolet (1990) sobre a confiabilidade dos sistemas complexos, teremos o quadro seguinte: Quadro 2.1
Domínio do prescrito
Domlnio das especificações
Fonte: segundo Nicolet (1990) O Le Boterf
As variações aceitáveis das atividades e dos produtos ficarão situadas na zona comum de interseção do prescrito e do especificado. Os desempenhos que correspondem ao domínio presente, mas não-especificado, são aqueles que satisfazem às normas intrínsecas da profissão ou às exigências do instrumento, mas que "esquecem" o cliente. Qualquer um de nós encontra facilrnente exemplos de belos objetos técnicos que são subutilizados ou não-utilizados por falta de uma adaptação à demanda da clientela potencial. Os desempenhos que satisfizerem as especificações, mas que se situarem fora das normas prescritas, farão os clientes correr, por vezes, riscos graves. Os clientes podem considerar como apropriado um produto, um serviço ou um equipamento, mas correm o risco de sofrer seus inconvenientes ou seus perigo. A zona de aceitabilidade nem sempre é fácil de delimitar e de'adrninistrar. E o caso das situações de prestações de serviços caracterizadas por uma "assimetria de informação" (advogado, conselho, etc.) .
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GUY LE BOTERF
Os casos anteriormente apresentados apelam para um certo número de componentes essenciais do saber agir com pertinência. Eis os principais: Saber agir com pertinência supõe "saber julgar". Fazer um julgamento de uma situação, um objeto ou uma pessoa depende da iniciativa e, portanto, do risco. O julgamento raramente está na ponta do algoritmo. Ele supõe u m salto na interpretação. O caso dos peritos que têm de fazer julgamentos de autenticidade é particularmente interessante de estudar. Quer trate-se dos leiloeiros, dos historiadores da arte, dos arqueólogos ou dos agentes de alfândega, todos têm de decidir entre o verdadeiro e o falso. Christian Bessy e Francis Chateauraynaud desenvolveram um modelo muito esclarecedor sobre o processo de perícia desses profissionais. Como fazem para autenticar um objeto com O máximo de certeza possível? Como agem diante de falsários ou falsificadores a quem se deve reconhecer o título de... profissionais? A analogia entre o alpinista e o perito é esclarecedora. Diante de uma parede determinada, o alpinista deve saber efetuar as preensões apropriadas. Estas não preexistem em suas representações (cada fachada é singular) e não aparecem assim na parede, que não contém senão saliências, asperezas que constituem dobras ou recantos e podem ou não dar lugar a preensões e a seu encadeamento. A preensão emerge do comprometimento pessoal do alpinista que confronta seus pontos de referência ou suas representações às dobras concretas da parede a escalar. A preensão é uma resultante: não está nem totalmente do lado do sistema de representação do alpinista (lá onde preexistiria), nem exclusivamente do lado da parede (onde suas escolhas sucessivas seriam traçadas de antemão). Exatamente como o alpinista, o leiloeiro elabora preensões. Estes constituem uma articulação entre pontos de referência previamente existentes e "dobras" que percorrem os materiais ou os objetos. A competência do leiloeiro é a do "saber tomar", do saber "apreender". E interessante observar que, em Drouot, bem como nos serviços da alfândega, o perito não pode contentar-se com referências fornecidas pelos corpora de conhecimentos formais (definições convencionais, marcas, etiquetas, milésimos, etc.). Não íhe bastam as coleções de objetos preexistentes, nem as redes de compradores que permitem resgatar o traçado ou as origens de um objeto, nem as medidas provenientes da instrumentação cada vez mais sofisticada dos testes físicos (carbono 14, microscópio eletrônico, etc.). A prova sensorial, a do "corpo a cypo", do comprometimento pessoal é decisiva no confronto com o falsário. E ela que torna possível a "postura de compreens?~"que permitirá ao perito desempenhar plenamente seu papel de mediação. E reunindo, recortando e combinando essas fontes múltiplas de informações que o perito fará emergir as preensões sobre as quais se baseará o julgamento de perícia. Ojulgamento do perito é uma "arte da preensão". Dife-
rentemente do leigo ou do novato, que se reportaria às referências mais comuns, o perito saberá navegar entre a lógica do dispositivo de investigação e aquela que tange à configuração ou à topologia própria do objeto ou do terreno. É nesse entremeio que se exprime e se reconhece a perícia. Realizar atos pertinentes é realizar atos que tenham um sentido em relação àquele que os projeta e que sejam suscetíveis de ter efeitos sobre o contexto que convém modificar. A pertinência se traduz, aqui, em saber o que fazer. Um ato não é uma simples operação. O computador opera, mas não age. Todo ato supõe um objetivo, que não existe como tal senão por meio do sentido que íhe dá o sujeito agente. Existem atos gratuitos fora dos personagens dos romances de Gide? Realizar um ato é dar provas de intencionalidade. Por essa razão, seria necessário distinguir o ato das diversas "sequências de atos" que constituem sua textura. Recarregar uma bateria de acumuladores, mudar uma peça, colar um selo em uma carta ou fechar uma comporta são "átomos de atos" que só assumem sentido na série à qual estão integrados. Retomemos o quadro proposto por A. Moles e R. Rohmer: Quadro 2.2
Macroação
Receber o Presidente da Nação para jantar
Fonte: Moles e Rohmer 1977 O Le Boterf
Fazer uma contabilidade
Construir u m carro
Fazer u m quadro
Essa categorização das ações é interessante, pois levanta a questão: o que é "fazer um ato significativo?". Da microação ("dar uma volta em um parafuso,') à macroação ("construir um carro"), o ato é significante quando se insere em uma estrutura (um projeto, um objetivo, etc.) que lhe dá sentido. Com certeza, é importante fixar um limite para a decomposição das ações para evitar o risco de entrar no domínio da física ou da biologia ("deglutir" é O limite extremo). Talvez a ação-limite seja aquela abaixo da qual o sujeito não pode mais descrever como faz para realizá-la. Estudando o trabalho de escritório, Sebillote identificou assim ações tais como: datilografar, buscar, guardar, etc., que podem ser consideradas como "primitivas". São ações cuja realização é composta de movimentos e de micromovimentos que não podem ser comandados separadamente: o conjunto da ação é considerado uma unidade. O ato mínimo é um gesto significativo, e não um simples movimento. Fazer sem agir é operacionalizar uma técnica, ou realizar um movimento sem projetar seu sentido e os encadeamentos que ele supõe. "Encaixar a ferramenta na broca" só tem sentido para construir um carro, o que supõe que haja coordenação com o ato de "Fazer um furo rosqueado", o que só faz sentido para montar um motor. O agir profissional estabelece uma coordenação de atos interdependentes uns dos outros. A competência exige saber coordenar operações, e não somente aplicá-las isoladamente. Sabe-seque alguns doentes mentais com apraxia são capazes de realizar atos isolados sem poder coordená-los. O profissional competente não poderia sofrer de apraxia: ele sabe coordenar sequências de atos com vistas a um objetivo que tenha sentido. Saber fazer não é um sinôni-
mo de saber agir. Encontra-se essa abordagem da competência como coordenação em Yvon Minvielle quando ele a assemelha a um "gesto profissional", entendido como uma coordenação de sequências de atividades. Intermediário entre os saberes e os resultados, o gesto profissional "medeia a competência e lhe permite chegar ao desempenho7'.Esse ponto de vista é igualmente próximo daquele de G. Vergnaud, para quem a competência é uma "totalidade dinâmica funcional" que articulavários elementos (objetivos, regras de ação, invariantes operatórias, inferênci? em situação) finalizados em uma classe dada de situações ou de problemas. E "uma organização invariante da conduta para uma classe dada de situação". A competência supõe a apreensão de um continuum que dá um sentido à sucessão dos atos. Yves Barel evidenciou como a "digitalização" de um continuum faz desaparecer seu conteúdo. Ele toma o exemplo de um desfile passando diante de nossa janela. Nosso olho digitaliza o desfile. Para que o sentido dessas imagens fragmentadas - ou seja, a mensagem de um desfile se manifeste, é necessário que intervenha uma metamensagem que indique: "Isso não é o que parece ser". Isso supõe um "integrador" superior que dá um sentido, que permite ver uma parte como uma totalidade para que a compe-
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tência se expresse em um continuum de atos. Sua compreensão supõe superar a digitalização de suas sequências ou de seus elementos constitutivos. A ação é, portanto, diferente do comportamento pelo fato de que ela tem uma significação para o sujeito. O comportamento se reduz a uma série de movimentos observáveis, de atos motores. A competência é uma ação ou um conjunto de ações finalizado sobre uma utilidade, sobre uma finalidade que tem um sentido para o profissional. Há várias condutas possíveis para resolver com competência um problema,,e não u m único comportamento observável designado como objetivo unívoco. E uma totalidade dinâmica (um continuum que só é perceptível por um observador externo), um "curso de ação" que pode, segundo Pinsky, "ser contado e comentado pelo operadory',isto é, "significativo" para ele. Tomemos o caso de um padioleiro em um hospital. Uma de suas tarefas é transferir o paciente para o bloco operatório. Mas ele vai reinterpretar isso dando-lhe um sentido: fazer com que o paciente sorria e não fique angustiado. Isso dá um valor, um sentido ao que ele faz. ' Notemos que o saber agir significa às vezes não agir. Talvez fosse melhor falar de saber reagir. Uma boa reação pode ser, algumas vezes, a não-intervenção. E o caso do não-desencadeamento de um procedimento de recuperação, se a causa do desvio constatado é diagnosticada apenas como transitória. Portadora de significações, a ação abre o caminho ao virtual, e não somente ao possível. Contrariamente ao possível que é dedutivel, o virtual não pode ser previsto: só é identificável a posteriori. As melhores hipóteses são as menos prováveis. Uma atividade que não tivesse sentido induziria provavelmente um "custo subjetivo" muito grande para que o sujeito a operacionalizasse. A desarticulação entre o objetivo perseguido e as variáveis que motivam o sujeito é uma fonte geradora de estresse, de incômodo, de cansaço e de problemas comportamentais diversos. O agir profissional supõe uma certa vontade. Nem todas as situações de decisão são situações de resolução de problemas. Portanto, o profissional deve não resolver, mas decidir, e isso em função de múltiplos imponderáveis, inexprimíveis, intenções ou pulsões, etc. Isso, o computador não sabe fazer. A competência se personificará, então, em práticas profissionais que terão um impacto sobre os desempenhos realizados. Na linha dos trabalhos de Hoc (1987) e de Richard (1990), distinguir-seão dois grandes tipos de práticas profissionais:
As práticas profissionais de execução. Consistem em operacionalizar diretamente procedimentos particulares que foram memorizados e que se aplicam sem modificação a um contexto d e trabalho específico (que poderão ser designados como práticas de execução automatizadas ou rotineiras), ou em adotar procedimentos existentes (vamos chamá-los de práticas de execução não-automatizadas). As atividades rotineiras não são reflexos inatos, mas são adquiridas ao termo de uma longa aprendizagem. São executadas mais por
peritos do que por iniciantes. As atividades de execução não-automatizadas são dirigidas por regras. Supõem a mediação de uma representação cognitiva e implicam um processo de operacionalização dos conhecimentos memorizados. Elas apelam para regras operatórias que podem ser ou heuristicas (regras gerais que podem aplicar-se a vários tipos de situações), ou esquemas procedimentais (que se aplicam a contextos específicos). As práticas profissionais de resolupío de problemas. Elas não podem apelar a procedimentos memorizados capazes de ser aplicados ou adaptados. Estes ou não existem. ou fracassaram e se revelam inoberantes no caso encontrado. Elas visam a elaborar novos procedimentos a partir da construção adequada de uma representação operatória da situação-problema. Essa problematização será frequentemente progressiva. Ela passará por reestruturações sucessivas no decorrer do processo de resolução. O operador deve construir um "espaço de pesquisa" no seio do qual conceberá um encaminhamento possível de soluções apropriadas e de suas etapas intermediárias. As práticas de resolução de problemas poderão consistir em particularizar um esquema geral, isto é, em adaptá-lo a um contexto particular e em precisar suas condições de aplicação, o u em elaborar um novo procedimento por meio de tentativa e de erro, recorrendo a conhecimentos variados que concemem ou não ao domínio de aplicação. Há elaboração de estratégia de resolução de problemas. As estratégias escolhidas dependerão dos tipos de problemas a tratar. O perito deve ser capaz de caracterizar o nível do problema que se relaciona com o que ele deve afrontar. A distinção entre esses dois tipos de práticas - de execução e de resolução de problemas - não diz respeito a uma diferença objetiva devido apenas às características da situacão encontrada. De acordo com as hivóteses anteriormente enunciadas, a relação operador-situação é um todo cujos pólos não podem ser dissociados. O que causa problema para um operador pode não passar de uma prática de execução para outro. E vice-versa. O operador é sempre um sujeito em situação, e a situação só intervém enquanto ela é perce.. bida pelo sujeito. Saber mobilizar em um contexto
O profissional não é aquele que possui conhecimentos ou habilidades, mas aquele que sabe mobilizá-los em um contexto profissional. A companhia Air France define a competência como um "saber agir em situação". Possuir saberes ou capacidades não significa ser um profissional competente. Pode-se conhecer técnicas ou regras de gestão contábil e não saber aplicá-las no momento oportuno. Pode-se conhecer direito comercial e redigir mal os contratos. A competência é sempre "competência para". A competência requer uma instrumentalizafão em saberes e capacidades, mas não se reduz a essa instrumentaliza~iío.Pode ser um recurso incorporado
(saberes, habilidade) e um recurso objetivado (máquinas, documentos, bancos de dados). São esses recursos que o profissional mobiliza. Não é porque se passou em um teste de soldagem que se sabe soldar. Há um limite para a noção de aptidão. Certas pessoas podem saber mobilizar conhecimentos em um contexto que lhes é familiar, no qual se sentem seguras; elas não poderão fazê-lo em um contexto de estresse. Um estudo realizado com jovens brasileiros evidenciou que 98% deles resolviam seus problemas de matemática em um contexto familiar e que somente 37% resolviam em um contexto escolar (Carramer, 1985). Todo dia, a experiência mostra que pessoas que possuem conhecimentos ou capacidades não sabem mobilizá-los de modo pertinente e no momento oportuno em uma situação de trabalho. A atualização daquilo que se sabe em um contexto singular (marcado por relações de trabalho, cultura institucional, contingências, restrições temporais dos recursos, etc.) é reveladpra da "passagem" à 'competência. Esta se realiza na ação. Não preexiste a ela. E um pouco como o pensamento que não preexiste à linguagem, mas que se realiza e se transforma com ela. Um bom profissional sabe não somente dominar uma técnica, mas também executá-la em um contexto de competitividade e de estresse. Descrever a competência não pode limitar-se ao estabelecimento de uma lista de conhecimentos ou de habilidades nem mesmo à constatação de sua aplicação. A competência pode ser comparada a um ato de enunciafão que não pode ser compreendido sem referência ao sujeito que o emite ou ao contexto no qual ele se situa. Utilizando o neologismo proposto por Varela e Maturana em suas pesquisas em neurociências, parece importante apreender ao mesmo tempo o ator e a ação, isto é, a énaction [enação] (do termo inglês to enact, "fazer emergir"). A competência é sempre competência - de um ator - em situa@o. ?a "emerge" mais do que precede. Aimagem do pensamento, que não se exprime, mas se realiza na palavra, a competência não se exprime pela ação, mas se realiza na ação. Não há competência senão em ato. A competência não pode funcionar "a vácuo", fora de qualquer ato que não se limita a expressá-la, mas que a faz existir. Cousinet já dizia: "saber não é possuir, é utilizar". Há sempre um contexto de uso da comp~tênciczAssim como ;ma cóleção de bolas nãõ constitui uma partida de bocha, k n conjunto de saberes ou de habilidades não forma uma competência. O profissionalismo se desenvolve em uma prática de trabalho. A competência emerge na junção de um saber e de um contexto. A mobilização -das competências deve exercer-se sob dupla imposição: a imposição objetiva, externa, do contexto, e a imposição subjetiva que o sujeito atribui para si. Com efeito, é em função da percepção que o sujeito tem das imposições existentes que julgará se pode ou não ativar a operacionalização do que ele sabe. No dispositivo de formação por alternância implantado pela EDFGDF (Eletricidade de FrançdGás de França) para formar os aprendizes que dispõem de um contrato de aprendizagem, a avaliação é feita sobre o agir. As avaliações de competências são efetuadas a partir das atividades dos referen-
ciais de trabalho. Os formadores propõem aos tutores fichas de avaliação, que poderão ser utilizadas nas situações reais de trabalho. Chris Argyris exprime essa característica da competência dizendo que se trata de passar do "saber aplicável" ao "saber acionável". No primeiro deles, O sujeito conhece as conseqüências prováveis de seus atos; no segundo, não somente possui esse conhecimento, mas também sabe como se servir do saber aplicável na vida real, na prática cotidiana. O profissionalismo se constrói na articulação de três lLdomínios",que podem ser visualizados no esquema apresentado no Quadro 2.3, que mostra toda a ambigüidade de expressões como, por exemplo, "mobilizar suas competências". A competência profissional não reside nos recursos (conhecimentos, capacidades, etc.) a mobilizar, mas na própria mobilização desses recursos. Ela é da ordem do "saber mobilizar". Para que haja competência, é preciso que haja colocação em jogo de um repertório de recursos (conhecimentos, capacidades cognitivas, capacidpdes relacionais, etc.). Esse equipamento é a condição do profission$smo. E o ponto de partida que torna possível a competência profissional. E preciso que haja operacionalização e transformação para que a instrumentalização aceda ao estatuto de competência. Os saberes-recursos não constituem a competência, mas aumentam ou diminuem as chances de ser competente.
Quadro 2.3 A Mobilizaçáo Profissional
As situações
Observemos o caráter particular dessa mobilização. Ela não é da ordem da simples aplicação, mas daquela da construção. Assim como o diagnóstico do médico não é a mera aplicação das teorias biológicas, a simples engenharia de uma ação de formação não é a aplicação das teorias da aprendizagem ou da psicologia cognitiva. A passagem do saber à ação é uma reconstrução: é um processo de valor agregado. Não pode ser a aplicação de teorias ou de elementos de teorias elaborados em um outro contexto, de modo analítico. Oprofissio-
na1 é,um produtor de competências. O profissio?alismo designa uma realidade dinâmica, mais u m processo do que u m estado. E aplicando suas competências que um indivíduo se torna um bom profissional. Nesse sentido, foi feito o acordo ACAP 2000, em 1990, entre o GESIM (Grupo das Indústrias Siderúrgicas e Mineiras) e organizações sindicais. Nele, a competência é definida como "um saber-fazer operacional validado". O termo validação salienta bem a necessidade de que os conhecimentos ou a experiência do empregado sejam confirmados no domínio de funções efetivamente exercidas. Sem esse reconhecimento da execução, não poderiam existir competências. O profissional demonstra suas capacidades na ação. É necessário que o profissionalismo se exerça regularmente para que se constitua e se mantenha. As panes, os incidentes, os problemas ou os projetos são oportunidades necessárias à sua manutenção e ao seu desenvolvimento. Ao contrário da pilha, a competência só gasta se não nos servimos dela. A busca da dificuldade é uma ocasião para aprender: ela pode até mesmo garantir um "lucro a partir da situação", que diminuirá a permutabilidade e que será negociável: "não há, então, nada de surpreendente no fato de que operários de manutenção sejam mais fáceis de "motivar" para uma atividade de conserto pontual do que para uma atividade de prevenção que procura fazer desaparecer a pane e que, além disso, obriga-os a colocar na mesa seu saber e sua habilidade". Freidberg (1993) acrescenta: "de um certo modo, não somos todos, cada um em sua área, operários de manutenção que guardam seus "truques" para si e valorizam os momentos em que são vistos como L'reparadores",isto é, como os salvadores?". Buscando o reconhecimento dos outros, nem mesmo podendo ficar sem isso, o profissional gosta da complexidade e da incerteza. Um problema ou um caso novo a tratar é a ocasião para aperfeiçoar um novo método de abordagem e para inscrevê-lo em seu repertório profissional. Estruturando progressivamente seu saber e sua experiência, os profissionais constituem um grupo exigente, que dispõe com frequência de um poder importante e com o qual o gerenciamento da empresa deverá compor.
Profissionalismo
A competência em situação
m 0i
E
,O
As situações deformação O Le Boterf
Não há competência senão posta em ato, a competência só pode ser competência em situação. Ela não preexiste ao acontecimento ou à situação. Ela se
exerce em um contexto particular. É contingente. Sempre há "competência de'' ou "competência para", o que significa dizer que toda competência éfinalizada (ou funcional) e contextualizada. Etimologicamente, o termo competência vem do latim competens: "o que vai com, o que é adaptado a". Esse caráter o aproxima da capacidade de análise e de resolução de problemas em um ambiente particular. Saber agir em um contexto de trabalho é avaliá-lo e adaptar-se a ele. A plasticidade está no coração da competência. Ela é mediada por um conjunto de imposições e de recursos. A competência não é uma constante. Ela pode e deve variar em função da evolução da situação em que intervém. Supondo a colocação à prova da realidade, a mobilização pertinente dos saberes e de habilidades é progressivamente aprendida. Somente ao final de um certo período de tempo o indivíduo poderá ser reconhecido como competente em seu contexto de trabalho. Os atores são sempre "situados". Estão inseridos em um contexto de ação que constitui seu entorno de trabalho imediato, o que Thomson chama de seu "ambiente de trabalho". As competências que eles põem em ação serão condicionadas pelo duplo efeito descrito por Bourdon: um "efeito de posição" (que depende da posição do ator em um contexto particular e condiciona seu acesso às informações pertinentes) e um "efeito de disposição" (que depende de suas capacidades mentais, cognitivas, afetivas e que o levará a uma interpretação diferente da mesma realidade). Os trabalhos de Louis Queré esclareceram de modo notável o caráter situado de toda ação. A ação situada se inventa em sua realização. Ela se assemelha mais a uma intriga que se relaciona à execução de um plano preestabelecido. Ela aproveita oportunidades, reage aos acontecimentos e às circunstâncias, auto-organiza-se e se auto-orienta. Dito isso, a ação situada não é cega. Ela se apóia em esquemas operatórios e se orienta em função de um objetivo. Harold Garfinkel tentou apreender como a ação vai constituir-se progressivamente, assumindo a singularidade dos acontecimentos que se apresentam. O desenrolar da ação pode ser comparado frequentemente ao de uma conversa, que não responde a um plano previsto de antemão, mas os protagonistas nela descobrem uma estrutura em relação à qual eles podem intervir. Agir não é delegar e depois decidir, é se comprometer na condução de um curso de ações que deverá ajustar-se à singularidade dos acontecimentos, das circunstâncias, dos atores e das condições de tempo e de lugar. A ação que se reduz à execução não passa de um caso entre outros. A mobilização dos recursos representa um certo custo que os ergônomos qualificaram de "custo cognitivo". Baseando-se na classificação das ações propostas por Rasmussen (1976), pode-se considerar que esse custo é mais ou menos elevado, conforme se trate, para o sujeito, de mobilizar recursos para realizar:
- atividades de rotina, fundadas em hábitos (comportamento baseado em habilidades);
- atividades regidas por regras e que exigem, conseqüentemente, um con-
trole permanente de seu respeito (comportamento baseado em regras); atividades que devem basear-se nos conhecimentos e nos esquemas possuídos pelo objeto (comportamento baseado em conhecimento).
Os três tipos de atividades representam uma ordem crescente no custo de mobilização dos recursos. Quanto mais um sujeito desenvolve seu nível de profissionalismo - e, portanto, quanto mais especialista se torna - menor será seu custo cognitivo, dispondo e executando esquemas operatórios que guiarão de modo econômico as combinações de recursos a realizar. Isso custará mais para o iniciante. Mobilizar os recursos de uma rede
O profissional não pode saber tudo. Ele deve saber mobilizar na hora certa não somente seus próprios conhecimentos e habilidades, mas também os de suas redes profissionais. O saber e o saber-fazer de um profissional não se situam apenas em sua pessoa. Estão ligados a toda uma rede de relações pessoais, de pessoas-recursos, de bancos de dados, de cadernetas de anotações, de livros ao alcance da mão, do que às vezes é chamado de "o quarto cérebro". Ele deve dar conta da natureza distribuída do saber e de sua aquisição. O profissional não é competente sozinho. Uma das questões mais importantes na engenharia das competências é saber com quem e com o que uma pessoa é competente. A competência está cadavez mais distante do modelo da raiz única, aproximando-se mais do de rizoma, que se desenvolve buscando as outras raízes para se unir a elas. A competência do profissional depende da rede (ou das redes) de saber à qual ele pertence. Estamos próximos da noção de "escola invisível" à qual se referem os anglo-saxões. A capacidade do profissional é função de seu poder de acesso e de sua capacidade de tratamento relativo a uma rede de conhecimentos. A especialização de um perito é tanto social quanto individual. Sua memória é uma memória de rede. Ela representa o que ele é capaz de mobilizar como conhecimentos, onde eles se encontram. Isso pôde ser constatado, na França, quando algumas instituições públicas de conselho e de estudos foram "deslocalizadas" e perderam um grande número de consultores ou de pesquisadores. O déficit em competências não se revelou apenas um déficit de pessoas, mas também uma perda de redes de saber com as quais elas se relacionavam. O recurso imaterial da inteligência não depende unicamente dos
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GUY LE BOTERF
neurônios dos cérebros, mas de múltiplas sinapses sociais. A "fuga dos cérebros" é também uma perda de redes. As competências são sempre contextualizadas. O saber e o saber-fazer não adquirem o estatuto de competência senão quando comunicados e permutados. Tal comu+cação é necessária para fornecer o conhecimento contextual indispensável. E exatamente esse o limite do saber-fazer elucidado pelos cognitivistas com vistas a uma codificação nos sistemas especialistas. As competências não são redutíveis ao saber-fazer individual. O perito constrói seus conhecimentos das trocas que efetua com seus colaboradores, e a competência é criada pela situação comunicacional. A competência do perito é sempre fruto de uma combinação nova obtida por confronto com outros saber-fazer individuais compartilhados. Não pode haver competência onde não há transaçáo. A competência é individual e social ao mesmo tempo. E até mesmo social antes de ser individual. Seu recorte individual - a competência desejada no indivíduo - depende do sistema de papéis estabelecido entre os atores. A distribuição das competências requeridas não concerne a indivíduos isolados, mas a parceiros de um mesmo sistema. E, como analisou muito bem V. Descombres: "os parceiros têm coisas diferentes a realizar, mas são coisas complementares". A competência não é uma questão privada. Os modos de raciocínio, as representações, os sistemas de classificação, as significações dadas a?s projetos ou aos problemas encontrados têm uma dimensão sociocultural. E a cultura que fornece ao profissional a "caixa de ferramentas simbólicas" com a qual ele executará os processos cognitivos pertinentes ou modelará seus esquemas de comportamentos adaptativos, chamados por Bourdieu de habitus. O profissional sabe tirar partido dos recursos que lhe oferecem sua ou suas culturas. Ele saberá buscar nessa(s) cultura(s) as ferramentas simbólicas (modelos, representações, analogias, etc.) graças às quais colocará em ação processos cognitivos pertinentes. O profissional que age, que está envolvido em um procedimento de conhecimento ou de compreensão, é guiado por sistemas de valores e de significações, por modelos (de opiniões, de crenças, de comportamentos) que são socialmente partilhados. Já em 1934, Vygotsky observava que "a linguagem do entorno com suas significações estáveis, constantes, predetermina as vias que segue o desenvolvimento das generalizações na criança. Ela liga a atividade própria da criança, canalizando-a em um sentido determinado, rigorosamente definido. Mas, enquanto segue essa via determinada, preestabelecida, a criança pensa de acordo com o modo próprio a seu estágio de desenvolvimento intelectual. Os adultos, na relação verbal com ela, podem determinar o curso do desenvolvimento das generalizações e seu fim, mas não podem lhe transmitir seu modo de pensamento. A criança assimila as significações das palavras que lhe vêm dos adultos sob uma forma já elaborada". A construção das representações, a imagem de si e o sentido dado aos projetos de ação são fortemente influenciados pelo sistema social e cultural do qual o sujeito faz
parte. Para cada sujeito, existe um "campo de possibilidades", que constitui o objetivo que procura superar sua situação objetiva. Esse campo é, por sua vez, determinado por sua condição histórica e social. Reagimos a uma situaçãoproblema ou elaboramos um projeto em funqão de nossa cultura de pertença, quer esta diga respeito a nosso meio social, à organização na qual trabalhamos ou à profissão à qual nos referimos. De um modo geral, pensamos com as metáforas as análises e as imagens de nosso meio. Pierre Lévy (1991) evoca isso muito bem quando constata: "Não pensamos nada de impalpável, não compreendemos nada de abstrato a não ser nos termos do concreto, do sensível, da imagem familiar. É também nesse sentido que o mundo, o mundo sentido e vivido, pensa em nós [...I. O pensamento de um caçador paleolítico ou de um camponês francês do século XVI não é o mesmo de um parisiense do final do século XX.". Desse modo, as metáforas de tipos cibernéticos e informáticos são importantes na biologia contemporânea. Não somente pensamos com objetos significantes, portadores de representação, mas os objetos e os signos continuam a pensar em nós mesmos quando não estão mais presentes fisicamente. O mapa continua a organiz i nossa apreensão do território quando não o temos mais sob nossos olhos. No que tange às tentativas de compreensão do cérebro, Searle nos lembra .divertidamente que todos os modelos explicativos foram historicamente dependentes das tecnologias existentes: Freud compara o cérebro a um sistema hidráulico; Sherrington, a uma instalação de telégrafo; Leibniz, a um moinho; sem contar os gregos, que o assimilavam a uma catapulta... Razão para ser modesto sobre as analogias atuais com o computador digital! Essa inserção cultural ampla explica por que muitas descobertas científicas foram efetuadas independentemente umas das outras e simultaneamente em vários lugares do planeta. Se Newton não tivesse existido, é muito provável que Bernoulli, Maupertuis, d'Alembert ou Euler tivessem to-mado seu lugar. Saber. combinar . Integrar saberes múitiplos
Os saberes e saber-fazer são diversos, heterogêneos e múltiplos. Montmollin inclui, na definição das competências, elementos tão diversos quantos saberes e saber-fazer, condutas típicas, procedimentos-padrão e tipos de raciocínio... O profissional deve saber selecionar os elementos necessários no repertório dos recursos, organizá-los e empregá-los para realizar uma atividade profissional, resolver um problema ou realizar um projeto. Diante de um problema a resolver ou de um projeto a realizar, ele constrói , p a arquitetura cognitiva particular da competência, uma combinatóna pertinente de múltiplos ingredientes que terão sido selecionados conscientemente. Ele não se limita a uma simples adiqão de saberes parciais. A competência "em migalhas" não é mais a competência. A
competência profissional tange à gestalt. Um exemplo simples ilustra essa combinatória: saber andar de bicicleta supõe saber frear, saber pedalar, saber acelerar... É possível decompor o saber-fazer elementar, mas a competência global não se reduz a essa adição. Existe uma dinâmica interacional entre esses diversos componentes. As dificuldades encontradas nos trabalhos sobre inteligência artificial mostraram que o cérebro, em situação real de trabalho, não trabalha seguindo uma lógica sequencial. Ele integra simultaneamente os dados provenientes dos diversos sentidos, processando essas informações e efetuando inferências a partir da lembrança de situações análogas. Ele trabalha "em paralelo", não "em série". Dizer que uma competência tange a uma combinatória de recursos é considerar sua organização em sistema. Estamos próximos da definição de Gillet, para quem a competência é "um sistema de conhecimentos conceituais e procedimentais, organizados em esquemas operatórios e que permitem, dentro de uma famíiia de situações, a identificação de uma tarefa-problema". A competência deve ser pensada em termos de conexão, e não de disjunção, de parcelamento ou de fragmentação de ingredientes. Uma competência não pode ser apreendida ou compreendida ao termo de um recorte dos recursos que a constituem. A competência não está no final da dissecação. Por analogia com a química,.diremos que a competência é mais da ordem da combinação do que da mistura. O bom gestor não é aquele que aplica em qualquer circunstância o mesmo comportamento: ele sabe modular sua estratégia de gerenciamento em função das situações que encontra. O profissionalismo do agente comercial será reconhecido pelo fato de que sabe combinar um certo conhecimento dos produtos, uma capacidade de conduzir e de concluir uma entrevista de venda, uma aptidão para se identificar por empatia com o cliente e com seu universo cultural e por um saber-fazer "estratégico" que lhe permite perceber as oportunidades comerciais. O cobrador, em um trem, saberá correlacionar uma certa experiência dos comportamentos, um conhecimento dos capítulos pertinentes da regulamentaç$o e uma apreciação das circunstâncias particulares relativas ao cliente ou ao contexto social. A partir de 1992, após um relatório sobre a "melhoria da segurança nuclear em exploração", a EDF implantou um dispositivo de formações individualizadas com certificação (FIC) para os agentes das centrais nucleares de produção de eletricidade (CNPE). Em colaboração com a rede dos GRETA* da Educação Nacional, o dispositivo visa à aquisição dos conhecimentos gerais (matemática, ciências, expressão...) que entrarão em sinergia com os saberes e o saber-fazer profissionais.
"N.de T. O Greta é um grupo de estabelecimentos públicos locais de ensino que reúnem seus recursos humanos e materiais para organizar ações de formação contínua para adultos.
Os conteúdos pedagógicos se apresentam sob a forma de relatório de autoformação elaborados em função das ocupações da empresa e articulados às capacidades correspondentes aos diplomas associados a essas ocupações. O dispositivo é fundado no voluntariado. Um estudo de impacto realizado após mais de três anos de funcionamento revelava os efeitos dessa formação: melhora da auto-imagem, desenvolvimento da capacidade de comunicação, melhor compreensão das situações de trabalho e fortalecimento das capacidades de análise dos riscos. Essa experiência ilustra como a construção das competências apela para uma combinatória complexa de recursos em que estão estreitamente mesclados os conhecimentos gerais e os conhecimentos profissionais. Os conhecimentos gerais aparecem como tendo um efeito sobre as condições de operacionalização das competências e sobre o desenvolvimento da vontade e da capacidade de aprender. Essa integração de saberes múltiplos existe em atividades aparentemente consideradas não-complexas. E o caso do corte das árvores em uma empresa florestal. Não se trata apenas de saber manejar uma serra elétrica: "trata-se igualmente de organizar o espaço de corte, antecipar as etapas posteriores do canteiro em uma perspectiva de intervenção contínua sobre a floresta, diagnosticar o estado fitossanitário da árvore e a incidência das condições climáticas e geográficas para modular a técnica de corte. Aprender o corte é trabalhar durante várias estações sobre espécies diferentes, associar conhecimentos técnicos e contextualizações" (Savereux, 1994). Os profissionais sabem tratar a complexidade do ordinário. Os quadros seguintes ilustram a mobilização integradora de saberes heterogêneos para a competência de conserto e de colocação em funcionamento de uma instalação por um condutor de máquina, para a competência de um pesquisador em seleção de plantas e para a competência de engenharia de um responsável de formação. Nem tudo o que o profissional sabe é útil a todo momento. Tudo o que é armazenado na "memória longa" deve ser seleaonado e tratado na memória curta. Por vezes, esta foi comparada a "pressuposto" cuja capacidade de recepção e de tratamento seria limitada. E nesse nível que o serviço útil será construído e integrado. Há estruturação e reestruturação de saberes e dos saber-fazer. Há síntese, e não mera justaposição; recomposição permanente, e não mera adição. Esse saber combinar está próximo daquele do estrategista que sabe recompor permanentemente suas variáveis de ação em função do projeto que persegue e do movimento do contexto. O saber combinatório é a arte do kairos segundo os gregos, é a escolha de uma estratégia apropriada. Tangendo à razão prática, a competência é a capacidade de integrar saberes diversos e heterogêneos para finalizá-los na realização de atividades. A . lógica de integração dos saberes, dos saber-fazer e dos comportamentos se estabelece em função das exigências da situação de trabalho. No exercício das
um
DESENVOLVENDO A COMPETÊNCIADOS PROFISSIONAIS
Quadro 2.5
Quadro 2.4
Selecionador
Condutor de máquina automatizada Recursos pessoais a combinar Exemplos
Recursos incorporados Saberes: Saberes em genética Saberes sobre a planta (biologia, genética)
Conhecimento da instalação
Habilidades "ser capaz de" Cultivar a planta Montar' u m banco de dados em recursos genéticos Aplicar a biologia molecular à caracterização da diversidade genética
Conhecimento das etapas de fabricação dos produtos Conhecimentos
Conhecimento dos processos de transformação da matéria
.
Conhecimento em mecânica Saberes sobre o contexto do centro de pesquisa Conhecimento em eletromecânica Política do centro de pesquisa sobre a 'utilização dos recursos genéticos Acordos feitos Corrigir os parâmetros de produção
"Consertar e colocar em funcionamento
Capacidades cognitivas "ser capaz de": Operacionalizar u m raciocínio biométrico
uma coleção
realizar com competência)
uma instalação" Verificar a conformidade das aparelhagens
Qualidades pessoais (Atividade a realizar com competência)
Meticulosidade
Redes de recursos
..
Redes das outras coleções Redes temáticas (agrofisio, pato...) Investidores
Saber determinar sinais Saber apreender relações
Capacidades
O Le Botetf
Saber abstrair dados
-- Rntprf
BI
P
--.v.,
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Quadro 2.7 Competência lingülstica e competência profissional
-
O léxico
Enunciados desempenho lingüístico
As regras de gramática
saber falar
Conhecimentos
Práticas profissionais e seus desempenhos profissionais
saber agir
O Le Boterf
Uma combinatória individualizada
A competência requerida e a competência real:devem ser distinguidas. A competência requerida é aquela esperada pela orghizaqão ou pelo cliente. E possível descrevê-la em termos de atividade requerida. Uma unidade de pesquisa espera que um técnico de laboratório seja capaz de realizar manipulaqões e apresentar seus resultados formalizados. O responsável de um serviqo de produqão pode esperar de sua secretária que seja capaz de efetuar um movimento contábil do orqamento de seu serviqo. Esses dois exemplos indicam que a melhor definiqão da competência é bastante ampla. Para operacionalizar tal competência, o sujeito deverá apelar para diversos recursos que poderão ser identificados. O técnico de laboratório deve ser capaz de cronometrar as manipulaqões, de redigir fichas de síntese e de apresentar resultados normalizado~.A secretária deverá ser capaz de preparar previsões orqamentárias, de seguir os compromissos assumidos das despesas e das receitas e de manter
livros contábeis. Essas capacidades operacionais são apenas recursos para construir a competência. A competência real é descrita em termos de conduta operacionalizada. Diante da exigência de uma atividade a realizar ou de um problema a resolver, o profissional deverá elaborar uma estratégia de resposta. Várias condutaspodem ser pertinentes para enfrentar o requisito, pois várias conjugaqões de recursos podem ser efetuadas. Portanto, ser competente não significa adotar um único comportamento observável. Releiamos as declaraqões de Alain sobre a educaqão: "o método comum não tem o fim de tomar os alunos semelhantes, mas, ao contrário, torná-los ainda mais diferentes; pois, entre dois homens que sabem tocar violino, uma nova diferenqa se desenvolveu, que é o som próprio a cada um" ... No jornal Le Monde de 19 de novembro de 1996, o Grupo ISEG* das Grandes Écoles construía seu encarte publicitário sobre o tema: "o talento é a melhor expressão de si". O Quadro 2.8, a seguir, mostra que, entre o equipamento em recursos e a competência operacionalizada, se desenvolve o campo das conjugaqões, no qual se insere a subjetividade do profissional. É o terreno do saber agir. Em face das exigências em competências requeridas, o sujeito põe em andamento coordenaqões de ações e interpretações do que é esperado. A competência real comporta, então, inevitavelmente essa parcela de imponderável que não pode ser prevista. A competência reside na engenhosidade do sujeito, e não em sua capacidade para produzir cópias conformes. Há ineditismo e particularidade na competência. Querer controlar isso mecanicamente seria cair, de novo, nas ilusões behavioristas. O texto musical não exclui a riqueza das interpretações. Escutemos sucessivamenteos impromptus de Schubert interpretados por Edwin Fisher e, depois, por Murray Perahia. Um deles dará uma interpretaqão brilhante e poderosa do piano; o outro acentuará mais a cor e o detaihe, e ambas as interpretaqões são excelentes. Mesmo que para os pilotos de avião não existam vários modos de seguir uma rota e de se apresentar em um ângulo de descida na aterrissagem, podese neles reconhecer diferentes estilos de pilotagem: utilizaqão do piloto automático, relaqões com os controladores de voo, relaqões com o pessoal comercial, cooperaqão no cockpit, etc. A improvisaqão musical supõe um trabalho de preparaqão. Dentro do espaqo sonoro, há um encadeamento escolhido: contrapontos, pequenos temas, efeitos de ressonância, fórmulas rítmicas, fragmentos harmônicos, acordes, timbres, etc. E possível praticar exercícios sistematicamente para se desfazer dos hábitos e se arriscar em novas propostas musicais. A improvisação é favorecida pela repetiqão. Um aluno de violino no conservatório se exercitará na prática do spiccato na aula de técnica musical para utilizá-la em improvisa-
"N.de R. ISEG: Institut Supénor Européen de Gestion.
Isso revela toda a importância da escolha da malha para descrever a competência. Uma malha fraca demais (por exemplo, redigir uma ficha técnica, informar um indicador de painel de bordo, preparar uma amostra, etc.) a reduz a capacidades operacionais que servem para construir a competência, mas que não são da competência. A figura do tango ou o gesto do alpinista não é o saber coordenar. Um recorte excessivo leva ao risco de administrar "competências em migalhas", de uma taylorização das competências. Optar por uma malha demasiado ampla (conservação, gestão financeira) é deixar o nível das práticas para derivar para abstrações inadministráveis. Quanto mais a competência consistir em saber operaaonalizar sequências operatórias cada vez mais longas, mais se distinguirá dos saber-fazer pontuais. A coerência dessa disposição é função não da situação dada, mas também de sua representação que o profissional constrói. Em um mesmo emprego, a combinação dos saberes e do saber-fazer poderá ser diferente conforme as representações funcionais que tiverem os profissionais. De Bonnafos (1990) defende a hipótese "de um papel ativo dos indivíduos na aprendizagem de seu saber e a ausência de homogeneidade dos indivíduos que supostamente ocupam um 'mesmo' emprego. Em função do emprego no qual eles projetam, acentuam pontos particulares. Por essa razão, não operacionalizam, nem desenvolvem totalmente os mesmos saberes". As representações e os "estilos cognitivos" não são idênticos conforme as pessoas. Essa combinatória é de uma complexidade inaudita. E uma síntese cumulativa: a falha de um elemento pode colocar em perigo a qualidade do conjunto da competência. O que se passa "na cabeça" do perito em ação parece não ser delimitável: conhecimentos e tipos de raciocínios heterogêneos são operacionaiizados simultaneamente ou se cruzam, atalhos são tomados nas cadeias inferenciais, metáforas ou analogias intervêm ao longo do processo, induqões margeiam raciocínios probabilísticos, algoritmos entram em competição com lógicas heterodoxas (Iógicas vagas, modais, não-monótonas, etc.). Os cognitivistas não podem senão caricaturar esse processo de raciocínio descrito por Pierre Lévy (1992) como "uma multidão de argumentos, de pequenas cadeias inferenciais, de imagens, de preceitos que se combatem e se aliam entre si até que um campo vença os outros7'. Ele compara essa combinatória a um processo de escritura em ação: "pode-se certamente aconselhar um aprendiz de escritor (faqa um plano, organize transições, releia várias vezes...), mas quem conhece o método no sentido forte, o algoritmo que garante que se obtenha, no final das contas, um bom texto?". Não existe algoritmo para escrever um romance ou uma partitura. O trabalho de disposição que dará lugar ao saber agir e que se dá sobre o "estabelecido" da memória curta se assemelha mais a uma aventura do que a uma viagem organizada.0 encadeamento lógico só é dado a posteriori. O relato de uma história passada não preexiste à sua invenção. A competência é mais da ordem da composição musical do que da compilação. Em uma carta de 1789, Mozart descreveu sua estratégia de composição: nela, insiste no insight que se
produz, na escuta real de um todo sem jamais ouvir as pautas sucessivamente (Gleich alL zusammmen). Produz-se nele uma espécie de gestalt auditiva a partir da qual ele poderá, então, transpor em notas musicais. Uma analogia do domínio lingiiísticopode ajydar-nos a compreender melhor a especificidade da competência profissional. E do linguista Noam Chomsky (1971-1973) a introdução da noção de competência em linguística. Para ele, a competência lingiiística é o que permite a um sujeito produzir e compreender um número infinito de enunciados gramaticalmente bem-construídos (são "desempenhos") a partir de um vocabulário de base e de um número determinado de regras. A competência lingiiística não se reduz ao conhecimento das regras e das palavras, ainda que os suponha. O conhecimento das regras de gramática não é suficiente para falar bem. O domínio das regras nem sempre é consciente: falamos nossa língua materna sem nos darmos conta das regras que estamos usando. Se as frases produzidas são imprevisíveis, elas são, no entanto, coerentes em relação às regras da Iíngua. Esse desvio pela analogia lingüística pode ser muito esclarecedor, pois ela mostra que a competência não é assimilável aos conhecimentos nem aos procedimentos ou às regras nem ao desempenho. Ela está nesse saber integrar que os ultrapassa "em relação ao desempenho que é um fazer produtor de enunciados, a competência é um saber-fazer, 'esse algo' que toma possível fazer [...In. Se retomamos essa citação um tanto longa (Greimas, Courtes, 1979) foi porque exprime surpreendentemente bem a especificidade da competência, mas também a grande dificuldade em apreendê-la. Ela é exatamente "esse algo" que não cessa de desafiar a engenharia da profissionalização. A combinatória tem a ver com o talento artístico: "as combinações úteis são precisamente as mais belas", dizia Poincaré apropósito da invenção matemática. Não se fala também de "soluções elegantes"? O Quadro 2.7, a seguir, possibilita - de maneira certamente muito simplificada - visualizar a analogia que acaba de ser proposta. Saber combinar é também saber improvisar diante do imprevisto. A improvisação musical não depende do puro acaso e supõe uma rigorosa preparação:Segundo o pianista Martial Solal, é uma "composição instantânea". Ouçamos Louis Armstrong: ele improvisa sobre harmonias de base e se apóia em acompanhamentos. O mesmo acontece com o saber improvisar do profissional: é a partir da aprendizagem e do esforço repetido que podem surgir aqões ou reações justas e não-premeditadas. O improvisador encontra fazendo. E no desenrolar da ação que ele encontrará sua inspiração. Para Schumpeter, o empreendedor que inova é aquele que, diante da incerteza, sabe elaborar e criar novas combinações entre os diversos recursos da empresa. Ele funciona "na forma progressiva", e não no simples presente. Ele sabe apreender os acontecimentos contingentes, não-buscados, para transformá10s em oportunidades criadoras.
ção na classe de expressão. É a partir do domínio desses recursos que a improvisação se criará em um movimento incessante de combinatórias. A competência emerge de uma combinatória. A imagem da física quântica, que não pode determinar o ponto exato de um elétron, mas apenas a região da onda em que ele se situa, as competências que serão eietivamente construídas por uma pessoa não podem ser estritamente antecipadas. Sua aproximação apenas será possível a partir de certos pontos de referência constituídos por referenciais de competências. A competência real dos indivíduos é julgada em termos de probabilidades. Os trabalhos de Alain Berthoz (1997) mostram que nosso cérebro não se comporta como um computador que calcula antes de decidir. Seu método consiste mais em "avançar antecipando". Ele procura ganhar tempo procedendo por inferência, isto é, decidindo sem dispor da totalidade das informações que seriam necessárias. Ele faz um "preenchimento": reconstrói formas e configurações a partir de alguns indícios ou de fragmentos de informações. Dispomos, na memória, de uma "biblioteca" de esquemas, que utilizamos para antecipar e avançar. Há uma confrontação de nossas previsões com as informações transmitidas por nossos captores sensoriais. O cérebro emite hipóteses testadas por nós por meio de nossas atividades. A percepção é, portanto, uma "ação simulada e projetada sobre o mundo". O cérebro procede à maneira de um simulador (um simulador de voo) para "interpretar" diversas sequências. Não "representamos" somente uma cena para nós, mas a "interpretamos". Alain Berthoz cita o exemplo do campeão de esqui que deve "fazer a corrida em sua mente, prever as etapas e os estados dos captores sensoriais, entrever as soluções possíveis de cada erro, fazer apostas e tomar decisões antes que o gesto seja feito". Portanto, para ele, não se trata somente de processar informações recebidas por seus captores sensoriais e corrigir sua trajetória em função delas. A antecipaqão é tomada possível pela simulação interna do movimento. A utilização de nossa memória de respostas, contudo, pode ter efeitos negativos com a repetição de respostas estereotipadas que não são adaptadas aos contextos que se apresentam. Em outros termos, mais próximos do domínio das competências, poderíamos dizer que a repetição, nesse caso, toma o lugar da transposição. Utilizamos uma "biblioteca" de protótipos, de formas, de movimentos e de esquemas que combinamos para construir uma resposta pertinente. A riqueza se encontra frequentemente na combinatória. Alain Berthoz cita o caso da primeira bailarina, que utiliza um repertório motor pobre, mas cuja riqueza de expressão provém da combinação das coordenações no tempo e no espaço. Seguindo os trabalhos de Varela, poderíamos dizer que a competência emerge de um conjunto de interações efemadas entre recursos. Ela não é a conclusão de um tratamento sequencial. A riqueza combinatória pode buscar sua fonte não somente na variedade dos recursos, mas também em sua diversidade. Definindo a invenção ma-
temática, Henri Poincaré reconhecia que "dentre as combinações que se escolherá, as mais fecundas frequentemente serão aqvelas que são formadas de elementos tomados de áreas muito distantes". E o que Arthur I. Miller chama de "pensamento em rede". Este intervém combinando conceitos provenientes de áreas muito distantes umas das outras e integrando-os em imagens mentais ou metáforas que vão cristalizar a emergência da criatividade. A competência é descrita em termos de atividades. Estas são divididas de acordo com uma malha bastante ampla que apela para diversas disposições de ações ou de saber-fazer. Os saber-fazer são descritos com uma malha mais estreita. "Descrever de modo operatório um objetivo" é um saber-fazer, mas "guiar a engenharia de um plano de formaçãoJ'é uma atividade. Saber-fazer e atividades são descritos em termos de "ser capaz de", mas não devem ser confundidos. A distinção nem sempre é fácil e deve ser sempre retomada conforme os contextos. Um saber atualizar mais do que um saber aplicar
Em sua obra, Qu'est-ce que le virtuel (O que é o virtual), Pierre Lévy distingue quatro modos de ser (o atual, o virtual, o possível, o real) dos fenômenos e quatro movimentos que estão sempre presentes: a realização: ela dá matéria a um possível já constituído, a uma forma predefinida. Nesse movimento, o real produzido se assemelha ao possível. Há mais aplicação e operacionalização do que criação; a virtualização: não é uma "desrealização", mas a transposição de um problema particular a um "campo problemático" mais geral. Pela virtualização, há desligamento do particular, do contexto singular, para voltar às questões gerais às quais ele se relaciona. É a passagem do texto ao hipertexto. O fenômeno, a situação, o objeto se coloca "fora dali", deslocaliza-se, dessincroniza-se. Existe, conforme a expressão de Pierre Lévy, "heterogênese". O projeto virtual é mais um sistema de rede do que um lugar particular. A virtualização permite inventar problemas. Esse movimento vai de uma solução a uma nova problematização; a potencialização: ela consiste em criar novos recursos. Indo contra a entropia, ela cria reservas. E um movimento de criação de potencial, de enriquecimento do campo das possibilidades; a atualização: é a invenção de uma nova forma. Ela cria soluções e tange à interpretação. Diferentemente da realização, ela não se limita a atualizar um possível: ela leva a uma nova construção. Esse desvio teórico é interessante para melhor discernir o movimento que caracteriza a competência profissional.A competência é da ordem da atualização,
e não da realização. Ela não preexiste, mas é construída por um sujeito. Não é predefmida: é um acontecimento ou um processo. O profissional constrói sua competência ou suas competências a partir de recursos possíveis (capacidades, conhecimentos, habilidades, etc.), mas sua competência não se reduz apenas à aplicação desses possíveis. O saber mobilizar passa pelo saber combinar e pelo saber transformar. A competência se atualiza em contextos diferentes. Ela não é a simples realização dos recursos possíveis; ela vai além da reprodução ou da duplicação. Essa abordagem em termos de atualização reencontra a de Chomsky no campo lingüístico: a competência linguística é o que permite produzir, de maneira ilimitada, enunciados que não preexistem em uma lista de possibilidades prévias, em um repertório de frases pré-programadas. Há operacionalização,sistêmica e inventiva a partir de um código. E nessa perspectiva que convém retomar a análise da transferência das ,raquisições de formação (conhecimentos, capacidades, etc.) à situação de tra- ' balho. Esse processo da transferência foi muitas vezes compreendido em termos de processos de comunicação ou de aplicação. Entre as aquisições de ' formação e as competências operacionalizadas há transformação. A competência é construída pelo profissional. Há descontinuidade sob o efeito de uma atividade cognitiva de um sujeito. A competência não é a simples "cópia" dos recursos possíveis com os quais ela se constrói. A atualização que a caracterizp é uma construção cognitiva. I .--- A construção da competência diz mais respeito à metáfora da biologia genética do que ao esquema emissor-receptor de Shannon. A partir de recursos diversos, pode haver variação e, mesmo, mutação. A competência não é um sistema dependente, do qual bastaria regular os parâmetros. O entorno (social, profissional, pessoal) pode ser mais ou menos favorável a essa emergência da competência. Ele pode encorajar ou não, facilitar ou não essa intervenção ou essa composição. Também é possível jogar com apotenn'alização.A educação, a formação e . a experiência agem sobre as possibilidades. Disso pode resultar um aumento .. . do potencial. A educação permanente remonta à entropia. A r$alização das possibilidades representa, talvez, o grau fraco da competência. E o saber-fazer do executante, embora ele sempre avance mais do que a aplicação. A organização taylorista age em todo caso "como se" a competência se reduzisse a reproduzir, em situação de trabalho, a divisão dos recursos possíveis. A abordagem taylorista classifica e seleciona. O saber agir das organizações pós-tayloristas só pode ser compreendido em um movimento de atualização. A gestão das competências pode ser considerada sob o ângulo da virmalização: são as tentativas, as experimentações e os projetos de representações coletivas das "competências". Tangendo à atualização, a competência só pode ser pessoal. Ela se incorpora ao profissional. Não existe competência que não seja singular. A gestão das competências busca remontar competências indiviL
dualizadas ou de um campo de competência mais geral. Como imaginar o universo das competências da empresa ou da organização? Essa é a questão subjacente aos problemas de gestão "antecipada" ou "previsional" dos empregos e das competências. As "árvores de conhecimento" desenvolvidaspor Pierre Lévy e Michel Authier buscam essas representações dinâmicas e esses instrumentos de navegação. Elas querem contribuir para a possibilidade de uma melhor gestão "global" de competências, e não se limitar à gestão particular de um indivíduo. Os "átomos de informação" que entram nesses instrumentos tomam distância. Pierre Lévy diria "tomam a tangente" em relação a seu contexto específico de atualização. Essa descontextualização permite atingir uma problemática coletiva de gestão das competências, uma nova abordagem da inteligência coletiva. Saber transpor
O profissional não poderia limitar-se à execução idêntica de tarefas únicas e repetitivas. Ele sabe transpor. Isso supõe que tenha a capacidade de aprender e de se adaptar. Ele deve ter condições de resolver problemas ou de enfrentar situações, e não um problema ou uma situação. Em um novo ambiente, ele sabe utilizar conhecimentos ou habilidades que adquiriu e executou em contextos distintos. Pode ser transferência lateral (por generalização a categorias de problemas ou de situações do mesmo tipo) ou transferência vertical (por transposição sobre casos de complexidade superior). O profissional não se limita a saber repetir. São conhecidas as dificuIdades experimentadas pelas populações com nível de qualificação pouco elevado para transpor, para situações novas, operaqões que dominam em contextos familiares. Uma competência profissional é um roteiro que serve para agir em uma família de contextos e que receberá ajustes cada vez que for solicitada. Espera-se que as competências sejam cada vez mais transponíveis. Elas não poderiam permanecer inertes diante da variabilidade dos contextos. Este é provavelmente o sentido da revalorização das situações de trabalho em termos de "ocupação". Nos trabalhos de gestão previsional dos empregos e das competências conduzidos no Crédit Agricole pelo IFCAM,' as "competências funcionais" válidas para um grupo de empregos são destacadas. Na Renault, a identidade profissional tende a se redefinir em torno de um "campo de competências" exercido por um grupo de operadores. A abordagem-competência supera progressivamente o peso dos postos. Os próprios sistemas de classifica$50 estão evoluindo nesse sentido. Exemplo disso é o acordo ACAP 2000, na siderurgia francesa, que reconhece a possibilidade de distinguir a classificação do emprego e a qualificaqão de seu titular.
'N. d e R. IFCAM: Institut d e Fromation d u Crédit Agricole Mutuel.
As empresas denominam, frequentemente, de competências transferíveis aqueIas encontradas em ocupações ou contextos diversos. Duas empresas tão distintas em suas atividades e seus produtos quanto Danone (agroalimentar) e Casino (distribuição intensiva) puderam assim constatar, em 1996, no decorrer de uma operação de formação de jovens sem qualificação, que algumas "competências comportamentais" requeridas nas duas empresas eram as mesmas: capacidade de iniciativa, resolução de problemas em comum, capacidade de comunicaqão, etc. A Renault fez parte do processo de criaqão, em 1994, de um Certificado de Aptidão Profissional de exploraqão de instalaqões industriais inter-ramos, que vale tanto para as atividades de corte de frangos quanto para a fabricaqão de automóveis. O desenvolvimento das noções de "emprego tipo", de "ocupação" ou de "papel" revela essa preocupaqão com a transversalidade das competências. Operadores que, em um determinado momento, executam bem seu trabalho, mas serão incapazes de mudar de postos, poderiam ainda ser qualificados de. competentes? Não é certo que um bom executante possa sempre ser qualificado de competente. O Groupe Lyonnais de Sociologie Industrielle (GLYSS) [Gnipo Lionês de Sociologia Industrial] realizou, em 1984, uma experiência interessante. Os pesquisadores solicitaram a operários de uma empresa que desenhassem sua máquina, explicando como ela funcionava. A conclusão do estudo é clara: quanto mais os operários se beneficiam de uma formação inicial a obtenião do certificado de aptidão profissional - melhor conseguem descrever o funcionamento de sua máquina e do homem no trabalho. Como sempre defendeu vigorosamente Bertrand S c h q z , a formação geral é um componente essencial da formação profissional. E ela que permite que as competências evoluam e se adaptem às mudanças e às mutações das situações de trabalho. Essa é a razão do aumento de interesse pelo desenvolvimento de competências que podem aplicar-se a situações variadas, mais a "empregos" do que a postos, que permitem passar de um universo sociotécnico ou social a outro. Convém igualmente destacar a superaqão progressiva da polivalência em proveito da multifuncionalidade. Surgem os "profissionais de exploraqão" assim como surgiram, nos anos 80, os profissionais de manutenção e de instrumentação. Ainda que a demanda de transferibilidade seja muito grande, pode-se questionar a noqão de "competência transferível". Uma competência poderia, aliás, ser transferível se, por definição, ela se constrói em vista de um contexto singular? As capacidades ou os saber-fazer são independentes de seu campo de aplicaqão? Saber dirigir uma reunião na área do estudo dos fenômenos químicos não é algo transponível para a área da análise das situações financeiras. Um médico pode saber resumir um texto quando se trata de um documento médico e não saber fazê-lo quando disser respeito à legislaqão européia. Uma pessoa pode saber ler um esquema de engenharia de formaqão e não saber ler um de física quântica. As competências ou os recursos para as competências parecem, portanto, dificilmente transponíveis em si mesmos. Não haveria, por natureza, competên-
cias ou capacidades transponíveis e outras que não o fossem. Também, aqui, a transposição exige a combinação e a construção combinatória. Saber resolver equações diferenciais pode-se aplicar tanto à mecânica quanto à química. Se você é engenheiro-mecânico, porém, terá dificuldades em usá-las em química! Isso só não ocorrerá se você combinar o saber-fazer matemático com conhecimento de química. O caráter de transferibilidade ou de transponibilidade não deve ser buscado nas competências ou nas capacidades, mas na competência do profissional. Essa faculdade para transpor permite ao profissional reconhecer isomorfismos --- -nas estruturas dos problemas a tratar ou das situações sobre as quaisdeve intervir. A transferibilidade supõe que a nova situação seja primeiramente percebida em seu conjunto como passível de ser objeto de transferibilidade. E essa percepção que permitirá a determinação das semelhanças e das proximidades entre os estímulos. Releiamos Merleau-Ponty em Phénoménologie de la perception (Fenomenologia da percepção): "É por perceber um conjunto como coisa que a atitude analítica pode nele discernir, a seguir, semelhanças ou contigüidades". Ou ainda: "a contigüidade e a semelhança dos estímulos não são anteriores à constituição do conjunto". Concordamos com a posição de B. Rey quando aiirma que essa faculdade provém da riqueza da experiência e da intenção. A faculdade para transpor provém de pelo menos três fatores: a capacidade de distanciamento e de análiie de seus próprios procedimentos; a riqueza da experiência, do percurso profissional e extraprofissional. Aquele que é capaz de transpor é aquele que, segundo CauzinilleMarmeche e Mathieu (1981), dispõe, em seu equipamento de recursos, de um grande número de "procedimentos de respostas específicas". É a experiência acumulada do perito que lhe permite reconhecer identidades de estrutura; a intenção de abordar e de tratar novas situações de tal forma que elas revelem características que permitirão aplicar o que já é conhecido. e dominado. É isso que B. Rey chama de "intenção transversal". O profissional busca isolar, dentre todas as variáveis da situação normal, aquelas que lhe permitiriam transferir. A identidade da estrutura se encontra no final de uma elaboração e, portanto, de uma vontade. Acrescentaremos que essa intenção consiste provavelmente em querer utilizar esquemas que vão servir de instrumentos de transferibilidade. Transpor não é descrever uma situação com o auxílio de esquemas e tomá-la, assim, objeto de transposição? A faculdade para transpor é função da riqueza do equipamento cognitivo concebido como uma instrumentação. A transposição tange a um procedimento construtivista. E "a" competência do profissional que constitui, à imagem da competência linguística de Chomsky, uma capacidade geradora de novas competências.
O Quadro 2.9 mostra a relação possível entre a capacidade para formalizar; arfim de se comunicar, e a capacidade para transpor. E a partir de uma reflexão sobre suas práticas reais que o profissional, graças a um trabalho de abstração e de conceitualização, poderá reinvestir sua experiência em práticas e em situações profissionais diversas. Para passar da máquina de fresagem ou do torno a uma máquina de comando numérico, o profissional deve poder explicitar os deslocamentos recíprocos da peça e do instrumento. Anel ou espiral de aprendizagem, o processo é conhecido por inspirar as práticas de formação por alternância. Essa atividade de explicitação, de formalização e de capitalização das práticas levanta várias dificuldades. Em primeiro lugar, questiona o estatuto tradicional da fala e da linguagem na organização do trabalho. O taylorismo renegara o papel da comunicação na eficácia produtiva. Comunicar-se era sinônirno de conversar: aquele que fala não trabalha. Essa herança, que não reconhece uma fala eficaz aos executantes, não facilita a colocação da atividade em palavras. Gastar um tempo discutindo ainda pode ser percebido como tempo perdido. Em segundo lugar, não é fácil para ninguém descrever como age. É próprio dos saber-fazer relativos à experiência estarem tão inscritos no corpo que se tornam inexprimíveis. Oriundos da acumulação de experiências, esses 'saber-fazer são dificilmente expressáveis e formalizáveis. Serão qualificados de "tácitos". Colocá-los em palavras é difícil. Este é o paradoxo do perito: ele terá mais dificuldade para explicitar seus modos de proceder do que o principiante. Em terceiro lugar, pode-se constatar grandes déficits no domínio da expressão escrita ou oral. Redigir uma síntese ou modelizar uma situação ou uma prática não está ao alcance de todo mundo. Inúmeros "bloqueios" existem, e não é provavelmente um acaso que a luta contra o iletrismo tenha
Nível e qualidade da formalizaçáo
A Competência
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,
Capacidade para transpor
O Le Boterf
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DESENVOLVENDO A CQMPETÊNCIADOS PROFISSIONAIS
GUY LE BOTERF
assumido importância desde os anos 80. Em quarto lugar, enfim, explicitar o que se sabe ou o que se sabe fazer é, frequentemente, vivenciado como uma ameaça de despojamento. Em uma sociedade fortemente marcada pela competição, não é evidente entregar um saber que será retomado por outros. A economia do saber, que funciona sobre a partilha, ainda não foi majoritariamente assumida pelas representações. Convém, então, não minimizar as dificuldades para desenvolver a reflexividade e a formalização. Esse trabalho permanente de construção dos saberes e do profissionalismo não pode resultar da espontaneidade. Ele exige um ato de mediação que deverá fazer parte, cada vez mais, do papel dos formadores. É aprendendo a reconhecer os problemas e a classificá-los em relação a contextos que o profissional se tornará capaz não somente de aprender, mas de aprender a aprender.*Assim, ele saberá não somente resolver um determinado problema, mas várias categorias de problemas. Deverá aprender a reconhecer o que Bateson chama de "indicadores de contexto". Será, então, colocado na via de transferências, 'de analogias possíveis por meio de uma generalização ou de uma mode1ização:A capacidade de se distanciar faz parte do profissionalismo. O profissional não pode evitar a experiência para aprender a reconhecer suas similaridades. Kuhn mostrou bem que, para pesquisadores científicos, a possibilidade de reconhecer que uma situação se assemelha a uma outra encontrada posteriormente não se deve a um processo explícito que apela à aplicação de regras e de critérios, mas à assiduidade ao laboratório e à experiência adquirida durante a multiplicação das experimentações. O Quadro 2.10 mostra como é possível descobrir e tratar analogias entre experiências realizadas em ambientes distintos. O profissional sabe que esse desvio vai levá-lo a abandonar algvns detalhes das experiências e a aceitar uma certa perda de informações. E preciso abstrair e se abstrair para raciocinar com variáveis não-específicas. Trata-se de uma arte, visto que é preciso, a cada vez, encontrar o nível certo de abstração: se ele for insuficiente, o peso dos contextos limitará a comparação; se for elevado demais, a utilidade operatória poderá ser afetada. Paradoxalmente, a analogia modalizante não busca reproduzir o idêntico, mas produzir algo diferente, apoiando-se no mesmo. O modelo pode ser mais uma fonte de criatividade do que uma facilidade de reprodução. Relatar uma prática não é apenas descrevê-la. O relato é criador do esquema operatório que a subentende. O profissional sabe extrair "invariantes" que permitirão aplicar a uma nova situação o saber-fazer aplicado em uma situação conhecida ou familiar.
*N. de R. Aprender a aprender implica a apropriação do conhecimento às práticas organizacionais em diferentes situações, estimulando o processo de reflexão acerca de sua efetividade. Portanto, requer um tipo especial de autoconhecimento, conhecer a forma com que se aprende (metacognição).
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Quadro 2.10 Modelizar para transferir Modelo (esquema, representação Desvio por formalização ou por generalização
/ /
Transferência Analogia
/
\
/
\
/
\
/
Experiência A (problema, procedimento ...)
Contexto particular
Experiência B (problema, procedimento )
...
Transferência direta muito difícil ou impossível Contexto particular O Le Boterf
Essas invariantes devem ser consideradas como esquemasflexíveis, pois raras vezes as situações são totalmente semelhantes. A competência só existe se perdurar, e sua existência não pode ser efêmera. Ela deve exercer-se sempre que surgir a mesma atividade a realizar ou que apareça o mesmo problema a tratar. O esquema operatório que constitui a competência real deve, pois, caracterizar-sepor uma certa invariância. A estabilidade do esquema é uma garantia de competência. A capacidade para transpor depende largamente de uma certa capacidade cognitiva do profissional: diante de situações ou de problemas distintos, ele saberá pôr em execução estratégias cognitivas apropriadas. A abstração reflexiva, o raciocínio por analogia e a transdução serão "ferramentas" muito apropriadas. A capacidade de memorizar esquemas de raciocínio e de mobilizá-los conscientemente é essencial. A aptidão - até mesmo o Wtuosismo -para fazer
e definir representações, ou seja, tanto para lhes dar importância quanto para relativizá-las, fazê-las evoluir ou para abandoná-las é um sinal manifesto do profissionalismo. Essa faculdade de apreender o potencial de transferibilidade tange, no profissional experiente, ao insight, à capacidade de reconhecimento imediato das formas. A acuidade é uma das competências distintivas do profissional experiente. Aquele que sabe transpor melhor não é, necessariamente, o generalista ou aquele que tem conhecimentos gerais sobre tudo. Frequentemente, é aquele que sabe, em determinada área, elevar seu nível de conhecimento a um ponto tal que sua formalização possibilita a transposição para áreas distintas. Esse desvio permite passar do conhecimento ao saber que permitirá o retorno a outras situações ou contextos. Mesmo sendo sempre contextualizada, nem sempre a competência é necessariamente submetida a um contexto. Distanciar-se do contexto, saber nomeá-lo e descrevê-lo não significa apagá-lo e ignorá-lo, mas avaliar o campo de transferibilidade e os campos de pertinência da competência. A contextualização não é a cegueira em relação ao contexto. O Quadro 2.11, a seguir, ilustra esse procedimento.
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Quadro 2.11 Transposição possível
Saber objetivado
1
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Conhecimentos saber incorporado
-.
Transposição difícil
Outro contexto; outra área
O Le Boterf
meio de um longo processo de objetivação que cada um dos participantes explicita progressivamente seus modelos ou suas teorias de ação tais como são realmente colocados em prática, e não como são imaginados ou almejados. O método de trabalho segue o ciclo de aprendizagem de Kolb.* Os orientadores fornecerão algo novo ao exercerem uma função de "reenquadramento". Essa função consiste, dentro de uma nova explicitação da situação vivenciada, em enriquecer pontos de vista, propondo um novo ângulo de análise que abra novos caminhos de reflexão e de aprendizagem.
Saber aprender e saber aprender a aprender O profissional sabe tirar as lições da experiência. Ele sabe transformar sua ação em experiência e não se contenta em fazer e agir. Faz de sua prática profissional uma oportunidade de criação de saber. Sabe administrar seu tempo não somente em função de imposições a serem respeitadas, mas também para fazer dele um tempo de aprendizagem e de auto-realização. O profissionalismo é um produto da história do profissional e de seu percurso biográfico, quer trate-se de sua vida pessoal, social ou profissional. Esta é uma das importantes fontes da confiança que lhe é concedida. O cliente do profissional se fia mais na sua experiência do que em seus diplomas. Não se trata, porém, somente de experiências passadas, mas, principalmente, de experiência e de reflexão sobre a ação. Saber agir com pertinência é saber tirar as lições da ação. É isso que Argyris chama de "saber acionável" (actionable knowledge). É o saber que pode ser aplicado, que é não somente prático, mas que permite obter os efeitos esperados porque é fundamentado em uma validação das teorias que o subentendem. O saber acionável permite verificar a validação das teorias de ação que o orientam. Com Argyris, pode-se, de fato, distinguir dois ciclos de aprendizagem: a aprendizagem de circuito simples (single loop learning): o sujeita se conduzirá ou agirá de modo diferente, mas sem mudar fundamentalmente suas representações ou as teorias de ação (valores, princípios diretores, hipóteses, etc.) subjacentes; a aprendizagem de circuito duplo (double loop leaming): o sujeito modifica sua representação em termos de ação para agir diferentemente. Ele corrige não somente a ação, mas a teoria, a lógica subjacente que seMu de fundamento à ação.
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No Quebec, grupos de co-desenvolvimento profissional, dirigidos por consultores externos e compostos por profissionais de diversas empresas se reúnem para auxiliar os participantes a compreender melhor como eles agem e para melhorar, conseqüentemente, suas práticas profissionais. Todos g q h a m em eficácia graças a uma melhor compreensão do modo como agem. E por
*N. de R. O ciclo de aprendizagem se centraliza nas experiência; vivenciadas. Propicia a visão processual no que se refere à aprendizagem e a formação de competência destacando a importância da ação e reflexão em um processo contínuo que visa a equilibrar as aqões e abstrações caracterizadas neste ciclo.
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Esse "trabalho reflexivo e retroativo" (Piaget, 1970) é o que permite elaborar modelos operatórios que poderão ser posteriormente investidos na ação. Segundo Bourdieu (1984), entende-se por modelo "todo sistema de relações entre propriedades selecionadas, abstratas e simplificadas, construído conscientemente com fins de descrição, de explicação ou de previsão, e, por isso mesmo, plenamente controlável". Essa representação simplificada da realidade será provisória e forçada a evoluir. Todas essas operações de elaboração de novos conhecimentos supõem a execução de inferências variadas (indução, dedução, abdução, construção e validação de hipóteses, generalização, etc.). Em Connaitrepar l'action (Conhecer pela ação) (1992), Yves Saint-Arnaud propõe um esquema interessante que evidencia como o grau de questionamento dos modelos de intervenção pode depender do grau de especialização profissional. O limite dos modelos conhecidos marca o limiar de criatividade do profissional-pesquisador.
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Saber envolver-se
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Todas as características do profissional que acabam de ser apresentadas supõem seu envolvimento. Capaz de tomar iniciativas e de fazer propostas, ele não poderia esconder-se atrás das instruções e dos procedimentos. E exatamente essa a diferença entre o especialista e o sistema especialista./A competência do profissional não é mais apenas uma questão de inteligência: toda sua personalidade e sua ética estão em jogo. 1 Em muitas profissões, está-se delineando uma importante evolução. Não se trata mais de perder a personalidade para se conformar a instruções. As "normas" de realização das atividades profissionais se tomam referências em relação quais cada profissional deverá expressar sua subjetividade. O profissionalismo não consiste em deixar a personalidade no vestiário antes de se confront* com uma situação de trabalho. As modalidades de exercício de uma atividade profissional requeridas serão cada vez menos fatores de despersonalização, mas se tomarão ocasiões para afirmar a subjetividade e para fazer reconhecer a pertkência de uma resposta singular a um imperativo profissional. E preciso querer agir para poder e saber agir. Há envolvimento tanto da subjetividade quanto de objetividade. O profissional "habita" sua área de competência e a incorpora. O envolvimento do profissional depende de sua "implicação afetiva" na situação. Ele a avaliará de modo diferente em função da "coragem" que tem para confrontá-la e, por conseguinte, dos recursos pessoais que está pronto para nela investir. Nem todas as decisões são situações de resolução de problemas. O profissional deve, então, não resolver, mas decidir, e isso em função de múltiplos
irnponderáveis, inexprimíveis, intenções ou impulsos, e em função de um sistema de valores ... Isso, o computador não sabe fazer. Essa forte integração "biográfica7'que caracteriza o profissionalismo o distingue do saber propriamente dito: a competência é um "atributo do sujeito". Os saberes podem ser armazenados em bancos de dados, mas os profissionais não podem incorporar competências... A menos que seja nos campi universitários dos "vales", das "tecnópoles" e dos "parques" de matéria cinza! O banco das competências profissionais não é para amanhã! Os bancos de saberes, estes, já existem. Não se poderia confundir a economia dos saberes com a economia das competências. Esse envolvimento cria a confianfa: o profissional é aquele com quem se pode contar. Ele não passa cheques sem fundos de seu capital de saber-fazer e de confiança. Sua competência leva os outros a suporem que ele se compromete a velar por essa área e a tomar as medidas necessárias para isso. Essa noção de envolvimentocoincide com a distinçãofeita por Philippe Zarifian entre a competência e as'competências.A competência remete à responsabilização de um sujeito que assegura a imputabilidade das conseqüências de suas decisões ou de seus atos. Ele se compromete com uma área de responsabilidade em que é confiável e assume riscos, que podem existir, segundo Philippe Lorino, em dois níveis: "risco cognitivo" de se enganar sobre a representação do problema ou da situação, "risco operatório" na execução do que estava previsto. E dentro desses limites que se reconhece que ele "tem autoridade para". Algumas empresas, como Spie Batignolles, inspirando-se no conceito anglosaxão de empowerrnent, visam a facilitar a responsabilização de seus empregados. Na empresa Spie Trindel, um método "autodiagnóstico-proposição-operacionalização" foi objeto de uma formação sistemática em 1996. "A empregabilidade" é a reunião das condições necessárias (formação, atribuições, equipamento, recursos, direito à experimentação, direito ao erro...) para que o operador disponha realmente do poder de ação e de iniciativa. O envolvimento é acompanhado do reconhecimento do direito ao erro. Em certas empresas, o erro é admitido desde que seja imediatamente informado. O direito ao erro não admite o direito ao atraso de informação. O "saber envolver-se" requerido pela competência não é evidente. Ele levanta questões difíceis, particularmente no estabelecimento dos contratos de trabalho. Como determinar de antemão o nível requerido de implicação quando a capacidade de antecipação dos acontecimentos e da evolução do ambiente é limitada? É impossível fazer uma lista exaustiva dos níveis de implicação. De um outro ponto de vista, o profissional não pode, na empresa, fixar seu nível de envolvimento independentemente daquele de seus colegas. Ele correria o risco do isolamento ou da exclusão. Diante dessas incertezas, o empregado assalariado pode referir-se ao que Pierre-Yves Gomez chama de "convenção de esforço" da organização. Essa convenção, mais ou menos explícita, indica as regras comumente admitidas e em função das quais o empregado pode fixar, de maneira autônoma, seu nível de implicação. A convenção de esforço é:
uma estrutura de coordenacão dos agentes que trabalham em uma organizacão. Ela não só estabelece o nível de esforco comumente admitido como normal como também oferece um procedimento de resolucão recorrente dos problemas de determinacão da qualidade do trabalho, emitindo uma informacão sobre as regras que estabelecem a implicacão do agente no grupo. (Gomez, 1996)
É, portanto, em relação a um nível de implicação médio que os ernpregados definem sua própria implicação. Saber expressar-se não diz respeito, pois a um indivíduo isolado. O envolvimento individual na construção da competência só tem sentido e pertinência em relação ao envolvimento coletivo. A construção das competências também tange à economia das convenções. O envolvimento individual, para se determinar, supõe a referência a um quadro coletivo que não seja efêmero e se caracterize por uma certa regularidade.
O profissional exerce atividades ou resolve problemas com competência, mas quem reconhece a existência do profissionalismo ou da competência? Avancemos mais: tem sentido se autodeclarar competente? La Rochefoucauld já dizia: "não se julga um homem por suas qualidades, mas pelo uso que faz delas". Não basta se julgar competente para sê-10. Toda competência, para existir socialmente, supõe a intervenção do julgamento de terceiros. Aquele que declara suas competências se compromete: assume o risco que se dirija a ele para que as coloque em execução. A falsa declaração pode levar à desconsideração. A ação é uma prova. É a razão de ser dos procedimentos e dos dispositivos de "validação das competências". Ainda que a expressão possa causar confusão, não se trata, com efeito, de validar competências preexistentes: é a validação que caracteriza como competência uma maneira de agir. Julgamento de competência ou de incompetência, o olhar de terceiros se torna normativo. A competência não é soment'e um "constructo operatório", é também um ''constmcto social". Isso mostra toda a importância que deve ser dada ao dis---. - ..--_ -,,-positivo de validação. Uma validação feita por um colegiado minimizará pela intersubjetividade os riscos da subjetividade. Merchiers e Pharo (1990, 1992) evidenciaram esta dupla dimensão da competência: uma dimensão cognitivo-prática e uma dimensão normativa. Para esses pesquisadores, o "sucesso público" é uma condição essencial da competência, pois supõe um julgamento de validade: "o sucesso em uma atividade supõe alcançar o. objetivo e, simultaneamente, fazer com que terceiros reconheçam essa realização ou essa execução". Sempre há condições para dar provas de competência. Só há êxito quando duas condições estão reunidas: o alcance do objetivo buscado e o reconhecimento desse alcance por terceiros. O reconhecimento das competências pode levar à qualificação. E possível - e
essa é uma tendência que se observa atualmente - tentar construir os sistemas de classificação sobre critérios de competências. A negociação entre as partes envolvidas e o acordo ao qual chegam vai fundamentar-se, então, mais na lógica de valorização das competências do que no peso dos postos de trabalho. A qualificação supõe que o reconhecimento das competências faça referência a um sistema de valores. Qualificar é atribuir um valor. Se a qualificação é uma "habilitação7', a competência atribuída habilita a agir com competência. Se há reconhecimento público de competência, sobre que critérios o julgamento será fundamentado? Pelo que se reconhecerá que a atividade é exercida com competência? Merchiers e Pharo propuseram um "modelo de critérios" de reconhecimento. Eles distinguem três tipos de casos: Os casos em que se sabe de antemão, antes do início da atividade, quais são os critérios que permitem decidir sobre o sucesso da atividade. Pode tratar-se de um resultado pré-descrito ("competência jurídica"). O oficial do registro civil que celebra um casamento será competente se souber respeitar os procedimentos jurídicos e não ... se o casamento der certo no futuro. O eletricista será competente se recolocar em funcionamento e em "estado" de segurança um circuito em pane (a corrente elétrica circula). Os casos em que os critérios de sucesso não ppdem ser definidos senão durante a atividade ("competência tática"). E a competência do político que marca pontos em um debate na televisão. Os casos em que os critérios de êxito não podem ser descritos "senão posteriormente". Há um julgamento posterior de conformidade a um "ideal", por definição sempre "aberto" e jamais definitivamente atingido ("competência estética" ou "ética"). Os exemplos do pintor ou do intérprete de uma obra musical são ilustrativos dessa situação. Esse modelo é interessante porque relaciona critérios de êxito a possibilidades de julgamentos, além de ser um aporte capital à exploração do conceito de competências e às abordagens operatórias que poderão advir disso. Nas práticas de avaliação dos efeitos da formação, a avaliação das competências aplicadas em situação de trabalho não se efetua a partir do reconhecimento de atividades bem-sucedidas? O modelo de Merchiers e Pharo poderia indicar determinações mais acuradas dos critérios ,utilizados para inferir e reconhecer as competências.
--
Distinguir-se-ão, portanto, .três tipos de julgamento:
-..-- .. -.O .julgamento . . , .. . d. & K á G reconhece que a atividade foi realjzada com L
competência porque permitiu alcançar os resultados esperados. E o desvio pelo cle_sIxnh$. Avaliando os desempenhos, infere-se que há competência. Esse tipo de julgamento tem a vantagem de poder referir-se a critérios de
resultados mais facilmente objetiváveis. Tem, entretanto, o inconveniente de supor uma relação bastante direta entre a atividade e o desempenho. A experiência cotidiana mostra amplamente que múltiplos fatores, além do profissionalismo ou da competência, podem intervir no desempenho. O estado dos equipamentos, o gerenciamento, os acasos da conjuntura, os fornecimentos interferem muito. ISSOposto, pode ser pertinente associar alguns indicadores sensíveis (índices de retorno de clientes, número de anomalias, prazo de encaminhamento de produtos, etc.) a um conjunto de atividades e, portanto, de competências (regulagem de parâmetros, montagem e desmontagem de ferramentas, etc.). Nesse tipo de julgamento, a instância de reconhecimento pode ser composta de responsáveis operacionais, de colaboradores ou de clientes capazes de reconhecer e de atestar que houve um resultado. O julgamento de eficácia pode ser complementado por um julgamento de utilidade exercido do ponto de vista dos clientes ou dos beneficiários.
- O julgamento de conformidade: também procede por inferência. A competência foi supostamente operacionalizada se a atividade se realizou de acordo com certos critérios de realização. Se, em uma sequência de implantação de um processo de controle estatístico da qu-alidade, os responsáveis de linha constroem mapas de controle escolhendo critérios pertinentes e respeitando o padrão estabelecido, então será possível inferir que são capazes de identificar parâmetros para estabilizar o processo. Se, em uma oficina, os operadores efetuam medidas granulométricas em conformidade com critérios, tais como levar à imersão no lugar certo ou elevar o peso na precisão exigida, será possível inferir que souberam aplicar a competência para aferir, calibrar e colocar em ação ferramentas de medida. Quando se observa que um responsável de projeto adota procedimentos multicritérios, administra seu projeto como um processo iterativo, e não em uma abordagem linear sequencial e combina de maneira pertinente recursos variados (técnicos, financeiros, humanos), então pode-se supor que ele sabe conduzir um projeto em um ambiente complexo e incerto. Para poder fazer tal julgamento, a instância de validação é frequentemente levada a complementar o olhar do responsável hierárquico por meio do ponto de vista dos "peritos", cujo profissionalismo é reconhecido na área em questão. A maneira de proceder é tão importante quanto o resultado a atingir. Essa abordagem permite separar melhor o que diz respeito à pessoa (ela soube aplicar certos procedimentos, certos gestos profissionais?...) e o que diz respeito a seu ambiente.
- Ojulgamento de beleza: refere-se às regras da arte. É, evidentemente, o mais difícil de fazer e o mais contestável. Esse tipo de julgamento é requerido nas situações profissionais em que os critérios de resultado ou de realização são dificilmente objetiváveis e tangem mais, às vezes, ao talento do que à competência propriamente dita. O talento de Mozart não se reduzia à sua competência. O profissionalismo de um arquiteto não se limita a suas habilidades técnicas. Quanto maior a dimensão "talento" em relação à dimensão "competência" nas profissões, mais necessidade há de "julgamentos de beleza". O Quadro 2.13 mostra três tipos de profissões: as profissões com dominância de "competência": engenheiro, condutor de máquina, enfermeiro, operador de manutenção, conselheiro de clientela, etc.; as profissões com dominância de "talento": ator, músico, poeta, etc.; as profissões "mistas": arquiteto, jornalista, decorador, paisagista, compositor, etc.
Quadro 2.13 Três tipos de profissões: competências e talentos
Engenheiro, condutor de máquina, conselheiro de clientela, enfermeiro
Profissóes com dominância de "competência"
Profissóes mistas
Profissóes com dominância de "talento" O Le Boterf
Os dois tipos de profissões com dominância de competência e talento podem caracterizar-se e distinguir-se da seguinte maneira:
Quadro 2.14
'1'
Profissáo/Cornpetência
Profissões/Talento
Finalização em uma produção (bens, serviços) com função de uso.
Finalização em uma obra ou uma interpretação com função exclusivamente simbólica.
A produção esperada pode fazer parte de u m cronograma de tarefas.
A obra ou a interpretação não são redutíveis a u m cronograma de tarefas.
O desempenho se caracteriza por uma produção exterior ao sujeito.
O desempenho caracteriza o próprio sujeito por meio de sua obra.
A competência é u m saber agir sobre uma situaçáo externa ao sujeito.
O talento supõe, mas ultrapassa, o saber e o saber-fazer: ele é a capacidade da pessoa para...
O Le Boterf
Diferentemente do operador profissional, o trabalho do artista não se conclui por uma produção, mas por uma criação. A obra de arte não diz respeito ao utilitarismo. Kant definiu apropriadamente a obra de arte como "uma finalidade sem fim". O artista é "um doador de formas". O poema, a sonata, a estátua ou o quadro são formas que expressam a personalidade do artista. "A; algo de próprio pode encontrar solução e forma", dizia Rainer Maria Rilke. E o artista, criar-se e expressar-se. Em sua visar à emoção, pois criar é, Introduction à la méthode de Leonard de Vinci (1895), Paul Valéry observava que "o píntor dispõe sobre um plano pastas coloridas cujas linhas de demarcação, espessuras, fusões e choques devem servir-lhe para expressar-se". E claro que uma criação nesses parâmetros não exclui o saber-fazer. Ela supõe até mesmo que se tenha um domínio extremo dele. O ensino das y t e s deve levar isso em conta. É preciso, diz Yves Michaud (1993), Diretor da Ecole Nationale Supérieure des Beaux Arts (ENSAB), evitar "a ilusão vanguardista: eliminam-se, assim, os conhecimentos e o saber-fazer em proveito de uma criatividade e de uma espontaneidade que não se ensinam tão facilmente". Não há arte sem regras. Mas o artista toca, emociona, fascina quando seu saber-fazer é tal que acaba por ser esquecido. A magia do teatro supõe o es-
quecirnento dos bastidores. A obra de arte é imprevisível. Ela é irrupção mais do que emergência. Ela deve surpreender, e não cair no academismo, que pode ser considerado como a garantia total contra os efeitos esperados. As profissões "mistas" se situam na intersecção das duas anteriores. São caracterizadas por encomendas precisas de "produção" (um prédio, um artigo, uma atuação televisiva, um cenário, etc.) que se espera marcadas, transformadas pelo talento pessoal. O.estilo deve ser tão importante quanto o respeito à . gramática, .O talento faz parte da competência profissional. É conveniente que o prédio agrade, expresse a assinatura do arquiteto, seja bem orientado e resista às intempéries. As regras de construção, as condições térmicas, a conformidade administrativa, o domínio das abordagens topológicas, projetivas ou euclidianas são necessários. A qualidade arquitetural, porém, resulta de uma superação das prescrições funcionais para produzir uma obra que as transcenda e que lhes dê um sentido. Uma arquitetura bem-sucedida é uma arquitetura que "convida" a morar, que sugere o deslocamento ou o estacionamento, que estimula aquele que a pratica. Diferentemente das prescrições, a beleza não se deixa encerrar em uma definição. Já em 1825, em seu Précis de leçons d'architecture à l'école royale d'architecture (Compêndio de Lições de Arquitetura na Escola Real de Arquitetura), J.N.L. Durand escrevia: 'Rarquitetura é simultaneamente uma ciência e uma arte: como ciência, ela requer conhecimentos, como arte, ela exige talentos". Isso explica muitas dificuldades encontradas nos procedimentos de avaliação das competências dos empregos de jornalista ou de arquiteto, as quais engendram resistências compreensíveis dos titulares: "nossa competência também é feita de talento, não se esqueçam disso", expressam. Com que medida se vai avaliar o componente talento da competência? Ojulgamento de beleza não pode provir senão de uma instância composta de pares, de peritos reconhecidos, credíveis e legitimados. Eles serão investidos de um capital de confiança para apreciar tanto o valor de uma obra quanto as regras da arte com as quais ela foi produzida. Esse julgamento é delicado: não se refere a um padrão. Deve poder reconhecer a originalidade, a criatividade e, portanto, a superação do que habitualmente se pratica. Esse julgamento se apóia mais no reconhecimento de um avanço do que na apreensão de um desvio. Ele deverá, entretanto, saber evidenciar e explicitar os limites fora dos quais a obra ou a produção transgridem as regras da arte e não podem ser aceitas. Algumas extensões são significativas: "isso não é mai: jornalismo, é engenharia"; "isso não é obra de arte, é mera provocação" ... E verdade, todavia, que essas apreciações não resultam de uma metrologia indiscutível. Provavelmente, é por essa razão que se apela mais a júris, isto é, a julgamentos cruzados e confrontados, do que a peritos isolados.
As características desses três julgamentos podem ser sintetizadas no Quadro 2.15. Quadro 2.15 Modo de raciocínio
Área Julgamento de eficácia
feito sobre os resultados e os desempenhos
inferência
Julgamento de conformidade
feito sobre as condições de realização e as maneiras de agir
inferência
Julgamento de beleza
feito sobre a obra e as regras da arte
Instâncias legítimas e credíveis - responsáveis operacionais .- clientes
,
interpretação "julgamento de excedente" (1)
- responsáveis operacionais - pares e peritos
- pares e peritos
Profissões envolvidas Profissões com dominância de competência Profissões com dominância de competência e profissões mistas (competência, talento)
das regras da arte, mas também à aplicasão das qualidades específicas ao sujeito: criatividade, engenhosidade, originalidade, etc. Esse segundo julgamento só pode advir dos pares, e não da hierarquia. A competência não pode ser definida unicamente como a capacidade para resolver um problema. Médicos se confrontam com pacientes que não podem curar, pesquisadores encontram problemas de investigasão, mas nem por isso são considerados incompetentes. Há um julgamento da profissão que reconhece a competência apesar da incapacidade circunstancial para resolver esta ou aquela categoria de problema. A competência individual encontra seus limites, mas não sua negasão no nível dos saberes alcansado pela sociedade ou por profissão de pertensa a uma determinada época. O julgamento de reconhecimento representa, certamente, o ponto mais delicado e potencialmente conflitante na gestão das competências. Por detrás do reconhecimento das competências, perfila-se a questão do reconhecimento
Quadro 2.16
Profissões mistas e profissóes com dominância de "talento"
O Le Boterf (1) Selon Dejours, 1995
Na "lógica da honra", d'Iribarne mostrou a que ponto, na França, esse reconhecimento da competência podia questionar o sentido da honra próprio a cada grupo profissional. Por tradisão, o que cada grupo considera como "honroso" não pode ser fixado por um só indivíduo, nem pela lei, nem pela razão. E o julgamento dos pares, do grupo profissional, que pode fixar os deveres e julgar. Isso explica muitas das dificuldades encontradas na implantasão de dispositivos de avaliasão das competências, sobretudo quando se trata de profissões caracterizadasde "nobres7'(jornalistas, pesquisadores, engenheiros, etc.) Em sua obra sobre a "identidade no trabalho", Renaud Sainsaulieu observava que os operários profissionais que são, na verdade, mestres profissionais, só admitiam a autoridade decorrente da competência e do reconhecimento dos companheiros. O julgamento de competência pode ser feito tanto sobre o resultado quanto sobre as maneiras de fazer ou agir. E o que Dejours, em suas pesquisas de psicodinâmica do trabalho, chama de "julgamento de utilidade" e "julgamento de beleza". O primeiro trata dos resultados, dos desempenhos, da contribuição do sujeito; o segundo se consagra não somente à aplicasão
Julgamento de eficácia, de utilidade ou de conformidade
ideal profissional não-identificávelpor uma lista estanque
(1) Selon Dejours Fonte: Adaptação do modelo de Merchiers e Pharo (1990) e de Dejours (1994)
da incompetência. E ela é temível. Em uma sociedade do saber, o julgamento de incompetência equivale a uma ameaça de exclusão. Existe uma certa violência do julgamento de competência, uma espécie de ultimato: "Você deve provar que é competente, senão será qualificado de incompetente e sofrerá as conseqüências disso!" Para existir socialmente, a competência precisa ser reconhecida. Não ser reconhecido como competente é não ser reconhecido como útil. Autodeclararse competente sem o reconhecimento de terceiros se torna logo insuportável. A autodesvalorização e a superestimação manifestarão a patologia resultante. Isso mostra a importância que se deve dar à escolha das instâncias de avaliação, à co-avaliação, ao cruzamento dos pontos de vista e dos olhares, à consideração dos elementos do contexto (organização do trabalho, delegação de poder, gerenciamento, equipamento, infração disponível, etc.), aos procedimentos de recursos e de arbitragem, etc. A questão central não deveria ser: por que houve ou não criação de competências?
Quadro 2.17 Modelo "A" (Concepçáo taylorista e fordista) Operador
1 Executar o prescrito I
------------b
Ator
I I
Executar operaçóes
- - - - - - - - - - - -b - - - - - - - - - - - -b
1
------------b
Saber agir
- - - - - - - - - - - -b
Escolher uma conduta
Saber-fazer
1 Adotar um comportamento
1
------------ b
1
------------ b
Malha estrita para identificar a competência
O Quadro 2.17 mostra os dois "modelos" da competência que interferem atualmente nas práticas de gestão. Se a emergência de uma economia do saber tende a favorecer a passagem do modelo 'R"ao modelo "B", a observação cotidiana revela que eles coexistem nas organizações. No modelo 'X', herdado das concepções tayloristas e fordistas, o sujeito é considerado como um operador cuja competência se limita a saber executar operações de acordo com a prescrição. A competência se limita a um saberfazer descntivel em termos de comportamento esperado e observável. Uma competência se descreve com uma malha estrita e coerente com o parcelamento do saber-fazer. Nesse modelo, a competência é objeto de um gerenciamento pelo controle. No modelo "B", prefigurando, talvez, o que se instala com a escalada da economia de serviço, o sujeito é considerado mais como um ator do que como um operador. O profissional competente é aquele que sabe ir além do prescrito, que sabe agir e, portanto, tomar iniciativas. Diante de ações requeridas, considera-se que existem várias maneiras de ser competente e que diversas condutas podem ser pertinentes. A conduta não se reduz a um comportamento. A malha escolhida para descrever a competência é bastante ampla: ela reconhece a faculdade, no sujeito, de desencadear e de conjugar recursos e ações. Ela não confunde a competência e os recursos (saber, saber-fazer, etc.) a serem mobilizados para construí-la. O gerenciamento da competência ou do
Modelo "B" , (Perspectiva da economia do saber)
Gerenciamento pelo controle
1 Finalização sobre o emprego
------------b
Ir além do prescrito Executar açóes e reagir a acontecimentos
I
1
1
Malha larga para identificar a competência
1 Gerenciamento pela condução
I Finalização sobre a empregabilidade
O Le Boterí
profissionalismo é um gerenciamento pela condução: o gerenciador procura agir mais sobre o contexto favorável à emergência da competência do que sobre a própria competência.
O Quadro 2.18 propõe um resumo das principais características esperadas do profissional.
92
GUY LE BOTERF
Quadro 2.18
-
Q Q -
-
-3
saber agir e reagir com pertinência
-
-
-
-3
saber combinar recursos e mobilizá-los em um contexto
-
-
-
-3 saber transpor
-
-
-
-3
-3
-
saber aprender e aprender a aprender
saber envolver-se
-
-
uma Dupla Instrumentalização
saber construir compethcias a partir de recursos; saber tirar partido não somente de seus recursos incorporados (saberes, saber-fazer, qualidades), mas tambBm dos recursos de seu meio.
if -
O profissional: aquele que sabe administrar uma situação profissional complexa.
saber o que fazer; saber ir alBm do prescrito; saber escolher na urgência: saber arbitrar, negociar, decidir; saber encadear ações de acordo com uma finalidade.
saber memorizar múltiplas situações e soluções-tipos: saber distanciar-se, funcionar "em dupla direção"; saber utilizar seus metaconhecimentos para modelizar; saber determinar e interpretar indicadores de contexto: saber criar as condições de transponibilidade com o auxllio de esquemas transferlveis.
saber tirar as liçóes da experiência; saber transformar sua ação em experiência: saber descrever como se aprende: saber agir em circuito duplo de aprendizagem. saber envolver sua subjetividade; saber assumir riscos; saber empreender; Btica profissional.
O Le Boteri
UMA DUPLA INSTRUMENTALIZAÇAO
Se a competência consiste em saber mobilizar e combinar recursos, quais seriam estes? Propomos considerar que o profissional dispõe de uma dupla instrumentalizafão, a qual domina:
- a instrumentalização de recursos pessoais; -
a instrumentalização de recursos de seu meio.
A instrumentalização de recursos pessoais é incorporada: é constituída por saberes, saber-fazer, aptidões ou qualidades e por experiências acumuladas. A instrumentalização de recursos do meio é objetivada: é constituída por máquinas, instalações materiais, informações e redes relacionais. A competência se baseia nessa dupla instrumentalização, mas não se confunde com ela. A competência é a faculdade de usar essa instrumentaliza~cíode maneira pertinente. Usando uma analogia lin@'stica, poderíamos abordar a definição da competência utilizando dois eixos:
- O eixo paradigmático: é o eixo do repertório, do léxico. Poderíamos acrescentar: o eixo do equipamento, dos recursos.
- O eixo sintagmático: é o eixo que permite articular os elementos do paradigma para produzir sintagmas, isto é, frases ou discursos.
94
DESENVOLVENDO A COMPETÊNCIADOS PROFISSIONAIS
GUY LE BOTERF
O eixo sintagmático é o eixo da combinação: é nesse eixo que é exercida a compe;ência lin@ística, permitindo produzir novos enunciados, sem interrupções. E o eixo da competência do profissional, que se caracteriza pela capacidade de exercer novas atividades ou competências, construir competências adaptadas, enfrentar acontecimentos, saber agir e reagir em contextos variados. Esse eixo da combinação desempenha um papel de "diretor" do equipamento. O Quadro 3.1 resume essa analogia.
95
Distinguiremos mais particularmente dentre esses recursos:
- os saberes
saberes teóricos; saber do meio; saberes procedimentais.
- os saber-fazer
os saber-fazer formalizados; os saber-fazer empíricos; os saber-fazer relacionais; os saber-fazer cognitivos.
- as aptidões ou qualidades; - os recursos fisiológicos; - os recursos emocionais.
Quadro 3.1
Eixo do paradigma ou do equipamento (relação de recursos) A
O Conselho Europeu de Profissionais em Informática elaborou um referencial de competências para os profissionais de informática. Seus tópicos são significativos. Aqui, distinguem-se efetivamente:
- o know-how: as habilidades, as astúcias, o saber-fazer experiencial; - o know what: a percepção do problema, a compreensão de suas dimensões, de sua estrutura;
- o know whom: o saber de rede, o conhecimento de quem possui os conhecimentos ou as competências;
'
Eixo sintagmático ou eixo da combinação, para produzir enunciados ou competências O Le Boterf
- o know how much: o senso dos limites, da medida; - o know why: o conhecimento das razões de agir; - o know when: o senso da oportunidade do timing. Os saberes Os saberes teóricos
OS RECURSOS INCORPORADOS AO PROFISSIONAL
A elaboração de representações operatórias e a imagem que tem de si mesmo permitem ao profissional desejar e saber mobilizar de maneira pertinente um conjunto de saberes, saber-fazer, aptidões, qualidades pessoais e experiências. Esses recursos incorporados, ou seja, inseparáveis de sua personalidade, são heterogêneos, irregulares. Uma das características essenciais da competência consiste em escolhê-los e combiná-los em relação a objetivos visados (problemas a resolver, projetos a conduzir, atividades a realizar, etc.).
Estes servem para entender: um fenômeno, um objeto, uma situação, uma organização ou um processo. Visam a descrever e a explicar seus componentes ou sua estrutura, a depreender suas leis de funcionamento ou de transformação, a entender seu sentido, sua razão principal. Trata-se mais de um "saber que" (knowing-that) do que um "saber como" (knowing-how). Referem-se mais aos procedimentos do que aos processos. São saberes de inteligibilidade. Pedese ao profissional não apenasfazer bem, mas entender aquilo que faz. O saber teórico é necessário para explicar as anomalias e orientar as decisões de intervenção, as iniciativas a serem tomadas. Respondem mais à peqgunta "Como funciona?" do que a "Como se faz funcionar?". Neles podemos encontrar con-
DESENVOLVENDO A COMPETÊNCIADOS PROFISSIONAIS
exercício de atividades profissionais, mas atingir níveis de conhecimentos em diversas disciplinas. Os conhecimentos disciplinares são adquiridos "com disciplina". Sua lógica de aquisição corresponde a métodos precisos. Se a lógica disciplinar deve ser distinguida da lógica profissional, o fato é que ela contém seu próprio rigor e sua pertinência, especialmente no âmbito da formação inicial. Por estarem fora da pessoa, às vezes os qualificamosde saberes "exógenos". O profissional, para ser eficaz em sua prática, terá, muitas vezes, de mobilizá10s e combiná-los. O manejo de um explosivo em uma mina supõe que o capataz convoque seus conhecimentos teóricos sobre os explosivos. Ele deve evocar a mecânica racional, que lhe indica que uma rocha não se quebra com a compressão, mas com a tração. Esse tipo de conhecimento é pertinente no contexto tecnológico contemporâneo, mas não o era no tempo em que o trabalho era feito com a picareta. Da mesma forma, será preciso que o profissional de manutenção tenha conhecimentos teóricos de eletricidade, hidráulica e eletrônica para poder efetuar consertos.
ceitos, conhecimentos disciplinares, conhecimentos organizacionais e conhecimentos racionais. São teoremas fundamentais, os princípios da eletricidade, a teoria cinética dos gases, a dinâmica dos fluidos, a legislação européia, as noções-chave da economia monetária, etc. Examinemos alguns deles: Os conceitos: existem frequentemente em forma de cadeias conceituais que os definem uns em relação aos outros. As vezes, são designados pelo termo de "redes semânticas". Neles encontramos o vocabulário técnico de base de uma disciplina ou de um campo de ação. Os saberes disciplinares: contêm teorias, leis ou regularidades quantificáveis, conceitos e parâmetros, hipóteses explicativas relacionadas a uma disciplina particular (física, química orgânica, mecânica dos fluidos, transmissão de calor, eletromagnetismo, sociologia das organizações, direito comercial, legislação do trabalho, etc.). Estão organizados em corpora estruturados. São considerados independentes daqueles que falam deles ou os utilizam. Esses saberes teóricos não têm finalidade própria. Não procuram indicar o que é preciso ser feito. Não vêm acompanhados por nenhum manual de instruções. Sua razão principal não é dar lugar a aplicações, mas podem servir a múltiplas ações diferentes. Isso significa que eles não têm utilidade? Claro que não! Esses saberes desempenham um papel heurístico: permitem orientar a ação, facilitar a construção de representações operatórias, tornar possível a formulação de hipóteses. T~ata-se,porém, mais de efeitos induzidos do que de objetivos imediatos. E um saber não-ativo. Gérard Malglaive observa, com razão, que a relação que tal saber mantém com a prática. é uma relação de intervenção, e não uma relação de aplicação. O saber teórico não está desvinculado da prática, mas se desenvolve segundo suas próprias leis. Não existe subordinafão mútua, m:a sim questionamento m'tico. O saber teórico é um saber relativamente estável, de lenta evolução. As mudanças de paradigmas não são cotidianas. Após períodos de transição mais ou menos longos, podem ser operadas reconstruções importantes em um campo de competências. A mudança de paradigma, para uma teoria, pode, então, constituir uma revolução científica. Esses saberes teóricos são objeto de uma formalização. Podem ser expressos em uma linguagem natural ou simbólica. Essa explicação permite sua transmissão e superação, além de favorecer sua memorização. Podemos comparar esses saberes às bases de conhecimentos que figuram nos sistemas especialistas. Elas reagrupam o conjunto dos saberes de um campo e constituem uma memória a longo prazo. Esse saber geral é difundido, n a maioria das vezes, pela escola e pela formação. E o ensino geral, cuja finalidade não é preparar diretamente para o
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Saberes teóricos (exemplos) O Teoremas fundamentais
O Noções-chave de economia monetária
O Princípios de eletricidade
O Sociologia das organizações
O Teoria cinética dos gases
O Direito comercial
O Dinâmica dos fluidos
O Agronomia vegetal
O Legislação européia
O Nutrição animal
O Le Boterf
OSsaberes do ambiente
.
a
Com esse termo, propomos designar o conjunto dos saberes que se referem ao contexto no qual o profissional intervém. Ele compreende componentes diversos: equipamento, sistema de gestão, regras e tipos de gerenciamento, cultura organiz?cional, códigos sociais, características dos clientes, produtos e serviços, etc. E o saber que trata dos dispositivos sociotécnicos nos quais o profissional age.
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GUY LE BOTERF
Podemos distinguir primeiramente:
Os saberes sobre osprocessos. Descrevem o funcionamento, as etapas, o encadeamento dos processos. Entre aqueles que são necessários a operadores ou condutores de instalações, podemos apontar: a representação coerente da lógica do processo, o domínio intelectual do processo de transformação da matéria, o conhecimento das etapas de fabricação de um produto, a compreensão dos procedimentos de fabricação dos componentes, etc. Os saberes sobre os materiais e os produtos. Referem-se às instalações ou às máquinas, produtos fabricados, componentes e apetrechos, etc. Os saberes organizacionais. Aqui, encontram-se os organogramas e funções da empresa, a descrição de uma rede comercial, a organização do trabalho, etc. E um "saber de exploração". Os saberes sociais. Podem englobar: a estrutura de clientes, o resultado de uma pesquisa social, as conclusões de estudos de mercado. Se a competência profissional só existe quando posta em ação em um contexto de trabalho, esse saber sobre o contexto é essencial, pois permite que o profissional se adapte à contingência das situações, "sinta" o terreno, considere o possível e o aceitável, compreenda as linhas de força e as potencialidades, ajuste as decisões a serem tomadas ou as atividades a serem realizadas, antecipe as reações dos dispositivos e das pessoas. E o saber que toma possível o ajuste sob medida, que intervém quando aquele que tem uma profissão a exerce em um emprego específico em uma organização. Os saberes do ambiente dão ao profissional a possibilidade de interferir em uma situação particular, de adotar condutas pertinentes em relação a um contexto, e não apenas em relação a uma profissão, de aumentar a funcionalidade das representações que servem para guiá-lo. Eles lhe dão a faculdade de conhecer não só métodos e técnicas, mas o âmbito no qual se inserem. Um método de engenharia deverá submeter-se a adaptações distintas, conforme se tratar do contexto de um projeto de pesquisa, de um plano de formação, da fabricação de um produto ou de uma obra industrial. Os saberes contábeis não serão exatamente os mesmos em uma empresa siderúrgica e em uma empresa de consultoria: nem todos os coeficientes e parâmetros serão uniformemente pertinentes. Não se administra uma empresa de consultoria da mesma maneira que uma empresa têxtil. , Esses saberes de contextualização podem ser mais ou menos formalizados, conforme seu objeto. A descrição de uma aparelhagem ou de um sistema de gestão pode ser objetivada por escrito e posta em um dispositivo documental. O mesmo, porém, não ocorrerá com o conhecimento da cultura de uma empresa ou de um meio profissional: alguns traços poderão ser facilmente explicitados; outros estarão relacionados a uma intuição ou a uma sensibilidade menos formalizável.
Quadro 3.3 Saberes do ambiente (exemplos) O Conhecimento das máquinas
O Características dos clientes
O Saberes sobre as características
O Sistema de gest5o
dos produtos/serviços O Regras e tipos de gerenciamento
O Cultura de empresa O Le Boterf
Os saberes procedimentais
Visam a descrever "como deve ser feito", "como proceder para". Permitem dispor de regras para agir. Ao contrário dos saberes teóricos, que são expressos independentemente das ações que poderiam utilizá-los, esses saberes são descritos com vistas a um? ação a ser realizada. Sua formulação é inseparável de seu.modo de emprego. E a distinção entre o saber "como funciona" e o saber "como fazer funcionar". Para fazer uma analogia, o mapa geográfico está para o saber compreensivo assim como o itinerário recomendado está para o saber operatório. Ao mesmo tempo em que o.mapa é utilizável para múltiplos percursos, o itinerário recomendado é um procedimento a ser seguido. O saber procedimental propõe uin guia de instruções para um sujeito individual ou coletivo. Para efetuar um levantamento de uma fazenda, um agrimensor diria (Lehabar, 1983): Determinarei primeiro as dimensões das diagonais, o que evitará que eu calcule os ângulos dessa construção no terreno, pois obterei o mesmo resultado com uma simples corrente de agrimensor, que me dará a dimensão de cada lado e, conseqüentemente, poderei constr& graficamente minhas superfícies na escala, os ângulos serão deduzidos disso por si próprios. Preciso tomar a direção dos diferentes pontos cardinais com uma bússola para anotar a orientação do plano da construção. Minha informação estará, então, definitivamente estabelecida.
Esses saberes operatórios descrevem procedimentos, métodos, modos operatórios, isto é, encadeamentos explícitos de operações ou séries ordenadas de ações orientadas para a realização de um objetivo determinado. São conjuntos de instruções a serem realizadas em uma ordem estabelecida. Podem apresentar-se sob a forma de um gráfico orientado, comportando diversos encaminha-
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mentos possíveis em funqão dos resultados obtidos nas etapas de execuqão. São finalizáveis e aplicáveis a um campo específico e determinam as condiqões de aplicaqão das operaqões a serem seg~ucl~is. Os procedimentos podem ser decompostos em microprocedimentos (pressionar a tecla "entra", selecionar graqas ao botão giratório, etc.). Podem ser da ordem da execuqão (referindose a algoritmos) ou da elaboraqão de novos procedimentos (ligados às condutas heurísticas). Nesse segundo caso, os saberes procedimentais do tipo "métodos de resoluqão de problema" permitem selecionar e produzir outros tipos de conhecimentos. Os saberes procedurais são formulados do ponto de vista de seu usuário, que pode, assim, seguir as etapas que lhe são propostas. E o saber dos manuais, dos guias práticos e dos modos de uso. Entre os saberes procedurais formalizados, encontraremos as estratégias ou os métodos de resoluqão dos problemas, os esquemas de busca de informaqões ou aqões, os modelos de análise, as regras operatórias e as regras de aqão, os prinapios diretores de intervenqão, as condiqões a serem reunidas para obter determinado efeito ou resultado. Esses saberes podem ser enriquecidos pela aqão, mas são adquiridos por meio de sistemas formais de educaqão e de formaqão. O Quadro 3.4 fornece alguns exemplos de saberes procedurais extraídos de diversas fichas descritivas de empregos e competências. O operador pode muito bem dominar conhecimentos procedurais sem possuir os conhecimentos teóricos correspondentes. Ele poderá fazer uma máquina funcionar ou consertá-la sem conliecer seu funcionamento. Podemos conhecer um algoritmo sem possuir a estrutura conceitual que o constitui.
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Saber-fazer ou capacidades operacionais Os saber-fazer formalizados
São constituídos por condutas, métodos ou instrumentos cuja aplicaqão prática o profissional domina. Saber ler um mapa, conduzir e concluir uma negociaqão comercial, posicionar uma peqa em relaqão a uma soldagem, etc., são habilidades, capacidades para realizar operaqões. Não são saberes procedurais, mas saber-fazer procedurais. Aqui, não se trata de "saber descrever" um procedimento (de resoluqão de uma equaqão de segundo grau, de recuperaqão de acidente, de reparaqão eletrônica, de elaboraqão de um plano de formaqão, etc.), mas de dominar a sua aplicaqão. Como escreveu Jean-Marie Barbier: "o saber do saber-fazer não basta". Analisando o caso de uma catástrofe aérea ocomda em janeiro de 1982, em Washington, com um Boeing da Air Florida, Amalberti evidenciou e distinguiu: .
- os conhecimentos teóricos e procedurais que os pilotos possuíam sobre o sistema antigelo;
- a ausência de experiência dos pilotos a respeito da aplicaqão de conhecimentos procedurais em circunstâncias particulares. O quadro a seguir, propõe alguns exemplos diversificados de saber-fazer formalizados.
Quadro 3.4 Quadro 3.5 Saberes procedimentais (exemplos diversos)
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Método de resolução de uma equação de segundo grau
Saber-fazer formalizados (exemplos diversos)
Saber usar terminais informatizados
Procedimento de diagnóstico de uma avaria
a Procedimento de correção de erro em u m programa
Saber ler e entender u m mapa
Procedimento de controle de u m processo industrial
Saber desenhar u m mapa cotado a partir de u m gráfico
Procedimento de conserto de u m circuito eletrônico
Saber usar u m software CAD
Método de elaboração de u m plano de formação
Saber aplicar uma conduta preventiva contra avarias
Procedimento de tratamento de inconformidades
Saber conceber u m programa autômato
Técnica de conduta de uma avaliação de desempenho
Saber redigir procedimentos
Método de análise do valor
Saber construir u m diagrama de Gantt
Procedimento de atualização dos estoques ~
Saber conduzir uma reunião para estudo de problemas
..
Saber posicionar a peça em relação à soldagem, etc.
Método de elaboração do diagrama de ~ a r e t ò As regras e as formas de segurança, etc.
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Os saber-fazer empíricos
É o saber oriundo da ação. Compreende as lições tiradas da experiência prática. É o saber do ator, aquele que só pode ser produzido se houver uma ação. De maneira divertida, Paul Romer distinguiu: o hardware (o material), o software (os programas, o saber) e o wetware (o elemento úmido, vivo). Este último se refere ao saber-fazer experiencial, ao talento do artista, ao conhecimento tácito. Fazendo referência às três categorias de saber identificadas por Machlup, uma equipe de pesquisadores da Universidade de Ottawa evidenciou e chamou a atenção para o que denominou conhecimento do tipo delta (delta knowledge). Machlup distingue três tipos de conhecimentos: os conhecimentos aIfa (conhecimentos humanistas referentes a valores, crenças, julgamentos); os conhecimentos beta (conhecimentos científicos formados por deduções, axiomas, definições, modelos aplicáveis às ciências exatas); os conhecimentos gama (referentes às ciências sociais). Tal classificação não é exaustiva: tem o inconveniente de minimizar e deixar de lado o saber oriundo da prática. Isso é particularmente observável no ensino universitário. Por essas razões, mas também por razões de busca de financiamento para formações em administração que não dizem respeito às disciplinas universitárias preestabelecidas, Gilles e Paquet criaram a noção de "conhecimento delta". O conhecimento do tipo delta é osaber que se adquire "durante a ação", por intermédio da experiência, da prática repetida do tratamento "na hora" dos problemas profissionais, de aproximações reali~adasaos poucos, por meio da recorrência de situações similares ou próximas. E um saber contextualizado e contingente, que leva em conta aquilo que a teoria negligencia. Permite perceber os "sinais fracos", apontar os "indícios" que levarão ao caminho certo do diagnóstico e da ação. Para não ser pego desprevenido, o saber-fazer experiencial multiplica as experiências para aprender a reconhecer os sinais anunciadoses. O ver prevalece sobre o prever. O saber "dar uma olhada" não se origina da observação de séries estatísticas. É um saber que requer, frequentemente, uma mobilização dos saberes do corpo e dos sentidos (visão, postura, reflexos, sensibilidade, etc.) . É o "olhar" do fomeiro que sabe estimar a temperatura em função da cor da matéria em fusão. É o "ouvido" do fundidor de sinos ou do sineiro que assegura a sonoridade do sino. É o "nariz" do perfumista que sabe caracterizar o odor sutil de um perfume. É a "intuição" da enfermeira que sabe apontar, mais rápido do que o residente, o doente que vai apresentar complicações nos minutos seguintes. É o "olhar" do radiologista que interpreta uma chapa fotográfica. E o gesto seguro do pedreiro ao lançar o cimento com a sua pá. Segundo Schumpeter, o olhar e as intuições também são necessários ao saber inovar.
A inteligência prática é uma inteligência do corpo. É a desestabilização do corpo, alertado por sinais (visuais, auditivos, etc.), que suscita e acompanha a inteligência prática. Ela não passa pela problematização formal. Esse saber sabe estimar, de imediato, uma situação, "tomar atalhos", interpretar inconscientemente a informação útil ou dispensar o encadeamento de operações mentais. O biológico, o cognitivo e o afetivo não formam comportamentos estanques. Não esqueçamos a lição de Merleau-Ponty que previne contra as abordagens ou as explicações que "destroem a mistura da qual somos feitos e nos tornam incompreensíveis a nós mesmos". Eis a experiência do marceneiro: "Eu a ouvia [minha máquina]. O menor barulho era uma indicação. Olha lá, eu me dizia, é a correia enfraquecendo. Logo, terei de lubrificar a polia ..." (Caceres, 1984). E também a experiência dos ajustadores mecânicos, confrontados com a prática da ranhura no aplainamento de um bloco de aço doce: é preciso "ehcontrar uma posição estável nas pernas, manter os braços corretamente e deslocá-los juntos horizontalmente, sem imprimir na lima o movimento basculante que deixa a superfície côncava7' (Langlois, 1983). Um organizador experiente das linhas de trens em uma estação da rede ferroviária pode apontar, em um piscar de olhos, as anomalias que aparecem no diagrama dos acessos às plataformas ou em um quadro de sucessão de trens. O controlador de v60 entende, de imediato, as configurações dos diversos traçados de v60 em sua tela. Entre os controladores de vôo, a voz e o ouvido desempenham um papel importante. Não se trata somente de perceber com perspicácia uma tela de radar, mas de estar atento à voz do piloto para reconhecer o estado psicológico em que ele se encontra, qual é seu nível de domínio do inglês, qual é seu estado emocional, etc. O controlador de v60 sabe reconhecer a "cor da voz" do piloto. Ele deve saber trabalhar uma "atenção flutuante'' aberta ao imprevisto e ao inédito. Outro exemplo: o "senso clínico" do médico que sabe escolher as pistas clínicas mais pertinentes e reconhecer dentre todos os sinais levantados aqueles que podem ser considerados como sintomas. O profissionalismo também éfeito de perspicácia.
Esse saber-fazer empírico, inseparável do fazer, é validado mais por sua eficácia pragmática e imediata do que por sua coerência interna. A experiência é que permite fazer o que não aprendemos a fazer. O "saber local" presente na experiência se constitui em complemento ou em confirmação com o saber daqueles que o concebem. Esse saber-fazer é adquirido pela experiência da implantação de máquinas novas, pela reorganização da função do serviço de atendimento ao consumidor, pela instalação de um novo processo de fabricação, pelo tratamento de
uma avaria ou deficiência, pelo acompanhamento dos ensaios efetuados pelos construtores, pela organização e pelo tratamento sistemático dos resultados de experiências (muito desenvolvido,por exemplo, na indústria nuclear). Sendo um saber não-escolarizável, resulta da formação "no local de trabalho", do trabalho "de revezamento" ou de uma relação de cooperativismo, cuja pedagogia muitas vezes não é explicitada por parte daquele que guia ou acompanha a aprendizagem: o sujeito aprende pela impregnação lenta e progressiva da profissão. Saber este adquirido por meio da "pedagogia da disfunção", teorizada por Bertrand Schwartz. Portanto, se esses problemas não forem mais considerados como falhas, mas como oportunidades de reflexão, os jovens em formação aprenderão a entender melhor os processos de produção. Tive a oportunidade, no outono de 1983, de estudar com o BIT (Bureau Internacional do Trabalho) os processos de formação dos "aprendizes" no setor da economia informal de Bamako, em Mali. A partir de um trabalho de observação e da expressão dos artesãos e aprendizes, alguns elementos constitutivos desses processos puderam ser evidenciados. Eis alguns exemplos: Situação de descoberta de. um problema - Exploração pedagógica O orientador manda as crianças escolherem a madeira. Elas vão escolher a madeira que não está boa. Ele as deixa fazê-lo. Em seguida, o orientador lhes explica por que é preciso escolher tal madeira. Ele as coloca diante da escolha das madeiras.
Demonstração e explicação Na hora de cortar a madeira, elas a trazem. O orientador vai cortá-la em 3,5m. Ele explica por que se deve cortar em 3,5m e não em 3m, pois, se houver uma falha, pode-se, então, comgi-Ia facilmente. Em seguida, ele chega ao aplainamento e explica qual é o melhor método para aplainar.
Demonstração e aplicação Chegamos, então, ao desenho dos elementos. Nesse momento, o orientador chama os aprendizes: o aparador tem 60cm de altura, o pé tem 15cm, restam 45cm para a fachada do aparador. O artesão desenha de um lado. Ele manda o aprendiz repetir os desenhos nos outros lados. Ele deve explicar os encaixes e por que eles existem. O rapaz aprende as diferentes maneiras do desenho. Ele lhe mostra, então, como ajustar um graminho. Depois, ele mostra como cortar para dar.forma ao encaixe.
Explicação dos motivos d a operação e demonstração Chegou a vez de montar o madeiramento. Falta desenhar as portas. O orientador lhes mostra como desenhar uma moldura de portas. Ele lhes faz medir primeiro
o local onde vai a porta e explica que se deve deixar uma folga de, no mínimo, um cent,ímetro por toda a volta. Faz-se isso porque é preciso ajustar a porta depois. E preciso que a porta siga os padrões do aparador. Em segujda, o artesão passa à colagem e mostra aos aprendizes como se deve colar. E preciso que saibam por que esta ou aquela operação é necessária.
Explicação dafunção das ferramentas
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Quando a colagem estiver terminada, é preciso que o orientador mostre como deixar o aparador secar. E obrigatório recorrer a um nível de bolha. Deve-se, então, passar ao aplainamento e mostrar como evitar os empenos. Depois, é a vez do lixamento. Deve-se mostrar como se utilizam as folhas de lixa.
Apresentação dos procedimentos errados Agora, passa-se à furacão. É raro os aprendizes colocarem as fechaduras. É preciso que o aprendiz o faça sob o controle do artesão. Um parafuso não foi feito para ser martelado, mas para ser parafusado. Passa-se ao verniz, agora. É raro encontrar aqui um trabalhador que saiba envernizar. Ele acredita que passar o verniz apenas como uma pintura será suficiente. É preciso saber misturar o verniz e saber como espalhá-lo. Deve-se saber passar em pinceladas paralelas ou cruzadas. Depois, é preciso polir. Em seguida, deve-se passar a terceira demão. Depois, é preciso nivelar.
Vamos deter-nos, agora, em um segundo caso, o da formação de um aprendiz no próprio local do trabalho, tal como a concebe um mestre-de-obras na construção civil: Acompanhamento - observação - prova-teste - demonstração - aplicação controlada - correçóes Um aprendiz vem ao canteiro de obras, você lhe dá uma pá de pedreiro, um martelo, um fio de prumo, um cinzel. Ele está com você no canteiro. Agora, antes de começar, se você fez uma escavação, você lhe dá a pá de pedreiro. O peão faz a mistura e começa a colocar na escavação. O aprendiz observa e depois faz. Depois da escavação, começa-se a fazer a fundação. Logo, começa-se a colocar a argamassa. Então, você chama o aprendiz e, com o fio de prumo, pede-lhe "nivele para mim". Você observa como ele nivela. Se estiver bom, você diz que é preciso observar, que é assim que se nivela. Se não estiver, é preciso explicar como se nivela. Em seguida, passa-se a linha de pedreiro. Você o manda assentar os tijolos. Você o deixa fazer e o manda endireitar. Se não estiver bom, é preciso fazê-lo endireitar. Depois, é preciso situá-lo. É preciso lhe mostrar um pouco como fazer e observar. Então, se ele souber fazer, você o deixa trabalhar.
Vamos estudar um último exemplo, o de um artesão em construção metálica contando algumas sequências de formação de um de seus aprendizes:
Observação - prova-teste - observaçáo/demonstração - correçáo Quando um aprendiz vem, ele me observa quando estou trabalhando. Ele observa tudo o que faço. Durante um mês, ele observa como é, de que maneira se faz. Depois, para serrar, dou-lhe um serrote que não se quebre tão rápido. Se for um aprendiz que está na escola e que sabe medir, dou-lhe dimensões para cortar. Frequentemente, ele sabe medir, mas não sabe cortar. Depois, conduzo-o à bancada. Ele já me terá visto cortar durante, no mínimo, um mês. Ele começa a serrar, e eu o comjo. Não posso deixá-lo fazer todo o trabalho.
Exercícios - Prog~essáo Para aprender a soldar; o aprendiz com a máscara obsenra como eu soldo. Um dia, eu lhe dou pedaços de ferro para praticar. Depois, dou-lhe um trabalho mais complicado.
O que é preciso tirar desses exemplos - além do caráter completo ou incompleto das operações que descrevem - é a natureza do processo de transmissão de conhecimentos. Determinamos os seguintes elementos constitutivos: - a decomposição em sequências lógicas e cronológicas de operações;
- a demonstração seguida de trabalho de aplicação; - a explicação da razão dos gestos profissionais; - a explicação da função das ferramentas;
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a situação de teste do aprendiz para revelar seu comportamento espontâneo e seus erros; o acompanhamento de uma operação com correção simultânea e progressiva; o apelo a uma atitude de observação contínua da parte do aprendiz; O acompanhamento "passo a passo" pelo aprendiz de todos os gestos e atos realizados pelo artesão no decorrer de uma jornada de trabalho; o estímulo de exercícios ou trabalhos "livres" sem controle do artesão.
Em seu estudo realizado em 1983 sobre o saber intelectual e prático dos salineiros nas salinas da costa do Atlântico, Geneviève Delbos evidencia a diferença existente entre o saber científico e o saber empírico na "profissão do sal". Enquanto o cientista isola um número limitado de parâmetros mensuráveis, chegando, assim, a uma "leitura estilizada" do real, o salineiro, por razões de eficácia prática, deverá levar em conta uma multiplicidade de indícios ou sinais (direção do vento, altura da água, luminosidade, traços de vegetação, etc.). Estes, oriundos da diversidade das experiências práticas de toda uma profissão e do indivíduo, são contextualizados em relação à variedade das situações que podem apresentar-se. Eles resistem a qualquer tentativa de ge-
neralização. Essas referências variam com as situações, são contingentes. Enquanto a ciência objetiva postula que se pode isolar o saber daquele com quem se fala, o saber do salineiro é inseparável dele mesmo: "o saber-fazer se enuncia como um saber-viver". Ao contrário do saber teórico científico, o saberfazer experiencial não é essencialmente quantitativo. O quantitativo é traduzido por qualitativo. Para avaliar o grau de salinidade da água, uns irão apoiarse em sua composição: taxa de concentração em sais deduzidos do grau de acidez da água e de sua temperatura, esta interpretada a partir de leis referentes às teorias da física dos corpos. O salineiro tradicional vai tomar como referência a altura da água nas diferentes bacias de sua salina; como indício de que "está esquentando", a água ganha "grau" ou "força", ou, ao contrário, "há quatro dedos na salina, o sal não virá antes de uma semana"; sua cor: "está ficando avermelhada", é porque "o sal está por vir", "se à noite, embranquece, no dia seguinte você colhe"; em seu aspecto: "as salinas brilham ao sol, à luz rasante"; sua viscosidade: "há placas oleosas", [...I; a fauna e a flora aquáticas: "o lodo, as algas se decompõem mais ou menos, à medida que a água ganha força; ao contrário, ele se desenvolve rápido quando a água está calma demais, a presença de halófitas - plantas que crescem em ambiente salobro é também indício de uma água calma demais...". Esse saber-fazer empírico pode chegar a hipóteses de ação e sua probabilidade de encontro em certos contextos. Elas são elaboradas pelas.pessoas no decorrer de sua existência e são fruto da experiência. Alguns pesquisadores do INRA* (Nathalie, 1994) as designam com o termo ''referências reativas". Elas contêm regras de modificação de ações em situações consideradas previsíveis. Na exploração de sistemas forrageiros, essas referências poderão ser do tipo "se a estação for ruim, não ceifarei o lote duas vezes", ou ainda: "se eu não tiver colhido a metade do alqueive até o dia de São João, aumentarei a superfície ceifada por operação". É o saber-fazer do operador capaz de reconhecer, de imediato, a confiabilidade de um ponto de soldagem ou a do controlador de qualidade que pode detectar visualmente os defeitos de fabricação de um monitor de televisão. E o operário que sabe, por experiência própria, como abordar uma peça a ser industrializada. Sem esquecer outros casos como o do agente de recuperação de crédito, que sente em qual momento o contato de negociação comercial corre o risco de vacilar. Esses saber-fazer empíricos são frequentemente indispensáveis ao bom uso dos conhecimentos procedurais: a medição da temperatura de um forno com a ajuda de um termopar supõe que o condutor do fomo tenha um conhecimento deste, de modo que saiba onde e em qual momento ele deve efetuar a medição. Sem esse conhecimento, que só pode ser um saber-fazer oriundo da prática, a medição feita pode ser verdadeira, mas não pertinente. A termodinâmica é com*N. de R. INRA: Instituto Nacional de Pesquisa Agronômica.
DESENVOLVENDOA COMPETÊNCIA DOS PROFISSIONAIS
plexa: o condutor deve levar em conta variáveis diversas como qualidade das fontes de energia, homogeneidade das matérias-primas, propriedades físicas particulares do fomo, etc. O saber-fazer experiencial não suprime a capacidade analítica de julgamento, mas lhe dá uma base mais confiável. As máquinas nunca se comportam da maneira como os engenheiros ou criadores prevêem: sempre existe aprendizagem no estabelecimento das relações entre o homem e as máquinas, e não a simples execução de gestos pré-programados. O saber-fazer experiencial é a habilidade adquirida através do tempo. Robert Linhart o evoca muito bem em Greve na fábrica (1978), com o exemplo do retocador de portas na oficina de soldagem de automóveis: Esse retocador de portas é um francês. Um homem de cabelos brancos, meticuloso, cujos gestos hábeis observo com admiração. Diriam que é um pequeno artesão, e ele parece quase deslocado, esquecido como um vestígio de uma outra época no encadeamento repetido dos movimentos da oficina. Ele tem várias ferramentas à sua disposição - instrumentos de lirnagem, martelagem, polimento, ferros para soldar, estanho, maçarico, misturados em uma espécie de brique familiar onde ele se acha sem hesitar - e cada retoque trabalha uma operação particular, quase nunca idêntica à anterior. São os acasos do choque, dos transportes, dos solavancos e das colisões, das peças que caíram no chão ou levaram uma pancada de alguma empilhadeira que determinam o que deve ser endireitado, tapado, soldado, polido, retificado. A cada vez, ele pega a porta defeituosa, olha-a atentamente, passa um dedo nas irregularidades (ausculta também, concentrado como um cirurgião antes da operação), encosta-a, toma sua decisão, dispõe algumas ferramentas que lhe serão necessárias e se põe a trabalhar. Ele trabalha curvado, a 10 ou 20 cm do metal, preciso na limagem ou na martelagem, recuando apenas para evitar o feixe de faíscas da soldagem ou o v60 das aparas metálicas da limagem. Um artesão, quase um artista.
É a experiência do profissional veterano. Esse domínio do saber-fazer experiencial pode, assim, chegar à virtuosidade, em que a excelência se torna próxima da inocência: o virtuoso muitas vezes não sabe como descrever sua virtuosidade. Esta é efetivamente vivida no instante, na capacidade de reatualizar, na instantaneidade, seus atos em função da situação. Como o equilibrista em uma corda bamba que, segundo Michel de Certeau, sabe "a todo momento, manter um equilíbrio ao recriá-lo a cada passo, graças a novas intervenções". A virtuosidade é uma segunda natureza. Esse saber empírico, às vezes caracterizado como endógeno, é operatório e precário. Proveniente da resolução de problemas profissionais singulares,
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ele está limitado a situações particulares e, portanto, é pouco generalizável. É ligado à pessoa, e não universal. A transferibilidade desses saberes locais é fraca. Trata-se mais de "saber fazer lá" do que de saber-fazer. Encontramos a riqueza do "tato", mas também OS limites dos "truques" e das "astúcias". Esse saber está muito ligado a um "efeito de empresa": depende de suas tecnologias, seu modo de organização, sua concepção do trabalho, a cultura da comunidade à qual pertence. Tem a particul&idade do hic et nunc. Está limitado a uma certa gama de experiências. E o caso do conhecimento adquirido das máquinas por seu uso diário, das capacidades de detecção de suas avarias na circunstância do tratamento de casualidades ou de reparação de incidentes, dos saber-fazer relacionais estabelecidos com uma rede familiar de colaboradores ou de contatos. Os "saber-fazer rotineiros" fazem parte desses conhecimentos empíricos. São adquiridos pela experiência e aplicados de maneira autônoma. Os hábitos são desencadeados de forma não-controlada no momento da percepção de uma situação particular. Eles podem estar intimamente ligados a um contexto ou funcionar em relação a um conjunto de situações semelhantes ou próximas. Os saber-fazer rotineiros são de grande utilidade pelo princípio de economia que realizam. A conduta automática permite liberar a atenção para exercer outras atividades ou cuidados. Ela favorece a habilidade e a segurança do gesto, Os anglo-saxões se referem a isso como skills (habilidades). Em contrapartida, podem conduzir a fracassos pela junção de ações inapropriadas atribuídas a uma deficiência da representação da situação ou do objeto. O profissional consolidado e o especialista sabem aplicar em si "regras de interrupção". Elas consistem em saber quando interromper uma busca de informação, quando pôr fim a uma enumeração, quando parar o levantamento dos detalhes ou quando terminar uma pesquisa de causas. A exaustividade, na verdade, não é sempre necessária. Ela pode $é ser contraproducente. A experiência profissional permite adquirir essas regras, que fazem parte dos saber-fazer experienciais. Dificilmente exprimíveis e formalizáveis, tomados na opacidade da experiência, esses saber-fazer são, As vezes, chamados de conhecimentos "tácitos". Sua descrição é difícil. E o que Schon explica ao distinguir o conhecimento em ação (knowing-in-action),que o operador não pode explicitar quando se trata do conhecimento sobre a ação (knowing-on-action), no qual somente depois de ter agido é que o operador pode tentar reconstruir e formalizar seu saber-fazer. No segundo caso, o saber experiencial se tornará uma "prática refletida".
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DESENVOLVENDO A COMPETÊNCIA DOS PROFISSIONAIS
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O saber empírico resulta da aplicação do ciclo de aprendizagem conhecido como "modelo de Kolb", que podemos esquematizar assim:
Quadro 3.6
Experiência concreta
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1 Experimentação ativa
Conceitualização Abstraçáo
Reflexão
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É a partir da reflexão sobre a experiência concreta que um trabalho de abstração e de conceitualização poderá ser realizado para ser reinvestido em uma experimentação que dê lugar a uma nova experiência profissional. Como ciclo ou espiral de aprendizagem, o processo é conhecido por inspirar as.práticas de formação por alternância. Aprendendo a reconhecer os problemas e a classificá-los em reláção a contextos, o sujeito se tornará capaz de aprender a aprender. Ele também saberá não apenas resolver um problema em particular, mas várias categorias de problemas. Ele reconhecerá o que Bateson chama de "indicadores de contexto". Posta de lado essa prática refletida e tematizada, o saber experiencial dificilmente é verbalizável. Existe uma certa "impenetrabilidade cognitiva" dos gestos da profissão. Aquilo que é verbalizável constitui apenas uma parte do saber-fazer experiencial. O implícito e o subentendido prevalecem sobre aquilo que pode ser dito. Nesse "saber inconsciente", a não-visibilidade, o indizível é muito frequentemente a "arte" da profissão. Os "saberes atuados" não são completamente traduzíveis por "saberes produzidos". Eles se revelam refratários a toda formalização.
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Essa dificuldade a ser formalizada não deve conduzir à rejeição de todo esforço de expressão! A busca de uma linguagem apropriada permite progredir no saber experiencial. E o caso dos enólogos, que sabem desenvolver seu talento encontrando as palavras exatas para apreciar e fazer apreciar os produtos da videira. Simondon comparou o processo de um artesão oleiro de faiança e de um engenheiro que concebe uma máquina de moldes. Enquanto o segundo necessita de uma explicação de todos os dados do problema, de uma representação ou de um modelo prévio à realização, o primeiro age na incerteza, não conhecendo o mecanismo íntimo da operação: A condiqão para tomar firma é o sistema constituído pelo molde e pela argila pressionada; é a argila que toma forma de acordo com o molde, não o trabalhador que l h dá ~ forma [...], a representação da operação técnica não aparece no trabalho: E o essencial que falta, o centro ativo da operação que fica, é isso.
O desconhecido é superado em um processo heurístico de produção. O saber-fazer experiencial é importante na batalha da competitividade, pois é a partir de sua combinação com outros tipos de conhecimentos, jogando com sua complementaridade, e não com sua eliminação, que a empresa poderá enSontrar novas fontes de melhoramento de seus desempenhos. E preciso reconhecer que, sendo muito mais desenvolvido e reconhecido nas culturas germânicas e japonesas, esse saber sofre de uma marginalização nas culturas latinas. Uma das forças do sistema dual certamente é transmitir saberes do tipo delta. Na França, a vontade de desenvolvimento da formação por alternância está indo agora nesse sentido. A empresa de formação profissional (CEGOS) organizou, em Paris, em 1992, um colóquio sobre o conhecimento delta, que resultou em um acontecimento significativo. Esses saber-fazer empíricos não se tornam necessariamente obsoletos com a modernização das instalações ou das tecnologias de trabalho automatizado. Eles tornam um operador capaz de intervir em vários níveis. Um bom número desses saber-fazer são "saber-fazer recorrentes". Em uma indústria de processos, eles permitirão aos operadores retomar "de forma manual" uma instalação automatizada, efetuar interrupções, proceder durante uma inspeção de rotina, retirar amostras. São úteis para atenuar as deficiências dos subsistemas técnicos. O operador responsável por máquinas na indústria mecânica sempre necessita, mas de maneira episódica, de habilidades tradicionais referentes à fabricação das peças, especialmente quando se trata de cuidados e manutenção. Na indústria química, a conduta automatizada não suprime o recurso aos saber-fazer de experiência. O monitor e o teclado não reduzem a competência dos operadores a capacidades de abstração e de trabalho em representações simbólicas. O profissional competente sabe sentir e pressentir os incidentes.
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O saber-fazer experiencial não deve ser negligenciado nem depreciado como frequentemente tem ocorrido. Michel Serres (1985) nos lembra que, antes dos mapas marítimos e dos instrumentos de navegação, os pescadores de alto-mar sabiam notavelmente navegar e se situar: os mestres da escrita fizeram desaparecer o saber dos sentidos: Assim, os fabricantes de mapas puderam dizer que tinham descoberto a América, fazer acreditar nisso e levar a glória, enquanto que cem pescadores, seguindo os traçados dos reflexos ondeados, haviam tocado nela sem clamar aos quatros ventos. O triunfo do verbo escrito produziu uma catástrofe perceptiva. A idade da ciência refez iconoclastas no nível dos sentidos e destruiu, de cabo a rabo, saberes prodigiosos nas proximidades do percebido.
Não esqueçamos, de fato, que a detecção dos incidentes exige frequentemente raciocínios que se orientem em função dos indicadores (controle'visual, detecção tátil, etc.). Na Bronze Acior, uma operação de transferência de saber-fazer experienciais foi instalada. Seu diretor-presidente assim a descreveu: Grupos de voluntários com experiência se reuniram. Fomeiros de cadinho, operadores de vazamento, operadores de máquinas CNC, especialistas em eletroerosão e em afiação se reuniram por competências e conceberam e deram forma a verdadeiros manuais de formação. Foi um trabalho longo, mas extremamente produtivo. A experiência, porém, não parou nessa etapa. Os próprios criadores se tomaram usuários de seus manuais e formadores dos novos contratados ou antigos colaboradores que praticam a mobilidade interfuncional. Assim, antigos colaboradores, às vezes bem próximos da aposentadoria, puderam realizar duas tarefas que, a priori, consideravam inacessíveis: registrar seus saber-fazer em manuais pedagógicos e se tomarem eles próprios formadores! Devemos sorrir quando um desses colaboradores que vai aposentar-se pergunta se pode levar consigo um exemplar do manual que contém toda a experiência de sua vida profissi~nal?Ou quando uma mulher ainda jovem que mostra triunfalmente o exemplar do manual que ela contribuiu para criar exclama: "E como se eu tivesse um diploma!"? E não existe, em contrapartida, uma profunda tristeza ao constatar, em algumas grandes empresas, a saída forçada para a préaposentadoria de colaboradores ricos de insubstituível experiência, sob o único pretexto de que passaram da idade?
Na ocasião de um plano social lançado em 1995, a Refinaria BP de Lavera, em Bouches-du-Rhône, questionou-se sobre como fixar a memória de seus conhecimentos e práticas profissionais consideradas essenciais. Uma operação, significativamente chamada de TSF (Transmissão de saber-fazer), foi aplicada. Ela consistiu em ajudar os antigos, profissionais veteranos, a formalizar e transmitir seus saberes e saber-fazer aos mais jovens. A transferência foi efetuada de pessoa a pessoa, de maneira vívida. Apenas em um
segundo tempo, um documento de síntese foi estabelecido. Os mais velhos foram levados a recuar em relação à sua atividade, de maneira a poder descrever a forma como procediam, as informações que consideravam, os interlocutores que solicitavam, as cooperações que punham em prática, os controles aos quais procediam. Quando a Céramique de France decidiu, em 1991, ampliar sua produção à fabricação de placas decorativas à base de porcelana, ela recorreu à missão Nouvelles Qualifications (Novas Qualificações) para recrutar jovens e levá-los a uma ação de inserção qualificadora. O conjunto das observações e sugestões de melhoramentos, recolhidas na ocasião das discussões entre o quadro de pessoal e os operadores, foi então reunido e descrito em fichas intituladas "saber-fazer particulares". Elas permitiram chegar a normas e procedimentos amplamente aceitos e apropriados. A experiência, porém, sabe guardar suas incógnitas e seus segredos. Ela pode ser fonte de um certo poder ou, pelo menos, a organização de zonas protegidas. Já Diderot, na época da redação da Enciclopédia, defrontou-se com a resistência dos artesãos em explicitar seu saber-fazer. Não esqueçamos de que, em latim, tacitum também quer dizer segredo, mistério. Tomemos o exemplo de um operário da Fiat que soube criar intervalos de tempo disponíveis. Ele descobriu como era melhor pisar alternadamente um pé após o outro no pedal de uma prensa do que usar o pé direito: Os outros, em geral, pisam no pedal com o pé direito. Mas essa maneira de proceder exige uma tensão maior, pois devemos esperar tirar a mão antes de pisar, senão corremos o risco de ter o braço preso entre as duas partes da grade de proteção. Meu método reduziu todo o movimento a uma simples operação mecânica. Quando a grade está se fechando, minha mão está se retirando. Assim, reduzimos o tempo de trabalho de forma considerável. E não podem me tirar esse método, porque quando o cronometrador está lá, eu trabalho como todo mundo. No que tange ao trabalho, me considero um bom operário, já que consigo ganhar vários minutos nos tempos impostos pela divisão de métodos. E, para mim, ganhar tempo sempre quer dizer ganhar a possibilidade de conversar com os colegas (Oddone, 1981).
Os s a b e r ~ empíricos s nem sempre podem ser colocados em programas de informática. E o caso da operação de um alto-forno graças à observação da chama e do soprador de vidro que sabe conseguir formas e colorações particulares. Não esqueçamos a etimologia da palavra expert (do latim: experiri, exprimir). O expert faz corpo com sua especialidade. Esta permanece, muitas vezes, dificilmente formalizável. Há um limite intrínseco ao próprio trabalho de explicitação da experiência, na tentação de transparência. Michel de Certeau, apoiando-se no exemplo do encaminhamento, distingue o traço da prática em todas as atividades enunciadoras (falar, escrever, pintar, etc.): "Os registros de percurso perdem aquilo que já foi: o próprio ato de passar". O movimento de
DESENVOLVENDO A COMPETÊNCIA DOS PROFISSIONAIS
aplicação dos saber-fazer experienciais não poderia ser confundido com a detecção a posteriori de seu desenrolar. Isso vale para os conhecimentos "tácitos". Tentando analisá-los, explicitá-los, não estaremos arriscando em perder aquilo que constitui sua verdade? Existe um limite para fazer falar o silêncio das competências tácitas: não é ilusório querer explicitar o que tem justamente como característica funcionar sem explicitação? Encapsulados na ação, esses saber-fazer empíricos servem sem que saibamos como. Existe uma automaticidade do desenrolar. E o caso do uso que fazemos da gramática de nossa língua materna: a utilizarmos sem estarmos conscientes dela e podemos ensinar a outras pessoas aspectos gramaticais que jamais empregamos. Os saber-fazer cognitivos
Eles correspondem a operações intelectuais necessárias à formulação, à análise e à resolução de problemas, à concepção e à realização de projetos, à tomada de decisão, à criação ou à invenção. Essas capacidades cognitivas são postas em execução e organizadas entre si por um sujeito em interação com seu meio. O sujeito pode ser considerado como um sistema aberto suscetível de organizar e de reorganizar suas capacidades cognitivas em função das características particulares do meio com o qual ele se relaciona. Operacionalizadas sob forma de operafóes intelectuais, essas capacidades podem consistir: seja na realização de ações interiorizadas relativamente simples: enumerar$classificar, distinguir, comparar, descrever, definir, explicar, determinar contradições, identificar aspectos, etc. Métodos de educabilidade cognitiva, tal como o treinamento mental, visam a desenvolver e a articular essas capacidades. Em uma outra época, a aprendizagem do latim tinha essa reputação de treinar para a lógica; seja em operações mais complexas dentre as quais se encontram: a generalização indutiva (passar de "alguns" a "todos", de "até agora" a "sempre"), a generalização construtiva (produção de novas formas, de novos conteúdos), o raciocínio analógico (a exploração por metáforas, o pensamento antecipatório, o pensamento hipotético, as capacidades de síntese, o raciocínio por recorrência, o raciocínio por transitividade). Em todos os casos, trata-se exatamente de ações interiorizadas: "deduzir é construir", dizia Goblot em seu Traité de logique.
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Essas operações dependem tanto das funções do lado esquerdo do cérebro (lógica, análise, etc.) quanto daquelas do lado direito (síntese, julgamento, intuição, etc.). Tais capacidades e processos cognitivos são produtores de inferências, isto é, de novas informações criadas a partir de um conjunto de informações iniciais. Alguns trabalhos de pesquisa em psicologia cognitiva distinguem o processo ou "cadeia inferencial", que constitui o raciocínio, e o resultado do processo, que é a inferência final na qual ele culmina. As inferências podem levar a novas informações, mais gerais do que as premissas iniciais: são os raciocínios indutivos. Outras podem levar a informações mais específicas do que aquelas dadas de início: trata-se dos raciocínios dedutivos. Outras distinções importantes: conforme os contextos das situações de trabalho encontradas, certas informações poderão ser mobilizadas de modo automático e com rapidez: serão designadas de inferências "imediatas". Elas recuperam diretamente esquemas memorizados de ação. Outras apenas poderão ser produzidas por intermédio de raciocínios explícitos efetuados na memória: são os processos controlados de produção de inferências. Estas serão postas em ação para realizar objetivos operacionais que podem ser de compreensão (um esquema, uma instrução, um modo de uso, um procedimento, etc.), de execução de um procedimento aplicável a uma situação identificada em uma tipologia, ou de resolução de problema. Nesse último caso, o operador deverá efetuar um desvio por meio da construção de uma representação adequada. Os tipos de raciocínio desenvolvidos são estreitamente ligados aos contextos que os solicitam e os condicionam. Dependem, ao mesmo tempo, das características da situação encontrada e daquilo que está armazenado e disponível na memória do operador. Conforme o caso, a memória de trabalho será mais ou menos solicitada para construir os raciocínios. A produçáo de inferências
Dentre os principais procedimentos de produção de inferências existem: A indução, que consiste em generalizar a partir de observações efetuadas: ocorre na formação e na verificação de hipóteses, na passagem dos fatos às noções e das observações aos conceitos. O pensamento indutivo, sustentado pela abstração empírica, extrai as informações dos objetos ou das situações. Ele procede a uma triagem do que ela seleciona e exclui. Por meio da generalização indutiva, o sujeito passa, segundo Piaget, "de alguns a todos, de até agora a sempre". Esse tipo de abstração recorre a quadros assimiladores provenientes dos esquemas de pensamento construídos anteriormente. E a partir da diversidade das experiências e das observações particulares que a inferência indutiva vai apreender e construir uma enunciação global. A partir de uma fonte restrita de informações, várias conclusões são possíveis.
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Em sua análise "do modo de existência dos objetos técnicos", Simondon mostrou o quanto esse pensamento indutor se desenvolvera historicamente nas situações de trabalho a partir da fragmentação das técnicas e do fracasso da ação técnica direta, parcelar e fragmentada. O que ele busca é a "realidade de fundo" que foi ocultada pela "realidade figurar, que resulta do recorte da abordagem técnica. É essa reflexão teórica que vai permitir que se encontre a totalidade e a coerência das condições que explicam um fenômeno e nas quais se realiza uma operação técnica. E preciso que a hidrostática venha em auxilio do saber técnico do encanador e de sua bomba aspirante quando a água não sobe além de uma certa altura. Da observação, será necessário recorrer a um sistema homogêneo de explicação construído em torno da noção de pressão. A abstração reflexiva, que permite a formalização e a tematização dos saberes. Diferentemente da abstração empírica que incide sobre objetos, fenômenos ou situações, a abstração reflexiva incide sobre os esquemas operacionalizados pelo sujeito, para deles extrair as principais características e aplicálas a novas situações. As operações cognitivas se tornam objetos de pensamento. Um duplo movimento se exerce: a reflexividade (que culmina na conceitualização oriunda de A) e a reflexão (que constrói novas formas e reorganiza esquemas) a aplicar a B. É a reflexividade que permite ao sujeito se dotar de uma representação da ação, representação a partir da qual ele poderá fazer sua reflexão. Quadro 3.7
Conceitualizaçáo Reflexividade
Açáo A
4
Açáo B Reinvestirnento O Le Boteti
Esse movimento contínuo de "generalização construtiva" é essencial nos processos de aprendizagem contínua. A generalização, que consiste em estender a uma categoria inteira características que pertencem a alguns casos singulares dessa categoria.
A dedução, que produz novos conhecimentos a partir de premissas (leis, princípios, fatos, postulados, etc.). Diferentemente da indução, que generaliza, que passa do um ao múltiplo, a dedução diz respeito a um processo de particularização: as conclusões são mais específicas do que as premissas. Os raciocínios por exclusão (demonstra-se a verdade de uma proposição demonstrando a falsidade de todas as outras alternativas); os silogismos constituem boas ilustrações disso. A dedução por entimema, que se caracteriza por um raciocínio que leva a uma conclusão considerada apenas como verossímil. Esse procedimento é utilizado com frequência pelos peritos, que devem fazer um trabalho de apreciação e racionar em termos de probabilidade. A abdução, que consiste em determinar, em campos diferentes, traços comuns. Trata-se, segundo Grégory Bateson, de "procurar novas similitudes, depois de ter constatado uma primeira semelhança entre A e B". Essa forma de raciocínio chama atualmente a atenção de certos p&squisadores; na Itália, a Associação ARIELLE (Analyse, Réalité, Emotion, Loi, Esthétique [Análise, Realidade, Emoção, Lei, Estética]) - que agrupa artistas, semiólogos, filósofos considera esse procedimento intelectual como o centro do pensamento criador. Na área da anatomia, pode tratar-se da "semelhança formal entre dois org&ismos tal que relações existentes entre certas partes de um são semelhantes às relações existentes entre as partes correspondentes do outro" (Bateson). A partir da anatomia de uma rã, é possível buscar na natureza outros seres vivos caracterizados pelo mesmo tipo de relações abstratas. A abdução é útil para formular hipóteses diante de fenômenos estranhos ou inexplicáveis. É, segundo Umberto Eco, "a arte da conjectura". Em seus "textos anticartesianos", Peirce define a abdução como uma "inferência pela qual se passa de um fato surpreendente e inexplicável pelos conhecimentos atuais admitidos a uma hipótese nova capaz de dar conta disso. Ao contrário da dedução, não há, na abdução, métodos rigorosos que permitam passar à hipótese. Segundo Peirce, os argumentos abdutivos são fracos, mas válidos: "um argumento pode ser perfeitamente válido e, ainda, excessivamente fraco". O raciocínio abdutivo é aquele aplicado pelo detetive: ele sabe reconstruir uma história a partir de seus indícios ou fragmentos. A transdução, que consiste em "construir um objeto possível [...I a partir de informações sobre a realidade assim como de uma problemática baseada nessa realidade" (Lefebvre, 1961). O possível é considerado como algo que faz parte do real a ser estudado. A metáfora e a analogia, que são ferramentas de pensamento muito úteis tanto para a transdução quanto para a abdução. Elas podem constituir atos criativos. A metáfora permite estabelecer pontes, graças ao que Descartes denominava "a força da imagem". O pensamento metafórico consiste em propor analogias entre o contexto habitual de um fenômeno e um contexto novo no qual ele é arbitrariamente introduzido. Tal aproximação pode ter um efeito
DESENVO~VENDOA
esclarecedor ou ilustrativo, podendo induzir hipóteses inovadoras. Entretanto, é preciso conhecer seus limites científicos. Diferentemente de um modelo, a metáfora não poderá ser explorada sistematicamente, nem substituir a verdade científica. Seu efeito criativo não deve levar ao que Bachelard chama de "fugas de pensamento" e que deformariam um procedimento científico. Determinados esses limites, não esqueçamos a observação de Thom: "Dispor de uma metáfora onde não se tinha nada já é um sólido progresso!". A metonímia, que consiste em representar o conjunto de uma coisa por uma de suas partes (por exemplo, uma 'tela" designará um barco). O pensamento metonímico aparece na linguagem icônica presente nos softwares e nos computadores. Metonímia, analogia, metáfora ... O pensamento não se efetua unicamente por raciocínios lógicos. Ao contrário do indivíduo, a pessoa também pensa por imagens, com representações arbitrárias, reagindo a sinais arbitrários. A riqueza imaginária é um recurso para a competência.
COMPETENCIA
DOS PROFISSIONAIS
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plos de situações em que a expressão é bloqueada porque cojsas demais se apresentam, desordenadamente e ao mesmo tempo, à mente. E nesse caso que recorrer a estruturas simples ou, se preferirem, a pequenos modelos, pode auxiliar. Todos nós utilizamos inconscientemente um pequeno número deles. Se tomarmos o cuidado de identificá-los, será possível apelar para eles quando se fizer necessário, seja para buscar informações externas, analisando por referência o que é dado a ver ou a ouvir, seja para buscar um pouco sistematicamente o que está no interior de si e poder dizer, então, o que lá se encontrou". Os esquemas seguintes são exemplos dados por François Viallet de sua "caixa de ferramentas".
O modelo cronológico
Os esquemas assimiladores Antes
A produção de inferências é facilitada pela memorização e pela utilização de esquemas assimiladores. Um esquema é uma estrutura composta de entidades entre as quais existem relações. Ele comporta variáveis que ainda não estão particularizadas para uma utilização em um contexto específico. O esquema permanece impreciso quanto a seu modo de emprego e à consideração das restrições de ordem. Ele contém regras gerais que não são acompanhadas de instruções ou de conselhos que permitam sua operacionalização efetiva. Esses esquemas são guias ou modelos que orientarão o sujeito em sua busca e compreensão das informações e servem para enfrentar a complexidade das situações encontradas. Podem constituir tanto meios de leitura quanto ferramentas de ação e fornecerão hipóteses para aceder aos conhecimentos pertinentes, assimilar novos dados, interpretar uma situação., inferir novas informações, além mesmo das constatações. Podem tomar a forma de "quadros" ou de "roteiros típicos" que permitirão antecipar acontecimentos e efetuar inferências. Eles poderiam apresentar-se sob forma de patterns, de sintomas ou de indícios facilitando os diagnósticos. Fazem parte dessas estruturas assimiladoras que permitem, segundo Piaget, ordenar as informações extraídas do exterior e torná-las compreensíveis. Podem-se distinguir esquemas "recipientes" (que marcam uma fronteira entre o exterior e o interior), esquemas "fonte - caminho - alvo", esquemas "centro - periferia", etc. Os esquemas operatórios assim construídos vão seMr para a orientação das futuras combinações de recursos a serem realizadas em situações profissionais nas quais eles se revelarem pertinentes. São ferramentas para a expressão; François Viallet (1978) deu alguns exemplos disso em um artigo notável e pouco conhecido: "De fato, não faltam exem-
Hoje
Depois
O modelo dos "aspectos"
Fonte: F. Viallet, 1978
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GUY LE BOTERF
O modelo demonstrador Se:
Então
Portanto Fonte: F. Viallet, 1978
O modelo de classificação
Fonte: F. Viallet, 1978
O modelo de processo Quem 4
O O
v
O O O
O quê
I
* C
H Fonte: F. Viallet, 1978
,
O último modelo - extraído de Conty - mostra "um ator (quem), um objeto (o quê), resultados esperados da ação (sinais lineares). A seta que vai do ator ao objeto simboliza a estratégia da açáo, que requer, ela mesma, a utilização de meios (os pequenos círculos). No pontilhado, figuram os resultados obtidos, sempre diferentes daqueles que se esperava. O quadrado C ilustra o órgão de controle que analisa as variações entre os resultados esperados e os resultados obtidos, e que assinala ao ator que será necessário corrigir o alvo se ele quiser reduzir as variações. Pode-se enriquecer o modelo à vontade, fazendo figurar o contexto no qual se encontra a ação...". Tal modelo, diferentemente do anterior, facilita a descrição de um processo e a antecipação das variáveis que caracterizam seu desenrolar. Os esquemas são desencadeados a partir de indícios que o sujeito percebe em uma situação e que lhe permitem resgafar o vestígio de uma configuração (de um tipo de problema, por exemplo). E o a priori que guia a busca. Em seu "Esquisse d'une sémiophysique" (Esboço de uma semiofísica), Thom estudou essa busca das formas significantes. Verificase que somente certas configurações fazem sentido: são as formas "salientes7', isto é, "toda forma vivida que se separa nitidamente do fundo contínuo sobre o qual ela se destaca". Os esquemas são de grande utilidade para resolver problemas por transferência ou analogia. Um problema ou um procedimento qualquer sempre será tomado na espessura de seu contexto. O mesmo ocorre com a experiência concreta, que é singular e não poderia ser repetida da mesma forma. Os dados de uma situação profissional são sempre únicos. O trabalho de consultoria em uma empresa toma possível encontrar sempre essa situação: "Minha empresa é totalmente distinta das outras", "O modo como os problemas se apresentam nas minhas oficinas não tem nada a ver com a oficina vizinha...", ouve-se regularmente. Isso é verdade, e, no entanto, transferências e analogias são possíveis por meio de uma generalização por modelação. Esses esquemas, também chamados de "estruturas prototípicas", possibilitam a inferência de novas informações além daquelas fornecidas pela observação e pelo levantamento de hipóteses. Eles permitem que o especialista, diferentemente do principiante, organize o saber em torno de modelos, e não somente em função do enunciado dos problemas. É o caso do consultor experiente, cuja capacidade de escuta não se limita a reproduzir o que diz seu cliente, mas a acrescentar algo a isso, propondo uma reformulação que leva a um avanço na problematização. Esse ganho em reformulação só será possível se o consultor dispuser de esquemas assimiladores que permitirão produzir uma nova significação, esclarecer uma situação, enriquecer pontos de vista e extrair hipóteses de explicação e de solução. Os esquemas se caracterizam por sua estabilidade relativa. Eles evoluem, mas lentamente, sob o jogo combinado dos processos de assimilação e de acomodação. Os indivíduos que têm tendência a autojustificar seus esquemas, são submetidos ao que Fiske e Taylor denominam "o efeito de perseverança".
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GUY LE BOTERF
Saber-fazer cognitivos e resoluçáo de problemas
Os saber-fazer cognitivos operam na resolução de problemas. Com Landa e Briand, podem-se distinguir quatro procedimentos de resolução de problemas:
O algoritmo simples: é a aplicação sistemática de um procedimento de encadeamento de operações elementares. O algoritmo de tentativa: é um procedimento por tentativa a partir da mobilização de diversos algoritmos já memorizados. A heurística por associação de idéias: é um procedimento de resolução por analogia. Elementos de solução são extraídos de diversos sistemas. A heurística por descoberta verdadeira: é a descoberta por exploração ativa. É a operacionalizaqão do que se chama, às vezes, de "pensamento divergente". O sujeito chegará a uma criação nova por correlação de elementos que não devem, a priori, ter nenhuma relação uns com os outros. Desse encontro inesperado, pode surgir a novidade. Ela supõe saber organizar a contingência e o encontro de materiais díspares. Cada um desses processos apelará para encadeamentos de saber-fazer cognitivos. Salientemos, de passagem, que o funcionamento intelectual pode também se arriscar além do pensamento racional. Em um rico ensaio, Hofstadter (1985) distingue três modos de funcionamento psíquico: O modo mecânico (modo "M"), que corresponde a um funcionamento automático, não-reflexivo. O sujeito segue regras sem se interrogar s o b ~ oe que faz, sem "sair" de seu sistema de ação para poder modificá10. E o universo do repetitivo. O modo inteligente (modo "I"), que é o do exercício do pensamento racional e reflexivo próprio ao homem. O modo paradoxal (modo "V',como Ummon, o mestre Zen). Ele é, antes, um "des-modo", que,consiste em se libertar de todas as premissas dos modos anteriores. E o funcionamento do pensamento criador que supera o confronto com os paradoxos e ocorre nos momentos de mudanças do p e n s p e n t o durante revoluções científicas que adotam novos paradigmas. E, porém, um modo arriscado, no qual a transgressão do racional pode levar à fronteira do patogênico: Bateson mostrou que ultrapassar essa fronteira era mais uma questão, de grau do que de natureza. Verlet (1993) comentou tal abordagem: "E violando, de tempos em tempos, as regras lógicas às quais a razão os convida a se submeter que os seres humanos aprendem a falar, a manipular abstrações, a buscar sempre além do racional". Esse modo de funcionamento é difícil de descrever, já que, segundo Hofstadter, "não se pode pensá10, mas se pode pensar com ele". Por que não afirmar que o sujeito competente é também aquele que sabe apelar para os diferentes mo-
dos e para as capacidades cognitivas que os subentendem, em particular o segundo? As capacidades cognitivas constituem uma espécie de "caixa de ferramentas" a partir das quais várias combinações são possíveis para se adaptar permanentemente às características e à evolução das situações profissionais. E necessário um "projeto de sentido" para estruturar as diversas operações mentais. Não esqueçamos que, etimologicamente, compreender é "apreender em conjunto". Os saber-fazer cognitivos se inserem no procedimento permanente de equilibração descrito por Piaget entre as estruturas de assimilação (os fenômenos são integrados a estruturas intelectuais anteriores) e as estruturas de acomodação (as estruturas ou os esquemas devem adaptar-se às situações particulares externas). Esse reajuste perpétuo entre incorporação e acomodação é a base do movimento de adaptação do sujeito à realidade. M o d o s d e manifestaçáo dos saberes
É muito difícil, até mesmo impossível, seguir, em psicologia, o conteúdo ou a representação dos saberes. A ambição científica se torna pretensão quando crê alcançar a transparência total dos processos cognitivos. Em contrapartida, pensamos que é possível e operacional caracterizar o "modo de manifestação" de um saber. O "modo declarativo" exprime os saberes em termos de conhecimentos "proposicionais", de enunciados "sobre" alguma coisa: tanto uma lei química ou física quanto um método ou um procedimento. O conhecimento dos diferentes tipos de soldagem, das regras de posicionamento de uma peça ou do método a seguir para elaborar um plano de formação tange ao modo declarativo. A expressão declarativa de um procedimento ainda não é um saber-fazer procedural. O modo declarativo descreve saberes separados de seu modo de uso. Ele não diz como, onde ou quando utilizá-los. ~ r ê s ~ r o ~ r i e d a dsegundo es, Jacques Pitret, caracterizam esse modo: a generalidade (os saberes descritos podem ser utilizados para múltiplas aplicações), a legibilidade, a modalização (os saberes são relativamente independentes de outros saberes declarativos). O "modo procedural" é integrado nos comportamentos. Com esse modo de expressão, os saberes se expressam mais na atividade do que na linguagem natural ou simbólica. Esse modo é o do saber encapsulado na manifestação comportamental. O modo declarativo serve para descrever, e o modo procedural serve para prescrever. Certos saberes se expressam de um modo, outros, em duplo registro. A gramática materna se encontra nesse último caso. Pode-se ensinar a um estrangeiro construções de frases que não se utiliza nunca, mas que se aprendeu de maneira declarativa.
O quadro seguinte propõe uma recapitulação sintética dos diversos tipos de saberes e de saber-fazer mobilizáveis, suas funções e dos tipos de aquisição correspondentes, assim como algumas hipóteses sobre seus modos de manifestação.
Quadro 3.8
Saber-fazer sociais ou relacionais
Saber cooperar Saber conduzir-se
Experiência social e profissional
Procedural
Saber-fazer cognitivos
Saber tratar a informação Saber raciocinar
Educação formal Formação inicial e contínua experiência social e profissional analisada
Procedural
O Le Boterí
Aptidões ou qualidades pessoais
São os recursos mais difíceis de expressar e de descrever, no entanto, não devem ser negligenciados, já que no mercado de trabalho essas qualidades pessoais são cada vez mais procuradas. Dentre essas qualidades, poderemos encontrar: rigor, força de convicção, curiosidade de espírito, reatividade, etc. A dificuldade, mas também a
necessidade, será descrever essas qualidades de modo a poder reconhecê-las e apreciá-las. A descrição de tais qualidades permitirá expressar sua tradução em um contexto particular. Tratar-se-á, pois, de identificar qualidades contextualizadas. Uma pessoa pode ser rigorosa ou pontual em uma situação de trabalho e pouco rigorosa ou pontual na organização de sua vida familiar. As descrições permitem, então, expressar a atualização dessa qualidade em uma situaçso profissional particular. Não se trata, aqui, de querer estimar o "saber ser7'de uma pessoa, o que seria ilusório e, ao mesmo tempo, abusivo. Quem poderia apreciar de modo global o saber ser de um indivíduo? Cada indivíduo se comporta diferentemente de acordo com as situações e desempenha vários papéis nos múltiplos contextos de sua vida pessoal. Avaliar o saber-ser seria invadir o que Hubert Boucher chama, de maneira um tanto provocante, mas expressiva, de "direito à opacidade". Em compensação, parece-nos lógico evidenciar certas qualidades esperadas em uma situação profissional e que deveriam ser descritas em função desta. O rigor será descrito em termos de respeito aos procedimentos ou de controle dos resultados; a curiosidade, em termos de busca de informações; a antecipação, em termos de elaboração de projetos e de detecção de incidentes. Pode-se compreender a importância dada à noção do saber ser, mas isso tambcm pode revelar-se perigoso. E evidente que o que se chama, às vezes, de "competências comportamentais" assume cada vez mais importância no exercício de uma profissão: a capacidade de escuta, as atitudes de acolhida, a capacidade de iniciativa, a tenacidade e a autoconfiança são qualidades cada vez mais requeridas nas situações profissionais. As exigências de qualidade de serviço e de cooperação, a complexidade dos problemas a resolver, as arbitragens ou os acontecimentos aleatórios que se deve enfrentar são, dentre outros, fatores largamente explicativos. Isso vale não somente para os funcionários mais graduados de uma organização, mas também para todos os empregados. E normal, portanto, que a gestão ou que uma política de recursos humanos procure obter "comportamentos profissionais" desejados. O profissionalismo não é somente uma questão de saber-fazer: ele também tange ao saber ser. A noção de saber ser é uma noção de risco, pois induz um julgamento sobre a personalidade e, por conseqüência, a seleção das personalidades. Se é verdade que alguns tipos de personalidade convêm mais a certos tipos de profissão, pode-se considerar que diversas personalidades podem muito bem exercer a mesma profissão. Como Sandra Bellier mostrou muito bem em sua pesquisa sobre "O saber ser na empresa", o saber ser não deve ser considerado como algo que os indivíduos "detêm", mas como um resultado proveniente de uma situação dada. O saber ser resulta da interação entre uma personalidade e uma situação específica. Existem várias maneiras singulares de agir com pertinência e competência em um contexto particular.
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Convém ser muito vigilante sobre os riscos de perfil comportamental único, pois a empresa não se beneficiará com a clonagem de personalidades. Ao querer considerar o saber ser como um dos atributos da personalidade, correse risco de procurar o homem ideal, o "jovem executivo dinâmico", a personalidade preciosa ou a mais conforme possível. Os referenciais de competências listarão tais qualidades, mas essas enumerações serão bem pouco utilizadas. Além disso, as reações de defesa e de rejeição não deixarão de se manifestar, sobretudo nas culturas latinas, marcadas pela herança do direito romano, pelo qual a esfera do privado é rigorosamente defendida como um domínio reservado preservado. E, pois, preferível abandonar os raciocínios em termos de saber ser ou, mais precisamente, converter o saber ser em exigências de saber agir. O que importa descrever e avaliar é a maneira como uma atividade deve ser realizada, os critérios almejados do modo de proceder em uma situação dada. São as características esperadas da atividade de acolhida ou da relação comercial que devem ser precisadas, não o perfil de personalidade da recepcionista ou do agente comercial. O que será avaliado ou, antes, co-avaliado, não será a pessoa, mas seu agir profissional em um determinado contexto. As empresas francesas Air France, EDF e La Poste se comprometeram com a elaboração desses scripts ou "modelos de interação".
Em seus trabalhos sobre a invenção, Henri Poincaré determinara bem o papel central do saber combinatório. Para ele, as invenções eram as que provinham de uma combinação entre elementos extraídos de áreas muito distantes. O inventor é aquele que sabe trabalhar com combinaqões prováveis já préselecionadas. Ele age, como dizia Poincaré, como "um examinador do segundo grau, que só interrogaria os candidatos declarados admissíveis após uma primeira prova". Segundo Damasio, essa pré-seleção se parece muito com aquela efetuada pelos marcadores somáticos. Pelo menos, essa é uma hipótese que ele julga suficientemente fundamentada para conduzir suas pesquisas.
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Recursos emocionais
Não basta dispor de conhecimentos e de habilidades para agir com competência ou para elaborar estratégias eficazes de ação. Os trabalhos do professor Antonio D. Damasio em neurologia (1995) mostram que o raciocínio só pode ser verdadeiramente pertinente quando informado pelas emoções: "o organismo tem certas razões que a razão deve absolutamente levar em conta7'. Se as reações emocionais podem constituir riscos e obstáculos, também podem ser uma vantagem e uma ajuda. Conhecer sem sentir pode levar ao erro e ao comportamento irracional. O próprio cérebro n8a pode sobreviver sem estar ligado às funções vitais do corpo. Mais precisamente, as capacidades emocionais permitem reduzir o campo das alternativas e, portanto, poder tomar decisões em um tempo restrito. A improvisação e a intuição encontram aqui, pelo menos em parte, uma explicação. Diante de uma situação ou de um problema a resolver, o organismo emite sinais emocionais que Damasio chama de L ' m a r ~ a d o rsomáticos", e~ que desempenham o papel de sinal de alarme ou de sinal de encorajamento. Não substituem os processos lógicos de raciocínio, mas reduzem a gama das opções sobre as quais deverão aplicar-se. Eles fornecem indicações de orientações que permitirão fazer a triagem entre diversas variantes. Provenientes da educação e da experiência - e, portanto, da aprendizagem -, esses marcadores somáticos constituem verdadeiros recursos emocionais. Perceber esses marcadores é essencial na arte de bem-raciocinar. O corpo e suas emoções não são passivos na emergência da ação competente.
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OS RECURSOS ,DO MEIO
O equipamento a ser mobilizado pelo profissional para construir suas competências não é unicamente constituído de recursos incorporados à sua pessoa. Também comporta recursos externos, situados em seu entorno. Esses recursos são objetivados, isto é, exteriores a ele mesmo. Dentre eles, pode-se citar os equipamentos, as máquinas, os meios de trabalho, as informações e as redes relacionais. Na empresa SOLLAC, uma base de conhecimentos foi implantada desde 1992. Ela contém fichas de tratamento dos problemas com as coordenadas dos especialistas, os quais podem ser consultados acerca dos defeitos encontrados na fabricação do aço. O Centro de Recursos Tecnológicos da Renault criou no sistema informático interno de comunicação - intranet - um catálogo dos saberes e das vistorias. Uma regra incitativa está associada a ele: somente as pessoas registradas têm o direito de pesquisar sobre os conhecimentos dos executivos e dos empregados e técnicos que querem contatar. Ainda na Renault, as informações relativas à concorrência são, agora, acessíveis na base Baccara do Centro de Análise da Concorrência. Na empresa Cofinoga, os conhecimentos dos encarregados por estudos especializados na aceitação dos créditos foram modelados e capitalizados em um dispositivo informático. Na Volvo Cars Europe Industry (Indústria Européia de Carros), a cada dois meses, 1 0 pessoas oriundas de 10 grupos se reúnem em uma "plataforma de discussões" durante a qual cada grupo deve descrever seus trabalhos e suas realizações aos outros grupos. A qualidade das competências dependerá, em parte, da qualidade do ajuste entre os recursos incorporados mobilizados e os recursos do meio utilizados. Nesse, sentido, pode-se falar de "cognição distribuída". O profissional não pode mais ser competente sozinho e de maneira isolada. Em 1993, a Renault inaugurava, em sua fábrica na cidade de Douai, um "centro de recursos técnicos". Aberto permanentemente aos engenheiros, técnicos e agentes de manutenção, ele constitui um dispositivo permanente e individualizado de formação. Os programas de formação são elaborados conforme a necessidade. Todos podem deles participar de maneira autônoma e buscar a informaqão técnica que precisarem.
Segundo uma pesquisa realizada em setembro de 1999 por Arthur Andersen Management junto a 1.500 empresas, 80% dos dirigentes franceses consideram que a gestão dos conhecimentos constitui um projeto global importante para a empresa, mas dois terços dessas empresas não contam com responsáveis pela gestão dos conhecimentos, equivalentes aos gerentes do conhecimento norte-americanos. Na empresa Gemini, cada gerente de conhecimento é responsável pela gestão do saber para um grupo de cerca de 250 pessoas. Na já citada Arthur Andersen, cada centro de competências dispõe de um gerente de conhecimento. A instituição financeira Cofinoga dispõe de um gerente de conhecimento encarregado de facilitar a gestão, a capitalização e a circulação dos saberes dentro da empresa. Será preciso articular a economia das competências e a economia dos saberes. A competência deve ser repensada no âmbito de "conjuntos compósitos", pois o profissional não é competente sozinho. Ele é competente com seus bancos de dados, suas ferramentas de trabalho, seus colegas, os especialistas que pode consultar, suas redes de recursos, seus equipamentos, a rede de clientela que constituiu para si, seus suportes institucionais. Uma questão passa a ser essencial: "Com quem e com o que o profissional é competente?". Na área médica, o trabalho em rede tende a se tornar um componente do profissionalismo. Diante de um incidente cirúrgico ou de uma situação atípica encontrada, o cirurgião ou o médico não pode mais se contentar em declarar que pessoalmente jamais encontrou esse caso. O paciente ou sua família farão cada vez mais pressão para que ele consulte os bancos de dados existentes e utilize motores de busca para achar um caso semelhante, inclusive em lugares do mundo muito distantes de seu local de atuação. Na área do estudo da epilepsia, toda uma rede de especialistas se constituiu assim para discutir os casos encontrados, as decisões tomadas, os registros implantados (eletroencefalograma, vídeo, ressonância magnética, etc.). A acessibilidade às redes de saberes se torna capital na elaboração das respostas competentes: existência de um portal de acesso único, possibilidade de entrada em linguagem livre, sistemas amigáveis, respeito aos idiomas que correspondem às tecnologias e às culturas locais. As redes de saberes precisam das competências humanas para garantir sua pertinência e seu desenvolvimento. Sem essa necessária atualização, elas vão perdendo importância, tornando-se inúteis e inutilizáveis. A pilotagem de um avião depende não apenas da competência individual do piloto, mas da competência compartilhada entre o piloto, o co-piloto, o navegador e os controladores de v60 em terra. A competência se situa cada vez mais no que Jacques Girin chama de ordenamentos operacionais, nos quais estão associados elementos heterogêneos tais como pessoas, equipamentos, objetos, espaços ... Essa cognifáo distribuída apela para recursos diversos: simbólicos, materiais e humanos. É a competência das redes híbridas de inteligên-
cia, em que, segundo William Turner, um conjunto de homens e de máquinas cooperam juntos em uma rede de informática. A correlação das competências e a correlação dos artefatos (sofwares, suportes documentares, redes ...) não obedecem às mesmas regras. A primeira delas se organiza em torno de significações comuns; a segunda, em torno de exigências de compatibilidade. 'A unidade dos sistemas físicos é uma unidade de correlação; a dos organismos, uma unidade de significação", escrevia Merleau-Ponty Em 1995, a empresa AXA Corretores se comprometeu a implantar uma estrutura de acompanhamento das competências, correlacionando os quatro elementos seguintes:
1. As profissões: descrição de suas exigências e das competências requeridas. 2. O indivíduo: identificação das competências que ele possui. 3. A apreciação: determinação das variações entre as competências requeridas e as competências reais. 4. A formação: decisão dos meios necessários ao desenvolvimento das competências, Desde 1996, essa estrutura foi reforçada pelo dispositivo "competências 2001". Esse dispositivo é uma rede pedagógica que compreende:
- centros de recursos descentralizados; - pessoas-recursos que podem intervir no acompanhamento individualizado dos aprendizes; - uma plataforma tecnológica intranet, que pode fornecer meios peda-
gógicos em situações de trabalho, e uma plataforma extranet - sistema externo de comunicação, estendendo a rede a parceiros comerciais e a organismos externos de formação. Prevê-se que a rede "competências 2001" alcance um efetivo de 3 mil pessoas a partir de 1998. Essa rede permite aos aprendizes:
- conhecer as competências esperadas de uma profissão; - auto-avaliar suas competências (questionários auto-administrados); - autoformar-se em algumas das competências (softwares didáticos);
- apelar a recursos internos ou externos para desenvolver suas combinações;
- consultar a oferta de formação. Os responsáveis de formação dos Bancos Populares têm à sua disposição um intranet chamado Cyber NEE Esse intranet coloca à sua disposição um conjunto de recursos que Ihes podem ser necessários para exercer seu ofício: informações sobre as obrigações legais e a convenção coletiva, uma base de
dados sobre os recursos pedagógicos em bancassurance* ("media-banque"), um observatório das profissões bancárias compreendendo as 277 ocupações do grupo e um dicionário das 80 atividades e das 600 competências requeridas, um repertório de fotografias de identidade que per,mite entrar em relação com colegas de trabalho, uma biblioteca de imagens ... E significativo que a metáfora da "navegação" esteja amplamente presente nessa ferramenta: "longo alcance", "sextante", "bóia", etc., todos esses instrumentos náuticos que simbolizam a vigília, o posicionamento, a busca de ajuda, etc. Aqui, o tema da "navegação profissional" se expressa bem. Os recursos do meio intervêm, pois, na competência. Separar uma pessoa de seu meio, de suas redes de recursos, equivale a mexer em sua competência, a menos que a pessoa possa ou saiba reconstituir um ambiente propício à construção de suas competências. Esse é um dos aspectos do drama do desemprego de longa duração: devido à ruptura com a situação de trabalho, desaparece toda uma parte do equipamento para construir as competências, que estão relacionadas à riqueza do tecido social, material, humano e simbólico ao qual pertence O indivíduo. Manter ou desenvolver a competênciaé também contribuir ativamente para criar um meio favorável para si: criação de redes, aquisição de ferramentas, busca de informações, escolha do local de hábitat e tratamento do espaço... Os saberes e as informações formalizados e estocados são inúmeros. São até mesmo excedentes e acarretam riscos de saturação. O que falta é a capacidade de utilização desses saberes para incorporá-los a competências que serão operacionalizadas e inseridas em combinatórias, que são as respostas pertinentes aos problemas profissionais que deverão ser tratados. Quadro 3.9 Os recursos do meio para agir com competência
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Redes de especializaçáo Bancos e redes de dados Redes documentares Banco de projetos Redes e associações profissionais Redes de cooperação científica Observatórios Bases d e casos Sistema informatizado de ajuda Redes de clientela Banco de amostras Coleções Dicionários de dados normalizados
O Le Boterf
'N. de T. Trata-se de um novo mercado criado, na França. após a introdução do euro, aliando o setor bancário e o setor de seguros.
No campo do profissionalismo e da profissionalização, três noções são frequentemente confundidas: os recursos (saberes, saber-fazer, aptidões...), as competências e o profissionalismo. Convém distingui-las, pois designam três níveis diferentes de realidade. O Quadro 3.10 posiciona os elementos que as caracterizam. Quadro 3.10
de apropriação ou