Atoleiro - Oribes Neto

  • May 2020
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  • Words: 1,306
  • Pages: 5
Atoleiro A adolescência é uma fase de descobertas, desde a primeira namorada, o primeiro porre, e por que não o primeiro problema cuja solução não vem através dos pais? Pois bem, foi numa dessas viagens durante as férias de julho à praia, que descobri uma destas soluções, talvez não muito imediata, porém foi uma lição inestimável das severas aulas da professora vida. Estávamos eu e mais um amigo aproveitando a última semana de férias numa deserta praia do litoral do sul do Brasil, dispúnhamos do carro de meu pai, um violão, pouca idade cronológica e pouquíssimos neurônios, suficientes no máximo para comprar pão na esquina e talvez conferir o troco. Decidimos inteligentemente, que o "lance" seria, durante a madrugada, durante o inocente sono de meu pai, pegar o carro para arriscar algumas manobras diferentes das usuais na anecúmena areia da praia. Dito e feito, noite alta, e lá estávamos nós, arriscando a vida, e os pneus do automóvel, rodopiando sem sentido à beira-do-mar; a brincadeira logo perderia a graça, porém, outro fator nos obrigou a desistir antecipadamente: uma verdadeira torrente que simplesmente embaçou qualquer resquício de visão que nós poderíamos ter dentro do veículo; esperamos sorridentemente, e ao mesmo tempo estupidamente a chuva passar, se passou? Sim, passou. O único inconveniente, é que o nosso ponto de referência para que pudéssemos voltar à "civilização", um fio d'água que ligava a estação de tratamento ao mar, havia aumentado tanto com a chuva repentina que acabou por fundir-se ao mar. Foram minutos de silêncio absoluto, as risadas patéticas e escandalosas viram-se substituídas por suspiros profundos de quem diz: - O que nós vamos fazer agora? Nenhuma luz provinha da cidade, praia pequena, pouquíssimas casas, muita, muita areia, escuridão, um carro com pouco

combustível, motoristas inconseqüentes, e uma imensidão de água capaz de fazer sumir pra sempre quantos "corajosos" quiserem se aventurar fazendo manobras espetaculares de madrugada. Resolvemos, brilhantemente, que a melhor solução seria procurar a saída, rodamos na areia fofa durante alguns minutos, ainda mais perdidos, acabamos por conhecer um dos grandes problemas dos banhistas: um atoleiro. -Tenta de novo!! -Não vai, tá preso! -Dá ré! Dá ré! -Ih! Tá afundando mais!!! O carro simplesmente não parava de afundar para nosso total desespero, até que para alívio geral, encontrou o alento de um estreito banco de areia, que o deixou suspenso, bambo e sem a possibilidade de tocar as rodas em qualquer lugar firme. Foram mais alguns segundos de total silêncio, quebrados apenas pelos ruídos das ondas do mar e ora por uns muxoxos de arrependimento e desespero. - O carro, a areia, n-não sai!! Ai! O meu pai!!! Então o nosso aguçadíssimo cérebro deu-nos a chave para resolvermos o problema: - Precisamos tirar o carro do atoleiro! Sim, realmente precisávamos, e muito! Ao descermos do automóvel, nos demos conta que realmente estávamos encrencados: a visibilidade era nula, ou seja, precisávamos manter a luz do veículo acesa, mas, isso implicaria no desgaste da bateria, impossibilitandonos futuramente de dar a partida, trocando em miúdos, não poderíamos sair dali. Mesmo assim, resolvemos arriscar, após uma minuciosa análise das condições da areia, profundidade e etc. começamos a cavar ao redor do Escort inicialmente limpo, no intuito de desobstruir as rodas da areia, nessa altura desconhecíamos a existência do banco de areia. - Tenta, vai!!!! Foram inúmeras tentativas, escavações por debaixo do carro, madeiras de sustentação, macaco: desespero.

-E agora?- Perguntávamos o tempo todo um ao outro, quem sabe alguma idéia mirabolante tivesse surgido num daqueles cérebros dotados de altíssima capacidade intelectual nos últimos dez segundos antes da última vez perguntada. -E agora? Já meio conformados com a derrota, o provável guincho, a noite na praia, o veto permanente do carro, sentamo-nos à beira do mar, antes sequer da última tentativa de libertação de nosso pequeno grande pesadelo juvenil. Nenhuma palavra, já não mais precisava, só ouvíamos o som do mar, do vento, relativamente forte, de uma caminhonete à distância... -Você ouviu isso? -O quê? -Escuta... Sim, era um outro automóvel! Nossa salvação!! Ao longe já podíamos ver os faróis brilhantes vindo rapidamente em nossa direção, até que... - Ué? Estacionaram? Nossos gritos foram inúteis, nossos salvadores haviam parado mesmo, o que estariam fazendo aquela hora, naquela praia deserta? Bem, acredito que fariam a mesma pergunta a nós. - Eu vou até lá! - Disse com voz esperançosa Emmanuel, meu amigo, já em posição de corrida. - Te espero aqui, preciso cuidar do carro, mas volte logo! - Claro, claro! - respondeu apressadamente, assim como saiu. A distância entre o nosso veículo e o dos nosso salvadores não poderia ser precisamente calculada na situação em que eu me encontrava, mas julguei que uns vinte minutos seria tempo suficiente para que o socorro chegasse e nos libertasse daquela situação. Mas, o tempo passava, o farol continuava aceso, Emmanuel não voltava. Não posso precisar o tempo pois a escuridão era tamanha que visualizar o marcador de meu relógio era uma tarefa tão difícil quanto desatolar o carro. Mais tempo se passou. Nessas alturas, todo tipo de pensamento vem à cabeça, desde um mero seqüestro até uma

seita demoníaca que executa seus trabalhos com jovens que atolam o carro de seus pais na praia. Eu precisava salvá-lo! Antes de fechar a porta com a chave, tive outro brilhante e raro momento pensante: Se eu fechar o carro e apagar a luz, provavelmente será muito difícil encontrá-lo depois sem luminosidade, além do que a maré está subindo depressa, talvez eu realmente não o encontre mais. Acendi a luz e fechei a porta, respirei fundo, e armei-me de um porrete praticamente decomposto que encontrei por ali mesmo, e como nos filmes de aventura, iniciei uma aproximação do veículo dos monstros canibais de três metros e meio de altura que haviam devorado meu amigo, no melhor estilo "lagartixa", ou seja, me arrastando , para não ser identificado pelo inimigo. Porém, a distância que eu havia calculado, de aproximadamente uns duzentos metros entre os veículos estava totalmente errada e durante umas três aulas demoradas de matemática eu me arrastei na areia atrás dos Ciclopes monstruosos, empunhando minha clava, inicialmente leve, neste momento mais pesada que minha consciência por ter feito esse programa de fim de noite. Sentindo dores na coluna, e com uma das mãos nas ancas, como um idoso reumático apoiado em sua bengala, ergui-me receosamente até que ouvi um apelo de meu amigo Emmanuel: - Me ajuda!!! Quem diria, nossos salvadores, os monstros satânicos, os Ciclopes: atolados. Tentavam, como nós tentamos, de todas as formas libertar o veículo do atoleiro, uma potente picape , com tração nas quatro rodas. Como "atolados" três bonitas moças de uns vinte anos, e dois rapazes, um pouco alterados pela bebida excessiva. - Monstros, seqüestradores, bah... - Oi? - Hum, deixa pra lá. Afinal das contas, resolvi voltar apagar a luz, e numa última e desesperada tentativa , milagrosamente o carro saiu do atoleiro! Um momento inesquecível! Ajudamos os "Ciclopes canibais ", que

também foram bem sucedidos, gratificando-nos " poupando nossas vidas". Chegamos em casa pouco antes do amanhecer, as primeiras réstias de sol já cingiam os dois rostos pálidos, cansados e profundamente aliviados. Estacionamos cuidadosamente, com todo o zelo possível, tirei a chave da ignição , suspirei, suspirei novamente ao ver o estado em que nos encontrava-mos, eu, Emmanuel, e o pobre carro, com areia em cada orifício de nosso ser. Olhamo-nos e com a nossa genialidade característica sorrimos adolescentemente, e limpamos a areia com um pano úmido, catalogando no verniz do automóvel exatamente a quantidade de grãos de areia que estiveram ali naquela noite. Ao percebermos que a emenda havia sido pior que o soneto, recolhemo-nos, e do jeito que estávamos deitamo-nos, na esperança que tudo aquilo não tivesse passado de um sonho ruim, e que no dia seguinte o carro amanhecesse limpo assim como nossas plúmbeas consciências.

Oribes Neto

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