Evidência Clínica
Betabloqueadores em Insuficiência Cardíaca Crônica
EVIDÊNCIA CLÍNICA CARVEDILOL É SUPERIOR AO METOPROLOL NA PREVENÇÃO DE DESFECHOS CLÍNICOS EM INSUFICIÊNCIA CARDÍACA CRÔNICA? Adriana Lopes Latado Evidência Clínica é desenvolvido pelo Núcleo de Medicina Baseada em Evidências Clínicas do HUPES/ FAMED e tem o objetivo de divulgar resultados de pesquisas relevantes para a prática clínica. Partindo de um problema clínico, questões são levantadas. Um artigo recente ou considerado o mais relevante para responder as questões é então sumariado. Comentários são feitos visando integrar os resultados do trabalho com o conhecimento prévio sobre o assunto e com o problema clinico apresentado inicialmente. EVIDÊNCIA CLÍNICA Desenvolvido pelo Núcleo de Medicina Baseada em Evidências Clínicas (NEC) Editor Prof. Antonio Alberto Lopes Professor Adjunto, Livre-Docente de Medicina Interna, Departamento de Medicina, FAMED, UFBA Universidade Federal da Bahia
Problema Clínico: Homem de 61 anos, portador de insuficiência cardíaca congestiva (ICC) há 3 anos, de etiologia isquêmica, atualmente em classe funcional II (New York Heart Association - NYHA), em uso de furosemida, enalapril, AAS e nitrato. Último ecocardiograma há 4 meses, com fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) estimada em 33% (disfunção grave). O cardiologista deseja adicionar betabloqueador à terapêutica atual, diante das evidências a favor de benefício em sobrevida e morbidade associado a essa classe de drogas.
Hospital Universitário Prof. Edgard Santos (HUPES) Faculdade de Medicina (FAMED)
Equipe do (NEC) Prof. Antonio Alberto Lopes (Chefe) Dr. Antonio Carlos Noblat, Dra. Adriana Lopes Latado, Enfa. Gildete Barreto Lopes, Dra. Patrízia Allegro
Questão: Qual betabloqueador deve ser escolhido? Há diferença no efeito benéfico entre os betabloqueadores atualmente indicados para tratamento de ICC crônica (carvedilol, metoprolol e bisoprolol)? ____________________________________________________
Evidência: Poole-Wilson PA, Swedberg K, Cleland JGF, et al. Comparison of carvedilol and metoprolol on clinical outcomes in patients with chronic heart failure in the Carvedilol Or Metoprolol European Trial (COMET): randomized controlled trial. Lancet 2003; 362: 7-13.1 "Este é um ensaio clínico randomizado, multicêntrico, duplo cego e de grupo paralelo, desenvolvido para comparar diretamente os efeitos de carvedilol e metoprolol na mortalidade e morbidade de pacientes com ICC crônica classe funcional II a IV (NYHA) e FEVE ≤ 35% ." Este trabalho sugere que carvedilol (3,125mg 12/12hs até dose de 25mg 12/12hs) foi superior ao tartarato de metoprolol (5mg 12/12hs até 50mg 12/12hs) no benefício em sobrevida (desfecho primário), quando usados em pacientes com ICC crônica otimamente tratados com diuréticos e inibidores da enzima conversora da angiotensina (IECA). A redução absoluta de mortalidade geral foi da ordem de 5,7% em 5 anos, com redução relativa no risco de morte estimada em 17%, diferenças estatisticamente significantes. Quando se comparou o desfecho combinado de mortalidade geral e admissão por todas as causas, o benefício a favor do carvedilol não alcançou significância estatística. Efeitos adversos, sérios ou não, foram levemente mais freqüentes no grupo metoprolol, a exceção de hipotensão, mais comumente relatado no grupo carvedilol (14 versus 11%). Núcleo de Medicina Baseada em Evidências Clínicas (NEC)
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Objetivo: Comparar carvedilol e metoprolol quanto à mortalidade e morbidade de pacientes com ICC crônica. Métodos: Ensaio clínico de grupos paralelos, randomizado, duplo cego, que envolveu 15 países europeus e 341 centros, sendo os pacientes selecionados de 1/12/1996 até 15/01/1999. Pacientes elegíveis: Homens ou mulheres com ICC crônica sintomática (classe funcional II a IV da NYHA), com pelo menos uma internação cardiovascular nos últimos 2 anos, em tratamento estável com IECA (há 4 semanas) e diuréticos (há 2 semanas). A FEVE deveria ser menor ou igual a 35% ou, na sua ausência, uma fração de encurtamento <20% ou diâmetro diastólico final do VE >60mm. Critérios de exclusão: Mudança recente na terapia de ICC (incluindo betabloqueador; necessidade de agentes inotrópicos; uso de antagonistas de cálcio tipo diltiazem ou verapamil; uso de amiodarona >200mg/dia ou anti-arrítmicos do grupo I; uso de droga em investigação há <30 dias; indivíduos com eventos coronarianos agudos, revascularização coronariana ou acidente vascular encefálico (AVE) nos últimos 2 meses; hipertensão arterial sistêmica descompensada; gravidez; contra-indicações para uso de betabloqueadores; outras doenças sistêmicas graves capazes de reduzir a expectativa de vida. Amostra e regimes de tratamento: Foram 3029 pacientes selecionados, 1511 para carvedilol (3,125mg em duas doses até o alvo de 25md/dia 2 vezes/dia) e 1518 para tartarato de metoprolol (5mg em duas doses até o alvo de 50mg 2 vezes/dia). Os aumentos de doses eram feitos, se tolerados, a cada 2 semanas. Ajustes nas doses de diuréticos e/ou IECA eram encorajados para se atingir a dose alvo do betabloqueador. Pacientes foram avaliados a cada 4 meses após essa fase inicial até o final do seguimento. Desfechos: Mortalidade geral (categorizada em morte súbita, falência circulatória, AVE, outra morte cardiovascular, morte não cardiovascular) e combinação de mortalidade ou admissão por qualquer causa. Este último desfecho combinado foi acrescentado posteriormente sem conhecimento de resultados interinos. 6) Análise estatística: Com a introdução de novo desfecho, os cálculos amostrais foram refeitos, baseados em: redução de mortalidade total de 20% com erro tipo I de 0,05 e poder de 80% e redução no risco de eventos combinados de 15% com poder de 80% e erro alfa de 0,01. A análise foi por intenção de tratar. Apenas 33 pacientes foram censurados. Desfechos primários foram avaliados pelo teste “log rank”. Razões de risco com respectivos intervalos de confiança (IC) de 95% foram calculados pelo modelo de riscos proporcionais de Cox. Calculou-se a diferença na mediana de sobrevida entre dois grupos de tratamento. Resultados Principais: A duração média do estudo foi de 58 meses. A idade média foi de 62 ± 11 anos, 80% do sexo masculino, FEVE média de 26% e mais de 95% dos pacientes em classe funcional (NYHA) II ou III, não havendo diferenças significativas entre os grupos . Desfecho mortalidade total: Houve 512 mortes no grupo carvedilol contra 600 mortes no grupo metoprolol, com razão de risco de 0,83 (IC 95% 0,74-0,93; p=0,0017) a favor do carvedilol. Esta diferença de manteve após ajustes para fatores prognósticos conhecidos. Análises de subgrupo não demonstraram diferenças nos resultados. A distribuição da modo de morte foi similar entre os grupos, com 43% e 44% dos óbitos ocorrendo devido à morte súbita nos grupos carvedilol e metoprolol, respectivamente. 33% de todas as mortes foram por falência circulatória, em ambos os grupos. Desfecho combinado: 1116 pacientes no grupo carvedilol e 1160 no grupo metoprolol morreram ou foram admitidos no período do estudo. A razão de risco estimada foi 0,94 (IC 95% 0,86-1,02; p=0,122), não tendo alcançado o nível de significância provavelmente pelo componente “admissão total”, já que a razão de risco para este desfecho foi 0,97 (IC 95%0,89-1,05; p=0,45). Resultados secundários: As freqüências cardíacas foram, em média, significativamente menores no grupo carvedilol do que no metoprolol ( até o 16º. mês do seguimento), o mesmo acontecendo com a média de queda da pressão arterial sistólica. Os sintomas adversos foram freqüentes (95%), motivando a interrupção permanente das drogas em 32%, para ambos os grupos. Hipotensão e bradicardia foram levemente mais comuns no grupo carvedilol (bradicardia em 10% versus 9% e hipotensão em 14% versus 11%). Conclusão: Neste estudo, carvedilol foi significativamente superior ao metoprolol em reduzir a mortalidade de pacientes portadores de ICC sistólica crônica tratados com diuréticos e inibidores da ECA, sem efeito aparente na taxa de readmissão hospitalar.
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Tabela 1. Efeitos da terapia betabloqueadora na mortalidade de pacientes com ICC sistólica crônica em diferentes ensaios clínicos Redução Relativa na Mortalidade Total
Droga Carvedilol Metoprolol Bisoprolol
MERIT-HF6* ---------34% ----------
Carvedilol n (%)
CIBIS II7* ------------------34%
COPERNICUS5* 35% -------------------
Mortalidade no COMET1 Metoprolol Razão de risco n (%) (IC 95%)
512 (34%) 600 (40%) Total 438 (29%) 534 (35%) Cardiovascular 74 (5%) 66 (4%) Não cadiovascular IC=Intervalo de Confiança *Comparações entre BB e placebo #Comparação direta do efeito de carvedilol versus metoprolol
0.83 (0.74-0.93) 0.80 (0.70-0.90) 1.08 (0.77-1.50)
COMET1# 17% -------------------
Valor de p 0.002 0.0004 ----------
Comentários: Os betabloqueadores (BB) fazem hoje parte da terapêutica padrão de pacientes com ICC com disfunção sistólica, ao lado de inibidores da ECA, diuréticos e, geralmente, digoxina.2 O primeiro relato sugerindo efeito benéfico dessas drogas na falência miocárdica ocorreu em 1975, quando metoprolol foi administrado a sete pacientes com cardiomiopatia congestiva, resultando em melhora clínica e na FEVE.3 Depois disso, vários ensaios clínicos randomizados e placebo-controlados têm corroborado o benefício da terapia betabloqueadora em reduzir a morbi-mortalidade de pacientes com ICC.4-7 Metoprolol, bisoprolol (ambos β1 seletivos) e carvedilol (agindo nos receptores β1, β2 e α1) são as três drogas da classe indicadas para o tratamento de IC sistólica, até o momento.4-7 O bucindolol, BB não seletivo, que inicialmente mostrou-se benéfico para melhoria de sintomas em ICC sistólica8, não foi efetivo em reduzir mortalidade em 2708 pacientes com IC classe funcional III e IV, num seguimento médio de 2 anos.9 Até a publicação do estudo COMET1, os dados eram limitados acerca de comparações diretas do efeito de diferentes BB na morbimortalidade da ICC. Em pequenos estudos10 ou metanálise11 avaliando diretamente metoprolol versus carvedilol, este último pareceu ser superior em melhorar FEVE, porém sem benefício demonstrado na sobrevida, tolerância ao esforço
ou qualidade de vida. O COMET1 foi um estudo multicêntrico, randomizado e duplo cego, desenhado para comparar diretamente os efeitos de carvedilol e metoprolol na sobrevida e morbidade de indivíduos com ICC sistólica, com FEVE ≤ 35%. A sua hipótese principal correspondia a um benefício ampliado do carvedilol em relação ao do metoprolol nestes pacientes, já que carvedilol é um BB não seletivo, com variadas ações potencialmente favoráveis como inibição do receptor α, maior efeito antiisquêmico, inibição de apoptose e ação antioxidante.12 O caso clínico apresentado no início deste artigo levanta a questão se há diferença no efeito benéfico de um BB sobre outro no cenário de ICC com disfunção sistólica grave. Seria melhor prescrever carvedilol para o paciente com miocardiopatia isquêmica citado ou as evidências ainda não suportam uma superioridade consistente desse BB em relação aos demais? Os resultados do COMET1 demonstraram que carvedilol reduziu significativamente (queda relativa de 17%) o risco de morte por todas as causas em relação ao metoprolol, com uma diminuição absoluta de 5,7% na mortalidade em 5 anos. A mortalidade anual foi de 10% para o grupo metoprolol e 8,3% para carvedilol. Na análise de desfechos combinados (mortalidade total ou admissão por qualquer causa), embora
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Evidência Clínica numericamente a favor do carvedilol, não foram detectadas diferenças estatisticamente significantes entre os dois grupos. Como a razão de risco para readmissão isoladamente foi bem próxima da unidade e não significante, talvez isso possa explicar a ausência de diferença entre os grupos para eventos combinados. Este é um achado incomum, tendo em vista que geralmente o componente “mortalidade” de um desfecho combinado é aquele que é “ajudado” pelo componente “morbidade”. Os resultados do COMET1 são muito importantes, um vez que trata de melhora na sobrevida de uma patologia eminentemente crônica como é a ICC, que até hoje mantém alta prevalência e taxas de mortalidade inaceitavelmente elevadas.13 Identificar a melhor terapêutica capaz de reduzir eventos indesejáveis, como óbito ou readmissão, será sempre o alvo da pesquisa clínica, por mais conhecimento que já se tenha sobre determinado assunto. Nesse contexto, é extremamente válido questionar-se se diferentes BB, com benefício já demonstrado na morbimortalidade da ICC, podem exercer suas ações em intensidades diversas quando diretamente comparados. Algumas considerações, entretanto, merecem ser feitas diante da referida superioridade do carvedilol frente ao metoprolol no estudo COMET.1 Inicialmente, a taxa de mortalidade anual descrita para o grupo metoprolol neste trabalho (10%) parece alta quando comparada às registradas em outros ensaios clínicos recentes avaliando o efeito de BB na morbi-mortalidade de ICC. No estudo MERIT-HF6, testando metoprolol versus placebo, a mortalidade no grupo BB foi de 7,2%. No estudo CIBIS II7, comparando bisoprolol e placebo, a taxa de morte anual no grupo bisoprolol foi de 8,8%. Essas taxas parecem mais próximas da mortalidade anual descrita para o grupo carvedilol no próprio COMET1 (8,3%). Junto a isso, observa-se que a dose média diária de metoprolol (85 mg) atingida no COMET1 foi inferior às de ensaios clínicos prévios.4,6 No estudo Metoprolol Dilated Cardiomyopathy (MDC)4, a dose média “real” do tartarato de metoprolol foi de 108 mg/dia (dose alvo de 100-150 mg/dia), provocando uma redução média da freqüência cardíaca (FC) de 15 batimentos/minuto (bat/min), bem superior aos 11,7 bat/min de queda na FC alcançados pelo COMET1. No MERIT-HF6, o maior estudo de metoprolol em ICC envolvendo 3991 indivíduos, a droga testada foi o succinato de metoprolol de liberação programada, numa dose “real” média de 159 mg em única tomada, o que equivale a 106
Betabloqueadores em Insuficiência Cardíaca Crônica mg/dia de tartarato de metoprolol, formulação usada no COMET1 e MDC.4 Com esta dose, os autores do MERIT-HF6 relataram uma redução média de 14 bat/min na FC de repouso, também superior à referida no COMET1. Em relação ao carvedilol, por outro lado, a queda de 13,3 bat/min na FC de repouso após 4 meses de tratamento foi conseguida com uma dose média “real” diária de 41,8 mg (1), o que se assemelha aos resultados do US carvedilol study14 (dose de 45 mg/dia e queda de 13 bat/min na FC), trabalho que serviu de base para a definição da dose alvo de carvedilol para o COMET.1 Até que ponto essas diferenças nas doses de metoprolol usadas ou mesmo na formulação escolhida (succinato de metoprolol ainda não estava disponível para uso quando o estudo COMET1 foi iniciado) influenciaram os resultados a favor do carvedilol, não se pode garantir ao certo. È difícil assegurar que o metoprolol tenha exercido, no estudo COMET1, graus similares de β1 bloqueio com relação ao carvedilol, não apenas pela análise dos desfechos intermediários (FC de repouso), mas especialmente quando se compara as taxas anuais de mortalidade para o grupo metoprolol com aquelas relatadas em trabalhos anteriores. Em conseqüência, também torna-se incerto que o benefício adicional em sobrevida descrito para o grupo carvedilol possa ter decorrido de efeitos farmacológicos outros desta droga que não o bloqueio do receptor β1. Tentando então responder ao problema clínico descrito no início deste artigo, um paciente portador de ICC com grave disfunção sistólica, seja com sintomatologia leve a grave, de etiologia isquêmica ou não, deve receber um betabloqueador no seu arsenal terapêutico, além de inibidor de ECA e diurético (e, geralmente, digoxina). Os BB aprovados para este fim são carvedilol, metoprolol e bisoprolol, sendo os dois primeiros mais extensamente estudados até o momento. Apesar dos resultados do estudo COMET1 e considerando seus possíveis vieses, torna-se difícil garantir que, à luz dos conhecimentos atuais, carvedilol seja superior aos demais. Ainda parece prudente manter a opção por uma das três drogas até que novos estudos venham a esclarecer melhor (ou definitivamente) a questão.
Conclusão: Os resultados do estudo COMET1 indicam que carvedilol é superior ao metoprolol na redução de mortalidade em pacientes com ICC sistólica crônica, após seguimento médio de 5 anos. Não foram encontradas diferenças na taxa de readmissão hospitalar. Análises de efeitos
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Betabloqueadores em Insuficiência Cardíaca Crônica COMET1, a taxa de 10% foi notadamente superior às demais, as quais variaram de 7,2 a 8,8%. Diante disso, o paciente anteriormente referido deverá receber um dos três BB aprovados para IC sistólica (carvedilol, bisoprolol ou metoprolol), além de outras terapias também benéficas, até que novos estudos venham a definir melhor sobre potenciais diferenças no efeito clínico dos BB nesse grupo de patologia.
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