Você tem Fome de quê? Abordagem Biopsicossocial de Transtornos Alimentares
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Você tem Fome de quê? Abordagem Biopsicossocial de Transtornos Alimentares Liliane Calil Guerreiro da Silva1 Lídio de Souza2 Resumo O objetivo do presente estudo foi indicar os principais elementos geralmente associados ao surgimento e manutenção dos transtornos alimentares mais comuns, a anorexia nervosa e a bulimia. A partir de uma breve revisão da literatura, identificou-se a interação de uma diversidade considerável de fatores freqüentemente associados aos referidos transtornos: a conjuntura de escassez e abundância alimentar; a difusão de um ideal de beleza e de corpo saudável; estímulos sociais ao consumo alimentar; disfunções hormonais e de neurotransmissores; a construção da identidade social de gênero; hábitos alimentares culturalmente construídos e a associação de sobrepeso com doença. Dado o complexo quadro identificado, conclui-se que somente uma abordagem multiprofissional, que reconheça a importância dos diversos fatores envolvidos nos transtornos analisados, tanto no plano teórico quanto no plano das intervenções, poderá fornecer uma compreensão mais adequada dos referidos problemas e possibilitará intervenções mais realistas e com maior probabilidade de sucesso.
Palavras-chave: transtornos alimentares; anorexia nervosa; bulimia nervosa; abordagem biopsicossocial.
Whato to Eat? Biopsychosocial Approach to Eating Disorders Abstract The objective of the present study was to indicate the main elements generally associated to development of the most common eating disorders, nervous anorexia and bulimia. From a brief review of the literature an interaction of a considerable diversity of factors frequently associated with the referred disorders was identified: the context of scarcity and alimentary abundance; the diffusion of an ideal of beauty and healthy body; social stimuli of food consumption; hormonal and neurotransmitter associated disorders, the construction of a gender social identity; culturally constructed eating habits and the association of overweight with disease. Given the complex framework identified, it was concluded that only a multi-professional approach, that recognizes the importance of the diverse factors involved in the analyzed disorders, both on the theoretical and on the intervention levels, can furnish a more adequate comprehension of the referred problems and allow more realistic interventions with a higher probability of success.
Keywords: eating disorders; anorexia; bulimia; biopsychosocial approach.
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Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail:
[email protected] Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail:
[email protected] 2
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. A condição básica para a sobrevivência dos seres humanos é a satisfação de um conjunto mínimo de necessidades nutricionais, mas o ato de comer não pode ser perfeitamente compreendido se resumido a indicadores nutricionais na medida em que se encontra associado de forma inquestionável à natureza cultural do homem. Desde que nasce, o bebê se defronta com as regras definidas pela cultura, inclusive com aquelas construídas em torno da alimentação e de seus rituais. É na cultura que se aprende o que se come, com quem se come, quando, como e onde se come e, certamente, o quanto se come. A variabilidade alimentar identificada nos diferentes grupos sociais humanos indica que o ato alimentar implica necessariamente em valoração simbólica. Esses padrões encontram-se entranhados na cultura de tal forma que até mesmo nos contos de fadas, os temas giram muito freqüentemente em torno da comida: o medo de ser comida (em Chapeuzinho Vermelho), a falta de comida (em João e o Pé de Feijão) ou a escassez de alimento associada à gula em “João e Maria” (Cashdan, 2000). Muitos contos foram originados na Europa, entre os séculos XVII e XVIII, e circulavam entre as pessoas mais humildes. Abordavam o comer voraz e excessivo, que caracterizava a gula como “desvio de conduta”, e os personagens sempre acabavam sendo punidos. Não poderia ser diferente, pois a Europa neste período padeceu de uma fome generalizada e neste contexto muitas famílias eram obrigadas a tomar medidas drásticas, como abandonar as crianças, para sobreviver. Os contos refletiam a situação vivenciada naquele momento histórico. A gula, apesar de considerada como um dos sete pecados capitais, foi assimilada em determinadas culturas como objeto de status social e insígnia de poder. Um exemplo disso eram os banquetes a que se submetiam, no império romano, César e sua corte. Horas e, não raro, dias eram dedicados às regalias alimentares, sendo comum a prática de empanturrar-se de comida, vomitar e, em seguida, continuar a longa refeição. Em Figueiredo (2000) encontramos este procedimento descrito com
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detalhes e a seguinte afirmação do governador romano Aulus: “A gula é a mais bela das virtudes romanas, mais que qualquer outra, fundou o império” (p. 157). Se prestarmos um pouco de atenção, verificaremos que tais práticas guardam alguma semelhança com sintomas característicos da bulimia, como veremos adiante. Veríssimo (1998) também relata, no plano ficcional, o controle que o mundo dos sabores e aromas exerce sobre um grupo de amigos cujas reuniões periódicas para jantares requintados não se alteram nem em função das sucessivas mortes que ocorrem após cada um dos jantares. Os hábitos alimentares são, desta forma, indicativos importantes do modo de vida e dos valores de um determinado povo. Os tabus alimentares, os tipos de alimentos consumidos e a forma de distribuí-los reflete as regras de funcionamento social e de detenção de poder dentro dos grupos sociais. Num sistema capitalista, com uma distribuição desigual de rendas, e, por conseguinte, de alimentos, constatamos um paradoxo: a coexistência da fome com a obesidade, ambos considerados importantes problemas de saúde pública. Neste sistema, a fome não decorre da simples escassez, no dizer de Felinto (2000) ela surge como um pecado do capital: “A fome moderna... As latas de leite Ninho... seguiam desfilando umas atrás das outras, inatingíveis, na pequena imaginação da minha irmã. Não haveria leite por semanas, por meses talvez” (p.109). Neste contexto o alimento ganha a dimensão de fetiche, de objeto de consumo e, em torno e através dele, circula grande soma de investimentos e se produz riqueza. O ato de comer não se destina simplesmente a suprir as necessidades físicas, mas torna-se cada vez mais requintado, objeto de desejo, veículo de modismos, e em conseqüência, pode induzir os indivíduos a um consumo muito superior ao necessário, frenético e impulsivo.
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O ritmo de vida contemporâneo principalmente nos grandes centros urbanos, ao destruir os rituais que existiam até pouco tempo atrás em torno das refeições, não rompe apenas com os horários e a qualidade/quantidade de alimentos consumidos, fazendo com que se coma produtos de qualidade discutível, em horários inadequados. Produz uma mudança drástica também nos padrões de sociabilidade. Tanto é assim, que pesquisa desenvolvida por Garcia (1997) identificou tentativas de assemelhar, durante as refeições, a rua com o ambiente familiar:
muito embora se possa afirmar que a dicotomia natureza versus cultura seja uma falsa questão. Segundo Bussab & Ribeiro (1998), os aspectos mais complexos da cultura também têm base psicobiológica e focalizam o desenvolvimento humano na dialética entre natureza e cultura, o que impõe alta complexidade à solução dos problemas humanos. Afirmam que
As manifestações de afetividade que compõem as representações sociais da alimentação no meio urbano transferem para o convívio da “rua” elementos predominantes do convívio doméstico. As pessoas geralmente preferem sair para comer acompanhadas por aqueles que têm maior ligação afetiva, valorizam a comida caseira e criam vínculos nos lugares onde habitualmente fazem suas refeições. O vínculo afetivo também é consolidado no ato alimentar. (p. 458)
Se por um lado constatamos o estímulo para consumir mais, por outro temos que concordar que os valores relativos à beleza física mais difundidos nas sociedades ocidentais encontram-se vinculados à estética do corpo magro, que também se relaciona às necessidades de consumo. O ideal a ser atingido é o de mulher magra o suficiente para servir de cabide às roupas dos grandes estilistas. Diante deste paradoxo, estímulos ao consumo de alimentos e necessidade de dieta rígida para manter um corpo esbelto, vemos surgir muitas alterações de ordem alimentar, e entre elas podemos destacar: a anorexia nervosa e a bulimia. A literatura especializada tem nos mostrado que é significativa a dificuldade em se estabelecer com nitidez quais são os aspectos biológicos e os sócioculturais que contribuem para o surgimento e a manutenção dos quadros de anorexia nervosa e bulimia. O confronto entre o biológico e o cultural nos parece inevitável, suscitando nas atuais discussões a questão clássica entre o que é influência da cultura e o que se associa a uma característica mórbida invariável (Weinberg, 2001),
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o ser cultural do homem deve ser entendido como biológico. Há mais do que um jogo de palavras na afirmação de que o homem é naturalmente cultural, ou ainda, de que a chave para a compreensão da natureza humana está na cultura e a chave para a da cultura está na natureza humana. O homem é a um só tempo, criatura e criador da cultura. (p.176).
A aceitação desta premissa se reflete necessariamente no modo de abordar os problemas humanos, exigindo cuidados metodológicos e analíticos que procurem contemplar a sua complexidade. Enfoques tradicionais, e reducionistas, que priorizam o biológico, o psicológico ou o cultural, negando a dialética acima referida, dificilmente poderão ser considerados suficientes. Nossos objetivos neste artigo são indicar alguns dos principais elementos geralmente implicados no surgimento da anorexia nervosa e da bulimia e destacar que somente uma abordagem biopsicossocial, que reconheça a importância de diversos fatores de ordem biológica, psicológica e sócio-cultural, poderá fornecer uma compreensão mais adequada dos referidos problemas e possibilitará intervenções mais realistas e com maior probabilidade de sucesso. Anorexia e Bulimia A anorexia (cujas raízes gregas e latinas significam “falta de apetite de origem nervosa”) geralmente aparece no começo ou no meio da adolescência e em 90% das notificações acomete mulheres. Uma moça ou mulher jovem pára de comer e às vezes começa a fazer exercícios físicos
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de forma compulsiva. Seu peso diminui e sua saúde se deteriora rapidamente, mas ela insiste em negar que seu comportamento apresente riscos para a saúde. Ela pode afirmar que se vê ou que se sente gorda, embora todo mundo perceba que está magra. A bulimia - “apetite insanável de origem nervosa” é definida por dois ou mais episódios de binge eating (crises de voracidade) em que a pessoa consome rapidamente grandes quantidades de comida, acima de 5.000 calorias, a semana toda, por um período de três meses. Essas crises são às vezes seguidas de vômitos (intencionais e mecanicamente provocados) ou purgação (o uso de laxantes ou diuréticos) e podem alternar com períodos em que a pessoa pratica exercícios compulsivamente e se abstém de comer. Os sintomas podem se desenvolver entre o início da adolescência até os 40 anos, mas normalmente são mais graves durante a adolescência. Os principais critérios diagnósticos adotados pela American Psychiatric Association (DSM IV; 1995) são: Anorexia nervosa: a) recusa em manter o peso mínimo para a idade e altura, por exemplo, perda de peso e manutenção deste em menos de 85% do esperado, ou ausência do ganho de peso esperado para aquele período de crescimento, levando a um peso menor do que 85% do esperado; b) medo intenso de ganhar peso ou tornar-se gorda, mesmo estando abaixo do peso; c) distúrbio na maneira de vivenciar sua forma ou peso corpóreo: influência indevida da forma ou peso corpóreo na auto-avaliação, ou negação da seriedade do baixo peso atual; d) nas mulheres pós-menarca, a menorréia. Bulimia nervosa: a) episódios recorrentes de comer compulsivo. Um episódio de comer compulsivo é caracterizado por comer, em um curto período de tempo, uma quantidade de comida que é definitivamente maior
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do que a maioria das pessoas comeria neste intervalo e sensação de perda de controle sobre o ato de comer durante o episódio; b) comportamentos compensatórios recorrentes, inapropriados para evitar o ganho de peso, como a auto-indução de vômito, abuso de laxantes, diuréticos, jejum ou exercício excessivo; c) os itens (a) e (b) ocorrem no mínimo duas vezes por semana, por três meses; d) a auto-avaliação é indevidamente influenciada pela forma e peso corporal; e) o distúrbio não deve ocorrer exclusivamente durante episódios de anorexia nervosa. Aspectos biológicos Um dos fatores associados aos distúrbios alimentares são as disfunções identificadas na atividade dos hormônios e dos neurotransmissores, que mantêm o equilíbrio entre dispêndio de energia e ingestão de alimentos. Essa regulação constitui um processo complexo que envolve diversas regiões do cérebro e vários sistemas orgânicos. As vias nervosas que descendem do hipotálamo, na base do cérebro, controlam os níveis de hormônios sexuais, tireóide, e a secreção do hormônio adrenal, cortisol, os quais exercem influência sobre o apetite, sobre o peso corporal, sobre o estado de ânimo e também sobre as respostas ao stress. Os neurotransmissores serotonina e norepinefrina são encontrados nessas vias hipotalâmicas. Estudos farmacológicos revelam a importância da serotonina como um modulador dos padrões de consumo “normal” de alimentos. As substâncias que atuam de modo seletivo sobre o sistema serotoninérgico exercem importantes efeitos sobre a conduta alimentar. No âmbito dos pacientes com transtornos alimentares observam-se alterações da serotonina cerebral e de seus metabólitos. Os transtornos da conduta alimentar, por sua vez, podem ser corrigidos, ao menos parcialmente, mediante a administração de substâncias serotoninérgicas (Silva, 1994).
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Observa-se também a participação da leptina, hormônio produzido em células adiposas brancas, que uma vez na corrente sangüínea, interage com receptores próprios em vários centros hipotalâmicos. Hoje em dia, investiga-se a hipótese de que a obesidade possa resultar de uma diminuição da sensibilidade do organismo aos efeitos da leptina. Negrão (1998) realizou estudo para verificar se há uma diferença no padrão de secreção diária de leptina entre os sexos. Concluiu que as mulheres necessitam do dobro da concentração plasmática de leptina, quando comparadas aos homens, indicando que uma possível resistência à leptina pode contribuir para que as mulheres sejam mais suscetíveis que os homens a transtornos acompanhados de alterações neuroendócrinas. Outra hipótese é que os distúrbios alimentares sejam influenciados pela atividade das encefalinas e endorfinas, substâncias similares aos opiáceos produzidos no corpo. Como a maioria dos distúrbios psiquiátricos, existem também indicações de que a anorexia e a bulimia fazem parte do histórico familiar. A taxa de anorexia entre mães e irmãs de mulheres anoréxicas é de 2% a 10%. Num estudo comparativo, a anorexia foi constatada em 9 de 16 gêmeos univitelinos de pacientes anoréxicos, mas apenas em 1 dos 14 gêmeos fraternos. Aspectos psicossociais Considerando-se a sua complexidade, uma abordagem destes fenômenos focalizando-se apenas aspectos biológicos e fisiológicos seria por demais reducionista. Os transtornos alimentares exigem uma abordagem multidisciplinar que os considerem como fenômenos culturais e como um problema social. Se por um lado as mulheres ocidentais têm aumentado de peso a cada geração, por outro, o corpo apresentado como ideal em termos de saúde e beleza permanece magro e esbelto. Preocupações relacionadas à imagem corporal e ao peso são então, muito freqüentes em mulheres na cultura ocidental.
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Viertler (2000) analisou o contraste dos padrões de beleza entre os índios brasileiros da tribo dos Bororo e do Alto-Xingu, e verificou que os primeiros consideravam belas as mulheres de corpos finos, esbeltos e contidos por firmes faixas em torno do abdome, enquanto os segundos valorizavam a brancura da pele, corpos gordos e membros grossos. Observou que esses padrões guardavam relação com hábitos de vida e cultura, sendo os Bororo caçadores coletores, tinham que se movimentar em busca de alimentos enquanto os Alto-xinguenses mantinham-se com habitação fixa e estilo de vida sedentário. Numerosos estudos populacionais têm documentado que a maioria das adolescentes e mulheres jovens avaliadas em nossa sociedade não está satisfeita com a sua imagem corporal, embora só a minoria esteja realmente com sobrepeso. Melin & Araújo (2002) citam estudos que identificaram a tendência das mulheres a se avaliarem com maior peso do que realmente apresentam: Em geral, os homens estão mais satisfeitos com seus corpos e os percebem com menos distorção. Eles tendem a se considerar com sobrepeso quando estão cerca de 15% acima do peso que as mulheres já consideram sobrepeso. Num estudo recente, somente 2% dos homens se percebiam erroneamente com sobrepeso, enquanto 40% das mulheres percebiam um excesso de peso inexistente. Essas diferenças justificam especulações sobre a contribuição dos fatores culturais para o desenvolvimento dos TA em homens e mulheres (p. 74).
Embora se possa verificar que o padrão de beleza feminina valorizado atualmente seja o da mulher magra, pode-se observar também que nem sempre foi assim. Variações associadas a mudanças nas expectativas culturais têm sido insistentemente apontadas em alguns estudos: hoje se valoriza a esbeltez enquanto no passado as rechonchudas eram o objeto de desejo, fato abundantemente demonstrado nas artes plásticas. No entanto, o formato ideal contemporâneo do corpo feminino
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estaria se tornando tubular, substituindo o formato “violão” (Queiroz & Otta, 2000).
Aos 15 anos, após afirmar ter tido visões de Cristo, decidiu preservar sua virgindade e devotar sua vida a ajudar os pobres. Morreu aos 33 anos, provavelmente por inanição, e mais tarde foi beatificada pela igreja católica.
Ao analisar as curvas do corpo dos modelos da revista Vogue entre 1901 e 1993, tomando como indicador a proporção do busto em relação à cintura, Barber (citado em Queiroz & Otta, 2000) identificou, nesse intervalo de tempo, uma redução nas curvas dos corpos dos modelos, associando tal mudança à elevação do nível de instrução e à maior participação da mulher na economia.
O jejum prolongado da mulher anoréxica pode significar resposta a pressões sociais para atingir determinados padrões estéticos, ter uma performance física admirável, o que lhe conferiria sucesso nas relações sociais, no campo profissional e na escolha do parceiro. Esta resposta expressaria a anulação do corpo, inclusive retardando o processo e desenvolvimento da sua sexualidade, em função da diminuição dos hormônios sexuais que ocorre com a desnutrição.
Quanto mais intensa a pressão social para a estética do corpo esbelto, mais provável se torna o aparecimento de alterações alimentares, principalmente se existir a crença de que controlar o apetite é o caminho para atrair admiração e alcançar sucesso social e nas relações amorosas. Duas pesquisas citadas por Fleitlich (1997), estudaram a puberdade como fase de risco para o desenvolvimento dos transtornos alimentares. O objetivo do primeiro estudo foi examinar a associação entre o estágio de maturação sexual e sintomas de transtorno alimentar. Participaram do estudo 939 meninas do 6º e 7º anos de quatro escolas da Califórnia. A média de idade foi de 12,4 anos e 40% eram brancas. Os resultados mostraram que 4,3% das pacientes eram sintomáticas. No segundo estudo foram focalizados os aspectos cognitivos, comportamentais e psicoemocionais de adolescentes, buscando delimitar grupos de risco para o desenvolvimento de comportamentos alimentares alterados. Os dados foram coletados junto a 122 meninas de 12 a 18 anos, estudantes de duas escolas de Nova Iorque. Evidenciou-se que 30% dos sujeitos tinham preocupações anormais com as proporções corpóreas e 4% eram patologicamente fixadas no peso. Duas idéias relacionadas à anorexia nervosa são o jejum e a negação da feminilidade. O jejum prolongado, um hábito reconhecidamente religioso que tinha a finalidade de demonstrar sua força moral e pureza espiritual, foi geralmente praticado por homens, mas também por algumas mulheres nobres, na Europa Medieval. A mais famosa dessas mulheres foi Catarina de Siena, nascida em 1347.
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Observamos a prevalência da anorexia na adolescência e isto nos leva a articulações da sua gênese com o período do desenvolvimento e formação da identidade social. A puberdade é um período de mudanças físicas importantes e os jovens terão que readaptar sua imagem corporal, juntamente com sua imagem global e seu papel social, o que não ocorre imune a múltiplos conflitos. Ao se defrontar com estes conflitos, a decisão de não comer pode ser a única forma de o adolescente demonstrar alguma autonomia para decidir sobre aspectos da sua vida e do seu corpo. A alimentação é algo que ele pode controlar. Além disso, como o estudo desenvolvido por Behar, Barrera & Michelotti (2001) identificaram que neste período as mulheres jovens são mais suscetíveis às pressões exercidas pelas expectativas sociais relacionadas aos papéis sociais femininos. A esse respeito Blowers, Loxton, Grady-Flesser, Occhipinti & Dawe (2003) constataram que as mulheres jovens percebem como maior a pressão para serem magras exercida pelos meios de comunicação, os quais possuem forte associação com a pressão da família e do grupo de amigas. Ou seja, a pressão difundida pelos meios de comunicação torna-se mais efetiva quando associada a outras fontes de pressão do cotidiano.
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Um fato interessante é que dentro do quadro de anorexia existem pacientes que negam estarem preocupados com seu peso e aparência corporal, alguns afirmam que têm problemas familiares, que sentem falta de apetite, ou que não sabem explicar seus comportamentos. Sob o aporte de investigação da comunicação humana e sistemas humanos, entende-se a anorexia e a bulimia como uma história de mensagens desencontradas. Relacionam-se às dificuldades na transposição das etapas entre o início da adolescência e a idade adulta, vivenciadas num contexto familiar rígido, que dificulta mudanças de papéis. A anorexia representaria então um protesto. Seguindo este referencial, Paleo (1994) explica:
Somenzi (1996) relata um caso de transtorno alimentar na infância sugerindo sua relação com abuso sexual. Há argumentos correlacionando o abuso sexual com posterior desgosto com a feminilidade e sexualidade, o que pode afetar a percepção da imagem corporal e predispor ao desenvolvimento e manutenção dos transtornos alimentares.
Nestas famílias, se observa, em termos gerais que há um desajuste entre a filha que deseja tornar-se independente dos pais e eles que não conseguem entender e aceitar. Ela parece reclamar através de sua conduta o direito de libertar-se, disputando através do ato de alimentar-se, o poder com os pais. Os pais, por sua vez, não conseguem entender e apenas vêem que ela não come, vomita e se desnutre. Percebemos então, problemas no sistema de comunicação intrafamiliar, pois, o que uma parte emite não é recebido pela outra e viceversa. O ato terapêutico consiste em resgatar e esclarecer o novo critério de crenças que surge no sistema familiar. (p. 16).
Um outro aspecto que poderia estar na gênese social tanto da anorexia quanto da bulimia, é a associação entre sobrepeso e doença. Além de associar o sobrepeso à culpa, por ter se submetido à tentação da gula, a vinculação do status de saudável a um corpo magro e esbelto acaba, por conseguinte, gerando naqueles que possuem aumento de peso o estigma de potenciais doentes, sofredores, necessitados de tratamento e candidatos à morte prematura. Então, segundo esta concepção, aquele que é gordo tem que sofrer porque optou pelo prazer alimentar e ser demasiadamente indulgente com o seu apetite, comendo além do necessário. E nada melhor para aplacar a culpa e procurar eliminar o estigma do que dietas bastante restritivas, purgações e exercícios exaustivos.
É importante assinalar que a anorexia pode ocorrer inclusive em bebês, o que complica consideravelmente o seu quadro de significações. Lemes, Morais & Vítolo (1997) citam uma pesquisa que identificou formas de anorexia que ocorrem no bebê. Os autores se referem à anorexia na infância como um acontecimento cotidiano na prática médica, sendo inclusive, um dos primeiros problemas a ser reconhecido pelo pediatra como de origem psíquica. Eles distinguem dois tipos de anorexia no segundo semestre de vida da criança: anorexia simples, que surge como uma reação ao desmame, a uma modificação alimentar ou a um incidente patológico benigno grave, que provoca uma anorexia passageira; e a anorexia complexa, que se caracteriza pela intensidade do sintoma e por sua resistência aos métodos habituais de tratamento.
Castillo (1990) reitera que as alterações do desenvolvimento nas primeiras etapas de vida e a falta de interações apropriadas entre a criança e seus pais ou cuidadores, são importantes aspectos para a gênese de muitos transtornos do apetite e da conduta alimentar.
Os tratamentos enfatizam sobremaneira a reeducação alimentar do adulto, mas, dada a complexidade que se configura, as mudanças não podem depender exclusivamente dos sujeitos afetados pelo problema, pois as escolhas alimentares não estão inteiramente sob o seu domínio consciente. Sabemos que a formação destes hábitos está intrinsecamente ligada à cultura e aos condicionamentos alimentares construídos desde a infância, no âmbito familiar e no meio social, onde sofrem interferência direta e indireta dos meios de comunicação, que constroem
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necessidades específicas que beneficiam os mecanismos de mercado e de consumo, em última instância.
complexo, reflete apenas parcialmente os fatores considerados mais importantes na literatura da área.
Juntamente com a propagação da cultura do doce, do chocolate, do sanduíche, do salgadinho, do fast food enfim, constatam-se índices cada vez mais altos de obesidade infanto-juvenil. O fato tem chamado a atenção de pediatras e endocrinologistas, que alertam para os efeitos nocivos do consumo exagerado de carboidratos e gorduras e estimulam campanhas de saúde pública para o seu controle.
Para um melhor entendimento das conexões entre fatores psicossociais e os transtornos alimentares mais comuns na nossa cultura, a bulimia e a anorexia, é fundamental a rejeição de modelos reducionistas, que geralmente focalizam o problema no próprio sujeito e o medicalizam, e a adoção de uma perspectiva que contemple o problema na sua complexidade bio-psico-social. É urgente ampliar as investigações, de modo a observar a sua ocorrência nas diferentes culturas, bem como analisar as variações das apresentações clínicas em conexão com as implicações de ordem social.
Diante destas necessidades alimentares de segunda ordem, quase que impostas pelo modo de vida e pelos meios de comunicação, já bem assentadas no adulto, identificamos o dilema do bulímico que cede momentaneamente a um grande impulso e voracidade pela comida, para logo em seguida, sentir-se culpado, com medo da ruína, do insucesso, da rejeição, da discriminação social e da doença. Os sentimentos negativos associados à percepção subjetiva da obesidade levam o bulímico à produção de vômitos e à purgação para se redimir da sua fragilidade e falta de autocontrole diante dos alimentos, com conseqüências inevitáveis para a sua saúde e conforto. Considerações Finais Como observamos, o quadro em que se inserem os transtornos focalizados articula uma multiplicidade de fatores, indicando que é impossível dissociá-los do contexto histórico e cultural, centrando a atenção apenas no sujeito e na sua fisiologia. Os transtornos se articulam com a conjuntura de escassez e abundância alimentar; com a difusão de um ideal de beleza e de corpo saudável, inatingíveis pela maioria das pessoas; com estímulos sociais ao consumo alimentar; com disfunções hormonais e de neurotransmissores; com a percepção distorcida do peso e da configuração corporal; com a construção da identidade social de gênero; com mudanças na percepção do próprio corpo e da auto-estima em decorrência de abuso sexual; com hábitos alimentares culturalmente construídos e compartilhados; entre outros. É importante considerar que embora o quadro aqui esboçado seja
Os especialistas relatam que o tratamento da anorexia pode ser frustrante para a equipe de saúde, para os familiares e para o próprio sujeito, pois a recuperação é, em geral, prolongada e difícil. Tem sido preconizado o uso de antidepressivos e terapia cognitiva/ comportamental e observam-se, na anorexia, recidivas em torno de 25%. Em relação à bulimia chega-se a uma remissão total dos sintomas em 50% dos casos, após períodos de 6 meses a 5 anos. Entretanto, as evidências sobre a eficácia do tratamento são limitadas. Muitas mulheres com anorexia e também bulimia não são tratadas e uma parcela das que iniciam o tratamento abandonam os estudos de acompanhamento de longo prazo, principalmente as que têm recaídas. Sem dúvida, identificar em cada caso os fatores relacionados ao problema e proporcionar atendimento multiprofissional, pode representar um avanço no tratamento destas pacientes. Considerando que os transtornos alimentares representam um amplo campo de investigação, onde a variedade dos fatores envolvida na sua gênese abre portas para o entendimento mais profundo das inter-relações entre alterações biológicas e os diversos condicionantes de ordem psicológica, cultural e social, as abordagens
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psicossociais são, atualmente, as estratégias mais recomendadas. A probabilidade de sucesso é maior, pois englobam desde a reeducação alimentar através das orientações nutricionais, o acompanhamento médico-clínico e especializado cuidadoso, o uso criterioso de psicofármacos e as terapias de apoio psicológico e familiar. Considerando a radicalidade com que a bulimia e a anorexia se manifestam nas mulheres, principalmente nas jovens, Behar, Barrera & Michelotti (2001) adotam a perspectiva de terapeutas feministas e propõem uma terapia que consideram diferenciada: que dê destaque às influências sócio-culturais que compõem os transtornos alimentares e que reconheça a transcendência da auto-estima, o autocontrole e a força destas pacientes. As mulheres devem aprender a valorizar seu corpo e sentir-se confortáveis com eles, percebê-los como fonte de prazer ao invés de objetos de sofrimento e
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aflição, e que o fato de serem magras não significa automaticamente obter uma autoconfiança maior, ser bonita ou sexualmente atraente (p. 1009).
Como objetos de estudo, a anorexia e a bulimia possibilitam e exigem que nos adentremos nos intrincados mecanismos que envolvem a mulher nas suas relações com padrões e pressões sociais relacionados à beleza, à sexualidade, à imagem corporal, aos estímulos ao consumo, à aquisição de autonomia e liberdade, e ao desempenho de papéis sociais que lhe permitem atrair admiração e obter sucesso, aspectos relacionados à construção da cidadania das mulheres. Os conteúdos simbólicos associados à anorexia e à bulimia são algumas das respostas possíveis para as perguntas muito bem formuladas na canção Comida, de autoria de Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Britto: “Você tem sede de quê? Você tem fome de quê?”.
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Você tem Fome de quê? Abordagem Biopsicossocial de Transtornos Alimentares
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2/10/2003
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